Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3003/17.2T8BCL.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: DEVER DE PRESTAR CONTAS
ATOS DE GESTÃO DE NEGÓCIOS
BENS ALHEIOS OU COMUNS ÀS PARTES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

1- O dever de prestar contas a que se reporta o processo especial de prestação de contas centra-se essencialmente na prática de atos de gestão de negócios ou bens alheios ou comuns às partes, não sendo essencial que decorra de um contrato celebrado entre estas: basta que decorra da lei ou mesmo de princípios gerais.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

Autora e Apelada:
A. R., solteira, maior, NIF ………, CC n.º ………, residente na Rua …, freguesia de …, concelho de Barcelos;

Réus e Apelantes:
P. M., NIF ………, e J. V., NIF ………, casados, residentes na Rua …, freguesia de …, do concelho de Barcelos,
Autos de: apelação em ação especial de prestação de contas

I - Relatório

A Autora, na sua petição inicial, pediu que seja declarado que os Réus estão obrigados à prestação das contas, com a consequente condenação no pagamento à Autora do saldo que vier a ser apurado como devedor, acrescido de juros de mora contados desde a citação, à taxa legal, até tal pagamento.
Alegou, para tanto e em síntese, que Autora e Réus celebraram contrato de doação em 27 de julho de 2010, em que interveio como doadora e aqueles como donatários, tendo a Autora declarado doar-lhes um prédio urbano, que identifica, com reserva de usufruto, e com a obrigação dos Réus a tratarem e acompanharem na saúde e na doença, fornecendo os donatários os meios necessários para tal, de zelar pela sepultura que possui no Cemitério Paroquial da Freguesia de ... e de mandarem fazer o seu funeral e ainda de mandarem celebrar por sua alma uma missa mensal, bem como a do seu aniversário, o que estes aceitaram.
Os Réus, que tinham passado a frequentar e a pernoitar na casa da Autora desde maio de 2010, agiram de forma a apropriarem-se de bens e valores da desta, levando a que procedesse à abertura de conta bancária no Banco... – Barcelos com quantias avultadas que pertenciam à Autora, convencendo a Autora a que a Ré mulher, como administradora dos bens da Autora, passasse a figurar como segunda titular dessa conta e com poderes para emitir cheques, bem como para movimentar dinheiro através de um único cartão multibanco ou cheques, que foram emitidos somente em nome da Ré.
Na medida em que administravam e administraram bens ou valores alheios, que sabiam e sabem ser da Autora, estão obrigados à prestação de contas da sua administração, tendo a Autora o direito de exigir essa prestação. Mais afirmou que os Réus estão obrigados a restituir à Autora objetos em ouro de que eram depositários, ou a prestar contas do seu uso e destino.
Os Recorrentes apresentaram contestação, defendendo que não existia qualquer dever de prestar contas, impugnando a matéria de facto alegada pela Autora, mencionando que se limitaram a cumprir as suas ordens.
Em 11/10/2018, os réus requereram a notificação do Banco..., em Barcelos para juntar aos autos ficha de abertura da conta bancária, com indicação de quem estava autorizado a movimentá-la, se havia cartões multibanco associados a essa conta e, em caso afirmativo, em nome de quem foram emitidos e os seus extratos, desde junho de 2010, acompanhados dos documentos de suporte de todos os movimentos efetuados.
Em 14/01/2019, os réus requereram que o BANCO... juntasse aos autos o suporte documental de cada um dos movimentos, a crédito e a débito, espelhados no extrato da conta, por só através da análise dos mesmos se poder concluir quem instruiu o BANCO... a efetuar tais movimentos e em benefício de quem.
Em 18/01/2019, foi proferido despacho a ordenar a notificação do Banco... para, no prazo de dez dias, remeter aos autos os documentos solicitados pelos réus.
Em 03/05/2019, na sequência do ofício do Banco... e dos documentos juntos ao mesmo, os réus requereram se oficiasse a Caixa A, à Caixa B e ao Banco …, para remeterem cópia dos cheques aí referenciados e solicitaram o prazo de 5 dias para informarem os nomes e moradas dos beneficiários de outros cheques aí referenciados.
Em 24/05/2019 deferiu-se a realização destas diligências.
Em 25/11/2019, os Réus vieram indicar os cheques, discriminando-as por alíneas, que admitem que foram levantados e emitidos pela Requerente, invocando quem eram os destinatários dessas quantias e títulos, a quem foram entregues, afirmando ainda que todos os cheques foram emitidos com conhecimento e por instruções da Autora que, em cada momento, soube o destino de cada um dos valores. Defendem que “é importante para a descoberta da verdade que as pessoas / entidades referidas nas alíneas a), b), d), e), f), g), h), i) e j), confirmem o recebimento de cada um dos valores respetivos, solicitando a notificação das “pessoas / entidades referidas nas alíneas a), b), d), e), f), g), h), i) e j), confirmem o recebimento de cada um dos valores respetivos.”

