Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2142/12.0TBBRG.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO INDISPONÍVEL
RESIDÊNCIA NO ESTRANGEIRO
SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O pedido de exoneração do passivo restante tem como objetivo primordial conceder uma “segunda oportunidade” ao devedor singular que caia em situação de insolvência, de recomeçar vida nova no fim do período de 5 anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, permitindo que este se liberte do passivo que possui e que não consiga pagar no âmbito daquele processo.
II - Atenta esta finalidade da exoneração do passivo restante e implicando o mesmo um perdão de dívidas, é imperativo encontrar um equilíbrio entre o interesse do ressarcimento dos credores e a garantia do mínimo necessário ao sustento digno do devedor e do seu agregado familiar.
III - O rendimento indisponível a que alude a subalínea i), da al. b), do nº. 3, do artº. 239, do CIRE, corresponde ao valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente condigno do devedor e seu agregado familiar.
IV - A determinação desse valor indisponível tem de ser efetuada pelo juiz mediante ponderação casuística das circunstâncias particulares do devedor, tendo em conta o princípio da dignidade humana e os princípios constitucionais de proibição do excesso e da adequação, necessidade e proporcionalidade, sopesando sempre os interesses antagónicos em confronto do insolvente e dos credores.
V – Por isso, o interesse dos credores na satisfação dos seus créditos tem que ser comprimido na medida do que seja necessário, adequado e proporcional à salvaguardada do sustento minimamente digno do insolvente e respetivo agregado familiar visto que assim o impõe o respeito pela dignidade da pessoa humana.
VI – Residindo os insolventes fora do território nacional, a fixação do rendimento indisponível deve ser feita por referência ao salário mínimo vigente no país onde residem, e não ao salário mínimo nacional, justificando-se que o rendimento possa ser fixado em montante superior a três salários mínimos nacionais em conformidade com o previsto na parte final da subalínea i), da al. b), do nº 3, do art. 239º, do CIRE.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência na 1ª seção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

