Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2555/15.6T8VCT.G1
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
CESSAÇÃO
DEVER DE LEALDADE
BOA-FÉ
PACTO DE NÃO CONCORRÊNCIA
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – A pós-eficácia do dever de lealdade e boa-fé para com o empregador, isto é, para além da extinção do contrato de trabalho, não pode ter fundamento diverso do pacto regulado no art. 136.º do Código do Trabalho, sob pena de contradição e incoerência do sistema jurídico, na medida em que ali se estabelecem as restrições, a título excepcional e mediante compensação ao trabalhador, ao princípio da liberdade de trabalho tutelado no art. 47.º da Constituição.

II – Assim, cessado o contrato de trabalho, sem que tenha sido outorgado pacto de não concorrência, o trabalhador readquire a plena liberdade de trabalho constitucionalmente garantida, ficando apenas sujeito a restrições comuns a qualquer outro cidadão, designadamente as inerentes à proibição de concorrência desleal, tutelada criminal e civilmente e não já no plano do direito laboral.

III – Não actua com abuso de direito o ex-trabalhador que exerce actividade profissional concorrente da exercida pelo ex-empregador, se não tiver sido outorgado pacto de não concorrência, pois abusivo seria o ex-empregador beneficiar de vinculação do ex-trabalhador a deveres que substancialmente se reconduzem aos acautelados no art. 136.º do Código do Trabalho sem ocorrer idêntica vinculação por parte dele, ex-empregador, isto é, sem que o mesmo esteja obrigado a pagar a justa contrapartida.
Decisão Texto Integral:
1. Relatório