Em 2/12/2019 foi proferido o seguinte despacho, objeto de tempestivo recurso, o qual só veio a ser objeto de admissão em 9/12/2020:
“I - Requerimento de fls. 248 e seguintes:
Os presentes autos de prestação de contas ainda se encontram na fase inicial, ou seja, o ao Tribunal ainda cabe determinar se os Réus estão ou não obrigados a prestar contas à Autora, conforme esta pede nos autos. As diligências peticionados pelos Réus no requerimento em apreço ultrapassam manifestamente o fim que, neste momento, se pretende atingir – decisão sobre a obrigação ou não de prestação de contas.
Por esse motivo, entendemos que as mesmas são, no presente momento, desnecessárias, razão pela qual não se defere o peticionado.
Notifique.”
Após a apresentação de recurso (que só volvido mais de um ano foi admitido como referido supra) e a obtenção de várias informações, veio a ser proferida sentença, na qual se consideraram provados, por força da força do caso julgado, sem que tal se mostre impugnado, um conjunto de factos que haviam sido dados como provados noutros autos, com as mesmas partes, que infra se introduzirão na enunciação da matéria de facto provada.
Nessa sentença, também ora sob recurso, interposto pelos Réus, julgou-se parcialmente procedente a ação e determinou-se que os Réus P. M. e J. V., no prazo de 20 dias, “prestem à Autora A. R., contas da sua administração / gestão da conta bancária nº .......-000-00 do Banco..., em Barcelos, co-titulada pela Autora”.
*
No recurso da decisão que indeferiu os meios de prova que haviam apresentado em 25/11/2019, os Réus apresentaram as seguintes
conclusões:

“1.ª - através da realização da diligência peticionada pelos recorrentes se poderá concluir da falsidade do invocado pela autora na petição inicial e, pois, que todos os cheques / transferências, relativos à conta bancária n.º .......-000-001 do banco ..., foram emitidos com conhecimento e por instruções da autora, que soube sempre o destino de cada um dos referidos valores, não havendo, por isso quaisquer contas a prestar pelos recorrentes
2.ª - Face ao objecto do litígio e aos temas da prova, o conhecimento da confirmação por parte dos beneficiários dos cheques emitidos do recebimento dos respectivos valores e a que título, constitui um elemento de prova pertinente e de imprescindível importância para a descoberta da verdade material e para a boa decisão da causa - vd. art.º 411.º e n.º 2 do art.º 429.º do CPC e art.º 341.º Código Civil.
3.ª - O indeferimento pelo tribunal a quo da obtenção dessa informação requerida pelos recorrentes frustra a possibilidade de recurso a um meio de prova essencial e, por outro lado, diminui a possibilidade dos recorrentes provarem em juízo a sua pretensão e, em última análise, lesa o seu direito à prova -vd. n.º 1 art.º 7.º CPC e art.ºs 341.º e 342.º CC .

No recurso que os Réus interpuseram da sentença, apresentaram as seguintes
conclusões:

“1.ª - Em 20.12.2019 os réus apresentaram recurso do douto despacho de 02.12.2019 que indeferiu as diligências de prova requeridas pelos réus, sendo que, até ao dia de hoje a Mm.ª Juiz a quo não proferiu qualquer decisão quanto à admissão / subida do mesmo
2.ª - Ora, salvo melhor opinião, sem a prévia apreciação desse requerimento de interposição de recurso apresentado pelos réus, não podia ser proferida sentença a determinar a prestação de contas à autora, uma vez que, a omissão de pronúncia relativamente ao recurso apresentado se traduz, no fundo, em denegação de justiça - vd. n.º 1 do art.º 641.º do CPC
3.ª - Ao não apreciar a admissão desse recurso, o tribunal a quo deixou de pronunciar-se sobre questão ou pretensão que devia apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada pelos réus, padecendo, por isso, a sentença recorrida de nulidade por omissão de pronúncia - vd. al. d) n.º 1 art.º 615.º CPC
4.ª - A obrigação de prestação de contas pressupõe a qualidade de administrador em que alguém se encontra investido quanto a bens que não lhe pertencem, geradora de recíprocos créditos e débitos cujo saldo se pretende apurar - vd. art.º 941.º CPC
5.ª - Ora, salvo o devido respeito, contrariamente ao referido pela Mm.ª Juiz a quo, da factualidade provada no douto acórdão do TRG proferido na ação n.º 190/16.0T8BCL (com força de autoridade do caso julgado nos presentes autos) não resulta a prática, pelos réus, de atos de gestão da conta bancária n.º .......-000-00 do Banco... com a consequente obrigação de prestar contas à autora.
6.ª - Com efeito, está assente que a referida conta bancária é co-titulada pela autora e pela ré, sendo que, essa mera contitularidade não comporta, por si só, poderes de administração de bens alheios e, de resto, não resultou provado que os fundos existentes nessa conta fossem exclusivamente pertencentes à autora ou sequer que os réus se encontravam na administração do património da autora, não se podendo, por isso, exigir a prestação de contas aos réus - vd. art.º 941.º CPC e acórdão TRC de 03.05.2016, processo n.º 328/15.5T8CNT.C1, in www.dgsi.pt

De harmonia com as razões expostas deve conceder-se provimento ao recurso e por tal efeito:
- declarar-se a nulidade da douta sentença proferida por omissão de pronúncia
- deliberar-se a inexistência da obrigação de prestação de contas por parte dos réus, com a consequente improcedência da presente ação”.

II - Objeto dos recursos

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso ou se versarem sobre matéria de conhecimento oficioso, desde que os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.

Face ao teor das conclusões dos recursos, são as seguintes as questões que cumpre apreciar, por ordem lógica, começando pelas que precludem ou contendem com as demais questões:

1--- se as informações peticionadas pelos Réus eram relevantes para a decisão sobre a constituição da obrigação de prestar contas ( do 1º recurso);
2--- se a sentença é nula por omissão de pronúncia (do recurso da sentença);
3--- se os réus estão obrigados a prestar contas à Autora (do recurso da sentença).

