Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1224/18.0T8VRL.G1
Relator: MARIA LUÍSA RAMOS
Descritores: USUCAPIÃO
PRESUNÇÃO DE POSSE
INTERSTÍCIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Verificando-se existir correspondência entre os atos materiais exercidos pela possuidora e o exercício do direito de propriedade, relativamente à parcela (interstício), por decorrência das legais presunções estabelecidas nos art.º 1252º, n.º 2 e 1268º, n.º 1, do Código Civil, tem-se por reconhecida a “Posse” da Autora e a consequente aquisição, originária, por usucapião, do direito de propriedade (cfr. jurisprudência uniformizada do AUJ do STJ de 14/5/96, in “DR, II S, de 24/6/96).
II- E, ainda, resultando provado o elemento material (corpus) e o elemento intelectual (animus) da posse, mostra-se verificada a usucapião nos termos dos art.º 1287º e 1296º do Código Civil.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

E. R. instaurou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra B. C. e outros (…), pedindo:
“(…) a) Declarar-se que a A. é dona, legítima e exclusiva proprietária do prédio identificado em 1º deste articulado;
b) Declarar-se que a caleira referida em 16º faz parte integrante do prédio referido em 1º, que por sua vez pertence à A. ou, caso assim não se entenda, declarar-se que a A. é dona, legítima e exclusiva proprietária da caleira identificada em 16º deste articulado.
c) Os RR. serem condenados a reconhecerem e respeitarem o direito de propriedade da A. e a absterem-se da prática de qualquer ato que colida ou afete esse direito;
d) Os RR. serem condenados a cessarem de imediato a intromissão e a prática de qualquer ato que viole o direito de propriedade da A. sobre aquele prédio e sobre aquela caleira, designadamente, retirando a chapa de ferro colocada entre as duas paredes das casas dos RR. e da A. e que impede o acesso desta à caleira referida em 16º;
e) Os RR. serem condenados a pagarem à A. uma indemnização pelos prejuízos causados na quantia que vier a liquidar-se nos termos alegados em 41º a 44º, acrescida dos juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento (…)”
Alega, em síntese, que é proprietária do prédio urbano sito na freguesia de ..., concelho de Murça, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., por ter adquirido o direito de propriedade por via da usucapião, sem prejuízo de invocar a presunção registral da dominialidade, e que esse imóvel abrange uma faixa de terreno identificada no artigo 16.º da p.i., mas os réus têm vindo a obstar à fruição de tal parcela, o que lhe causa danos.
A ré B. C. apresentou contestação (à qual aderiu o réu A. B., enquanto os demais réus não apresentaram contestação), na qual, no que ora releva, advogou que a faixa de terreno indicada pela autora abrange o prédio urbano sito na freguesia de ..., concelho de Murça, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º .., da qual é usufrutuária e que pertence aos demais réus, beneficiando para tanto os réus da presunção registral da titularidade desses direitos reais, para além da ré B. C. impugnar os danos invocados pela autora.
Na sequência do óbito da ré J. A. (ocorrido em -/11/2019), foi proferida sentença no apenso B), na qual foram habilitados como seus sucessores L. A., e outros (…).
Foi proferido despacho saneador e fixado o “Objecto do litígio” e os “Temas de prova”.

Realizado o julgamento veio a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, nos seguintes termos:
Termos em que, considerando o exposto, nos presentes autos de acção declarativa, sob a forma de processo comum, decide-se:

a) Declarar que a autora E. R. é proprietária do prédio urbano sito na freguesia de ..., concelho de Murça, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz predial sob o artigo ....º, condenando-se os réus B. C., A. B., A. A., B. A., AB., I. R., L. R., M. B. e M. G. e os sucessores da ré J. A., L. A., A. L. E D. B. a reconhecê-lo e a absterem-se de qualquer acto de turbação de tal direito real;
b) Declarar que o prédio urbano sito na freguesia de ..., concelho de Murça, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz predial sob o artigo ....º, compreende a faixa de terreno identificada no facto provado n.º 14, condenando-se os réus B. C., A. B.,A. A., B. A.,AB.,I. R., L. R., M. B. e M. G. e os sucessores da ré J. A., L. A., A. L. e D. B. a reconhecê-lo e a absterem-se de qualquer acto de turbação de tal direito real;
c) Condenar os réus B. C., A. B., A. A., B. A., AB., I. R., L. R., M. B. e M. G. e os sucessores da ré J. A., L. A., A. L. e D. B. a retirarem a chapa de ferro identificada no facto provado n.º 22;
d) Julgar improcedente a pretensão indemnizatória que a autora E. R. aduziu contra os réus B. C., A. B., A. A., B. A., AB., I. R., L. R., M. B. e M. G. e os sucessores da ré J. A., L. A., A. L. e D. B., os quais se absolve em conformidade de tais pretensões; (…)”

Inconformados vieram os Réus, B. C. e B. A. recorrer, interpondo recurso de apelação.

O recurso foi recebido como recurso de Apelação, com subida nos próprios autos, e efeito meramente devolutivo.