JX, Unipessoal, Lda. intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra O. Sousa, pedindo a condenação do R. no pagamento à A. da quantia de € 35.000,00 a título de indemnização pelos prejuízos causados pela violação do dever de não concorrência, acrescida de juros de mora vencidos desde a citação e dos vincendos, até integral pagamento.
A R. contestou, pedindo a improcedência da acção e a sua absolvição do pedido.
Procedeu-se a julgamento, findo o qual foi proferida decisão sobre a matéria de facto.
Seguidamente, pelo Mmo. Juiz a quo foi proferida sentença que terminou com o seguinte dispositivo:
«Assim, e face a tudo o exposto, decide-se:
Julgar a presente acção totalmente improcedente, absolvendo-se o R. dos pedidos contra si formulados.
Custas pela A.»
A A., inconformada, interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:
«I. O presente recurso vem interposto da sentença que julgou totalmente improcedente o pedido formulado pela Autora, aqui Recorrente, e com a qual não se conforma.
II. Na óptica do Tribunal a quo a procedência do pedido sempre dependeria da existência de ajuste prévio entre as partes, Autora e Réu - outrora Entidade Empregadora e Trabalhador no âmbito de contrato de trabalho entre ambas celebrado - de cláusula de não concorrência e/ou de confidencialidade, já que – na óptica do Tribunal recorrido – tal pedido não poderia ter por fundamento a invocação de um dever geral de lealdade com eficácia pós contratual.
III. Todavia, o Tribunal a quo não ponderou devidamente as circunstâncias concretas apuradas no âmbito dos presentes autos, as quais, por apelo a outros princípios com aquele conflituantes - em especial, o Princípio da Boa Fé – e no propósito de realização da justiça material, sempre obrigariam à prolação de sentença que julgasse o pedido procedente.
IV. Já com amplo tratamento Doutrinário e Jurisprudencial, é hoje comummente aceite na disciplina contratual a existência de uma série de deveres [contratuais], ainda que secundários, acessórios ou de mera conduta, que poderão perdurar além da cessação do vínculo contratual, fenómeno habitualmente designado de pós-eficácia obrigacional ou de responsabilidade post pactum finitum.
V. Do indicado tipo de responsabilidade pode emergir um dever de indemnização derivado da conduta de uma das partes depois da referida extinção do contrato, tal como indica o Prof. Mário Júlio de Almeida Costa.
VI. Como sustentam vários Autores, o indicado tipo de responsabilidade tem também aplicação no domínio juslaboral, podendo ser assacada tanto à (ex-)Entidade Patronal, como, doutra parte, poderá configurar-se em relação ao (Ex-)Trabalhador ao serviço daquela.
VII. No que concerne aos Ex-Trabalhadores, assume-se que, em determinadas circunstâncias, independentemente de previsão contratual expressa, essa poderá advir da violação do dever de lealdade, nas suas vertentes do dever de não concorrência e no dever de sigilo, podendo, quando tal suceda, fazer recair sobre aquele um dever de indemnizar o(a) exempregador(a).
VIII. De todo o modo, tal sempre representará a excepção à regra, que vai precisamente no sentido de apenas admitir a pós-eficácia obrigacional nos casos em que esta mesma resulte de ajuste prévio entre as partes e segundo o formalismo legalmente exigível, normalmente, pela previsão no contrato de trabalho de cláusula que verse sobre a obrigação de não concorrência e de sigilo…
IX. De resto, só o entendimento de que tal dever [pós-eficaz] de lealdade subsistiria sempre, e fossem quais fossem as circunstâncias concretas, após a cessação de qualquer contrato de trabalho, se revela inconstitucional, por limitação indevida à Liberdade de Trabalho; e que não é, de todo, a posição da Recorrente.
X. A verdade é que o Princípio da Boa Fé poderá afirmar-se como fundamento para uma limitação legítima ao dito direito da Liberdade de Trabalho, quando do exercício deste resulte uma insustentável ofensa ao dever de lealdade e, por consequência - como seu referente - ao aludido princípio da Boa Fé, sob pena de, caso tal não sucedesse, se rejeitar a própria ideia de justiça.
XI. Como decorre da matéria provada, a conduta do Réu é reprovável e censurável, em muito se distanciando do exercício lícito do seu direito, já que não se limitou a pôr em prática os conhecimentos que apreendeu ao longo da sua carreira profissional e, em especial, enquanto foi Trabalhador ao serviço da Recorrente.
XII. Com efeito, o Réu prevaleceu-se de informação com carácter sigiloso, não apenas quanto aos Clientes, mas quanto às obras para cuja realização a Autora havia apresentado orçamento e respectivos valores, apresentando preços marginalmente rebaixados, em relação aos apresentados pela Autora, procurando assim sabotar a actividade desta, aqui Recorrente, do que resultou demonstrado prejuízo.
XIII. Ou seja, aceitar-se-ia que o Réu passasse a integrar entidade que desenvolve actividade concorrente com a Autora, beneficiando do conhecimento do mercado, usando das mesmas técnicas de orçamentação, e todo o know-how por si adquirido ao longo do seu percurso profissional, mas já não que se haja prevalecido de informação privilegiada que adquiriu ao serviço da Recorrente, nomeadamente, no âmbito de negociações em que teve intervenção, para logo após a cessação do contrato de trabalho, vir procurar arruinar, tenho-o logrado, essas mesmas negociações.
XIV. Acompanhando-se de perto a Jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal de Justiça – Ac. STJ de 09/04/2003, Proc. 03S2424, disponível em www.dgsi.pt – crê-se que as circunstâncias apuradas nos presentes autos estarão entre aquelas que, a coberto do Princípio da Boa Fé, fazem incorrer o Réu em responsabilidade pós-contratual, ainda que não haja sido convencionada entre as partes nenhuma previsão expressa a esse propósito.
XV. O Princípio da Boa Fé é um dos pilares em que assenta todo o ordenamento jurídico português, devendo merecer de devida tutela em casos como o presente, sob pena de se admitirem que, com postergação do mesmo, se alcancem soluções materialmente injustas.
XVI. Tratando-se de uma conduta ilícita e culposa do Réu, por violação do dever de lealdade (ínsito no Princípio da Boa Fé, que deriva precisamente da pré-existência de um contrato de trabalho, essa poderá – e deverá - ter logo resposta nesta área, sem necessidade de recorrer a outros domínios ou institutos.
XVII. Ainda que se considerasse que a conduta do Réu não é ilícita, certo é que, atentando às circunstâncias concretas, o exercício do Direito ao Trabalho do modo como foi empreendido pelo Réu sempre seria manifestamente abusivo; também daí emergindo o dever de indemnizar a Autora.
XVIII. A Sentença recorrida violou o teor dos artigos 47.º e 58.º da Constituição da República Português, artigos 227.º, 239.º, 334.º, 762.º n.º 2 e 799.º do Código Civil, artigo 128.º n.º 1 al f) e 136.º do Código do Trabalho.»
O R. apresentou resposta ao recurso da A., pugnando pela sua improcedência.
O recurso foi admitido como apelação, com efeito meramente devolutivo.
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, pelo Ministérioco Público foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

2. Objecto do recurso

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, a única questão que se coloca a este tribunal é a do direito da A. a ser indemnizada pelo R. por violação do dever de não concorrência.