III - Fundamentação de Facto

Resulta da sentença que nesta se julgaram provados os factos que haviam sido dados como provados num anterior processo com as mesmas partes e sobre a mesma relação, aceitando que estes tinham força de caso julgado, na sequência, aliás, do que nesse processo foi decidido pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, impondo e estendendo a força de caso julgado aos factos respondidos naqueles autos.

Assim, a matéria de facto provada e não provada vem definida, na sentença sob recurso, da seguinte forma:

No processo nº 190/16.0T8BCL foram aí considerados como provados os seguintes factos:

“ 1. No dia 27 de julho de 2010, no Cartório Notarial de Barcelos a cargo do Notário J. c., sito na Rua …, da cidade de Barcelos, realizou-se uma escritura de doação, que ficou exarada a folhas três a folhas quatro verso do livro de notas para escrituras diversas número …-A, em que foram outorgantes a Ré, como primeira outorgante e doadora, e os Autores, como segundos outorgantes e donatários.
2. Na escritura de doação referida no número anterior a Ré declarou ser a única herdeira de A. A. e nessa qualidade fazer doação aos segundos outorgantes do prédio misto "casa de habitação de rés-do-chão e andar, dependência e coberto ao nascente e junto terreno de cultura e ramada, com a área de 22.700 m2, situado na Rua da …, freguesia de ..., concelho de Barcelos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob o n.º …/...,
3. Os Autores, segundos outorgantes e donatários declararam na escritura de doação referida no número anterior que aceitavam a doação nos termos exarados.
4. À data da escritura de doação a Autora residia com a Ré no prédio objeto da doação, fazendo a limpeza da casa, lavando as roupas e confecionando as refeições, bem como fazendo as compras para casa, acompanhando a Ré ao médico e comprando os medicamentos que eram prescritos.
5. A Autora acompanhava ainda a Ré em passeios e convívios.
6. Em 25 de novembro de 2010, a Autora saiu da casa, deixou de viver com a Ré, e desde então os Autores não mais lá voltaram, porque esta os mandou sair, dizendo que a partir de então seria o irmão a cuidar dela.
7. A Ré instaurou ação de processo comum contra os aqui Autores, a qual correu termos na 1 a Secção Cível da Instância Central de Braga com o nº 461/13.8TBBCL, a qual foi julgada totalmente improcedente por sentença proferida em 24/04/2015, confirmada por Acórdão da Relação de Guimarães de 19/11/2015, conforme consta da certidão de fls. 77 e seguintes cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
8. Na ação referida no número anterior a Ré peticionava fosse decretada resolução da doação por si efetuada a favor dos Autores ou, em alternativa, a sua revogação, e ainda o cancelamento do registo de aquisição a favor dos Réus e posteriores.
9. A Ré abriu uma conta no Banco... de Barcelos, com o na .......000, titulada pela Ré e pela Autora.
10. No final de outubro de 2010, a Ré recebeu uma notificação da direção geral dos impostos para pagamento do imposto de selo relativo à herança por óbito de seu falecido irmão A. A., de quem era herdeira, no montante de €9.107,91, a pagar até 31/12/2010.
11. No dia 14/10/2010 a conta referida em 9) apresentava o saldo de €1.978,78.
12. Na data referida no número anterior o Autor procedeu ao depósito na conta referida em 9) da quantia de €2.000,00.
13. Em 29/10/2010 a conta referida em 9) apresentava o saldo de €3.219,02.
14. A Autora, em nome da Ré, pediu a J. S., filho de A. L., a quantia de €9.1 07,91 tendo em conta o valor do imposto de selo a pagar.
15. J. S. emitiu o cheque na …, sacado sobre o Banco …, datado de 22/11/2010 e no montante de €9.107,91, que a Autora depositou na conta referida em 9) em 23/11/2010.
16. A Autora emitiu o cheque na …., sacado sobre a conta referida em 9), datado de 23/11/2010 e no montante de € 9.l07,91 para pagamento do referido imposto de selo, o qual foi apresentado a pagamento no dia 26/11/2010.
17. Por força do referido em 9), a Autora P. M. ficou na posse de cheques, tendo poderes para proceder à sua emissão, e de cartão multibanco da conta em causa.
18. Em 06/07/2010, a Autora procedeu ao levantamento da conta identificada em 9), ao balcão do Banco..., da quantia de €1.000,00.
19. De 06/07/2010 a 25/11/2010 a Autora efetuou sucessivos levantamentos em dinheiro com utilização do cartão multibando no total de €2.600,00.
20. Para pagamento de honorários ao Dr. A. D., Advogado da Ré e de seu falecido irmão A. A., a Autora, em 26/07/2010, emitiu e sacou, da conta identificada em 9), o cheque n° .......66 no montante de €20.000,00.
21. A Autora emitiu sobre a conta identificada em 9) os cheques número ……..64, ..........63 e ………62, todos datados de 27/07/2010 e no montante respetivamente de €250,00, €250,00 e €325,00.
22. A Autora emitiu sobre a conta identificada em 9) os cheques número .......67, ……..68 e …….69, datados de 30/07/2010, 31/07/2010 e 17/08/2010 e no montante, respetivamente, de €700,00, €500,00 e €650,00.
23. Para pagamento do imposto devido com a doação referida em 1) a Autora emitiu e sacou da conta identificada em 9) o cheque n° ………..70, datado de 01/10/2010, apresentado a pagamento em 06/10/2010 e no montante de €4.091,86.
24. De 27/07/2010 a 25/11/2010 a Autora efetuou diversos pagamentos com o cartão multibanco, sacando esses valores da conta identificada em 9) no valor total de €1.504,20.
25. A conta identificada em 9) apresentava em 29 de junho de 2010 o saldo de €.5000,00, em 20 julho de 2010 o saldo de €30.358,52 e em 25 de novembro de 2010 o saldo de €11. 220,26 o qual incluía o valor de €9.107,91 do cheque referido em 15).
26. A Ré procedeu à transferência para a conta identificada em 9) de valores da conta à ordem pertencente à Ré existente na Caixa de Crédito A de Barcelos, no total de €32.000,00, através do depósito de €5.000,00 em 29/06/2010, do depósito de €5.000,00 em 07/07/2010 e do depósito de €22.000,00 em 20/07/2010. (…)
32. A Ré é pessoa doente, sofrendo de diabetes e fibrilação auricular, tomando medicações contínuas e específicas, e exigindo acompanhamento médico e idas ao Hospital e médicos, unidades de saúde e farmácias.
33. A Ré suportou o pagamento de despesas de saúde desde 2010 até à apresentação da contestação em montante não concretamente apurado.
34. A Ré suportou o pagamento de despesas dos consumos e alugueres de contador da Eletricidade … do edifício doado desde 2010 até à apresentação da contestação em montante não concretamente apurado.
35. Na sentença proferida no processo 461/13.8TBBCL, referida em .6 e .7, relatou-se: “Alegou, para tal, que declarou doar aos Réus, com reserva de usufruto, um prédio de que era proprietária, tendo, porém, condicionado a mesma ao cumprimento de determinadas obrigações essenciais, nomeadamente a acompanhá-la na saúde e na doença, fornecendo os donatários os meios necessários para tal, de zelar pela sepultura que possui e de mandarem fazer o seu funeral e celebrar missas pela sua alma.
Porém, após a outorga da escritura, os Réus apropriaram-se de avultadas quantias em dinheiro e vários objectos em ouro pertencentes à Autora e que se encontravam no interior da casa, começaram a fechar à chave o portão e a porta de casa com a intenção de impedir a entrada de visitas e de a privarem da sua liberdade e deixaram de prestar à Autora os cuidados a que se tinham obrigado, não tendo fornecido os meios para tal e suportado os respectivos encargos. Ao invés, fizeram levantamentos de importâncias superiores a € 30.000,00 de uma conta da Autora em proveito próprio, contra a vontade da mesma, assim demonstrando a sua infidelidade e ingratidão”
36. Na sentença proferida no processo 461/13.8TBBCL foi fixada a seguinte matéria de facto provada e não provada:
“II - Discutida a causa mostram-se provados os seguintes factos:
1. Por escritura de doação outorgada no dia 27 de Julho de 2010, no Cartório Notarial de Barcelos a cargo do Notário J. c., sito na Rua …, n.o .., da cidade de Barcelos, que ficou exarada a folhas três a folhas quatro verso' do livro de notas para escrituras diversas número …-A, a Autora declarou ser dona e possuidora do prédio misto melhor identificado nessa escritura, ou seja, "casa de habitação de rés-do-chão e andar, dependência e coberto ao nascente e junto terreno de cultura e ramada, com a área de 22,700 m2, situado na Rua …, freguesia de ..., concelho de Barcelos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob o n °..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … e na matriz predial rústica sob o artigo …", prédio esse que adquirira por herança de A. A., conforme escritura de habilitação de herdeiros outorgada em 21.05.2010, exarada a folhas 128 e seguinte do livro de notas para escrituras diversas n.º?...-A, daquele mesmo Cartório e declarou doar aos segundos outorgantes, aqui Réus o referido prédio.
2. Mais declarou a Autora fazia a doação com reserva de usufruto para si e com a obrigação de os donatários (aqui Réus) a tratarem e acompanharem na saúde e na doença, fornecendo os donatários os meios necessários para tal, de zelar pela sepultura que possui no Cemitério Paroquial da Freguesia de ... e de mandarem fazer o seu funeral, conforme o uso e costume da freguesia e com missa de corpo presente e ainda de mandarem celebrar por sua alma uma missa mensal, bem como a do seu aniversário.
3. Os Réus, ali segundos outorgantes e donatários declararam expressamente que aceitavam a doação nos termos e condições exarados.
4. A Autora nasceu em -.01.1939 e é solteira.