Nas alegações de recurso que apresentam, os recorrentes formulam as seguintes Conclusões:

Recurso de Apelação da Ré B. C., e, com igual teor, Recurso de Apelação do Réu B. A.:

1ª Salvo o devido respeito por melhor opinião, não pode a Recorrente conformar-se com a douta Decisão proferida pelo Tribunal “a quo” que deu parcialmente procedência à acção.
2ª No nosso modesto entendimento, a questão central que se colocava ao douto Tribunal, era a de saber se a faixa de terreno (interstício), com cerca de 11 m de comprimento e cerca de 45 cm de largura, é propriedade da Autora e, como tal, parte integrante do seu prédio urbano, descrito na CR Predial de … sob o nº ... ou, pelo contrário, é pertença dos Réus e, como tal, abrange o prédio destes descrito na CR Predial de Murça sob o nº ….
3ª Entendemos que os factos constantes dos números 15, 16, 18 e 20 da matéria de facto, resultante da instrução da causa, não traduzem, de acordo com as exigências da Lei, a existência de posse da Autora e seus antecessores para a aquisição daquele interstício por usucapião, pelo que deve tal materialidade constante dos supra referidos pontos da matéria de facto dada como provada, ser alterada para não provada, o que se requer.
4ª Diga-se que o douto Tribunal “a quo” deu como provado a matéria factual alegada pela autora no artigo 17º da petição – vide ponto 15 dos factos provados – e no ponto 1 da matéria de facto não provada que incide também sobre a matéria alegada no mesmo artigo 17º dá tal factualidade como não provada, o que constitui uma manifesta contradição entre a fundamentação da decisão e a própria decisão.
5ª Acresce que, consta da fundamentação da decisão – 2º parágrafo página 13 – que na dúvida o douto Tribunal “a quo” optou pela verificação da materialidade descrita nos factos provados nos números 13,14,15,17,18 e 19 – tudo factos alegados pela autora na sua petição – o que constitui uma manifesta violação precisamente do disposto no artigo 414º do C.P.C e artigos 342º e seguintes do CPC, o que se invoca para os devidos e legais efeitos.
6ª Pelo que a douta decisão padece de nulidade por violação do disposto na alínea c), nº1 do artigo 615º do CPC, incorrendo em erro de julgamento.
7ª Assim, a matéria de facto dada como provada nos números 15º, 16º, 18º e 20º deveria ser dada como não provada porquanto ao contrário do alegado pela Autora e suas testemunhas, a cimentação do solo na faixa de terreno identificado no facto provado nº 14, não ocorreu aquando da edificação da habitação da Autora no prédio descrito sob o nº ... pela anterior proprietária B. T. – cfr. ponto 1 da matéria de facto não provada.
8ª Pelo contrário, entendemos que dos depoimentos quer da Ré B. C., quer do outro co-Réu, A. B. e das respectivas testemunhas, mormente de F. B., não pode resultar qualquer hesitação do julgador quanto ao facto da cimentação daquela faixa ter ocorrido aquando da construção da casa dos Réus e a mando destes.
9ª Desses depoimentos, cujos extractos foram transcritos nestas alegações, resulta das declarações da Ré B. C., a 14:37 – Pôs o meu sobrinho F. B., o mesmo disse o Réu A. B. a 11:45 – (…) e depois o meu pai mandou cimentar aquilo porque o pai dela andava sempre contra o meu e o meu contra o dela por causa daquilo e a 15:50 – Foi posto cimento para não deixar, para a água não se infiltrar para baixo, o meu pai pôs lá o cimento, foi o meu primo que o pôs.
10ª E quanto à propriedade daquele interstício resulta das declarações de parte dos Réus e das suas testemunhas que aquele interstício faz parte integrante do prédio descrito sob o nº .., propriedade dos Réus.
11ª Ora, o prédio descrito sob o nº .. confronta de Nascente com o prédio descrito sob o nº ..., situando-se num plano superior – cfr. ponto 12 da matéria de facto provada.
12ª Até ao ano de 1981, existia no prédio descrito sob o nº .. uma habitação em madeira, um alambique e um espaço de logradouro em terra batida – cfr. ponto 17 dos factos provados.
13ª Em 1981, a Recorrente e o marido erigiram a habitação existente no prédio descrito sob o nº 33, local onde existiam as construções supra referidas, entretanto demolidas, sem ocuparem a faixa de terreno correspondente ao interstício – ponto 19 dos factos provados.
14ª Ora, o logradouro dos Réus, situava-se num plano superior ao prédio da Autora – ponto 18 dos factos provados (1ª parte).
15ª Tal logradouro do prédio descrito sob o nº .., era em terra batida e do lado Nascente, como se encontrava num plano superior ao prédio da Autora, existia naquela confrontação um muro em pedra de suporte das terras e pertencia ao prédio dos Réus, nem tão pouco foi sequer feita prova que tal muro pertencesse à autora.
16ª Aquando da construção da casa dos Réus, em 1981, estes não retiraram tal muro, nem edificaram os alicerces da casa nesse muro, mas sim, construíram a parede da casa perpendicularmente ao dito muro que ainda lá se mantém.
17ª Nas suas declarações de parte, a Ré B. C. refere o seguinte:
08:09 – Fiz a casa mas o quintal dei largueza por dentro à casa porque a casa era muito pequenina e eu tinha nove filhos. Eu deixei de existir o quintal e só deixei aquele bocadinho por via da minha telha porque eu podia chegar rente a ela, mas não podia pôr um caleiro por cima daquilo que era dela, portanto eu deixei aquele bocadinho (…). Ainda era o pai da senhora professora vivo quando isso eu fiz isso.