Os insolventes E. R. E O. S. formularam pedido de exoneração do passivo restante, o qual foi liminarmente admitido, tendo sido fixado como rendimento excluído da cessão o correspondente a três vezes ¾ do IAS em vigor no ano de 2014 e nos anos subsequentes durante o período da cessão.
Posteriormente, os insolventes requereram que seja fixado em € 100,00 a quantia a entregar à fiduciária, com efeitos reportados a 18 de setembro de 2018.
Como fundamento do seu pedido, alegaram, em síntese, que, em setembro de 2018, emigraram para a Suíça, onde trabalham, auferindo o insolvente o salário mensal de 5 785 francos suíços e a insolvente mulher a quantia de 1 099,15 francos suíços. Têm dois filhos menores a cargo, ambos estudantes, sendo as despesas do agregado familiar no valor global de 6 742,18 CHF, pelo que, deduzidas estas, ficam com rendimento de cerca de 125,42 €.
No Cantão de Genebra onde vivem não existe salário mínimo, mas no Cantão Neuchatel o salário mínimo é de 3 480 CHF equivalente a € 3 096.
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As credoras X, S.A. e Y – Consultores de Gestão, Lda. pronunciaram-se pelo indeferimento da pretensão.
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A Srª Administradora de Insolvência pronunciou-se no sentido de serem os insolventes notificados para juntarem vários documentos e considerou ainda desadequada a fixação do valor disponível em € 100 proposto pelos insolventes.
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Foi proferida decisão sobre a pretensão dos insolventes que alterou o rendimento excluído da cessão para o montante equivalente a 3 vezes o salário mínimo nacional em vigor em cada ano, a partir de outubro de 2018 e enquanto se mantiverem a residir e trabalhar na Suíça.
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Inconformados, os insolventes interpuseram o presente recurso de apelação dessa decisão, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“I. Por despacho de fls. __, decidiu o Tribunal a quo “alterar-se o rendimento disponível dos insolventes excluído da cessão, para o montante equivalente a 3 vezes o salário mínimo nacional em vigor em cada ano, a partir de Outubro de 2018 e enquanto se mantiverem a residir e a trabalhar na Suiça”, não se conformando os Recorrente não se conformam com esta decisão; daí o presente recurso.
II. A decisão em crise põe em causa a sobrevivência digna dos insolventes violando o disposto no art. 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o disposto nos 1º, 2º, 8º, 9º, b), 12º, 13º, 14º, 16º, 18º, 26º, 44º e 59º, n.º1, al. a) da Constituição da República Portuguesa.
III. A interpretação que o Tribunal a quo faz do disposto no art. 239º, n.º2 e n.º3 CIRE no sentido de considerar que está excluído do rendimento disponível dos Recorrentes insolventes (apenas) o montante equivalente a três salários mínimos nacionais portugueses, devendo estes entregar à fiduciária o restantes, independentemente do local onde os salários são auferido, do local de residência e das reais condições de vida dos insolventes é inconstitucional, por violação 1º, 2º, 8º, 9º, b), 12º, 13º, 14º, 16º, 18º, 26º, 44º e 59º, n.º1, al. a) da Constituição da República Portuguesa.
IV. Pelas mesmas razões e fundamentos é inconstitucional a interpretação do mesmo normativo feita pelo Tribunal a quo de que “despesas correntes que dizem suportar aos rendimentos que afirmam auferir, para depois determinar o rendimento a ceder à massa fidúcia, não tem acolhimento legal”, conquanto esse exercício permitir obter aquilo que a lei define como dignidade da pessoa humana e sustento minimamente digno do devedor.
V. A interpretação da lei não deve cingir-se ao elemento literal, devendo ter em conta, também, as condições específicas em que é aplicada (vide art. 9º do Código Civil), atendendo, desde logo, à circunstância de os insolventes residirem na Suiça onde o custo de vida é notoriamente superior ao custo de vida em Portugal, onde o quantitativo de mínimo vital não coincide com o quantitativo do mínimo vital em Portugal; daí, no seu requerimento, os Recorrentes terem dado indicações quanto aos custos de vida naquele país.
VI. Inexistindo salário mínimo nacional e sendo o agregado familiar dos Recorrentes composto por 4 (quatro pessoas), sempre o Tribunal a quo estava obrigado a considerar o chamado “mínimo vital” que no país de residência é usado para fixar o mínimo considerado indispensável para o devedor e sua família, excluindo-o da cessão – neste sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 21/02/2019.
VII. No Cantão vizinho de Neuchatel o salário mínimo mensal é de 3.480CHF, pelo que, atendendo, ainda, às despesas essenciais do agregado familiar dos Recorrentes, o montante de rendimento determinado pela decisão em crise é injusto, ilegal e inconstitucional, fundando-se em circunstâncias a que estão sujeitos os residentes no país, não tendo considerado as circunstâncias concretas dos insolventes e aqui Recorrentes, razão pela qual deve a decisão que antecede ser revogada.”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Solicitou-se informação sobre o valor do salário mínimo no Cantão da Genebra à Embaixada da Suíça a qual informou que o salário mínimo é de 23 francos suíços por hora.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, a questão relevante a decidir consiste em saber se o valor excluído do rendimento disponível, nos termos do art. 239º, nº 3, al. b), subal. i), do CIRE, deve ser fixado para além de três salários mínimos nacionais.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:

1. Em 5.06.14 foi proferido o despacho que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes em conformidade com o decidido no Acórdão da Relação de Guimarães proferido nos autos, tendo sido determinado que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo, fosse cedido ao fiduciário todo o rendimento disponível dos insolventes, com exclusão do correspondente a três vezes ¾ do IAS em vigor no ano corrente e nos anos subsequentes durante o período de cessão.
2. Por decisão proferida em 12.10.2015 foi declaro encerrado o processo de insolvência, por insuficiência da massa insolvente, nos termos do artº 232º do CIRE, ficando os autos a aguardar o decurso do período de cessão de cinco anos, com termo inicial na data de 12.10.2015.
3. No decurso do período de cessão de rendimentos, não foram cedidos quaisquer rendimentos pelos insolventes.
4. Os insolventes emigraram para a Suíça em setembro de 2018.
5. Naquele País o insolvente aufere um salário mensal líquido entre 5 272,39 € e 5 347,31 € e a insolvente mulher entre 917,86 € e 1 838,64 €, efetuada a conversão de francos suíços para euros.
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Está ainda provado, na sequência da informação prestada pela Embaixada da Suíça, que no seguimento da votação popular de 27.9.2020, o valor do salário mínimo no Cantão de Genebra é de 23 francos suíços por hora (equivalente a € 21,22).

FUNDAMENTOS DE DIREITO

Vejamos então se deve, ou não, ser alterado o valor excluído do rendimento disponível, nos termos do art. 239º, nº 3, al. b), subal. i), do CIRE, que foi fixado em três salários mínimos nacionais no despacho recorrido.

A exoneração do passivo restante encontra-se prevista nos arts. 235º a 248º, do CIRE.
O pedido de exoneração do passivo restante é uma figura que tem como objetivo primordial conceder uma “segunda oportunidade” ao devedor singular que caia em situação de insolvência, de recomeçar vida nova no fim do período de 5 anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, permitindo que este se liberte do passivo que possui e que não consiga pagar no âmbito daquele processo (cf. Acórdãos do STJ de 21/10/2010 e 19/04/2012, in www.dgsi.pt).
Conforme é referido relativamente à figura jurídica da exoneração do passivo restante no nº 45 do preâmbulo do DL nº 53/04, de 18.3, que aprovou o C.I.R.E., o “Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. (...)
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. (...)
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.”
A exoneração do passivo restante inspira-se, pois, no chamado modelo de fresh start amplamente difundido no Estados Unidos e acolhido no código da insolvência alemão visando permitir ao devedor pessoa singular libertar-se do peso das dívidas que não podem ser satisfeitas através da liquidação do seu património e recomeçar de novo a sua vida.

Subjacente a este instituto está a ideia de um equilíbrio entre os interesses dos credores na satisfação dos seus créditos e o interesse do devedor, de redenção para uma nova vida, o que passa por sacrifícios para ambas as partes (Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14.1.2016, in www.dgsi.pt).
Nas palavras de Catarina Serra, (in O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, Almedina, 3ª edição, pp. 102 e 103) trata-se de um instituto “tributário da ideia de fresh start”, sendo o seu objectivo final “a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que, «aprendida a lição», este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua actividade económica”.
A concessão da exoneração passa por dois momentos fundamentais caracterizados basicamente por duas decisões: o chamado despacho inicial e a decisão final da exoneração.
Não havendo razões para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, o juiz proferirá despacho inicial, determinando que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido ao fiduciário destinando-se ao pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida, ao reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas, ao pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efetuadas e, por fim, à distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência, conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 239º e 241º do CIRE.
No final do período da cessão será proferida decisão sobre a concessão, ou não, da exoneração e, sendo esta concedida, ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados – art.º 245º do C.I.R.E.

De acordo com o disposto pelo art.º 239º, n.º 3, do CIRE, o rendimento disponível do devedor objeto da cessão ao fiduciário é integrado por todos os rendimentos que advenham, a qualquer título, ao devedor no período da cessão, com exclusão:

a) Dos créditos a que se refere o art.º 115º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua atividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.

Perante este quadro legal, impõe-se, pois, determinar no despacho inicial o valor necessário para o sustento minimamente digno do devedor e respetivo agregado familiar, valor esse que fica arredado dos rendimentos a ceder ao fiduciário. Tal valor integra o rendimento indisponível; tudo o que exceda tal valor constitui rendimento disponível que deve ser cedido ao fiduciário.