Não resultaram provados quaisquer outros factos com relevo para a discussão da causa, nomeadamente os seguintes:
a) Sem a estipulação das obrigações referidas em 2° dos factos provados, a Autora não teria outorgado essa mesma escritura em benefício dos Réus.
b) Logo após a realização da escritura, os Réus deixaram de prestar os cuidados de higiene, limpeza, tratamento de roupas e fornecimento de refeições, agindo de forma deliberada, consciente e bem sabendo que incumpriam as condições da doação.
c) Os Réus, que tinham passado a frequentar a casa da Autora desde Maio de 2010/ agiram de forma premeditada e planeada, de modo a apropriarem-se, como se apropriaram, de quantias em dinheiro da Autora e que se encontravam na sua casa guardados para as suas necessidades correntes.
d) Apropriaram-se de vários objectos em ouro pertencentes à Autora, designadamente uma corrente em ouro com medalha e um relógio, bem como duas argolas e um cordão de ouro.
e) Confrontados com esta situação somente devolveram o cordão em ouro que tinham na sua posse.
f) Após passarem a residir com a queixosa, os Réus começaram a fechar à chave quer o portão, quer a porta da casa, com a intenção de impedir a entrada de visitas, inclusive de familiares, tudo para dificultar o conhecimento dos factos atrás referidos e a falta de prestação de cuidados à Autora.
g) A Autora passou a estar privada da sua liberdade, pois que deixou de poder sair de casa quando queria, permanecendo horas ou dias fechada e incomunicável, tudo por acção dos Réus, sem contacto com familiares e amigos.
h) Agindo de forma concertada, até ao dia 25 de Novembro de 2011, os Réus, depois de convencerem a Autora a abrir uma conta no Banco... - Barcelos e para ali transferirem quantias avultadas, também convenceram a Autora a que a Ré mulher passasse a figurar como segunda titular da conta e com poderes para emitir cheques, bem como movimentar dinheiro através de cartão multibanco que requereram fosse emitido em nome da Ré P. M.,
l) Na posse desses cheques e cartão a Ré P. M., em acordo com o outro Réu, com quem é casada no regime de comunhão de adquiridos, efectuaram levantamentos, pagamentos e aplicações em proveito próprio, bem sabendo que não tinham autorização da Autora para tal.
j) Actuaram ainda com o propósito de enriquecer o seu património à custa do património da Autora, que, assim, viu a conta do Banco... praticamente esvaziada, fazendo seus ou usando em proveito próprio dinheiro ou meios de pagamento superiores a 30.000,00 €.
k) Na verdade, os Réus emitiram cheques, a sacar sobre aquela conta da Autora, a favor de terceiros ou com montantes que levantaram, sem qualquer justificação ou autorização da Autora, recusando a sua restituição até hoje ou a prestação de contas,
1) Tendo os Réus, por vergonha e descobertos nos seus propósitos censuráveis, abandonado a casa da Autora, não mais ali voltando, não mais a contactando, nem lhe prestando qualquer apoio ou assistência, votando-a ao mais completo esquecimento e abandono.
m) O bem doado é o património da Autora de que depende para viver e para a sua subsistência, pois que vive exclusivamente da sua reforma mensal de pequeno montante.
n) A Autora depende do apoio da família, sendo pessoa doente e carente de assistência, o que era e é do perfeito conhecimento dos Réus e motivou a realização da doação, vendo a Autora defraudadas pelos Réus todas as suas intenções
o) Apesar disso os Réus não se abstiveram dos seus censuráveis comportamentos, que, aliás, foram motivados pela tentativa de explorar em proveito próprio o estado de necessidade da Autora, que acabaram 'por abandonar completamente, situação que permanece de forma reiterada e continuadamente até hoje.”
37. Na escritura referida em 7 ficou ainda a Autor fez ainda constar que a doação era feita com reserva de usufruto para si e com “a obrigação de os donatários a tratarem e acompanharem na saúde e na doença, fornecendo os donatários os meios necessários para tal, de zelar pela sepultura que possui no Cemitério Paroquial da Freguesia de ... e de mandarem fazer o seu funeral, conforme o uso e costume da freguesia e com missa de corpo presente e ainda de mandarem celebrar por sua alma uma missa mensal, bem como a do seu aniversário””.

