Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
566/16.3CHV.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: DIFAMAÇÃO AGRAVADA
EXPRESSÕES PUBLICADAS NO FACEBOOK
TEOR NÃO DIFAMATÓRIO
ABSOLVIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - O direito fundamental ao bom nome e reputação de qualquer pessoa tem de ser compatibilizado com o também direito fundamental da liberdade de expressão e informação, o qual tem como manifestação o direito de divulgar a sua opinião e exercer o direito de crítica.

II - Uma vez que o exercício deste direito pode entrar em conflito com bens jurídicos pessoais, como a honra e a consideração, importa que as expressões utilizadas se circunscrevam ao sentido próprio da crítica, não atingindo o nível da ofensa pessoal desnecessária, inadequada ou desproporcional a um normal exercício do direito de expressar a opinião, cabendo aos tribunais judiciais o controlo da crítica excessiva, arbitrária, gratuita ou desproporcionada, na medida em que seja ofensiva do bom nome e da reputação da pessoa.

III - O eventual conflito entre esses dois direitos terá de ser resolvido por ponderação dos respetivos interesses, fazendo intervir critérios como o da proporcionalidade, da necessidade e da adequação, salvaguardando, porém, o núcleo (alcance e conteúdo) essencial dos preceitos constitucionais em jogo, que ocupam igual peso na hierarquia dos valores constitucionalmente protegidos.

IV - No conflito entre o direito à honra e a liberdade de expressão tem vindo a verificar-se um ponto de viragem, tendo por base e fundamento o relevo, a dignidade e a dimensão da liberdade de expressão considerada numa dupla dimensão, concretamente como direito fundamental individual e como princípio conformador e essencial à manutenção e aprofundamento do Estado de Direito democrático, reconhecendo-se que o exercício do direito de expressão, designadamente enquanto direito de informar, de opinião e de crítica, constitui o próprio fundamento do sistema democrático, o que justifica a assunção de uma nova perspetiva na resolução do conflito.

V - No caso concreto, a publicação feita pela arguida, na respetiva página pessoal do facebook, de uma fotografia sua, tirada à frente do estabelecimento comercial de pronto a vestir denominado “Boutique L.”, em que é visível esta denominação, acompanhada dos dizeres “Não aconselho muito estas L.”, pelo teor abstrato, ambíguo e indefinido desta afirmação, não é objetivamente ofensiva da honra e da consideração devidas ao assistente, enquanto pessoa individual e proprietário do referido estabelecimento, por não ser suscetível de ser entendida como formulação, suficientemente explícita ou inequívoca, de um juízo negativo sobre o estabelecimento comercial ou sobre o bom nome e a reputação profissional do seu proprietário.

VI - A expressão utilizada não vai além do que a liberdade de expressão permite, enquanto exercício do direito de exprimir opiniões, ideias ou pensamentos, não possuindo uma carga desvaliosa suscetível de afetar o bom nome e a reputação do assistente.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo comum, com intervenção de juiz singular, com o NUIPC 566/16.3CHV, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, no Juízo Local Criminal de Chaves, foi proferida sentença, datada e depositada a 14-09-2017, a condenar a arguida, F. B., pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação agravado, previsto e punido pelos arts. 180º, n.º 1, e 183º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz € 840,00 (oitocentos e quarenta euros), bem como, na parcial procedência do pedido de indemnização civil formulado pelo demandante A. F., a pagar a este € 1.600,00 (mil e seiscentos euros), a título de danos de natureza não patrimonial, acrescida de juros de mora, à taxa legal desde a decisão, até efetivo e integral pagamento.
2. Inconformada com essa condenação, a arguida recorreu da sentença, retirando da sua motivação, as seguintes conclusões (transcrição [1]):

«EM CONCLUSÃO

- Os factos ocorridos não estão corretamente enquadrados com o contido nos artigos 180º-1 e 183º-1, a) e b) do Código Penal, porque haverá incorreta aplicação da norma.
- A recorrente não cometeu qualquer crime de difamação ou outro.
- Fez as fotos que fez, sem se referir às lojas propriamente ditas e menos ainda para as denegrir.
- Produziu os comentários que produziu sem intenção de atingir os estabelecimentos ou as pessoas, comentários esses, que foram descontextualizados e umas e outros não possuem qualquer conteúdo difamatório.
- Ao agir como agiu não ofendeu quem quer que seja e menos ainda prejudicou, porque nem de perto pensou que as suas fotos ou comentários tivessem ou que as leituras que as pessoas quiseram dar.
- A recorrente não pensou e não lhe passou pela cabeça qualquer tipo de consequências, porque os seus comentários não as tinham, nem eram motivo para tal.
Nestes termos,
Revogando a douta sentença proferida e de que ora se recorre e absolvendo a recorrente se fará a mais elementar
JUSTIÇA»

3. A Exma. Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância respondeu ao recurso, concluindo nos seguintes termos (transcrição):

«CONCLUSÕES

A) O Tribunal a quo condenou a recorrente na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), no montante global de € 840,00 (oitocentos e quarenta euros), pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação, agravado, previsto e punido pelos artigos 180.º n.º 1 e 183.º, n.º 1, al. a) do Código Penal;
B) A arguida, em frente ao estabelecimento comercial “Boutique L.” deixou-se retratar, passando a colocar a foto no seu perfil de facebook, aberto ao público, sem restrições de publicidade, acompanhado do texto "NÃO ACONSELHO MUITO ESTAS L.;)";
C) Alega a recorrente que a factualidade dada como provada em sede de Sentença não integra o crime pelo qual foi condenada;
D) Discordamos da recorrente;
E) Do cotejo da fundamentação de facto com o direito importa ressaltar que a concreta publicação e comentário/texto em causa nos autos consubstanciam, pelo contexto e ‘razão de ciência’ que lhes estão subjacentes, o crime, grave, pelo qual a recorrente foi condenada;
F) Foram dados como provados estes factos, com relevo para o objeto do recurso:

“(…) 12) O filho do assistente, J. F., é administrador do grupo do Facebook “ (…), Cidade X”, onde o mesmo tem intervenções, no âmbito do seu direito de cidadania, de crítica da gestão camarária e de algumas decisões da Câmara Municipal de (…).
13) No mesmo grupo, A. A., com o nome J. T., intervém e faz críticas, no âmbito do seu direito de cidadania, de crítica da gestão camarária e de algumas das decisões da Câmara Municipal de (…).
14) A arguida fez, nas mesmas circunstâncias, uma publicação no seu perfil de Facebook, com uma foto em que aquela está em frente à loja comercial “V.”, pertencente a A. A., acompanhada com a expressão “Estava eu dizer… não entres A., não entres….”. (…);
G) Neste contexto, a publicação referida em B) apenas pode ser interpretada “(…) como um juízo de valor direcionado a denegrir o bom nome e a imagem do estabelecimento comercial e do respetivo proprietário, aqui assistente, lançando a suspeita (genérica) com vista, claramente, a que as pessoas que vissem a publicação não frequentassem o referido estabelecimento e, logo, não adquirissem o que ali se vende. (sublinhado nosso);
H) A publicitação pública da afirmação, conjugada com a fotografia do estabelecimento, nos termos em que o foi e com os dizeres nele constantes, prejudicou o âmbito da honra que pertence ao assistente, sendo que tal proteção é agravada pelo art.º 183.º, n.º 1, al. a) [« ... ofensa ... praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação»], tanto mais que o Facebook é uma rede social e um meio que facilita naturalmente a sua divulgação;
I) As concretas afirmações e publicações proferidas nos autos não podem ser analisadas de forma estanque, como pretende a recorrente;
J) Pelo contrário, têm de ser contextualizadas, como o foram sábia e exemplarmente, desde logo do ponto de vista de facto, pelo Tribunal a quo, subsunção que sufragamos e que não nos merece qualquer reparo;
K) A recorrente não questiona nem impugna os factos, só discorda da subsunção dos factos ao direito;
L) Não põe em causa a medida da medida;
M) Deverá improceder o recurso apresentado, de todo, por nenhuma censura nos merecer a Sentença ora recorrida, não se vislumbrando, in casu, violação de qualquer normativo (não invocando sequer a recorrente a violação pelo Tribunal a quo de qualquer norma).

Nestes termos, deverá o recurso improceder, confirmando-se, in totum, a Sentença recorrida, por nenhum agravo ter feito à Lei e por nenhum reparo nos merecer.
Farão, contudo, Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, a reiterada
JUSTIÇA.»

4. Também o assistente, na resposta que apresentou, pugnou pela improcedência do recurso, formulando as conclusões que se transcrevem:

«1.º A arguida interpôs o presente recurso não indicando se o mesmo versa matéria de direito ou/e matéria de facto e não cumprindo minimamente o disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 412.º do C.P.P. porquanto se limita a dizer, sem mais, que “os factos não estão corretamente enquadrados com o contido nos artigos 180º-1 e 183º 1, a) e b) do Código Penal, porque haverá incorreta aplicação da norma”, pelo que, aqui expressamente se invoca o incumprimento de tal preceito legal, com as legais consequências.