Portanto, a primeira conclusão que decorre deste quadro legal quanto ao caso concreto é que, ao contrário do pedido pelos recorrentes, o tribunal não tem que fixar o rendimento disponível. Ao invés, tem que fixar o rendimento indisponível, ou seja, o rendimento que fica excluído da cessão. Tudo o que exceda esse rendimento indisponível ou excluído da cessão constitui o rendimento disponível e tem que ser cedido ao fiduciário.

No que concerne à determinação do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, pese embora Carvalho Fernandes e João Labareda, (in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 238, ed. 2005, Quid Juris) defendam que o legislador terá adotado um critério objetivo na sua determinação, coincidindo este com o valor correspondente ao triplo do salário mínimo nacional, valor esse que só pode ser aumentado por decisão fundamentada do juiz, tem sido entendimento dominante na jurisprudência que o triplo do salário mínimo nacional corresponde unicamente ao limite máximo imposto pelo legislador para o valor do sustento minimamente digno, uma vez que a ponderação a fazer daquilo que seja o razoavelmente necessário colide com a ideia de um valor fixo, impondo antes que seja fixado o montante que o juiz entenda adequado.
Perante esta conclusão outro problema tem surgido que é o de saber qual o critério a recorrer para preencher o conceito indeterminado da norma e definir o que é o sustento minimamente digno do devedor e respetivo agregado familiar.
Como se escreveu no Acórdão desta Relação de Guimarães, de 7.3.2019 (in www.dgsi.pt)nessa tarefa, desde logo e com frequência, tem-se entendido que o “sustento minimamente digno” convoca a ideia de “dignidade da pessoa humana” consagrada, entre outros afloramentos, nos artºs 1º, 2º, 13º, 59º, nº 1, e 67º, nº 1, da nossa CRP [Constituição da República Portuguesa] normas que esta, relativamente a direitos fundamentais, manda interpretar e integrar de harmonia com a DUDH [Declaração Universal dos Direitos Humanos], em cujo artº 25º se proclama “Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários...”.
No mesmo alinhamento de ideias, considerou-se no Acórdão da Relação do Porto de 24.01.2012 (in www.dgsi.pt) que o “rendimento excluído da cessão – correctamente designado como “rendimento indisponível” – encontra-se assim caracterizado como a parte suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a existência do devedor; por forma exemplificativa, a norma legal indica tal limite de sobrevivência como não podendo exceder 3 vezes o salário mínimo nacional, salvo decisão judicial em contrário, naturalmente fundamentada, como o deve ser qualquer decisão judicial.
(...)

Visando o processo falimentar a execução universal do património do devedor e a satisfação tanto quanto possível integral dos direitos dos credores, a interpretação relativamente ao montante devido a título de rendimento indisponível, nos casos concretos, deve obedecer aos critérios interpretativos e ao princípio constitucional da “proibição do excesso” (artº 18º nº2 CRP), traduzindo-se, tanto quanto possível em adequação (isto é, apropriação ao caso), necessidade e proporcionalidade (justa medida) – assim, Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Coimbra, 3ª ed., pgs. 428 ss. A proibição do excesso, na hipótese de fixação do “rendimento indisponível”, olhará, de um lado, às necessidades fundamentais para um sustento minimamente do devedor e do seu agregado familiar, mas do outro terá em mente a necessária, tanto quanto possível, satisfação dos direitos dos credores”.