No sobredito acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães foram dados como não provados os seguintes factos:

“a) Que a Ré solicitou ao Autor o empréstimo da quantia referida em 12) dos factos provados tendo em vista o pagamento do imposto de selo referido em 10).
b) Que os Autores emprestaram à Ré a quantia de €9.1 07,91 em novembro de 2010.
c) Que no dia 25/11/2010 a Autora solicitou à Ré a restituição da quantia de €2.000,OO referida em 12) dos factos provados e da quantia de €9.l07,91 referida em 14) dos factos provados.
d) Que, logo após a outorga da escritura, os Autores começaram a ter manifestações impróprias, dando sinais de que queriam deixar de cumprir, de forma voluntária e reiterada, as obrigações e condições da doação.
e) Que os Autores agiram de forma premeditada e planeada, de modo a apropriarem-se de bens e valores da Ré.
f) Que os Autores se apropriaram de quantias em dinheiro que eram da Ré e que se encontravam na sua casa guardadas para as suas necessidades correntes.
g) Que os Autores se apropriaram de objectos em ouro da Ré de valor não inferior a €5.000,00.
h) Que, após passarem a residir com a Ré, os Autores começaram a fechar à chave quer o portão, quer a porta da casa, com a intenção de impedir a entrada de visitas, inclusive de familiares, tudo para dificultar o conhecimento dos factos referidos em 6) e 7) e a falta de prestação de cuidados à Ré.
i) Que, por acção dos Autores, a Ré permanecia horas ou dias incomunicável sem contacto com familiares e amigos.
j) Que o referido em 17) ocorreu bem sabendo a Autora que não tinha autorização da Ré para tal.
k) Que a quantia de €2.000,OO referida em 12) dos factos provados respeita a parte do subsídio por morte que a Ré recebeu da segurança social.
1) Que os Autores de comum acordo procederam se apropriaram da quantia de €500,OO do subsídio por morte que a Ré recebeu da segurança social.
m) Que os Autores desde sempre actuaram com o propósito de enriquecer o seu património à custa do património da Ré.
n) Que os Autores, pouco tempo após a realização da escritura e até 25/11/2016, deixaram de prestar os cuidados de higiene, limpeza, tratamento de roupas e fornecimento de refeições à Ré.
o) Que os Autores abandonaram a casa da Ré por vergonha e por terem sido descobertos nos seus propósitos censuráveis.
p) Que o referido em 17) dos factos provados ocorreu na execução de um plano acordado pelos Autores no sentido de se apropriarem de valores ou bens da Ré, apesar de bem saberem que nisso esta não consentia.
q) Que o cheque referido em 20) dos factos provados fosse para pagamento de serviços de advogado contratados pelos Autores.
r) Que os cheques identificados em 21) dos factos provados se destinaram ao pagamento das despesas de doação e das duas testemunhas presentes.
s) Que os cheques identificados em 22) dos factos provados se destinaram a pagamento de despesas próprias dos Autores.
t) Que após o referido em 6) dos factos provados a Ré teve que contratar serviços de terceiros.
u) Que a Ré teve que compensar materialmente os familiares de quem se socorreu após o referido em 6) dos factos provados.
v) Que a Ré vive em constante ansiedade, pensando que os familiares a podem abandonar e que não tem meios para ir para um lar ou obter de terceiros qualquer assistência.
w) Que o estado de saúde da Ré foi agravado pelo comportamento dos Autores e que tudo vem provocando à Ré humilhação, ansiedade, nervosismo, preocupações e dificuldade de entendimento e capacidade de determinar a sua vida.”.