3. Fundamentação de facto

Os factos provados são os seguintes:
1 - A A. é uma sociedade comercial que tem por objecto social a construção de edifícios, residenciais e não residenciais, comércio por grosso de materiais de construção, excepto madeira e equipamento sanitário; actividades de colocação de coberturas; construção civil; promoção imobiliária; construção de estradas e pistas de aeroportos; instalação de guardas de protecção; construção de pontes e túneis; construção de redes de transporte de águas, de esgotos e outros fluídos; construção de obras de engenharia civil, demolição; preparação dos locais de construção; outras instalações em construções; outras actividades especializadas de construção diversa, subsumindo-se tal actividade ao CAE Principal 4RRRR.
2 - Esta sua actividade é, sobretudo, exercida na zona Norte do país e, dentro desta, com maior incidência nas áreas do “Grande Porto” e Minho.
3 - No mês de Maio de 2009, a A. admitiu o R. ao seu serviço para, sob suas ordens e direcção, desempenhar a sua actividade laboral.
4 – Esta relação de trabalho veio a cessar, por iniciativa do R., em 4 de Julho de 2014.
5 – Por força da actividade desempenhada na A., ao R. cabia a elaboração de projectos de obra, participação em tarefas de avaliação e elaboração de orçamentos, lidando directamente com clientes e fornecedores daquela.
6 - Tendo, assim, tomado conhecimento directo do funcionamento da A., do teor das relações estreitadas com terceiros, designadamente, da listagem, condições e termos negociais com fornecedores, bem como, dos elementos respeitantes aos negócios e carteira de clientes da A..
7 - Por aumento de capital realizado em 30 de Julho de 2014, o R. foi admitido como sócio e subscreveu uma quota, no valor nominal de € 80.000,00, da sociedade comercial que gira sob a firma “ OB., Lda.”, NIPC XXX XXX XXX, com sede na Rua de C, Vila Nova de famalicão.
8 - A sociedade referida em 7) exerce uma actividade em parte idêntica à prosseguida pela A., actuando nas mesmas áreas geográficas que esta.
9 - Além das funções de gerente, o R. desempenha para aquela sociedade, de modo activo, as mesmas funções que prestava ao serviço da A.
10 - No dia 28 de Julho de 2014, o R., em representação da sociedade OB, Lda., apresentou uma proposta contratual para execução de uma obra para a sociedade AB, Lda., tendo o contrato sido celebrado com aquela sociedade no dia 18 de agosto de 2014.
11 - Para esta obra, a sociedade OB, Lda. apresentou um orçamento no valor de € 122.300,00 (acrescido do IVA), sendo certo que, para a mesma obra, a A. tinha apresentado um orçamento a esse mesmo cliente no valor de €140.500,00 (acrescido do IVA).
12 - No dia 18 de agosto de 2014, o R., em representação da sociedade OB, Lda., assinou um contrato com a sociedade VZ, Lda., para a execução de uma obra no valor de € 70.200,00.
13 - Para este mesmo cliente e obra, a A. vinha mantendo uma negociação desde muitas semanas antes, de que o R. tinha conhecimento, tendo a A. apresentado um orçamento no valor de € 71.500,00.
14 - Da mesma forma, a sociedade OB., Lda., poucos dias depois de o R. ter cessado o contrato de trabalho com a A., apresentou à cliente da A. denominada FC, Lda.. um orçamento no valor de € 28.595,00 (acrescido de IVA), para uma mesma obra que a A. vinha negociando com aquela empresa desde há muitos meses, e para a qual apresentou um orçamento no valor de € 31.200,00 (acrescido de IVA).
15 - No dia 9 de Julho de 2014, o R., em representação da sociedade OB., Lda., apresentou um orçamento à sociedade KR., Lda., para a realização de uma obra no valor de € 17.000,00.
16 – Algumas das sociedades acima mencionadas eram clientes da A., desde há vários anos, sendo esta que realizava regularmente as obras que implicassem o fornecimento e montagem de estruturas metálicas.
17 - O R. conhecia estes clientes pelo facto de trabalhar na A., sendo também por isso que conhecia as obras que os clientes pretendiam executar e os valores apresentados pela A. nos seus orçamentos.
18 - A A. costuma ter uma margem de lucro, por cada obra, entre 15% e 25% do respectivo preço.