18ª Acresce que naquela altura da construção da casa dos Réus, estes abriram uma porta de acesso àquele interstício – e foi dado como provado que há mais de 20 anos, existe uma abertura, no edifício implantado no prédio descrito sob o nº .., a qual permite aos Réus acederem à tal faixa de terreno a partir do interior da sua habitação – ponto 21 dos factos dados como provados.
19ª Pelo que, não sendo tal faixa de terreno propriedade dos Réus, qual a finalidade de abrirem tal porta de acesso directo àquela faixa de terreno? E sendo na altura ainda vivo o pai da Autora A. J. com quem então a recorrente e marido já se encontravam desavindos e pertencendo tal faixa de terreno àquele, porque é que este pergunta-se não se opôs a tal abertura?
20ª Ora, resulta das regras da experiência comum que ninguém abre uma porta para aceder a um local que não é sua pertença e se porventura fizer tal construção, os vizinhos confinantes, naturalmente, irão opor-se, nomeadamente, quando as relações de vizinhança não eram as melhores como sucedia neste caso.
21ª E ao longo dos anos foram sempre os Réus que limparam tal interstício, pois à pergunta do Juiz quem é que limpava aquilo? (18:59), a Ré B. C. responde: limpava-o eu quando me apetecia (19:01s).
22ª Aquando das obras de remodelação realizadas na casa da Autora por volta do ano de 2014, os trabalhadores pediram à Ré B. C. para ocupar aquele espaço – vide pergunta do advogado da Ré: 38:38 – Os senhores da obra pediram-lhe para ocupar aquele espaço para quê?
Resposta – 38:39 – Para fazerem a parede dela Mais à frente:
Advogado - 44:41 – Portanto, a senhora também já disse aqui ao Tribunal que lhe pediram autorização para colocar nesse espaço o material. A senhora deu autorização dona B.?
Resposta – 44:48 – Dei autorização
23ª Ainda a instâncias do advogado - 39:56 – Portanto se a senhora construísse a casa mesmo nesse tal limite do seu terreno, a casa ficava encostada à casa dela?
Resposta – 40:04 – À casa dela, eu podia encostar à casa dela.
Advogado da Ré – 40:10 – Podia encostar mas não quis encostar mesmo até à casa dela?
Resposta – 40:13 – Porque eu tinha que meter um caleiro na minha casa e tinha de ir para cima do telhado dela e eu não podia, tinha de deixar terreno para mim.
24ª Tal caleiro já está lá colocado na casa dos Réus desde 1981. Pergunta do Advogado da Ré B. C. – 40:26 – Olhe e este caleiro que a senhora pôs no telhado da sua casa, já lá está há quantos anos?
Resposta – 40:31 – Mil novecentos e oitenta e um
Advogado da Ré – 40:36 – Portanto, esse caleiro não foi modificado desde mil novecentos e oitenta e um, a senhora manteve-o sempre limpo e fez aquelas obras, mas mantém-se a ocupar o mesmo espaço?
Resposta – 40:47 – É o mesmo caleiro.
25ª Perante tal prova, e mesmo na dúvida, atento as regras do ónus da prova – artigos 342º e seguintes do CC e artigo 414º do CPC entendemos que nunca o douto Tribunal poderia dar como provados os factos constantes dos números 15, 16, 18 e 20 da matéria de facto, devendo tal matéria ser dada como não provada, o que se requer.
26ª Acresce que salvo o devido respeito, também não logrou a Autora fazer prova da existência de posse sobre aquela faixa de terreno que a levasse a adquiri-la por usucapião.
27ª Da matéria de facto provada, não resulta que a Autora tenha agido com “animus possidendi” em relação àquele interstício ou sequer que em relação a ela tenha praticado quaisquer actos de posse.
28ª Não configurando tal “animus” sequer uma ou duas vezes que alegadamente procedeu à limpeza ou reparação de tal faixa num espaço temporal de cerca de 30 anos e sempre na ausência dos réus porque estes nunca a viram ali a fazer o que quer que fosse, conforme resulta das declarações da Recorrente acima transcritas e do filho desta, o co-réu A. B., também acima transcritas.
29ª Pelo contrário, a Autora quando fez obras na sua casa, recentemente, no ano de 2014 colocou o caleiro do lado que confronta com aquele interstício embutido na sua parede.
30ª E nessa altura das obras, conforme já dissemos, pediu autorização aos Réus para colocar nesse interstício os andaimes e até para modificar as janelas da sua habitação.
31ª O que são actos reveladores que não tem posse sobre aquela parcela, nem age com a íntima convicção de que tal interstício lhe pertence.
32ª Assim sendo, não se encontram sequer provados os requisitos, nem sequer temporais, de que a Lei faz depender a aquisição da posse por usucapião, por parte da Autora sobre aquele interstício, pelo que deve ser revogada a decisão recorrida e também ser dado como não provados os factos constantes dos números 15, 16, 18 e 20 da matéria de facto dada como provada, o que se requer para os devidos e legais efeitos.
34ª Ao não decidir assim, violou entre outras o douto Tribunal “a quo” o disposto nos artigos 342º e seguintes, artigo 1251º e seguintes; 1263º e seguintes; 1287º, 1293º e seguintes, 1316º, todos do Código Civil e artigos 413º, 414º e 615º, alínea c), todos do CPC, o que se invoca para os devidos e legais efeitos.