IV - Fundamentação de Direito

1--- Do primeiro recurso: se as informações peticionadas pelos Réus eram relevantes para a decisão sobre a constituição da obrigação de prestar contas

Para verificar se as informações pretendidas pelos Réus são importantes para verificar se se constituiu a obrigação de prestar contas, importa, antes de mais, apurar em que situações se constitui esta obrigação.
Esta questão importará também para a decisão da terceira questão objeto deste recurso e supra enunciada: se os Réus estão obrigados a tal prestação.

Da constituição da obrigação de prestar contas

Determina o artigo 941º do Código de Processo Civil (à semelhança do artigo 1014º do anterior código) que "A ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se."
Esta é, portanto, como que uma ação declarativa de condenação, em que se visa apurar quem deve e aquilo que deve, sendo passível de ser desdobrada em duas fases: uma primeira, em que se encontrava o processo quando foi apresentado o requerimento que ora se aprecia, em que se apura se existe a obrigação de prestar contas e uma segunda, verificada que seja essa obrigação, em que se calcula o saldo das mesmas.
Atenta a sua estrutura, tem sido salientado que esta tem em si a forma de concretizar uma obrigação de informação, embora se aceite também que nem todas as situações em que se verifique esta obrigação de prestar informações implicam uma obrigação de prestação de contas.
Entre muitos, no mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.02.2005 (processo n.º 04B4671), disponível, como todos os demais acórdãos citados, no portal dgsi.pt.: “A obrigação de prestação de contas é estruturalmente uma obrigação de informação de quem administra bens alheios, designadamente o cônjuge, cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efetuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito.”
E desta forma, já Alberto dos Reis, "Processos Especiais", vol. I, Reimpressão, Coimbra, 1982, pag. 303, mencionava a existência de um princípio geral, que tem tido total acolhimento na jurisprudência, pelo qual se compreende que "quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses".
Abarca, pois, os casos em que, com consequências patrimoniais, alguém trata de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios, relevando a gestão efetuada, mais do que a sua fonte.
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-04-2008, no processo 1533/2008-2 I “I–A obrigação de prestar contas decorre de uma outra obrigação de carácter mais geral, a obrigação de informação; mas, nem sempre que exista obrigação de informação existe obrigação de prestação de contas, encontrando-se esta última fixada casuisticamente em várias normas das quais se poderá extrair o princípio geral de que quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses. II - O pedido judicial de prestação de contas só tem razão de ser quando o R. exerceu administração ou gerência de bens ou interesses do Autor”.
Também neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/07/2019 no processo 119/19.4T8VLN.G1 “I- O direito de exigir a prestação de contas está diretamente relacionado com a qualidade de administrador em que alguém se encontra investido quanto a bens que não lhe pertencem ou que não lhe pertencem em regime de exclusividade. II- A obrigação de prestar contas decorre diretamente da lei, como também pode derivar do negócio jurídico ou mesmo do princípio geral da boa-fé, sendo que, a prestação de contas pressupõe que a pessoa a quem são pedidas as contas exerceu gerência ou administração de interesses da pessoa que as pede.”
Este processo tem em vista ultrapassar as dificuldades de que padece o titular dos bens administrados em poder calcular o montante do saldo a que terá direito, visto que será quem administrou tais bens que terá a informação do ocorrido em tal gestão (revelando este fim, cf Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11/03/2016 no processo 969/14.8T8PTM.E1).
Importa ainda realçar que mais relevante que o título formal em que se substancia a gestão ou administração é a existência de atos de direção de bens, seja ela titulada ou não.
Como escreve Araújo de Barros no primeiro Acórdão citado nesta decisão “Não é o fim para que a procuração é emitida nem o conteúdo dos poderes que dela constam como conferidos ao procurador, mas apenas os atos realizados, que justificam a prestação de contas.”
Enfim, este dever de prestar contas centra-se essencialmente na prática de atos de gestão de negócios alheios (ou comuns às partes), não sendo essencial que decorra de um contrato celebrado entre estas: basta que decorra da lei ou mesmo de princípios gerais.
Importa, pois, verificar se a informação peticionada pelos Réus permite de alguma forma perceber se os Réus geriram a conta bancária da Autora, em discussão nestes autos.
A Autora funda a obrigação de prestar contas por parte dos Réus referindo que a Ré assumiu a função de “administradora dos bens da Autora” e por isso passou a figurar como co-titular de uma conta bancária e que, por outro lado, efetuaram levantamentos, pagamentos e aplicações em proveito próprio, bem sabendo que não tinham autorização da Autora para tal.
O processo de prestação de contas destina-se ao apuramento de um saldo, pelo que é o adequado quando está em causa um conjunto de operações, seja de recebimento de receitas, seja de realização de despesas de que o titular do bem ou quantias administradas por outrem não pode perceber-se, por falta de informação.
O processo de prestação de contas só tem lugar quando aquele a quem são prestadas viu os seus bens administrados por quem as deve prestar, necessitando de informações sobre as receitas e/ou despesas realizadas para poder alcançar se existe algum, saldo a seu favor e qual.
Os Réus aceitam que a Ré emitiu cheques e efetuou transferências relativas à conta bancária do Banco..., tal como a Autora invocou, mas afirmam que o fizeram com conhecimento e instruções da Autora “que soube sempre o destino de cada um dos referido valores, considerando, por isso, não haver lugar a prestar contas pelos Recorrentes” e para o demonstrar pretende que se notifiquem os destinatários dessas quantias e títulos para que confirmem o recebimento de cada um dos valores respetivos.
Ora, o que importa apurar, para nos situarmos no processo de prestação de contas, não é se os Réus levantaram, transferiram ou fizeram pagamentos dessa conta bancária em seu proveito ou de terceiros, mas se geriram as quantias da titularidade da Autora depositadas nessa conta em nome, por ordem ou no interesse da Autora, de forma a que se torna necessário apurar um saldo com base em informações que devem prestar, relativas a receitas ou despesas.
A diligência pretendida pelos Réus apenas tinha a virtualidade de poder demonstrar o exato destino do dinheiro em causa, nada relevando para afastar eventuais poderes de gestão desenvolvidos pelos Réus relativamente a quantias que movimentaram, que, por serem gestão de bens alheios, lhes inculca a obrigação de prestar contas.
Assim, para a decisão sobre se se verifica ou não a obrigação de prestar ou não contas é irrelevante o destino das quantias levantadas pela Ré e dos cheques que emitiu, importando, tão-só, verificar se a Autora detém todas as informações necessárias para poder concluir se tem um crédito sobre os Réus e qual o saldo a seu favor ou se tem que recorrer, para tanto, à colaboração dos Réus, por necessitar de informações que só estes têm.
Enfim, este meio de prova era impertinente nesta fase processual, sem prejuízo de, querendo obter-se a confirmação de factos de pessoas singulares, o meio adequado ser ouvi-las como testemunhas (audição a proceder-se em qualquer uma das formas previstas na lei, verificada a sua previsão), não a sua notificação para confirmar determinado facto.
Bem se andou, assim, no despacho que indeferiu este meio de prova, por impertinente para a decisão a proferir na fase processual em que se encontrava o processo.
**
2--- Do segundo recurso: da nulidade da sentença proferida por omissão de pronúncia