4. Apreciação do recurso

Vejamos, então, se a A. tem direito a ser indemnizada pelo R. por violação do dever de não concorrência.
Nos termos do art. 128.º, n.º 1, al. f) do Código do Trabalho, o trabalhador deve guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios.
Por seu turno, estabelece o art. 136.º do mesmo diploma, inserta em subsecção denominada «Cláusulas de limitação da liberdade de trabalho»:
Pacto de não concorrência
1 - É nula a cláusula de contrato de trabalho ou de instrumento de regulamentação colectiva de trabalho que, por qualquer forma, possa prejudicar o exercício da liberdade de trabalho após a cessação do contrato.
2 - É lícita a limitação da actividade do trabalhador durante o período máximo de dois anos subsequente à cessação do contrato de trabalho, nas seguintes condições:
a) Constar de acordo escrito, nomeadamente de contrato de trabalho ou de revogação deste;
b) Tratar-se de actividade cujo exercício possa causar prejuízo ao empregador;
c) Atribuir ao trabalhador, durante o período de limitação da actividade, uma compensação que pode ser reduzida equitativamente quando o empregador tiver realizado despesas avultadas com a sua formação profissional.
(…)
5 - Tratando-se de trabalhador afecto ao exercício de actividade cuja natureza suponha especial relação de confiança ou que tenha acesso a informação particularmente sensível no plano da concorrência, a limitação a que se refere o n.º 2 pode durar até três anos.
Estes preceitos prevêem excepções ao princípio da liberdade de trabalho consagrado no art. 47.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, nos termos do qual todos têm o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à sua própria capacidade: o art. 128.º rege durante a vigência do contrato de trabalho e o art. 136.º após a sua cessação.
No caso em apreço, a alegada violação pelo R. do dever de não concorrência com a A. ocorreu após a cessação do contrato de trabalho, todavia as partes não outorgaram qualquer pacto subsumível ao art. 136.º, pelo que falece necessariamente a pretensão da Apelante.
É certo que a Recorrente defende a pós-eficácia do dever de lealdade e boa-fé para com o empregador, para além da extinção do contrato de trabalho, mas afigura-se-nos que tal dever não pode ter fundamento diverso do pacto regulado no citado art. 136.º, sob pena de contradição e incoerência do sistema jurídico, na medida em que ali se estabelecem as restrições, a título excepcional e mediante compensação ao trabalhador, ao mencionado princípio tutelado constitucionalmente.
Isto é, cessado o contrato de trabalho, sem que tenha sido outorgado pacto de não concorrência, o trabalhador readquire a plena liberdade de trabalho constitucionalmente garantida, ficando apenas sujeito a restrições comuns a qualquer outro cidadão, designadamente as inerentes à proibição de concorrência desleal, tutelada criminal e civilmente e não já no plano do direito laboral.
Neste sentido, e invocando o douto parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto, vejam-se:
- Luís Menezes Leitão (Direito do Trabalho, Almedina, 2016, p. 277), quando afirma que “[o] dever de não concorrência não reveste a característica de pós-eficácia, pelo que apenas se mantém enquanto vigora o contrato de trabalho. Após a extinção deste, o trabalhador adquire plena liberdade de fazer concorrência ao empregador, só podendo essa liberdade ser restringida através da celebração de um pacto de não concorrência, que a lei só admite em limitados termos”;
- Pedro Romano Martinez (Direito do Trabalho, Almedina, 2002, p. 460), quando refere que “[e]m princípio a proibição de concorrência só se mantém enquanto a actividade laboral perdurar; cessando a relação de trabalho não subsiste o dever de não concorrência, sendo frequente que o trabalhador, tendo feito cessar o contrato de trabalho, se instale por conta própria com base nos conhecimentos, mormente de clientela, obtidos durante a execução da relação laboral”;
- Júlio Vieira Gomes («As cláusulas de não concorrência no direito do trabalho - Algumas questões», in RDES, ano XXXX, n.º 1, Janeiro-Março 1999, pp. 12 e 13), quando diz que “[i]mporta, quanto a nós, afastar qualquer tentação de basear um dever de não concorrência numa espécie de pós-eficácia do dever de lealdade do trabalhador, a qual sobreviveria, ainda que de forma atenuada, à cessação do contrato de trabalho. Mais ainda, parece-nos que, na ausência de uma cláusula de não concorrência, o trabalhador está apenas sujeito aos limites gerais da proibição da concorrência desleal, proibição esta que abrange por igual ex-trabalhadores e todos os que nunca tiveram essa qualidade relativamente a uma certa empresa.”
A nível jurisprudencial, veja-se, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto de 16 de Dezembro de 2015, proferido no âmbito do processo n.º 1347/15.7T8PNF.P1 (Relator António José Ramos), disponível em www.dgsi.pt, em que se apreciaram as mesmas questões deste recurso e se escreveu, em sumário:
I - Durante a execução do contrato de trabalho impera a obrigação de não concorrência por parte do trabalhador, como corolário do dever de lealdade deste para com o empregador. Após a cessação da relação laboral renasce a liberdade de emprego e de trabalho do trabalhador, podendo o mesmo exercer livremente qualquer atividade, mesmo que concorrente com a desenvolvida pelo seu anterior empregador. As únicas restrições a essa liberdade apenas existem no caso em que essa atividade concorrencial seja desleal ou se haja firmado um pacto de não concorrência.