Em suma, “consistindo a exoneração do passivo restante na concessão ao insolvente, pessoa singular, de um benefício que se traduz num perdão de dívidas com a inerente perda, para os credores, dos correspondentes créditos, forçoso é encontrar um equilíbrio entre o ressarcimento desses credores e a garantia do mínimo necessário ao sustento digno do devedor e do seu agregado familiar, o que significa dizer que o sacrifício financeiro dos credores justifica proporcional sacrifício do insolvente tendo como limite a respectiva vivência minimamente condigna” (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 4.12.2014, in www.dgsi.pt),
Assim, o interesse dos credores na satisfação dos seus créditos tem que ser comprimido na medida do que seja necessário, adequado e proporcional à salvaguardada do sustento minimamente digno do insolvente e respetivo agregado familiar visto que assim o impõe o respeito pela dignidade da pessoa humana.
Portanto, o valor a fixar do rendimento indisponível terá de levar em consideração as particularidades de cada caso concreto, “devendo ponderar-se, por um lado, que se está perante uma situação transitória, durante a qual o insolvente deverá fazer um particular esforço de contenção de despesas e de percepção de receitas de molde a atenuar ao máximo as perdas que advirão aos credores da exoneração do passivo restante e, por outro lado, atender ao que é indispensável para, em consonância com a consagração constitucional do respeito pela dignidade humana (artºs 1º, 59º, nº. 2, al. a) e 63º, nºs 1 e 3 da CRP), assegurar as necessidades básicas do insolvente e do seu agregado familiar” (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 4.12.2014, in www.dgsi.pt).
Estes critérios são aplicáveis quer à fixação inicial do rendimento indisponível quer à sua alteração.