Os Réus alegam que sem a prévia apreciação do requerimento de interposição de recurso que apresentaram do despacho que indeferiu os meios de prova que apresentaram, supra mencionado, não podia ser proferida sentença a determinar que os réus prestem contas à autora, uma vez que a omissão de pronúncia relativamente ao recurso apresentado se traduz, no fundo, em denegação de justiça.
No entanto, é desde logo patente que, apesar de ter demorado muitíssimo tempo, o requerimento foi apreciado, pelo que nenhuma “denegação de justiça” se verifica (considerando-se patente que os Recorrentes não quiseram utilizar a expressão com o seu significado tipificado, por ser manifesto que não integraram nas suas alegações os pressupostos básicos necessários para o seu preenchimento).
Por outro lado, decorre do artigo 647º nº 1 e 3 do Código de Processo Civil, que o recurso autónomo previsto no artigo 644º nº 2 alínea d) desse código não tem efeito suspensivo, pelo que nada impede que a sentença seja proferida antes da admissão do recurso do despacho que rejeitou um meio de prova (não havendo que aguardar para a prolação da sentença pelo trânsito em julgado da respetiva decisão final, atento o efeito meramente devolutivo do recurso). É certo que ocorreu grande demora entre a interposição do recurso e a sua admissão, mas a mesma teve como consequência a subida conjunta dos dois recursos (o do indeferimento do meio de prova e a decisão sobre a obrigação de prestar contas), umbilicalmente ligados, podendo, por outro lado, caso a decisão final fosse outra, o primeiro ficar sem efeito.
Com efeito, como se explanou no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, de 10/16/2018, no processo 923/13.7TBGDM-B.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt: “I Sendo interposto recurso de uma decisão interlocutória, ao qual seja atribuído efeito devolutivo, o processo continua os seus termos, e decisão assim proferida, embora pendente de impugnação, é imediatamente exequível, tudo se passando no processo, quer a nível do seu andamento, quer ao nível da eficácia do que foi determinado, como se nenhuma impugnação tivesse existido. A atribuição ao recurso de um efeito meramente devolutivo, tem muitas vezes consequências perversas de produzir um volte face nas situações jurídicas constituídas: o que é agora determinado, poderá ser alterado por via do resultado final da decisão proferenda em sede recursiva, pois devolve-se o conhecimento da questão ao Tribunal hierarquicamente superior, sobre o qual impende o poder de rever a decisão com o objetivo de a confirmar ou revogar”.
Assim, também nenhuma nulidade se verifica na prolação da sentença em momento em que ainda não fora admitido o recurso interposto quanto aos meios probatórios, não ocorrendo também qualquer omissão de pronúncia na sentença sobre tal matéria, mais que não fosse, por não contender com a prática desse ato, mas, tão só e eventualmente, com a sua subsistência, caso o despacho sobre os meios de prova viesse a ser revogado.
De qualquer forma, em regra, uma sentença prolatada em momento em que o processo ainda não está preparado para o efeito, nomeadamente por estar suspenso por pendência de um recurso com efeito suspensivo, padece de uma nulidade processual que pode ser arguida autonomamente ou considerar-se a coberto da sentença e por isso dar lugar a recurso da mesma, mas não dá lugar a uma das nulidades previstas no artigo 615º do Código de Processo Civil, seja omissão de pronúncia, por não se ter pronunciado sobre a admissão do recurso, seja excesso de pronúncia, por o processo ainda não estar pronto para a produção daquele ato, visto que o seu conteúdo, por esse motivo, não falta das questões que lhe cumpre conhecer, nem delas extravasa.
Improcede, pois, a arguida nulidade.
*
3--- Do segundo recurso: se os réus estão obrigados a prestar contas à Autora.