Foram proferidas contra alegações

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Questões a decidir
Delimitação do objecto do recurso

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras (artº 635º-nº3 e 608º-nº2 do CPC), atentas as conclusões dos recursos de apelação deduzidas, e supra descritas, são as seguintes as questões a apreciar:

A)Recurso de Apelação da Ré B. C. e do Réu B. A.
- alegada nulidade de decisão-
- reapreciação da matéria de facto: -os factos provados 15º, 16º, 18º e 20º deveriam ser declarados não provados?
- do mérito da causa:- não logrou a Autora fazer prova da existência de posse sobre a faixa de terreno que a levasse a adquiri-la por usucapião ?

FUNDAMENTAÇÃO

I) OS FACTOS ( factos declarados provados, e não provados, na sentença recorrida):

1.Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... o prédio urbano sito na freguesia de ..., concelho de Murça, inscrito na matriz predial sob o artigo ....º - cfr. art. 1.º da p.i.
2.Encontra-se inscrita a favor da autora (no estado de solteira) a aquisição do direito de propriedade relativo ao prédio descrito sob o n.º ..., mediante a apresentação n.º 2530 de 31/07/2012 (por sucessão hereditária e partilha de A. J.) – cfr. art. 1.º da p.i.
3. Decorre da descrição predial relativa ao prédio descrito sob o n.º ... que este apresenta (cfr. art. 1.º da p.i.): área total: 151,1 m2, compreendendo 127,8 m2 de área coberta e 23,3 m2 de área descoberta; composição: casa de habitação de rés-do-chão e 1.º andar tipo T - 4;
4. Decorre da descrição matricial relativa ao artigo ....º que este apresenta (cfr. art. 1.º da p.i.): área total: 151,1 m2, compreendendo 127,8 m2 de área de implantação do edifício; composição: casa composta por rés-do-chão com duas divisões e 1.º andar com oito, destinada a habitação e tem um quintal;
5. No dia 16/07/1976, no Cartório Notarial de Murça foi outorgada escritura pública, mediante a qual B. T. (no estado de viúva) declarou vender a A. J. (no estado de casado, no regime de comunhão geral de bens com L. F.), pelo preço de vinte e três mil e quatrocentos escudos, já recebido, o prédio descrito sob o n.º ..., tendo este declarado aceitar a compra nos termos exarados – cfr. art. 5.º da p.i.
6. No dia 24/07/2012, no Cartório Notarial de M. M. (sito na Rua …, Lote … Vila Real) foi outorgada escritura pública de partilha da herança aberta por óbito de A. J., na qual intervieram L. F., E. R. e I. R., nas qualidades respectivas de cônjuge supérstite e de filhas, no âmbito da qual E. R. viu-lhe adjudicado o prédio descrito sob o n.º ... – cfr. art. 4.º da p.i.
7. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º .. o prédio urbano sito na freguesia de ..., concelho de Murça, inscrito na matriz predial sob o artigo ...º – cfr. art. 2.º da p.i.
8. Encontra-se inscrita a favor dos réus AB. (no estado de casado com O. M., no regime de comunhão de adquiridos), A. B. (no estado de casado com T. B., no regime de comunhão de adquiridos), A. A. (no estado de casado com A. T., no regime de comunhão de adquiridos), B. A. (no estado de casado com M. B., no regime de comunhão de adquiridos), I. R. (no estado de casada com M. F., no regime de comunhão de adquiridos), J. A. (no estado de casada com L. A., no regime de comunhão de adquiridos), L. R. (no estado de casada com A. R., no regime de comunhão de adquiridos), M. B. (no regime de casado com M. R., no estado de comunhão de adquiridos) e M. G. (no estado de casada com L. G., no regime de comunhão de adquiridos), a aquisição em comum do direito de propriedade relativo ao prédio descrito sob o n.º .., mediante a apresentação n.º 4 de 05/02/2004 (por sucessão hereditária e partilha de A. A.) – cfr. art. 3.º da p.i.
9. Encontra-se inscrita a favor da ré B. C. (no estado de viúva), a aquisição do direito de usufruto relativo ao prédio descrito sob o n.º 33, mediante a ap. n.º 4 de 05/02/2004 (por sucessão hereditária e partilha de A. A.) – cfr. art. 3.º da p.i.
10. Decorre da descrição predial relativa ao prédio descrito sob o n.º .. que este apresenta (cfr. art. 2.º da p.i.): área total: 70,00 m2, compreendendo 70,00 m2 de área coberta; composição: rés-do-chão amplo, 1.º e 2.º andares;
11. Decorre da descrição matricial relativa ao artigo 957.º que este apresenta (cfr. art. 1.º da p.i.): área total: 70,00 m2, compreendendo 70,00 m2 de área de implantação do edifício; composição: casa de habitação, composta de rés-do-chão amplo, 1.º andar com duas divisões e 2.º andar com quatro divisões;
12. O prédio descrito sob o n.º 33 confronta do nascente com o prédio descrito sob o n.º ..., situando-se em plano superior a este – cfr. art. 2.º e 15.º da p.i.
13. Durante mais de trinta anos, a autora, e antes desta, A. J. e L. F., fruíram do prédio descrito sob o n.º ..., ininterruptamente, nele dormindo, tomando as suas refeições, recebendo amigos, fazendo obras de conservação necessárias e de reconstrução, actuando à vista e com conhecimento de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse, na convicção de que exerciam um direito próprio e que não lesavam o direito de ninguém – cfr. art. 6.º a 12.º e 19.º da p.i. e 6.º e 8.º da cont.
14. Entre os edifícios erigidos nos prédios descritos sob os n.ºs .. e ... existe um interstício, que denota um pendente descendente, cujo solo se apresenta cimentado e sobranceiro face ao edifício do prédio descrito sob o n.º ..., dispondo cerca de 11 m de comprimento e de uma largura variável, mas que não excede 45 cm – cfr. art. 16.º e 34.º da p.i. e 11.º da cont.
15. A faixa de terreno cimentada indicada em 14 situa-se em parte por baixo do beirado do telhado da habitação erigida no prédio descrito sob o n.º ... e permite receber e escoar águas pluviais, incluindo as que caem nesse beirado – cfr. art. 17.º, 18.º e 20.º da p.i.
16. Durante mais de vinte anos o interstício indicado em 14 foi sendo limpo por A. J. e L. F. e pela autora, actuando ininterruptamente, à vista e com conhecimento geral, sem oposição de quem quer que seja, com a convicção de quem exerce um direito próprio – cfr. art. 19.º e 26.º a 28.º da p.i.
17. Até data não concretamente apurada, mas que se determinou não ser posterior ao ano de 1981, existia no prédio descrito sob o n.º 33 uma habitação em madeira, um alambique e um espaço de logradouro em terra batida – cfr. art. 21.º e 22.º da p.i.
18. Como o logradouro indicado em 17 se situava num plano superior, as águas pluviais e terras ali existentes escorriam naturalmente em direcção à habitação erigida no prédio descrito sob o n.º ..., sendo susceptíveis de causarem infiltrações nas paredes interiores desse edifício se não fossem escoadas pelo interstício indicado em 14 – cfr. art. 23.º a 25.º da p.i.
19. Em data não concretamente determinada, mas que se apurou não ser posterior a 1981, a ré B. e A. A. erigiram a habitação existente no prédio descrito sob o n.º .., no local onde existiam as construções (entretanto demolidas quase na totalidade) e o logradouro indicados em 17, sem ocuparem a faixa de terreno referida em 14 – cfr. art. 32.º da p.i.
20. Durante mais de vinte anos e até ao início do ano de 2018 era possível aceder à faixa de terreno indicada em 14 pelo patamar de acesso à habitação erigida no prédio descrito sob o n.º ... – cfr. art. 34.º da p.i.
21. Desde data não concretamente apurada, mas que se determinou remontar há mais de vinte anos, existe uma abertura no edifício implantado no prédio descrito sob o n.º .., a qual permite aos réus acederem à faixa de terreno indicada em 14 a partir do interior da habitação – cfr. art. 34.º e 39.º da p.i.
22. No início do ano de 2018 a ré B. C. mandou colocar uma chapa de ferro, cravada na parede, que obsta ao acesso à faixa de terreno indicada em 14, pelo local indicado em 20, ficando a autora impedida de por aí passar desde então, situação que é susceptível de causar infiltrações no interior do edifício erigido no prédio descrito sob o n.º ... – cfr. art. 35.º a 38.º e 41.º da p.i.
*
Matéria de facto não provada:

1.A cimentação do solo na faixa de terreno identificada no facto provado n.º 14 ocorreu aquando da edificação da habitação erigida no prédio descrito sob o n.º ... por B. T. – cfr. art. 17.º e 25.º da p.i.
2.Quando foi edificada a habitação existente no prédio descrito sob o n.º ., B. T. e A. A. reconheceram que a faixa de terreno indicada no facto provado n.º 14 integrava o prédio descrito sob o n.º ... e pertencia aos pais da autora – cfr. art. 31.º da p.i.
3.A autora interpelou a ré B. C. para retirar a chapa de ferro, mas esta não o fez – cfr. art. 39.º da p.i

II) O DIREITO APLICÁVEL

I.- alegada nulidade de decisão

Alegam os apelantes que a decisão padece de nulidade por violação do disposto na alínea c), nº1 do artigo 615º do CPC, incorrendo em erro de julgamento, dizendo que “o Tribunal “a quo” deu como provada a matéria factual alegada pela autora no artigo 17º da petição – vide ponto 15 dos factos provados – e no ponto 1 da matéria de facto não provada que incide também sobre a matéria alegada no mesmo artigo 17º dá tal factualidade como não provada, o que constitui uma manifesta contradição entre a fundamentação da decisão e a própria decisão, e, ao que acresce que consta da fundamentação da decisão – 2º parágrafo página 13 – que na dúvida o douto Tribunal “a quo” optou pela verificação da materialidade descrita nos factos provados nos números 13,14,15,17,18 e 19 – tudo factos alegados pela autora na sua petição – o que constitui uma manifesta violação precisamente do disposto no artigo 414º do C.P.C e artigos 342º e seguintes do CPC, o que se invoca para os devidos e legais efeitos”.
Nos termos do artº 615.º n.º 1 do Código de Processo Civil, é nula a sentença quando, nomeadamente, al.c) - “Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
Os vícios previstos no citado art.º 615º do Código de Processo Civil, geradores de nulidade da sentença, são vícios de cariz adjectivo ou processual e que afectam a decisão na sua estrutura processual, invalidando-a ou tornando-a incompleta ou incompreensível, relativamente aos vícios ora apontados, “Trata-se de um mero vício formal (e não de erro de substância ou de julgamento)” - Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 23/5/2006, Proc. n.º 06A10 90, in www.dgsi.pt.
Assim, e, no tocante à oposição referida na alínea. c) do n.º1, do artigo 615º, é a que se verifica no processo lógico formal (v. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, 1992, art.º 668º), refere-se à própria estrutura de elaboração da sentença, resultando de forma manifesta desta, correspondendo a frontal oposição entre a decisão e os respectivos fundamentos.“ Apenas ocorre a nulidade da sentença prevista na alínea. c) do nº1 do art.º 668º quando os fundamentos invocados pelo juiz deveriam logicamente conduzir ao resultado oposto ao que vier expresso na sentença “ – Ac. TRP, de 13/11/74, in BMJ 241/344, sendo que não determina a nulidade de sentença prevista na citada alínea, a subsunção dos factos às normas jurídicas julgadas aplicáveis, não obstante se possa vir a demonstrar verificar-se existir erro de julgamento em caso de errada aplicação legal ( v. Ac, Tribunal da Relação de Coimbra, de 8/4/2003, n.º convencional JTRC 01959, in www.dgsi.pt ), “Trata-se de um mero vício formal (e não de erro de substância ou de julgamento)” - Ac. do Supremo Tribunal de Justiça , de 23- -05-2006, Proc. n.º 06A10 90, in www.dgsi.pt..