Sem prescindir,
2.º A douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo não merece qualquer reparo, porquanto se trata de uma decisão justa, equilibrada, ponderada que faz uma extensiva fundamentação fáctica, enunciando com clareza os factos que julga provados e não provados e os motivos dessa convicção, mostrando-se, assim, completamente acertada no elenco factual, na sua fundamentação e na correta aplicação do direito aos factos.
3.º O que se depreende do recurso interposto pela arguida é que esta pugna pela sua absolvição única e exclusivamente porque perfilha que atendendo aos factos dados como provados, os quais não impugna e em consequência, entende que foram corretamente julgados, não estão corretamente enquadrados com o contido nos artigos 180.º, n.º 1, alínea a) e 183.º, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal, considerando que tais normas jurídicas foram, assim, incorretamente aplicadas.
4.º Contudo, atendendo aos factos dados como provados na douta sentença proferida pelo tribunal a quo não há dúvidas que a arguida cometeu o crime a que foi condenada, fazendo assim, o tribunal a quo uma correta subsunção dos factos dados como provados ao direito.
5.º A recorrente, não impugnou, como supra se disse, a matéria de facto, pelo que, os parágrafos 3.º, 4.º, 5.º e 6.º das suas conclusões do recurso, são meras considerações por si tecidas que em nada correspondem aos factos dados como provados na douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, pelo que, se devem ter como não escritas, por ausência total de fundamento.
6.º O artigo 180.º, n.º 1 do Código Penal traduz uma medida restritiva da liberdade de expressão, conferindo tutela penal ao direito do cidadão à sua integridade moral e aos seus bom nome e reputação, ao estabelecer que comete o crime de difamação “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo.
7.º O bem jurídico protegido com a incriminação é a honra (que respeita mais a um juízo de si sobre si) e a consideração (que se traduz, normalmente, num juízo dos outros sobre alguém) de uma pessoa.
8.º Para Beleza dos Santos, in R. L. J. n° 3152, pág. 167 "A honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa, com legitimidade, ter estima por si, pelo que é e vale". A consideração é, ainda na doutrina daquele autor "aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público". São estes os valores que integram o bem jurídico protegido pelo crime de difamação, sendo certo que a sua consagração constitucional opta pela referência aos conceitos de "bom nome" e "reputação".
9.º Não está em causa a perceção subjetiva que se tem da valia ética individual ou a maior ou menor sensibilidade ao ataque dessa valia individual (daí ser indiferente, para efeitos de tipificação da conduta do arguido, que o visado, no seu texto, se tenha sentido ofendido) mas antes uma perceção, mediada pela sensibilidade comunitária mediana, daquilo que representa o núcleo essencial das ditas condições morais ou requisitos éticos, à luz do princípio da dignidade humana. Nestes termos, "a difamação pode definir-se como atribuição a alguém de facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerrem em si uma reprovação ético-social".
10.º Nos termos da lei, o ataque à honra tanto pode ocorrer mediante a imputação de um facto como de um juízo e valor, sendo relativamente pacífico na doutrina e na jurisprudência que um facto será "um acontecimento ou situação pertencente ao passado ou ao presente e suscetível de prova" e um juízo de valor será "toda a afirmação contendo uma apreciação sobre o carácter da vítima que não está inscrita em factos". (segundo Augusto Silva Dias, Alguns Aspetos do Regime Jurídico dos Crimes de Difamação e de Injúrias, AAFDL, 1989, pág. 149.)
11.º Trata-se de um crime de perigo abstrato-concreto, isto é, um crime em que basta a possibilidade de ofensa à honra e consideração, sem necessidade de realização concreta do perigo, mas em que tal perigo terá de ser, concretamente, possível, seja qual for a forma de afirmação ofensiva (através de ironia ou sarcasmo, de forma dubitativa, por mera insinuação, etc.).
11.º De facto, a insinuação, as meias palavras, a suspeita, o inconclusivo são a maneira mais conseguida de ofender quem quer que seja.
12.º A difamação é um crime doloso, sendo suficiente a imputação baseada apenas em dolo eventual (número 3 do artigo 14.º do CP) e é um crime comum, o agente comete tantos crimes de difamação quantas as pessoas ofendidas.
13.º Para a verificação do elemento subjetivo do crime de difamação não se exige que o agente queira ofender a honra e consideração alheias, bastando que saiba que, com o seu comportamento, pode lesar o bem jurídico protegido com a norma e que, consciente dessa perigosidade, não se abstenha de agir; ou seja, basta o dolo eventual. (Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, comentário ao artigo 180.º, § 1, p. 612.).
14.º Por sua vez, o artigo 183.º do C.P. dispõe que “1 - Se no caso dos crimes previstos nos artigos 180.º, 181.º e 182.º: a) A ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação; (…). b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa-fé, a reputar verdadeira. (…)”
15.º Mas, nem tudo aquilo que alguém considere ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria punível, como ensina o Prof. Beleza dos Santos - R.L.J., Ano 92, págs. 165 e segs.
16.º Segundo o Prof. Beleza dos Santos, há pessoas com um amor-próprio tal, com uma estima tão grande pelo eu, atribuindo um valor de tal maneira excessivo àquilo que possa tocá-los e ainda ao que dizem ou pensam os outros, que se consideram ofendidos por palavras ou atos que, para a generalidade das pessoas, não constituiriam ofensa alguma. Neste caso, não deve considerar-se existente qualquer difamação ou injúria.
17.º Não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem tudo aquilo que o queixoso entenda que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais.
18.º Neste juízo Individual ou do público, acerca do que pode ser ofensivo da honra e da consideração, é comum a todos os meios e países a exigência do respeito de um mínimo de dignidade e de bom-nome. Para além deste mínimo, porém, existe certa variedade de conceções, da qual resulta que palavras ou atos considerados ofensivos da honra, decoro ou bom nome em certo país, em certo ambiente e em certo momento, não são assim avaliados em lugares e condições diferentes. O que pode ser uma ofensa ilícita em certo lugar, meio, época ou para certas pessoas, pode não o serem outro lugar ou tempo. O direito criminal não pune por motivos unicamente individuais, mas pela projeção social dos crimes. Só o sendo, pois, aquelas condutas aptas a atingir a dignidade individual a que todos têm direito e não aquelas que estejam dependentes da perspetiva ou compreensão que cada um tem dos seus valoresmorais ou éticos. Ou seja, daqueles valores que emergem do nosso quadro constitucional (art. 26.º, n.º 1 C.R.P.), que alude ao “bom nome e reputação, à imagem”, como legislativo (v. g. 70.º, n.º 1 Código Civil), nomeadamente aquela que diz respeito à tutela geral da personalidade (“personalidade física ou moral”) - Acórdão da Relação do Porto, de 09-03-2011, no Proc. n.º 45/08.2TACDR.P1.
19.º Como referem Leal Henriques e Simas Santos – in código Penal Anotado, Vol. II, pág. 494 - nos crimes em análise não se protege a suscetibilidade pessoal de quem quer que seja, mas apenas a dignidade individual da pessoa, sendo uma das suas características a da sua relatividade, o que significa que o carácter injurioso ou difamatório de determinada palavra ou ato é fortemente dependente do lugar ou ambiente em que ocorre, das pessoas entre quem ocorre, do modo como ocorre.
20.º Para apreciar se os factos, palavras e escritos são injuriosos será de ter em conta os antecedentes do facto, o lugar, ocasião, qualidade, cultura e relações entre ofendido e agente, de modo que factos, palavras e escritos que em determinadas circunstâncias se reputam gravemente injuriosos, podem não ser de considerar ofensivos ou tão-somente constitutivos de injúria leve.
21.º Ou como se referiu no Ac. da Relação do Porto, de 14/07/08, no Processo nº 0841633, a proteção penal dada à honra e consideração e a punição dos factos que atentem contra esses bens jurídicos, só se justifica em situações em que objetivamente as palavras proferidas não têm outro conteúdo ou sentido que não a ofensa, ou em situações em que, uma vez ultrapassada a mera suscetibilidade pessoal, as palavras dirigidas à pessoa a quem o foram, são, indubitavelmente, lesivas da honra e da consideração do lesado.
22.º Em suma, para que se considere cometido um crime contra a honra, as expressões utilizadas têm que ser apreciadas no contexto situacional em que são proferidas e alcançar um patamar mínimo de gravidade que lhes confira dignidade penal.
23.º No caso dos presentes autos, a arguida colocou-se à frente do Estabelecimento comercial propriedade do assistente, denominado “ Boutique L.”, aí se deixando fotografar, tendo colocado tal fotografia no seu perfil do Faceboock, aberto ao público, sem qualquer restrição de publicidade, tendo acompanhado a mesma do texto “NÃO ACONSELHO MUITO ESTAS L.;)”
24.º Tal como considerou o tribunal a quo, a referida publicação da arguida, no contexto em que a mesma ocorreu (contexto este dado como provado nos pontos 12 a 14 dos factos provados) apenas pode ser interpretada como um juízo de valor direcionado a denegrir o bom nome e a imagem comercial do estabelecimento comercial do assistente e da pessoa do seu proprietário, o assistente, lançando a suspeita com o claro propósito de que todas as pessoas que visualizassem a sua publicação no facebook não frequentassem o estabelecimento do assistente e aí não adquirissem os bens/produtos que ai se encontram à venda.
25.º A arguida agiu com o nítido propósito de afastar clientes do estabelecimento comercial do assistente, pondo em causa a qualidade dos produtos aí comercializados e a honestidade comercial do seu proprietário, o assistente.
26.º A Internet, meio que a arguida utilizou para divulgar a referida fotografia acompanhada com a supra mencionada afirmação, é um meio de divulgação completamente distinto dos outros meios de comunicação, pois é mais livre e com uma velocidade de difusão de mensagens muito superior à dos restantes meios, a Internet é uma “tribuna planetária, acessível por toda a gente e em condições teoricamente iguais” José Pedro Castanheira, No reino do anonimato – Estudo sobre o jornalismo online, p.122.78.
27.º A rede social Facebook foi criada para facilitar a divulgação, partilha e envio dos mais diversos conteúdos e é a rede social com mais utilizadores no nosso país e no mundo, pelo que tendo a arguida colocado a publicação em causa com acessibilidade livre a qualquer utilizador no mural do seu perfil do facebook, fê-lo através de meio propulsor de facilitar a sua divulgação por forma a agravar a sua conduta, ao abrigo do disposto no artigo 183.º, n.º 1, alínea a) do C.P.
28.º A arguida bem sabia que a publicação por si efetuada no facebook ia lesar o bem jurídico protegido com a norma, e consciente dessa perigosidade, quis ainda assim agir dessa forma, tendo, tal como resultou provado, logrado atingir o objetivo pretendido, sabendo que o facebook facilitava a divulgação da publicação.
29.º Estão assim preenchidos os elementos objetivo e subjetivo do crime de difamação agravado.
30.º Os factos dados como provados, e não impugnados pela arguida, estão devidamente enquadrados nos artigos 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 1, alíneas a) e b) do C. P., pelo que, a sentença proferida pelo Tribunal a quo não merece qualquer reparo, devendo manter-se nos seus precisos termos.