Na sentença afirma-se que os factos elencados nos pontos 9), 11), 12), 13), 15), 16), 17), 18), 19), 20), 21), 22), 23), 24), 25) e 26) obrigam a que se conclua pela constituição da obrigação de prestar contas por parte dos Réus.
Tudo passa, pois, por saber, se da matéria de facto provada resulta que os réus geriram ou administraram quantias da Autora depositadas conta bancária de que eram co-titulares a Ré e a Autora, em causa nos presentes autos (nº .......-000-00 do Banco...).
Os Réus colocam em causa esta afirmação, dizendo que o que resulta da matéria de facto provada é que os movimentos bancários de que a autora pede contas, foram efetuados pela ré em conta bancária solidária, tendo cada uma delas a faculdade de livremente movimentá-la, não se tendo demonstrado que a Autora tenha consentido ou conferido poderes à Ré para a movimentar e logo não há qualquer contrato de mandato que a constituísse na obrigação de prestar contas por parte da Ré. A Autora sabe e sempre soube de todos e cada um dos movimentos a crédito e a débito realizados na aludida conta bancária e a benefício de quem foram efetuados, não havendo também por isso qualquer justificação para a peticionada prestação de contas.
Como vimos, o cerne do processo em causa centra-se mais numa situação de facto do que na existência de um contrato que constitua a obrigação em causa: exige-se uma administração, de facto, de bens alheios, e que o titular dos mesmos, em virtude das circunstâncias do caso, não tenha na sua disponibilidade informações suficientes para saber se dela resultou um saldo a seu favor e/ou qual o seu montante, necessitando a colaboração da contraparte para efetuar esse apuramento.
Assim, o relevante não é a existência de uma conta bancária solidária, tão pouco importa que a Ré tenha efetuado levantamentos de tal conta e emissão e cheques de tal conta, mas tão só se tais levantamentos foram efetuados no âmbito de uma gestão ou administração de bens da Autora ou a favor da Autora efetuada pelos Réus, o que estes aceitam que ocorreu.
Resulta da matéria de facto provada supra enunciada que a Ré, em nome da Autora, pediu um empréstimo cujo valor, obtido, depositou na conta bancária em causa, decorrendo daqui a prática de um ato de gestão de interesses daquela e que utilizou tal saldo para pagar impostos de que a Autora era devedora (pontos 14 a 16), assim como efetuou o pagamento de outro empréstimo (ponto 23 da matéria de facto provada), emitiu cheques para pagamento de dívidas da Ré (ponto 20 da matéria de facto provada), sendo a conta provida pela Autora (ponto 26 da matéria de facto provada).
Mais fez a Ré um conjunto de atos nessa conta, como levantamentos (pontos 18, 19) e de emissão de cheques (21 e 22).
Ora, do exposto resulta patente que a Ré executou atos em favor da Autora, com quantias de que esta é titular, depositadas nessa conta e, logo, que é necessário que aqueles que efetuaram tais atos deles prestem contas, justificando o seu destino, no desfecho da colaboração que efetuaram.
Assim, é irrelevante nesta fase, que não se tenha dado como provado que os Réus efetuaram levantamentos, pagamentos e aplicações em proveito próprio, ou que emitiram cheques, sem qualquer justificação ou autorização da Autora; importante é que efetuaram esse tipo de atos relativamente a fundos da Autora e que têm que ser considerados como de administração, implicando a sua movimentação e aplicação.
Assim, verifica-se a prática de atos de administração de bens da Autora por parte dos Réus de que estes têm a obrigação de prestar contas.
Bem andou a sentença ao condenar os Réus P. M. e J. V., a, no prazo de 20 dias, prestar à Autora A. R., contas da sua administração / gestão da conta bancária nº .......-000-00 do Banco..., em Barcelos, co titulada pela Autora.,
Estes devem ser notificados nos termos do nº 5 do artigo 942º do Código de Processo Civil.

V - Decisão

Por todo o exposto, julgam-se:
--- as apelações interpostas pelos Réus totalmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
Guimarães,

Sandra Melo
Conceição Sampaio
Elisabete Coelho de Moura Alves