II - A liberdade de concorrência readquirida pelo trabalhador com a cessação da relação laboral, se não restringida através do pacto de não concorrência, está sujeita a alguns limites. Desde logo, temos os limites decorrentes da concorrência desleal (artigos 317º, 318º e 331º do Código da Propriedade Industrial), bem como da violação de segredos com proteção penal (artigos 195º e 196º do Código Penal), isto sem olvidarmos que parte da doutrina defende que existem certos deveres do trabalhador que não se extinguem com o fim da relação laboral, reconhecendo-se uma pós-eficácia do dever de lealdade e de boa-fé para com o empregador.
III - Mas mesmo que se defenda que, na ausência da celebração de um pacto de não concorrência, após a cessação do contrato de trabalho existe uma pós-eficácia do dever de lealdade e de boa-fé para com o empregador - vedando ao trabalhador que faça concorrência desleal ao seu antigo empregador e que divulgue factos sigilosos de que teve conhecimento no exercício da sua atividade laboral na empresa e por causa dessa atividade – a verdade, é que esta (pós eficácia) não é apta a dispensar a formalização do pacto de não concorrência já que apenas este protege o empregador da concorrência diferencial do ex-trabalhador, uma vez que na ausência daquele pacto de não concorrência, nas palavras de Júlio Vieira Gomes acima exaradas, «o trabalhador está apenas sujeito aos limites gerais da proibição da concorrência desleal, proibição esta que abrange por igual ex-trabalhadores e todos os que nunca tiveram essa qualidade relativamente a uma certa empresa».
IV - Tendo 41 dos seus trabalhadores denunciado o respetivo contrato de trabalho que os ligava á recorrente e ido trabalhar para uma empresa concorrente, não pode aquela pretender limitar a atividade concorrencial diferencial dos seus ex-trabalhadores na ausência de qualquer pacto de não concorrência. Se a liberdade de trabalho e de emprego tem proteção constitucional e apenas pode ser limitada desde que se verifiquem os requisitos exarados no artigo 136º do Código do Trabalho, seria totalmente desproporcional, desadequado e sem qualquer sustentáculo legal, proceder a uma limitação do exercício da atividade dos réus, mesmo que apenas circunscrito a uma empresa determinada, fora do âmbito daquele normativo legal.
V - O exercício da atividade desenvolvida pelos ex-trabalhadores da recorrente também não constitui abuso de direito (artigo 334º do Código Civil). Isto porque, o direito à concorrência leal é um direito derivado da liberdade de emprego e de trabalho e que apenas pode ser limitado mediante a existência de um pacto de não concorrência dentro de estritos requisitos, e a concorrência desleal não constitui qualquer direito, nem sequer tem proteção legal. Portanto, a verificar-se, a primeira é perfeitamente lícita, a segunda, a verificar-se, não pode ser abusiva porque, sendo ilegal, não tem proteção, ou seja, a concorrência desleal não é um direito. E não sendo um direito não pode existir na sua prática um abuso de direito. Por outro lado, não pode haver abuso de direito na atitude do trabalhador que rescinde um contrato de trabalho para celebrar um outro com uma empresa concorrente da sua ex-empregadora, procurando ter melhores condições, sejam elas salariais ou outras e que desenvolve essa sua atividade aproveitando-se dos conhecimentos adquiridos anteriormente durante a execução do contrato de trabalho. Se, ao invés de se aproveitar desses conhecimentos, pratica atos de concorrência desleal ou viola segredos que não poderia divulgar, então não estamos perante o exercício de um direito, mas de uma ilegalidade punida criminalmente.”
Em suma, o direito laboral não tutela o interesse da Apelante, na medida em que a mesma não diligenciou por sujeitar o R. a pacto de não concorrência que o obrigasse, após a cessação do contrato de trabalho, a não exercer actividade idêntica ou a não negociar com clientes da A., mediante adequada compensação.
Assim, inexiste qualquer dever diferencial de não concorrência por parte do Recorrido, enquanto ex-trabalhador da A., e a eventual violação da obrigação geral de não lhe fazer concorrência desleal só poderá ser accionada eficazmente pela Recorrente com fundamento no direito da concorrência e no foro próprio.
Improcede igualmente a invocação de abuso de direito do R. no exercício da sua actividade, uma vez que o mesmo se limitou a gozar a liberdade de trabalho garantida constitucionalmente e os limites que a Apelante pretende que se reconheçam a tal direito se reconduzem, afinal, aos que estão regulamentados no art. 136.º do Código do Trabalho, pelo que abusivo é a A. pretender que o R. possa estar vinculado aos mesmos sem que ocorra idêntica vinculação por parte dela, Apelante, isto é, sem que a mesma esteja obrigada a pagar a justa contrapartida.
Relativamente a um exercício da actividade do R. que se reconduza a violação da proibição geral de concorrência desleal, para além do que já se referiu quanto a propriedade do meio processual e foro, sempre careceria de sentido a invocação de abuso de direito, por estar ali pressuposta a inexistência de direito.
Improcede, pois, necessariamente o recurso.

5. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação improcedente e em confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Apelante.
Guimarães, 11 de Julho de 2017

(Alda Martins)
(Eduardo Azevedo)
(Vera Sottomayor)

Sumário (elaborado pela Relatora):

I – A pós-eficácia do dever de lealdade e boa-fé para com o empregador, isto é, para além da extinção do contrato de trabalho, não pode ter fundamento diverso do pacto regulado no art. 136.º do Código do Trabalho, sob pena de contradição e incoerência do sistema jurídico, na medida em que ali se estabelecem as restrições, a título excepcional e mediante compensação ao trabalhador, ao princípio da liberdade de trabalho tutelado no art. 47.º da Constituição.

II – Assim, cessado o contrato de trabalho, sem que tenha sido outorgado pacto de não concorrência, o trabalhador readquire a plena liberdade de trabalho constitucionalmente garantida, ficando apenas sujeito a restrições comuns a qualquer outro cidadão, designadamente as inerentes à proibição de concorrência desleal, tutelada criminal e civilmente e não já no plano do direito laboral.

III – Não actua com abuso de direito o ex-trabalhador que exerce actividade profissional concorrente da exercida pelo ex-empregador, se não tiver sido outorgado pacto de não concorrência, pois abusivo seria o ex-empregador beneficiar de vinculação do ex-trabalhador a deveres que substancialmente se reconduzem aos acautelados no art. 136.º do Código do Trabalho sem ocorrer idêntica vinculação por parte dele, ex-empregador, isto é, sem que o mesmo esteja obrigado a pagar a justa contrapartida.

(Alda Martins)