Termos em que, e nos mais e melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se a douta decisão recorrida, fazendo-se assim,
JUSTIÇA!»

5. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado procedente, nos seguintes termos:

- Declarando nula a sentença recorrida, de acordo com o disposto nos art.s 379º, n.º 1, als. b) e c), e 359º do Código de Processo Penal, porquanto a ampliação fática que teve lugar envolveu, de facto, uma alteração substancial, sem que tenha sido sequer ponderada a obtenção do consentimento dos sujeitos processuais no prosseguimento do julgamento com os novos factos, com a consequente devolução dos autos à primeira instância, a fim de aí se suprida a nulidade indicada, com a reabertura da audiência em que se cumpra efetivamente o art. 359º, especialmente o seu n.º 3.
- Ou, subsidiariamente, declarando-se a existência de erro notório na apreciação da prova quanto aos factos atinentes à vertente subjetiva do ilícito, julgando-se os mesmos como não provados (art. 410º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal), concretamente que a expressão em causa tenha sido proferida com o intuito de denegrir o ofendido e/ou o estabelecimento, por ser manifesto que a recorrente não a empregou com a intensidade de quem pretendesse efetivamente desacreditar comercialmente o estabelecimento e/ou o seu dono, apresentando-se tal conclusão como ilógica ou inaceitável num quadro como o dos autos.
- Ou, se ainda assim não se entender, julgando-se atípica a conduta da recorrente, com a inerente absolvição da mesma, por o comentário em questão estar longe de se pode ler como ofensivo da honra do assistente, não contendo, aliás, uma só palavra que seja dirigida a ele, não exibindo, pois, um qualquer facto, nem formulando sobre ele, enquanto pessoa física, um juízo ofensivo da sua honra e consideração, sendo, quando muito, um aconselhamento que não terá relevância penal.
6. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a arguida respondeu, aderindo ao parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto.
7. Após exame preliminar e colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de acordo com o disposto no art. 419º, n.º 3, al. c), do citado código.


II. FUNDAMENTAÇÃO

1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

É consabido que são as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação, nas quais sintetiza as razões do pedido, que definem e determinam o âmbito do recurso e os seus fundamentos, delimitando, assim, para o tribunal superior, as questões a decidir e as razões por que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certos vícios e nulidades, ainda que não invocados ou arguidas pelos sujeitos processuais [2].

Na decorrência das conclusões formuladas pela recorrente, constitui questão a decidir a verificação dos elementos típicos do crime de difamação, pelo qual a mesma foi condenada, tendo ainda presente que, no seu parecer, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto suscita as questões da nulidade da sentença, prevista nos arts. 379º, n.º 2, al.s b) e c), e 359º do Código de Processo Penal, e da existência de erro notório na apreciação da prova.

2. DA SENTENÇA RECORRIDA

É do seguinte teor a fundamentação de facto da sentença recorrida (transcrição):
«A. Factos provados:

Discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a decisão a proferir, os factos seguintes:

Da acusação

1) O assistente é proprietário de um estabelecimento comercial de pronto a vestir denominado " Boutique L.", sito no (…), n.º (...), na cidade de (…).
2) Estabelecimento comercial este que, está aberto ao público há mais de duas décadas e é conhecido e muito bem reputado por todos os seus clientes, pelos cidadãos residentes em (…) e nas cidades periféricas, que reconhecem que os artigos aí vendidos são de qualidade, reconhecimento este que foi conseguido com muito trabalho e a pulso pelo aqui assistente e pela sua esposa.
3) No dia 03/06/2016, pelas 22h21m, a arguida F. B., trabalhadora da Câmara Municipal de (…), publicou na sua página pessoal do "facebook" uma fotografia sua à frente do estabelecimento comercial propriedade do assistente, denominado "Boutique L.", sito no (…), n.º (…), em (…), com os seguintes dizeres: "NÃO ACONSELHO MUITO ESTAS L.;)" cujo ter aqui se dá integralmente por reproduzido para os devidos e legais efeitos.
4) A publicação efetuada pela arguida F. B., através do facebook, estava acessível a qualquer pessoa que utilizasse tal rede social (facebook) e acedesse à sua página pessoal do Facebook, pois, o seu acesso não estava restringido apenas àqueles que fizessem parte ou solicitassem a integração no seu grupo de "amigos".
5) Em consequência, a referida publicação efetuada pela arguida F. B. na sua página do facebook foi visualizada e partilhada por muita gente e comentada por diversas pessoas, utilizadores de tal rede social, as quais reprovaram a atitude da arguida pois a mesma fê-lo com o único propósito de desprestigiar, denigrir e enxovalhar o estabelecimento comercial do queixoso ferindo duramente a sua imagem social e comercial.
6) A arguida F. B., ao fazer a publicação como fez, agiu de forma intencional, sabendo que o conteúdo por si publicado na sua página do facebook chegaria ao conhecimento de um leque alargado de pessoas, como efetivamente veio a acontecer.
7) Com a publicação por si efetuada no facebook no dia 03/06/2016 "NÃO ACONSELHO MUITO ESTAS L.” a arguida F. B. pretendeu publicitar uma imagem negativa estabelecimento comercial com o nítido propósito de afastar clientes do mesmo, pondo em causa a qualidade dos produtos e a honestidade comercial do assistente.
8) O assistente é pessoa muito trabalhadora e séria, respeitador e respeitado por todas as pessoas e o seu estabelecimento comercial é conhecido e reputado como um estabelecimento de qualidade.
9) A arguida F. B. agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito de atingir, como efetivamente atingiu, a credibilidade, o prestígio, a confiança, a honra e consideração do assistente e do estabelecimento comercial deste, denominado "Boutique L.", situado no (…), n.º (…), em (…).
10) A arguida F. B., consciente que, com a publicação lesava a imagem comercial do estabelecimento e do seu proprietário, aqui assistente, não se coibiu de o fazer.
11) A arguida é funcionária do Município de (…), intervindo em diversos eventos organizados pela Câmara Municipal de (…), sendo apoiante do executivo camarário.
12) O filho do assistente, J. F., é administrador do grupo do Facebook “(…), Cidade X”, onde o mesmo tem intervenções, no âmbito do seu direito de cidadania, de crítica da gestão camarária e de algumas decisões da Câmara Municipal de (…).
13) No mesmo grupo, A. A., com o nome J. T., intervém e faz críticas, no âmbito do seu direito de cidadania, de crítica da gestão camarária e de algumas das decisões da Câmara Municipal de (…).
14) A arguida fez, nas mesmas circunstâncias, uma publicação no seu perfil de Facebook, com uma foto em que aquela está em frente à loja comercial “V.”, pertencente a A. A., acompanhada com a expressão “Estava eu dizer… não entres A., não entres….”.