Revertendo ao caso concreto, temos uma situação em que os devedores inicialmente residiam em território nacional e, em setembro de 2018, foram viver e trabalhar para a Suíça. Na sequência desta alteração das suas condições de vida pediram a alteração do rendimento disponível.
Já analisámos supra que o que importa fixar não é o rendimento disponível, mas sim o rendimento indisponível, correspondendo aquele a tudo o que exceda este.
Vejamos, então, à luz dos critérios explanados, qual o montante em que deve ser fixado o rendimento indisponível dos devedores insolventes.
A decisão recorrida alterou o valor inicial e fixou o rendimento indisponível em três salários mínimos nacionais.
O recurso ao triplo do salário mínimo nacional como tendencial limite máximo legal do rendimento indisponível está pensado ou delineado para as situações em que o insolvente reside no território nacional. Nessas situações o devedor aufere os rendimentos em território nacional e com os mesmos suporta o custo de vida também vigente no território nacional, existindo uma relação entre ambos.
Porém, o recurso a esse critério já não se pode ter por ajustado para os casos em que o insolvente reside e trabalha fora do território nacional.
O salário mínimo de cada país é fixado levando em linha de conta o respetivo custo de vida e integra aquele montante mínimo que se considera como indispensável ou imprescindível para que qualquer pessoa possa prover à sua subsistência de forma minimamente digna nesse território.
Assim, se o insolvente reside em território nacional é curial recorrer-se ao salário mínimo nacional como critério de aferição do montante razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar pois esse salário é determinado em função do custo de vida existente no território nacional. Já se o devedor reside fora do território nacional deverá recorrer-se ao salário mínimo vigente no território de residência para fixar o valor necessário ao sustento minimamente digno.
Até há bem pouco tempo, não existia no Cantão de Genebra, onde residem os insolventes, qualquer salário mínimo nacional, o qual só foi aprovado na sequência da votação popular de 27.9.2020. Daí os insolventes fazerem referência ao salário mínimo vigente no Cantão de Neuchatel. Entretanto, foi aprovado para o Cantão de Genebra um salário mínimo nacional de 23 francos suíços por hora, equivalente a € 21,22.
Como tal, e vivendo os insolventes na Suíça, a fixação do valor do rendimento indisponível deve ser feita por referência a esse valor, e não por referência ao valor do salário mínimo nacional pois este está fixado em função do custo de vida em Portugal, sendo desajustado relativamente ao custo de vida na Suíça o qual é muito superior.
Sendo o valor do salário mínimo no Cantão de Genebra fixado por hora, e considerando que mensalmente um trabalhador presta 160 horas (8 horas x 5 dias x 4 semanas), o salário mínimo mensal a considerar é equivalente a € 3 395,2 (160 horas x € 21,22).
Esta situação de os devedores insolventes residirem e auferirem rendimentos no estrangeiro enquadra-se nas hipóteses previstas na parte final da subalínea i), da al. b), do nº 3, do art. 239º, do CIRE, em que se justifica que o rendimento possa ser fixado em montante superior a três salários mínimos nacionais.
Na fixação do rendimento indisponível não há que atender às concretas despesas dos insolventes, que até só foram meramente alegadas, mas não provadas, procurando-se antes a determinação daquilo que é razoável gastar para prover ao sustento dos insolventes e do seu agregado familiar, devendo os mesmos ajustar as despesas ou encargos e o seu nível de vida à nova realidade em que se encontram, fazendo sacrifícios e adotando um estilo de vida moderado e poupado, de contenção e gestão criteriosa das despesas, padrão que deve ser adotado por quem pretende obter o benefício do perdão das suas dívidas.
De referir ainda que o que se pretende garantir com a fixação do rendimento indisponível é a subsistência minimamente digna de qualquer pessoa no local onde concretamente reside e não a subsistência em consonância com o estado de desenvolvimento social do país onde se encontra a residir e com os padrões de qualidade de vida vigentes nesse território.
Por isso, deverá ter-se em linha de conta o custo de vida apenas relativamente a bens e serviços essenciais e de que nenhum ser humano pode prescindir, como seja a habitação e despesas domésticas inerentes, a alimentação, os cuidados de saúde, a frequência escolar, mas já não outras despesas que se relacionem com o concreto estádio de desenvolvimento social e nível de vida de que os habitantes desse país usufruem.
Acresce que, sendo os insolventes um casal que vive em economia comum, a determinação do montante a ceder não deverá ser determinada a título individual, mas sim globalmente uma vez que a generalidade das despesas e encargos são igualmente comuns e partilhadas entre os membros do casal.
No caso, como resulta da leitura da decisão proferida em 5.6.2014 referida em 1 dos factos provados, o agregado familiar dos insolventes é composto pelo casal e por dois filhos menores.
Os rendimentos mensais líquidos do insolvente situam-se entre os 5 272,39 € e 5 347,31 € e da insolvente entre 917,86 € e 1 838,64 €.
Nada se provou quanto ao valor e género das concretas despesas que têm.
Todavia, é facto público e notório que o custo de vida no Cantão de Genebra é dos mais elevados do mundo e é por isso que o salário mínimo recentemente aprovado corresponde também a um dos mais elevados do mundo.
Por conseguinte, e ponderando todos estes fatores, considera-se que o rendimento indisponível deve ser fixado em 1,7 salários mínimos mensais vigentes no Cantão de Genebra, calculados com base num horário mensal de 160 horas, por se considerar que tal valor é o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno dos insolventes e dos seus dois filhos menores nesse local, onde atualmente residem, respeitando, assim, a dignidade humana e mostrando-se proporcional e adequado aos interesses em confronto, isto é, de um lado as necessidades dos devedores insolventes e respetivo agregado e, do outro, a satisfação dos interesses dos credores.
Pese embora em 2018, altura em que os insolventes foram residir para a Suíça ainda não existisse salário mínimo fixado, pois este só foi aprovado após 27 de setembro de 2020, considera-se que se deve utilizar o valor que veio a ser fixado também para o período que mediou entre 2018 e 2020 visto que o salário mínimo fixado em 2020 reflete o mínimo essencial à subsistência na Suíça e é de presumir que o custo de vida não terá sofrido uma alteração substancial nesse hiato temporal de dois anos.
Assim sendo, altera-se a decisão recorrida em conformidade com o exposto, procedendo a apelação nessa medida.
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DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, e, em consequência, revogam a decisão recorrida e fixam o rendimento indisponível e excluído da cessão em 1,7 salários mínimos mensais vigentes no Cantão de Genebra, em vigor em cada ano e calculados com referência a 160 horas de trabalho mensais, a partir de outubro de 2018 e enquanto os insolventes se mantiverem a residir e trabalhar na Suíça, sendo o valor mensal a considerar de outubro de 2018 até ao presente de € 5 771,84 (160 h x € 21,22 x 1,7).
Custas pela massa insolvente.
Notifique.
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Guimarães, 17 de dezembro de 2020

(Relatora) Rosália Cunha
(1ª Adjunta) Lígia Venade
(2º Adjunto) Jorge Santos