No caso em apreço as indicadas causas de nulidade não ocorrem pois reportam-se já os apelantes não a vício formal, mas a vício de julgamento, designadamente, reportado ao julgamento da matéria de facto, vícios a conhecer oportunamente, em sede de reapreciação da matéria de facto, e nos termos das impugnações deduzidas.

II. Reapreciação da matéria de facto

Impugnam os recorrentes a matéria de facto, nomeadamente, no que se refere aos pontos nº 15, 16, 18 e 20 dos factos provados, requerendo se declarem os mesmos “não provados”.

Os indicados pontos de facto têm o seguinte teor, e foram impugnados nos termos que se indicam:
15. A faixa de terreno cimentada indicada em 14 situa-se em parte por baixo do beirado do telhado da habitação erigida no prédio descrito sob o n.º ... e permite receber e escoar águas pluviais, incluindo as que caem nesse beirado
16. Durante mais de vinte anos o interstício indicado em 14 foi sendo limpo por A. J. e L. F. e pela autora, actuando ininterruptamente, à vista e com conhecimento geral, sem oposição de quem quer que seja, com a convicção de quem exerce um direito próprio
18. Como o logradouro indicado em 17 se situava num plano superior, as águas pluviais e terras ali existentes escorriam naturalmente em direcção à habitação erigida no prédio descrito sob o n.º ..., sendo susceptíveis de causarem infiltrações nas paredes interiores desse edifício se não fossem escoadas pelo interstício indicado em 14
20. Durante mais de vinte anos e até ao início do ano de 2018 era possível aceder à faixa de terreno indicada em 14 pelo patamar de acesso à habitação erigida no prédio descrito sob o n.º ... – cfr. art. 34.º da p.i.

Nos termos do disposto no artº 662º -nº1 do CPC, “ A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, dispondo o artº 640º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão de facto”:
Nº1 – Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
Nº2 – No caso previsto na al.b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento de erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Alegam os apelantes que a matéria de facto dada como provada nos números 15º, 16º, 18º e 20º deveria ser dada como não provada “porquanto ao contrário do alegado pela Autora e suas testemunhas, a cimentação do solo na faixa de terreno identificado no facto provado nº 14, não ocorreu aquando da edificação da habitação da Autora no prédio descrito sob o nº ... pela anterior proprietária B. T. – cfr. ponto 1 da matéria de facto não provada, e, que dos depoimentos quer da Ré B. C., quer do outro co-Réu, A. B. e das respectivas testemunhas, mormente de F. B., não pode resultar qualquer hesitação do julgador quanto ao facto da cimentação daquela faixa ter ocorrido aquando da construção da casa dos Réus e a mando destes”.
Atento o teor dos pontos de facto impugnados e os fundamentos da apelação, a impugnação deduzida pelos apelantes carece, em absoluto, de correspondência à matéria de facto em apreço, não se dirigindo ou reportando à factualidade dos indicados pontos de facto provados.
Acresce que a factualidade em referência na impugnação se refere, distintamente, ao facto não provado nº1, o qual foi já declarado não provado – cfr. facto não provado nº 1 – “1.A cimentação do solo na faixa de terreno identificada no facto provado n.º 14 ocorreu aquando da edificação da habitação erigida no prédio descrito sob o n.º ... por B. T. – cfr. art. 17.º e 25.º da p.i.”, declaração negativa esta, aliás, sem qualquer relevância na discussão e reapreciação da matéria de facto impugnada.
Nestes termos, falecendo toda a argumentação a este respeito deduzida pelos apelantes.
Mais alegando os apelantes que quanto à propriedade daquele interstício resulta das declarações de parte dos Réus e das suas testemunhas que aquele interstício faz parte integrante do prédio descrito sob o nº .., propriedade dos Réus, também nesta parte falece a impugnação.
Fundam-se os apelantes nos factos provados nº 12, 17, 19, factos estes, porém, de que não se deduz qualquer alteração da matéria de facto impugnada dos pontos nº 15, 16, 18 e 20 dos factos provados, nomeadamente, no sentido pretendido de vir a mesma a ser declarada não provada.
E, ao invés, estando provado no facto provado nº 19 que – “Em data não concretamente determinada, mas que se apurou não ser posterior a 1981, a ré B. e A. A. erigiram a habitação existente no prédio descrito sob o n.º .., no local onde existiam as construções (entretanto demolidas quase na totalidade) e o logradouro indicados em 17, sem ocuparem a faixa de terreno referida em 14 – cfr. art. 32.º da p.i.”, e, facto provado nº 17- “Até data não concretamente apurada, mas que se determinou não ser posterior ao ano de 1981, existia no prédio descrito sob o n.º .. uma habitação em madeira, um alambique e um espaço de logradouro em terra batida”.
E, ainda, resultando inócuas e/ou insuficientes as declarações de parte dos Réus em que se funda a impugnação cfr., ainda, excertos transcritos, e, designadamente, ainda, cfr. delimitação nas conclusões de recurso, não resultando da prova indicada pelos apelantes infirmada a matéria de facto impugnada, nem a fundamentação exposta do Mº julgador, que se mostra correcta e conforme à prova produzida, cfr. fundamentação da sentença referida infra, e, ainda, esclarecendo-se na decisão: “Quando procedi à inspecção judicial ao local tive oportunidade de verificar que existe uma abertura na habitação implantada no prédio descrito sob o n.º .. que permite aceder de forma directa ao interstício a (…) Existindo essa abertura será crível que a ré B. C., o seu marido e filhos pudessem ter pretendido ressalvar a possibilidade de acederem ao interstício (mormente para poderem efectuar trabalhos de conservação na fachada do edifício para aí virada), (…) zona circunscrita, sem qualquer serventia específica (…) Revela-se, assim, crível que a autora, e antes desta os seus pais, acedessem ao interstício para assegurarem a sua limpeza, como manifestou a autora, tanto mais que a ré B. C. reconheceu que não teria limpo tal espaço cimentado mais de duas vezes. Como esse espaço cimentado já existia aquando da construção do edifício erigido no prédio descrito sob o n.º .. (como confirmou a ré B. C.), que se apurou não ser posterior a 1981, pode-se inferir que a actuação da autora e dos seus antecessores se estendeu seguramente durante mais de vinte anos, até que foi colocada a chapa de ferro presente na fotografia de fls. 26v (que naturalmente obsta à passagem de pessoas, sendo que na inspecção judicial pude verificar que inexistem acessos alternativos, com ressalva do acesso pelo interior da habitação implantada no prédio descrito sob o n.º .., pelo que se a zona cimentada não for limpa poderão ocorrer infiltrações no edifício erigido no prédio descrito sob o n.º ..., se os réus não providenciarem pela limpeza do interstício), que a ré B. C. também confirmou ter diligenciado pela sua colocação”.