Do pedido de indemnização civil

15) A arguida, ao efetuar a publicação na sua página de facebook atingiu o bom nome, reputação, consideração social, prestigio, dignidade pessoal e profissional do assistente e do estabelecimento comercial deste, denominado" Boutique L.".
16) O assistente/demandante é um cidadão honrado e um profissional competente, sério, trabalhador, responsável, dedicado e o seu estabelecimento comercial é, a sua imagem social.
17) O estabelecimento comercial do assistente, que se encontra aberto ao público há mais de duas décadas, é exatamente conhecido pelos seus clientes e público em geral, como uma loja que vende artigos de marcas prestigiadas no mercado, de reconhecida qualidade.
18) A " Boutique L." é conhecida por todos os (…) e, também, por habitantes de cidades limítrofes, contando com um vasto e alargado numero de clientes, muitos deles "fidelizados" há vários anos, pela elegância no atendimento e qualidade do produto no mesmo comercializado.
19) Atendendo à sua localização - em frente ao tribunal de (…), numa das ruas mais movimentadas e conhecidas da cidade o estabelecimento comercial do assistente tem uma visibilidade bastante grande e, em consequência, é bastante conhecido e frequentado por residentes e pessoas que visitam a cidade de (…).
20) A arguida, com a sua atuação, colocou em causa a qualidade dos produtos e atendimento do estabelecimento comercial "L.", afetando gravemente a sua imagem comercial, provocando no assistente, profunda humilhação e revolta, sentindo-se vexado, triste e ofendido na sua honra profissional e pessoal.
21) A publicação efetuada pela arguida através da internet, meio este que permite a difusão da informação à escala mundial, foi largamente comentada por diversas pessoas, nomeadamente clientes habituais do estabelecimento comercial do assistente, flavienses em geral, por inúmeros utilizadores da rede social do "facebook" e proprietários de outras lojas comerciais
22) Tal publicação, divulgada e difundida pela arguida através da rede social "Facebook", foi lida por familiares, amigos, conhecidos e clientes, do assistente, tomando-se do domínio público, tendo as pessoas das suas relações e fora delas tomado contacto com o conteúdo da publicação, pessoas que viam o assistente como um cidadão e profissional responsável, leal, honesto, com uma boa conduta moral e social, sendo pessoa muito estimada, qualidades essas que reconheciam, também, no estabelecimento comercial propriedade deste.
23) Nos dias subsequentes à publicação efetuada pela arguida diversas pessoas se dirigiram ao estabelecimento comercial "Boutique L." e abordaram diretamente o assistente, bem como a funcionária da loja, acerca do conteúdo, causa e veracidade da publicação.
24) Em consequência da atuação da arguida o assistente/demandante sofreu, um forte abalo psíquico e de um desgosto profundo.
25) Tudo isto afetou o bem-estar físico mental e social do assistente e seus familiares.
26) O relatado comportamento da arguida/demanda provocou stress e uma tensão acrescida ao assistente / demandante, sobretudo nas subsequentes semanas.

Da contestação

27) A arguida tem uma página no Facebook sobre a cidade de (…), onde repetidamente defende a cidade, e não raro contradiz comentários depreciativos que algumas pessoas publicitam.
28) Passeando na cidade vai tirando fotografias daquilo que acha mais bonito e coloca-as noutras páginas e reforçando com comentários positivos.
29) Na publicação com foto, referida em 14), tratava-se de A. L. e sendo a mesma foto tirada por D. B..
30) Esta fotografia foi postada na sua página do facebook no mesmo dia e praticamente á mesma hora daquela que constituiu a base da acusação particular e relativa à Boutique L..
31) A arguida é apoiante do atual executivo municipal.

Condições socioeconómicas e antecedentes criminais

32) A arguida é funcionária da Camara Municipal de (…), trabalhando no gabinete de Apoio Técnico às Freguesias, sem qualquer lugar de chefia.
33) Aufere o valor correspondente ao salário mínimo nacional.
34) Vive com um filho de 39 anos de idade que se encontra desempregado.
35) Reside em bairro social, pagando 50,00€ de renda.
36) A arguida é reconhecida como boa pessoa e boa colega de trabalho.
37) Nada consta no seu certificado de registo criminal.
*
B. Factos não provados:

Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a boa decisão da causa e, designadamente, que:

a) Em consequência da publicação efetuada pela arguida, nos dias subsequentes as vendas efetuadas no estabelecimento comercial do assistente diminuíram substancialmente.
b) Uma das fotos que a arguida tirou, referida em 28), foi porque achou o nome engraçado.
c) Referia-se às "loucuras" de comentários que ia lendo noutras páginas e por isso não se referia à loja propriamente dita ou a alguém relacionado com ela.
d) No dia 03/06/2016 às 22,21 horas, não foi a arguida que escreveu o que consta no documento apenso à acusação particular.
e) Acabou por retirar essa mesma foto no dia 5, depois de ler outros comentários.
f) Terá sido alguém que aproveitando a foto eventualmente partilhada e o comentário, os colocou em seu nome.
g) Nunca se queria referir à loja comercial, contra a qual nada tem, seu proprietário ou eventuais empregados.
h) A arguida do outro lado da rua e à data da fotografia, disse para a amiga: “Não entres A., não entres” com a intenção de tirar mais uma foto com a mesma senhora que estava acompanhada de um garoto.
i) Desconhecia a quem pertencia a Loja “V.” e nada de pessoal tinha contra o seu eventual proprietário.
j) Só no dia 5 de Junho, portanto dois dias depois da citada fotografia, é que pelos comentários lidos se apercebeu a quem pertencia a mesma loja.
*
Não se pronuncia, nesta sede, o Tribunal relativamente ao demais inserto na acusação particular, pedido de indemnização civil e contestação por constituir matéria conclusiva e/ou de direito.
*
C. Fundamentação da convicção do tribunal

O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade acima apurada com base no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento e criticamente analisada, do modo que se passa a expor, nos termos do art.º 127.º do Código de Processo Penal.

A convicção do Tribunal alicerçou-se na análise crítica e ponderada, à luz dos princípios que regem a matéria, da prova produzida e/ou examinada em audiência de julgamento, designadamente e no essencial, com base nas declarações prestadas pela arguida e pelo assistente e nos depoimentos prestados pelas testemunhas que depuseram em Tribunal, em conjugação com a prova documental e as regras da experiência comum.

A arguida, nas suas declarações, refere que, um dia, saiu do trabalho e foi tirando fotografias em diversas partes da cidade, por achar bem enaltecer a cidade, residindo na mesma há 60 anos. Referiu ter feito a publicação, no dia 3 de Junho de 2016, que depois foi partilhada por outras pessoas, inclusive pelo administrador no grupo “(…), Cidade X”, neste grupo, mas o texto foi posto no dia 4 de Junho de 2016, estando público a toda a gente, sem que se tivesse comprovado a sua versão, designadamente, de que o comentário foi aposto apenas no dia 4 de Junho de 2016.

Defende que achou piada ao nome “L.”, com K, mas acabou por não explicar o porquê do texto, dizendo que não conhece a loja, nem o assistente, embora saiba da sua existência muito antes da publicação, pois que há muito tempo ali comprou uma saia.

No mais, confessou que o seu perfil é público, mas não mereceu, por apelo às regras da experiência comum, credibilidade o facto de dizer que não conhece J. F., filho do assistente, e J. T., nem sabia que o estabelecimento se chamava “L.”, pois acabou por dizer que sabe que eles publicam no grupo “(…), Cidade X” e que comprou já algo no referido estabelecimento, sendo reconhecidamente e há muito tempo uma loja muito conhecida na cidade de (…).

Esta versão foi frontalmente contrariada pela demais prova produzida, analisada e conjugada entre si.

O assistente A. F., em declarações assertivas e coerentes, nas quais o Tribunal acreditou totalmente, referiu que foi alertado para a publicação em causa que quis, notoriamente, prejudicá-lo a si e ao estabelecimento comercial de que é proprietário. Recorda-se que existiram comentários contra a publicação da fotografia pela arguida, sendo visualizado por um grande número de pessoas, tendo sido inclusivamente partilhada por outros usuários da rede social. Tal publicação afetou-o muito em termos psicológicos, sentindo-se muito magoado, pois há mais de 20 anos que é proprietário do estabelecimento reconhecido positivamente pelo público, sendo que foi abordado por várias pessoas dizendo-lhe que a publicação era para “o deitar abaixo”, estando inclusivamente essas pessoas revoltadas, tendo sentido o ataque como pessoal.

Quanto ao contexto da publicação, explicou que o seu filho, J. F., é Administrador da página do facebook “(...), Cidade X”, no qual se alerta para situações do concelho menos positivas e decisões erradas da Câmara Municipal de (...), sendo esse o motivo da publicação.

A testemunha A. F. prestou um depoimento isento com conhecimento direto da situação, revelando que, no dia em que foi ao facebook do namorado viu a publicação pública da arguida, com uma foto em frente ao estabelecimento comercial “L.”, debaixo do respetivo toldo, com a expressão que consta dos factos dados por provados, sendo que a mesma foi partilhada por outras pessoas Nas partilhas existiram muitos comentários, tendo inclusivamente comentado a testemunha que se tratava de “bullying” comercial.
Entende que a publicação foi realizada para prejudicar o assistente e o seu estabelecimento comercial. Tem, aliás, conhecimento que o filho do assistente é administrador da página no facebook “(...), Cidade X”, no qual se tecem considerações menos positivas à atuação da Câmara Municipal de (...).

Também viu a publicação da arguida, com uma foto, em frente à loja V. com a expressão “Estava eu dizer… não entres A., não entres….”, sendo que a loja pertencente a uma pessoa (J. T.) que critica, nesse grupo de facebook, o executivo camarário.
A testemunha G. N., vendedora no estabelecimento comercial “L.”, revelou um conhecimento direto da situação, referindo que há 20/21 anos que ali trabalha e que não tem facebook, mas verificou que o assistente se encontrava muito zangado e mostrou a publicação da arguida, tendo reagido com estupefação pois a arguida não é nem nunca foi cliente, facto de que tem conhecimento direto pois que é a testemunha que atende os clientes na loja, sendo que muitos clientes confrontaram o assistente com o sucedido. O assistente reagiu muito mal ao sucedido, agravando o seu estado de saúde.

O estabelecimento comercial tem nome prestigiado no país, não vendo razões para esta publicação e referiu que muitos clientes deixaram de ir à loja, designadamente funcionários da Câmara Municipal de (...), pois existem pessoas muito influenciáveis, num meio pequeno como a cidade de (...), sendo que, nesta parte, face à ausência de prova de que pessoas, em concreto, deixaram de adquirir no estabelecimento e de qualquer registo contabilístico que demonstrasse cabalmente a diminuição das vendas, acaba por ser difícil apurar se e em que medida existiu essa diminuição, acabando por dar-se como não provado o facto enunciado em a), por ausência de prova cabal.

Do mesmo modo, a testemunha V. O., trabalhadora na loja “S.” que pertence também ao assistente, prestou um depoimento isento e importante para a descoberta da verdade material, referindo que soube que a arguida tirou uma fotografia em frente à loja “L.” e fez um comentário. Explicou que viu a publicação aberta ao público sem qualquer restrição (pois não tem amizade no facebook com a arguida), sabendo que a mesma foi partilhada, existindo muitos comentários contra a publicação.

Conhece J. F., filho do assistente, administrador do grupo “(...), Cidade X”, do qual fazem parte muitos membros, criticando-se muita da atuação da Câmara Municipal de (...), no âmbito do direito de cidadania de cada um, julgando que a arguida tomou “as dores” da Câmara Municipal de (...) e atacou o assistente, o qual se sentiu muito afetado, estando muito agitado, tendo conhecimento que as vendas baixaram no estabelecimento comercial “L.”.

De primacial importância se revelou o depoimento de A. A., mais conhecido por “J. T.”, nome que utiliza também no facebook, proprietário da loja “V.”, em (...), sendo membro do grupo “(...), Cidade X”, de que é administrador o filho do assistente, J. F., explicando que ambos tecem comentários contra decisões da Câmara Municipal de (...), no sentido de melhorar o estado da cidade. A arguida, por seu turno, em tudo o que publica defende a Câmara Municipal de (...) para quem trabalha, ao que julga para agradar ao seu Presidente.

A publicação em causa nos autos e a outra publicação a si ligada, por parte da arguida, têm o objetivo de denegrir a imagem dos visados e silenciá-los, sabendo que a publicação, com foto, sobre a loja “L.” estava inserida junto de 32 fotografias colocadas no facebook pela arguida, de forma pública.

O depoimento de A. L. foi também fundamental para a descoberta da verdade material, por ser sério e credível, recordando-se de ter tirado uma fotografia com a arguida, no Verão do mês passado, dizendo que ia a passar na rua, com o seu filho, ouvindo a arguida a dizer que queria tirar uma fotografia com ela, o que veio a acontecer, sendo outra pessoa que tirou a fotografia, com que a arguida seguiu, não tendo visto qualquer mal na fotografia. Refere expressamente que não ia a entrar em qualquer loja, pois que já tinha comprado numa loja mais em baixo o que queria comprar, considerando que a loja “L.” é conhecida por toda a gente na cidade.

Depois viu a publicação da fotografia, mas quanto ao texto não se lembra, não tendo qualquer intenção de entrar na loja.

D. B., assistente operacional na Câmara Municipal de (...), conhecendo a arguida há mais de 40 anos, referiu estar no café com a arguida, sendo que, quando saíram, a arguida viu a testemunha A. L. e disse-lhe que ia tirar uma fotografia com ela junto à loja “V.”, pedindo-lhe que a tirasse, o que fez, não lhe explicando para que efeito era a fotografia, nada mais sabendo.

Em defesa da arguida, M. C., amiga da arguida há 40/50 anos, referiu que é pessoa trabalhadora, animada e muito boa pessoa, julgando que não fez a publicação em causa com alguma intenção, sendo “brincadeiras de facebook”, sendo a arguida muito defensora das suas causas.

L. S., colega de trabalho da arguida, referiu que a conhece há cerca de 2 anos, através de contacto profissional, considerando-a uma excelente colega, sendo boa pessoa, sempre disposta a ajudar.
Ora, tudo analisado em conjugação com a publicação de fls. 77, com a foto e o texto referente ao dia 3/06/2016, pelas 22h21, que foi partilhada por J. T. e J. F. (fls. 139) e a publicação de fls. 139 quanto à loja V., entendemos que as coisas se passaram como refletido na acusação particular, com o acrescento de factos que o Tribunal operou.

É verdade que a arguida, nas suas declarações reconheceu ter feito a publicação que deu origem aos presentes autos, mas também a publicação com fotografia em frente à loja V., sendo que quanto à primeira, inclusivamente, em sede de contestação veio tentar justificar a publicação - de forma que não teve qualquer credibilidade -, tencionado pedir desculpas pelo sucedido.

Simplesmente, o contexto em que se deram os factos é revelador de que a arguida pretendia diminuir a honra e consideração do assistente e do seu estabelecimento comercial como retaliação pelo facto de o filho deste ser administrador de um grupo, no Facebook, (...) Cidade X, no qual, como referiu o assistente, as testemunhas A. F., V. O. e, sobretudo, A. A., que utiliza o nome de J. T., no referido grupo de Facebook.

Veja-se que, ambas públicas, a publicação objeto da acusação particular de fls. 77, com a foto e o texto foi realizado no dia 3/06/2016, pelas 22h21, que foi partilhada por J. T. e J. F. (fls. 139) e a publicação de fls. 139, quanto à loja V., pertencente a “J. T.” refere-se ao dia 3/06/2016, pelas 22h21, isto é, foram insertas na página de Facebook da e pela arguida ao mesmo tempo.
E não nos parece inocente esta simultaneidade.

Como referiram as testemunhas antes expostas, quer J. F., filho do assistente, quer J. T. são críticos da atuação do executivo camarário, manifestando no grupo de Facebook “(...), Cidade X”, o desagrado quanto à sua atuação, por reporte a decisões e a situações que são analisadas.

Como confessadamente (vd. fls. 197, ponto 8), a arguida sendo funcionária da Câmara Municipal de (...) é, de forma clara, apoiante do executivo camarário.
Não é inócua a publicação no mesmo dia das fotos em referência, quanto aos dois estabelecimentos comerciais, acompanhadas de um texto que deve ser interpretado neste contexto.

Se, como confessadamente, a arguida não é cliente do estabelecimento comercial “Boutique L.”, pertencente ao assistente, a que pretexto colocaria uma fotografia, totalmente em frente às instalações daquele, bem identificadas pelo nome no toldo, com a expressão “Não aconselho muito estas L.”?

Se não conhece, o comentário apenas pode ser para denegrir o bom nome e a imagem do estabelecimento comercial e do respetivo proprietário, aqui assistente, lançando a suspeita (genérica) com vista, claramente, a que as pessoas que vissem a publicação não frequentassem o referido estabelecimento e, logo, não adquirissem o que ali se vende.

Conclusão que pode ser retirada se juntarmos a referida publicação com este concreto texto, à publicação referente à loja “V.” (sublinhe-se, no mesmo dia), com os concretos dizeres que dela constam.
Defendeu a arguida, nas suas declarações que estava a falar, no momento, para a sua amiga e aqui testemunha A. L..

Questionada a testemunha A. L., em audiência de julgamento, sobre a publicação em referência, de forma muito clara, referiu que, sendo a arguida sua amiga, acedeu ao seu pedido de tirar uma fotografia com ela, mas nunca teve a intenção de entrar na loja “V.”, desconhecendo porque a arguida colocou na foto os dizeres “Estava eu a dizer… não entres A., não entres…”.

Reforça-se tal conclusão com o depoimento da testemunha D. B., dizendo que estava com a arguida e apareceu a testemunha A. L., tendo-lhe dito a arguida a esta: espera aí que vamos tirar uma fotografia”, fotografia que veio a ser tirada pela testemunha, desconhecendo qualquer publicação.

Assim, a versão inócua apresentada pela arguida cai por terra, sendo que o contexto em que se deram os factos foi, aliás, bem explicado pela testemunha A. A. (J. T.), o propósito de diminuir a honra e consideração dos visados, querendo prejudicar-lhes a sua imagem pública, por colocarem em causa a atuação do executivo camarário, no já referido grupo de Facebook.

As cópias das publicações foram retiradas do perfil aberto ao público da arguida, pelo que são um documento de livre acesso, podendo ser vistas por qualquer pessoa que tenha um perfil de Facebook, o que a arguida bem sabia e mostrou-se indiferente a essa situação.
Refere a arguida que todas as suas publicações têm como objetivo enaltecer e defender a cidade (veja-se o comentário de fls. 138 e a referência sub-reptícia “A nossa Cidade é, de facto, LINDA”). Pergunta-se, com as duas publicações, com foto e respetivo texto que vimos de analisar, pretendia a arguida defender a cidade de (...)? De que forma?