Relativamente às alegadas contradições, descritas em ponto nºI, supra, verifica-se inexistir qualquer contradição entre o facto provado nº15 e o facto não provado nº1, sendo absolutamente distinto o âmbito factual a que se reportam os indicados pontos factuais, e, já relativamente à parte da fundamentação da decisão referenciada pelos apelantes, concretamente, alegando estes que consta no ”– 2º parágrafo página 13 – que na dúvida o douto Tribunal “a quo” optou pela verificação da materialidade descrita nos factos provados nos números 13, 14, 15, 17, 18 e 19 – tudo factos alegados pela autora na sua petição – o que constitui uma manifesta violação precisamente do disposto no artigo 414º do C.P.C e artigos 342º e seguintes do CPC”, também não se mostra correcta a afirmação, resultando, muito claramente, do teor da exposição de fundamentação da matéria de facto, na sua análise global, que, na declaração em referência, o Mº julgador se reporta já a eventuais “meios de prova que conduzissem a juízo distinto” relativos a impugnação motivada ou de excepção, reportando-se a matéria que aproveitaria aos Réus e a provar pelos mesmos nos termos do artº 342º-nº2 do C.Civil, não se demonstrando suscitarem-se quaisquer dúvidas na avaliação da prova produzida e na correspondente fixação dos factos que vieram a ser elencados e respectiva fundamentação, salientando-se na sentença recorrida: “ (…)a sobranceria do interstício e do logradouro que existia no prédio descrito sob o n.º 33 face ao prédio descrito sob o n.º ... torna verosímil que existisse a possibilidade de ocorrerem infiltrações no interior do edifício erigido neste último imóvel, em consonância com a percepção permitida pelas fotografias de fls. 117-119 e que a existência dessa zona cimentada pudesse ter a virtualidade de evitar tais problemas.(…) as fotografias de fls. 24v, 25v, 120 e 121 inculcam que a zona cimentada não se apresenta uniforme ao nível longitudinal, existindo uma ligeira inclinação descendente na proximidade da parede exterior do edifício implantado no prédio descrito sob o n.º ..., o que permite inferir, de acordo com as regras da experiência e da normalidade, que houve o propósito de fazer escoar as águas que pudessem acumular-se junto àquela parede, tanto mais que um caleiro nesse edifício cujas águas vertiam para a zona cimentada. Em paralelo, verifica-se, como vimos, que essas águas pluviais eram conduzidas para o patamar de acesso à habitação implantada no prédio descrito sob o n.º ..., inicialmente sendo precipitadas para o patamar e mais tarde conduzidas por via subterrânea. Por outro lado, a parede poente do edifício erigido no prédio descrito sob o n.º ... constitui uma parede de empena, até ao nível da faixa de terreno cimentada (por não dispor de janelas ou portas até esse nível e se encontrar encostada a uma outra parede), a qual não é dotada da impermeabilização característica de uma parede virada para o exterior (uma vez que a parede é erigida no pressuposto de que existe aquele elemento físico adjacente), e tal habitação, conforme já se referiu, é anterior ao edifício implantado no prédio descrito sob o n.º .., pelo que a cimentação do solo poderia ajudar a conter infiltrações de água para o prédio situado a uma cota inferior. Acresce que a fotografia superior de fls. 160 indicia que o muro existente no patamar de acesso à habitação implantada no prédio descrito sob o n.º ... seria transponível com recurso a um banco ou uma escada (à semelhança do que hoje ocorre, como pude constatar na inspecção judicial e se extrai da fotografia de fls. 26v), o que é compatível com as características dessa zona cimentada (v.g. não seria preciso ir muitas vezes limpá-la ao longo do ano). Revela-se, assim, crível que a autora, e antes desta os seus pais, acedessem ao interstício para assegurarem a sua limpeza, como manifestou a autora, tanto mais que a ré B. C. reconheceu que não teria limpo tal espaço cimentado mais de duas vezes.
Como esse espaço cimentado já existia aquando da construção do edifício erigido no prédio descrito sob o n.º .. (como confirmou a ré B. C.), que se apurou não ser posterior a 1981, pode-se inferir que a actuação da autora e dos seus antecessores se estendeu seguramente durante mais de vinte anos, até que foi colocada a chapa de ferro presente na fotografia de fls. 26v (que naturalmente obsta à passagem de pessoas, sendo que na inspecção judicial pude verificar que inexistem acessos alternativos, com ressalva do acesso pelo interior da habitação implantada no prédio descrito sob o n.º .., pelo que se a zona cimentada não for limpa poderão ocorrer infiltrações no edifício erigido no prédio descrito sob o n.º 16.
Revela-se, assim, crível que a autora, e antes desta os seus pais, acedessem ao interstício para assegurarem a sua limpeza, como manifestou a autora, tanto mais que a ré B. C. reconheceu que não teria limpo tal espaço cimentado mais de duas vezes. Como esse espaço cimentado já existia aquando da construção do edifício erigido no prédio descrito sob o n.º .. (como confirmou a ré B. C.), que se apurou não ser posterior a 1981, pode-se inferir que a actuação da autora e dos seus antecessores se estendeu seguramente durante mais de vinte anos, até que foi colocada a chapa de ferro presente na fotografia de fls. 26v (que naturalmente obsta à passagem de pessoas, sendo que na inspecção judicial pude verificar que inexistem acessos alternativos, com ressalva do acesso pelo interior da habitação implantada no prédio descrito sob o n.º .., pelo que se a zona cimentada não for limpa poderão ocorrer infiltrações no edifício erigido no prédio descrito sob o n.º ..., se os réus não providenciarem pela limpeza do interstício), que a ré B. C. também confirmou ter diligenciado pela sua colocação”, e, mais se referindo na decisão: “ (…) Ao invés, a ré B. C. (secundada pelo réu A. B. e pelas testemunhas F. B. e M. R., nos elementos essenciais do seu relato) veio asseverar que optou por deixar um intervalo entre o edifício que erigiram no prédio descrito sob o n.º .. e a habitação implantada no prédio descrito sob o n.º ..., com vista a poder proceder à pintura ou reparações da parede nascente do edifício, podendo aceder a tal intervalo pelo interior da sua habitação (que indicou ter ficado aberto logo aquando da construção do imóvel), mas refuta que a autora e os pais tivessem procedido à limpeza desse interstício, ou que o utilizassem para qualquer finalidade. Quando procedi à inspecção judicial ao local tive oportunidade de verificar que existe uma abertura na habitação implantada no prédio descrito sob o n.º .. que permite aceder de forma directa ao interstício (…) Existindo essa abertura será crível que a ré B. C., o seu marido e filhos pudessem ter pretendido ressalvar a possibilidade de acederem ao interstício (mormente para poderem efectuar trabalhos de conservação na fachada do edifício para aí virada)”, tratando-se de, e como é descrito na sentença por referência ao Auto de Inspecção Judicial ao local: “de uma zona circunscrita, sem qualquer serventia específica”.
Em qualquer caso, os indicados pontos de facto resultando provados, nos termos acima indicados, falecendo a impugnação quanto aos mesmos deduzida, e, relativamente aos pontos de facto nº 13, 14, 17, 19 não tendo, sequer, sofrido qualquer impugnação por parte dos Réus.
Nos termos expostos, improcedendo a impugnação da matéria de facto, mantendo-se inalterado o elenco factual da acção.