Já quanto aos factos relativos ao pedido de indemnização social, tomou em consideração o Tribunal, as declarações do assistente/demandante civil, as quais se afiguraram sérias, neste particular, por corresponderem às consequências naturais dos factos, designadamente tendo em consideração o conteúdo da publicação arguida, o que se fez em conjugação com os depoimentos das três testemunhas arroladas ao mesmo, nos termos sobreditos, com exceção, como dissemos quanto ao facto de ter existido uma diminuição das vendas por causa da publicação da arguida.

Os factos da contestação dados por provados de 27) a 31) tiveram por base a confissão da arguida e a ausência de contradição das demais testemunhas, sendo de sublinhar que, não se negando que a arguida gosta de enaltecer a cidade, publicando fotos da mesma, tal não quer dizer que não possa atuar da forma como atuou, já sobejamente descrita.

Os demais elencados de b) a j) foram dados por não provados face à prova do contrário, nos termos descritos e à ausência de prova de alguma da matéria alegada.

No que concerne à matéria de facto sobre a situação económica, social e familiar da arguida, tomaram-se em consideração as declarações por ela a esse propósito prestadas, as quais se nos afiguraram, neste particular, coerentes por não contrariadas por qualquer outro elemento de prova, em conjugação com o depoimento das testemunhas de defesa.

A ausência de antecedentes criminais resultou provada com base no teor do certificado de registo criminal junto aos autos.»


3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
Da atipicidade da conduta da arguida

De acordo com a delimitação do objeto do recurso, cumpre averiguar se a sentença recorrida enferma de erro de interpretação na subsunção dos factos ao direito, por, na perspetiva da arguida, ora recorrente, o comentário por si publicado na sua página do facebook não ser objetivamente ofensivo da honra e consideração devidas ao assistente, enquanto proprietário de um estabelecimento comercial em nome individual, e também por não ter tido qualquer intenção de o denegrir, devendo, consequentemente, ser absolvida do crime de difamação, p. e p. pelos arts. 180º, n.º 1, e 183º, n.º 1, al. a), do Código Penal, e do correspondente pedido de indemnização civil.

Refira-se, antes de mais, que apesar da natureza das questões suscitadas pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer - nulidade da sentença por condenação com base em factos que representam uma alteração substancial dos descritos na acusação e erro notório na apreciação da prova quanto ao elemento subjetivo do ilícito -, atentas as consequências da sua eventual verificação, apenas deverão ser analisadas na medida em que mantenham pertinência face ao que resultar da apreciação da questão de mérito do recurso, ou seja, caso se conclua que, ao contrário do alegado pela recorrente, a sua conduta reveste tipicidade objetiva.

Com efeito, a proceder esta questão, deverá ter-se por prejudicada a consequência da eventual verificação da nulidade da sentença, por não se justificar devolver os autos à primeira instância, a fim de proceder à comunicação de uma alteração substancial de factos, quando, independentemente disso, nunca os factos dados como provados, já com base no aditamento feito a coberto dessa alteração, constituirão crime. De igual modo, não preenchendo a conduta da arguida a tipicidade objetiva do tipo, também não terá utilidade apreciar a existência de um eventual erro notório na apreciação da prova quanto ao elemento subjetivo.

3.1 - Importa, assim, começar por analisar se a publicação feita pela arguida, na respetiva página pessoal do facebook, de uma fotografia sua, tirada à frente do estabelecimento comercial de pronto a vestir denominado “Boutique L.”, em que é visível esta denominação, acompanhada dos dizeres “Não aconselho muito estas L.”, é ou não objetivamente ofensiva da honra e da consideração devidas ao assistente, enquanto pessoa individual e proprietário do referido estabelecimento.

Para tanto, convém ter presentes os pressupostos da incriminação em que assentou a condenação da arguida.
Nos termos do disposto no n.º 1 do art. 180º do Código Penal, é punido pelo crime de difamação “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo”.
De acordo com o art. 182º do mesmo código, “à difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão”.
Por seu lado, o artigo seguinte, na al. a) do seu n.º 1, estabelece uma agravação da pena se “a ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação”.

Com este tipo legal de crime protege-se a honra, encarada numa perspetiva dual, em que se combina uma conceção fáctica, subjetiva e objetiva, com uma conceção normativa, pessoal e social. A honra é, assim, vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior [3].

A nível do elemento objetivo, o crime de difamação exige a imputação de um facto ou a formulação de um juízo, perante uma terceira pessoa, que sejam desonrosos, desonestos ou vergonhosos do visado, ou ainda a reprodução de tal imputação ou juízo.

A difamação consiste, assim, na imputação a alguém, levada a terceiros e na ausência do visado, de facto ou de juízo que encerre em si uma reprovação ético-social, por serem ofensivos da honra e consideração do ofendido, enquanto pretensão de respeito que decorre da dignidade da pessoa humana e pretensão ao reconhecimento dessa dignidade por parte dos outros, quer no plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político.

Por “facto” deve entender-se «aquilo que é ou acontece, na medida em que se considera como um dado real da experiência», tratando-se de «um juízo de afirmação sobre a realidade exterior, como um juízo de existência». Por seu turno, o conceito de “juízo” «deve ser percebido, neste contexto, não como apreciação relativa à existência de uma ideia ou de uma coisa mas ao seu valor» (…), «deve ser entendido relativamente ao grau de consecução dessa ideia, coisa ou facto, se valorados em função do fim prosseguido» [4].

Por seu turno, o tipo subjetivo do ilícito exige o dolo genérico, em qualquer das suas modalidades previstas no art. 14º do Código Penal, não se exigindo o propósito de ofender a honra ou consideração de alguém, bastando a consciência, por parte do agente, de que a sua conduta é de molde a produzir essa ofensa.
Finalmente, a agravação prevista no art. 183º, n.º 1, al. a), do Código Penal, com base na qual a arguida foi condenada, é resultante de o meio utilizado, in casu a publicação numa página do facebook, livremente acessível ao público através da internet, facilitar a divulgação da difamação.

Todavia, para além das situações em que se verifiquem as circunstâncias previstas cumulativamente no n.º 2 do art. 180º ou que ocorra alguma das causas que, em termos gerais, excluem a ilicitude, nomeadamente as previstas no n.º 2 do art. 31º do Código Penal, a difamação também não é punida se funcionar a cláusula geral de adequação social, quer se considere a mesma como uma causa de justificação implícita ou supra legal, quer como uma causa de exclusão da tipicidade [5].

Com efeito, nem todo o comportamento incorreto de um indivíduo merece tutela penal, devendo-se destrinçar as situações que traduzem, de facto, uma ofensa da honra de terceiros com dignidade penal, daquelas situações suscetíveis de revelar tão só indelicadeza, grosseirismo ou uma má educação do agente, sem repercussão relevante na esfera da dignidade ou do bom nome do visado. Importa ter em consideração que, por vezes, é normal algum grau de conflitualidade e animosidade entre os membros de uma comunidade, surgindo situações em que alguns deles se podem até expressar, ao nível da linguagem, de forma deselegante ou indelicada. Contudo, o direito não pode intervir sempre que a linguagem ou as afirmações utilizadas incomodam o visado, devendo a sua intervenção reservar-se para as situações em que é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana.

A determinação das situações em que a violação de um bem jurídico justifica a intervenção do direito penal é feita em função do critério constitucional da “necessidade social”, tendo presente o carácter fragmentário e subsidiário do direito penal, que deve ser entendido como a ultima ratio da política social.

No caso do crime de difamação, pressuposto da intervenção penal é a tutela constitucional do direito fundamental ao bom nome e reputação de qualquer pessoa, consagrado no art. 26º, n.ºs 1 e 2 da Constituição.

Porém, esse direito tem de ser compatibilizado com o também direito fundamental da liberdade de expressão e informação, com idêntica consagração constitucional, no art. 37º da Lei Fundamental, ao dispor que “todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento por palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e ser informados, sem impedimentos ou discriminações”.

A liberdade de expressão assume o carácter de um direito individual do cidadão, enquanto manifestação essencial das sociedades democráticas e pluralistas, nas quais a crítica e a opinião livres contribuem para a igualdade e aperfeiçoamento dos cidadãos e instituições.

O direito à liberdade de expressão e de opinião encontra igualmente consagração a nível de mecanismos de direito internacional, como a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art. 10º) e a Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 19º), compreendendo, nomeadamente, a liberdade de transmitir e difundir ideias por qualquer meio de expressão.

Como tem vindo a ser repetidamente afirmado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática, caracterizada ainda pelo pluralismo, tolerância e espírito de abertura, e uma das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento de cada um.

Uma das manifestações da liberdade de expressão é precisamente o direito que cada pessoa tem de divulgar a opinião e de exercer o direito de crítica.

Todavia, uma vez que o exercício deste direito pode entrar em conflito com bens jurídicos pessoais, como a honra e a consideração, importa que as expressões utilizadas se circunscrevam ao sentido próprio da crítica, não atingindo o nível da ofensa pessoal desnecessária, inadequada ou desproporcional a um normal exercício do direito de expressar a opinião, cabendo aos tribunais judiciais o controlo da crítica excessiva, arbitrária, gratuita ou desproporcionada, na medida em que seja ofensiva do bom nome e da reputação da pessoa (art. 37º, n.º 3, da Constituição).
O eventual conflito entre esses dois direitos (ao bom nome e reputação, por um lado, e de expressão, por outro), terá de ser resolvido por ponderação dos respetivos interesses, fazendo intervir critérios como o da proporcionalidade, da necessidade e da adequação (art. 18º, n.º 2, da Constituição), salvaguardando, porém, o núcleo (alcance e conteúdo) essencial dos preceitos constitucionais em jogo, que ocupam igual peso na hierarquia dos valores constitucionalmente protegidos. Ou seja, haverá que introduzir limites a esses dois direitos fundamentais, de forma a preservar o núcleo essencial de cada um deles, com o fim de alcançar a necessária composição dos interesses em conflito, através da harmonização ou concordância prática dos bens em colisão, com vista à sua otimização.

Por conseguinte, atentos os múltiplos fatores que concorrem para a identificação das condutas ofensivas da honra e consideração de um indivíduo, apenas nos casos concretos é possível discernir quais as palavras ou afirmações que, efetivamente, comportam uma carga ofensiva das mesmas. Para este efeito, cumpre considerar, não só as expressões em si mesmas ou o seu significado, mas todas as circunstâncias envolventes, como sejam, a comunidade mais ou menos restrita a que pertencem os intervenientes, a relação existente entre estes, o contexto em que as palavras são produzidas e a forma como o são.
Claro está que, sendo visado um simples particular, como é o caso do assistente, o direito de crítica terá necessariamente limites mais apertados do que em relação a pessoas que exercem funções públicas, seja a nível nacional ou local, atuando nessa qualidade, na medida em os atos destas estão necessariamente sujeitos a um controlo atento da comunidade na qual exercem as funções.

Como é sumariado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-03-2007 [6]:

"I - No conflito entre o direito à honra e a liberdade de expressão, tem vindo a verificar-se um ponto de viragem, tendo por base e fundamento o relevo, a dignidade e a dimensão da liberdade de expressão considerada numa dupla dimensão, concretamente como direito fundamental individual e como princípio conformador e essencial à manutenção e aprofundamento do Estado de Direito democrático, reconhecendo-se que o exercício do direito de expressão, designadamente enquanto direito de informar, de opinião e de crítica, constitui o próprio fundamento do sistema democrático, o que justifica a assunção de uma nova perspetiva na resolução do conflito.
II - Neste contexto, temos vindo a defender, na esteira da orientação assumida por Costa Andrade, deverem considerar-se atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espetáculo, quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objetiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, às realizações ou prestações em si, não se dirigindo diretamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista, do desportista, do profissional em geral, nem atingem a honra com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica. (…)
IV - Por outro lado, segundo ele, a atipicidade da crítica objetiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações subscritas, as quais persistirão como atos atípicos seja qual for o seu bem fundado ou justeza material, para além de que o correlativo direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas, isto é, não exige do crítico, para tornar claro o seu ponto de vista, o meio menos gravoso, nem o cumprimento das exigências da proporcionalidade e da necessidade objetiva.
V - Costa Andrade defende mesmo que se devem considerar atípicos os juízos que, como reflexo necessário da crítica objetiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto, esclarecendo, no entanto, que se deve excluir a atipicidade relativamente a críticas caluniosas, bem como a outros juízos exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar e, bem assim, em todas as situações em que os juízos negativos sobre o visado não têm nenhuma conexão com a matéria em discussão, consignando expressamente que uma coisa é criticar a obra, outra muito distinta é agredir pessoalmente o autor, dar expressão a uma desconsideração dirigida à sua pessoa.
VI - Parte da jurisprudência dos nossos tribunais superiores vem sufragando tal orientação, sendo que, de acordo com a mesma, entendemos que o direito de expressão, na sua vertente de direito de opinião e de crítica, quando se exerça e recaia nas concretas áreas atrás referidas e com o conteúdo e âmbito mencionados, caso redunde em ofensa à honra, se pode e deve ter por atípico, desde que o agente não incorra na crítica caluniosa ou na formulação de juízos de valor aos quais subjaz o exclusivo propósito de rebaixar e de humilhar."

Esta temática do conflito entre a liberdade de expressão e de opinião e o direito à honra e reputação tem sido frequentemente objeto de decisões por parte do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em que tem sido dado sistematicamente prevalência à primeira, frisando que a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e vale não somente para as “informações” ou “ideias” favoráveis, inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ofendem, chocam ou inquietam. Assim é exigido pelo pluralismo, pela tolerância e espírito de abertura sem os quais não existe "sociedade democrática". Como determina o parágrafo 2º do artigo 10º da CEDH, esta liberdade está sujeita a exceções que devem, contudo, ser interpretadas restritivamente, e a necessidade de qualquer restrição deve ser demonstrada de maneira convincente.
3.2 - Posto isto, revertamos ao caso concreto, em ordem a apurar se a conduta da arguida, ao publicar na respetiva página do facebook uma fotografia sua, tirada à frente da montra de um estabelecimento comercial cujo toldo tem escrito "L.", acompanhada dos dizeres "Não aconselho muito estas L.", preenche os elementos objetivos do crime de difamação relativamente à pessoa do assistente, proprietário do referido estabelecimento de ponto a vestir, denominado "Boutique L." (pontos 1º e 3º dos factos provados e fotografia de fls. 77), ou seja, se esse comentário merece a censura jurídica-penal acolhida na decisão recorrida.

Como resulta das considerações supra tecidas acerca desse tipo legal de crime, a resposta afirmativa a essa questão está dependente de se poder concluir que tal expressão, no contexto em que se insere, é objetivamente ofensiva da honra e consideração devidas ao assistente, enquanto comerciante, sendo certo que foi dado como provado que o referido estabelecimento comercial está aberto ao público há mais de duas décadas e é conhecido e muito bem reputado por todos os seus clientes, pelos cidadãos residentes em (...) e nas cidades periféricas, que reconhecem que os artigos aí vendidos são de qualidade, reconhecimento este que foi conseguido com muito trabalho e a pulso pelo assistente, bem como que este é pessoa muito trabalhadora e séria, respeitadora e respeitada por todas as pessoas (pontos 2º e 8º dos factos provados).

A expressão em causa é ambígua quanto à definição daquilo que a arguida "não aconselha muito", não sendo de excluir, como bem salienta o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, a possibilidade, ainda que remota, de a mesma se pretender dirigir, em tom reprovador, à ortografia utilizada na redação da palavra "L.", escrita no toldo do estabelecimento e que é visível na fotografia publicada.

Apresenta-se, no entanto, como mais provável a possibilidade de ver no comentário publicado pela arguida um desaconselhamento do estabelecimento comercial do assistente aos seus clientes, tal como também entendeu o Mmº. Juiz, confortado com a factualidade comunicada em audiência e dada como provada nos pontos 11º a 14º.

Todavia, a entender-se assim, a expressão utilizada ("não aconselho muito"), não vai além de uma mera opinião da arguida, no exercício do seu direito de expressão. Opinião essa, aliás, manifestada de forma abstrata, sem a mínima concretização factual dos motivos do não aconselhamento, acentuando o carácter discutível inerente a qualquer opinião.

Assim, ainda que se pretenda ver no comentário uma crítica velada ao estabelecimento comercial do assistente, sempre os destinatários da publicação deparariam com a impossibilidade de perceber os respetivos motivos ou fundamentos, o que dificultaria uma eventual adesão ao desaconselhamento por parte da arguida, para mais considerando a subjetividade inerente ao juízo de cada pessoa sobre um estabelecimento comercial, atenta a variedade dos fatores de que o mesmo depende e o relevo subjetivo que cada pessoa lhes atribui.
Do texto em questão, mesmo articulado com os demais factos apurados relativamente à conduta objetiva da arguida, não ressalta qualquer juízo negativo, pelo menos suficientemente explícito ou inequívoco, sobre os produtos vendidos no estabelecimento comercial, nomeadamente a sua qualidade ou preço, ou ainda sobre a forma de atuar do assistente no exercício da sua atividade profissional de comerciante.
Daí que, objetivamente, o que foi escrito pela arguida na sua página do facebook não possa ser considerado ofensivo da honra, consideração e dignidade do assistente, no seu plano profissional, porquanto o seu conteúdo não permite pôr em causa a credibilidade e a imagem da boutique de pronto a vestir por si explorada.
Do conteúdo da publicação não se nos afigura possível retirar, por parte dos seus destinatários, um significado de achincalhamento, rebaixamento, ataque gratuito ou menorização do bom nome e da reputação profissional do assistente.
Trata-se antes de um comentário opinativo, cujo conteúdo poderá ser incómodo para o assistente, mas sem que isso signifique uma ofensa da honra e consideração que lhe é devida por força da sua dignidade humana, por a arguida não ter ultrapassado os limites consentidos pelo exercício da liberdade de expressão, enquanto direito a manifestar a sua opinião crítica.
Em suma, mesmo considerando percetível no comentário publicado pela arguida no facebook um desaconselhamento do estabelecimento comercial, o teor do texto não é objetivamente ofensivo, nem tem conteúdo difamatório, capaz de ofender a credibilidade, prestígio ou confiança depositada reflexamente no seu proprietário, o ora assistente.
Afastada a relevância objetiva da conduta da arguida, é indiferente que, subjetivamente, a mesma tivesse o propósito de atingir a credibilidade, o prestígio, a confiança, a honra e a consideração do assistente e do estabelecimento comercial deste, sendo, pois, inócuas as asserções que, a nível do tipo subjetivo do ilícito, se fizeram constar dos pontos 5º (parte final), 7º, 9º e 10º dos factos provados.
Daí que seja igualmente irrelevante que o assistente se tenha sentido humilhado, revoltado, vexado, triste e ofendido na sua honra profissional e pessoal, sendo certo que não incumbe ao direito penal proteger a sua suscetibilidade pessoal.
Em conclusão, dos factos dados como provados na sentença recorrida não se retira que a arguida, ao publicar na sua página do facebook o comentário em questão, tenha adotado uma conduta ilícita, pelo que se impõe a sua absolvição do crime de difamação pelo qual foi condenada.

3.3 - Perante a absolvição da arguida da ação penal, há que averiguar se pode subsistir a sua condenação no pedido cível, sabido que o n.º 1 do art. 377º do Código de Processo Penal dispõe que "a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respetivo vier a revelar-se fundado (…)".

Como veio a ser decidido no acórdão uniformizador de Jurisprudência n.º 7/99, “se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se basear em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual”.

Com interesse para a apreciação desta questão, pode ler-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-07-2008 [7] o seguinte:

«Dispõe o artigo 71º do CPP («processo de adesão») que o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime deve ser deduzido, por regra, no processo penal respetivo, consagrando a interdependência das ações penal, para aplicação das reações criminais adequadas, e civil, para a reparação dos danos patrimoniais e não patrimoniais a que a infração tenha dado causa.
A interdependência das ações significa que mantêm a independência nos pressupostos e nas finalidades (objeto), sendo a ação penal dependente dos pressupostos que definem um ilícito criminal e que permitem a aplicação de uma sanção penal, e a ação civil dos pressupostos próprios da responsabilidade civil; a indemnização de perdas e danos emergente de um crime é regulada pela lei civil (artigo 129º do Código Penal) nos respetivos pressupostos e só processualmente é regulada pela lei processual penal. A interdependência das ações significa, pois, independência substantiva e dependência (a «adesão») processual da ação cível ao processo penal.
Aderindo ao processo penal, o pedido («a ação») para indemnização civil mantém, no entanto, alguma autonomia funcional, quer por regras procedimentais próprias a que está vinculada (artigo 73º e segs. do CPP), quer pela possibilidade de intervenção dos responsáveis meramente civis que, enquanto tais, seriam extraneus no processo penal.
A obrigatoriedade, como regra, da adesão (que só por exceção e nos casos enumerados cede – artigo 72º do CPP, permitindo-se, então, o uso autónomo dos meios processuais civis) determina, porém, para respeitar a finalidade funcional do princípio, que a autonomia qualitativa dos pressupostos se sobreponha e exija a continuidade instrumental do processo para apreciação do pedido de indemnização sempre que, cedendo por circunstâncias próprias a ação penal, se mantenham, ainda assim, em aberto as possibilidades de verificação dos pressupostos da reparação civil.
Os fundamentos da ação que, aderindo ao processo penal, ficam interdependentes, sendo qualitativamente diversos, têm, no entanto, que revelar uma unidade material que constitui a base relevante para a verificação, positiva ou negativa, dos respetivos pressupostos. A reparação fundada na prática de um crime reverte, na base, às correlações factuais e ao complexo de factos que constituem, ou são processualmente identificados como constituindo um crime: tipicidade dos factos, ilicitude, imputação ao agente, dignidade penal.
A dimensão penal é, porém, apenas uma parte (porventura a parte mais qualificada) das possíveis relações de uma identificada unidade factual com a ordem jurídica.
As categorias que assumem dignidade penal concreta por concorrência de todos os elementos de uma infração penal, apresentam-se, valorativamente, num plano de intervenção mínima e de ultima ratio, porque a fragmentaridade e a descontinuidade da tutela penal converte a ilicitude penal numa expressão qualificada de ilicitude, extremando-a pelo teor elevado das suas exigências face às demais manifestações da ilicitude e antinormatividade (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Penal”, I, 2ª ed., p. 388).

Consistindo, pois, a ilicitude penal numa «ilicitude qualificada», não está excluído que uma base factual, com autonomia e identidade próprias, que não atinja a dimensão «qualificada» do nível de ilicitude, não possa suportar ou exigir uma valoração de outro nível segundo uma outra fonte de antinormatividade, nomeadamente no plano dos pressupostos da responsabilidade civil.

Deste modo, se o arguido for absolvido de um crime, e se subsistir, apesar da absolvição, uma base factual com autonomia que suscite, ou permita suscitar, outros níveis de apreciação da normatividade como pressuposto ou fonte de indemnização civil (autonomia qualitativa dos pressupostos), haverá que considerar o pedido de reparação civil (dependência ou adesão especificamente processual) que se possa fundamentar nos mesmos factos – seja responsabilidade por facto ilícito, seja responsabilidade pelo risco (cfr., v. g., ac. do STJ de 25/1/96. CJ (STJ), IV, t. 1, p. 89; de 2/4/98, CJ (STJ), VI, t. 2, p. 179).»

Não é, porém, o que sucede no caso dos autos.

A responsabilidade civil da arguida e demandada civil está dependente da verificação dos pressupostos contidos no art. 483º, n.º 1, do Código Civil, ou seja, a existência de um facto (voluntário) do lesante, a ilicitude desse facto, o nexo de imputação do mesmo ao lesante (culpa), a existência de dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Não se suscitando dúvidas sobre o pressuposto do facto voluntário do agente, vejamos o requisito da ilicitude.
Esta traduz uma contradição com o direito, podendo assumir duas modalidades: violação do direito de outrem, que constitui a ofensa a um direito subjetivo, principalmente os direitos absolutos ou os direitos de personalidade, ou violação de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios, mas que não chegam a atribuir um direito subjetivo ao respetivo titular.
Em concretização do disposto no art. 26º, n.º 1, da Constituição, o art. 70º do Código Civil estabelece uma tutela geral da personalidade, determinando a proteção legal dos indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.

Por seu lado, o art. 484º do mesmo código protege especificamente aspetos particulares da personalidade moral, impondo a reparação dos danos causados por "quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou coletiva”.

A ofensa ao bom nome, enquanto elemento que compõe e integra os direitos inerentes à personalidade, traduz-se num abalo do prestígio e da consideração social que uma pessoa goza, perturbando o conceito e a apreciação positiva com que é considerada no meio social onde se insere e desenvolve as várias dimensões da sua vida.
A afirmação ou divulgação de facto suscetível de prejudicar o bom nome constitui, pois, um facto ilícito que integra um dos pressupostos da obrigação de indemnizar com base em responsabilidade civil (art. 483º, n.º 1, do Código Civil).
Nos autos estará em causa o prestígio e a consideração do assistente e demandante, na vertente da sua realização profissional de proprietário do estabelecimento comercial "Boutique L.".

Como vimos, o direito à liberdade de expressão, enquanto exercício do direito de crítica e de opinião, pode colidir com o direito ao bom nome e reputação do visado, caso em que o conflito deverá ser solucionado através da concordância prática entre ambos, otimizando a eficácia de cada um deles, sem atingir o seu conteúdo essencial.

Ora, como concluímos supra, a frase publicada pela arguida na sua página do facebook ("Não aconselho muitos estas L."), pelo seu teor abstrato, ambíguo e indefinido, não é suscetível de ser entendido como formulação de um juízo negativo sobre o estabelecimento comercial do demandante ou sobre o bom nome e a reputação profissional deste último.
A expressão utilizada não vai além do que a liberdade de expressão permite, enquanto exercício do direito de exprimir opiniões, ideias ou pensamentos, não possuindo uma carga desvaliosa suscetível de afetar o bom nome e a reputação do demandante e, como tal, ser um facto ilícito gerador de responsabilidade civil extracontratual nos termos dos art.s 483º, n.º 1, e 484º do Código Civil, ficando, assim, prejudicada a apreciação dos demais pressupostos.

Assim sendo, faltando o pressuposto da ilicitude dos factos praticados pela arguida, falece a obrigação de indemnizar, impondo-se absolvê-la também do pedido de indemnização civil.

Procede, pois, o recurso.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso e, em consequência, revogar a sentença recorrida, absolvendo a arguida, F. B., do crime e do pedido de indemnização civil pelos quais foi condenada.
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Custas a cargo do assistente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a três unidades de conta (arts. 515º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).
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*
(Elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
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Guimarães, 05 de março de 2018

(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)


[1]- Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo a correção de gralhas evidentes, a ortografia e a formatação utilizadas, que são da responsabilidade do relator.
[2]- Cf. arts. 412º, n.º 1, e 417º, n.º 3, do Código de Processo Penal, Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª edição, Verbo, pág. 335, o acórdão do STJ de 28-04-1999, in Coletânea de Jurisprudência - Acórdãos do STJ, ano de 1999, tomo II, pág. 196, e o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série-A, de 28-12-1995.
[3]- Vd. Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 602 - 607.
[4]- Vd. Faria Costa, ob. cit., pág. 609-610.
[5]- Vd. a este propósito Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Parte Geral, II, Teoria do Crime, Verbo, 2005, pág. 83-85.
[6]- Proferido no processo n.º 07P440, disponível em http://www.dgsi.pt.
[7]- Proferido no processo 08P1410, disponível em http://www.dgsi.pt.