III. – do mérito da causa- -

Nos termos da decisão recorrida foi declarado que o prédio urbano da Autora, sito na freguesia de ..., concelho de Murça, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz predial sob o artigo ....º, compreende a faixa de terreno identificada no facto provado n.º 14, condenando-se os réus a reconhecê-lo e a absterem-se de qualquer acto de turbação de tal direito real.
Fundamentando-se na sentença recorrida: “(…) esta actuação evidencia a prática pela autora e antecessores dos actos materiais que integram o “corpus” possessório, presumindo-se ainda o “animus possidendi”, pelo que se mostra evidenciada a sua posse (que deve ser vista como unitária cfr. artigo 1255.º do Código Civil) quanto à mencionada faixa de terreno (cfr. artigo 1252.º, n.º 2, do Código Civil), sendo que esta se revela ainda pública e pacífica, perante tal materialidade provada (cfr. artigos 1261.º, n.º 1 e 1262.º, do Código Civil)”.
Contestam os Réus/apelantes tal decisão alegando que a Autora não logrou fazer prova da existência de posse sobre a faixa de terreno que a levasse a adquiri-la por usucapião e que da matéria de facto provada não resulta que a Autora tenha agido com “animus possidendi” em relação àquele interstício ou sequer que em relação a ela tenha praticado quaisquer actos de posse.
Nos termos do art.º 1287º do Código Civil “ A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião”, e, cfr. art.º 1251º a “ Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real “.
Para se adquirir, por usucapião, um direito susceptível de ser adquirido por essa via, é essencial ter a posse correspondente ao direito de cuja aquisição se trata, por certo lapso de tempo, nos termos do art.º 1287º do Código Civil.
Nos termos do artº 1252º do Código Civil, a posse pode ser exercida pessoalmente, e, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto.
Resulta dos factos provados que “Entre os edifícios erigidos nos prédios descritos sob os n.ºs 33 e ... existe um interstício, que denota um pendente descendente, cujo solo se apresenta cimentado e sobranceiro face ao edifício do prédio descrito sob o n.º ..., dispondo cerca de 11 m de comprimento e de uma largura variável, mas que não excede 45 cm; A faixa de terreno cimentada indicada em 14 situa-se em parte por baixo do beirado do telhado da habitação erigida no prédio descrito sob o n.º ... e permite receber e escoar águas pluviais, incluindo as que caem nesse beirado; Durante mais de vinte anos o interstício indicado em 14 foi sendo limpo por A. J. e L. F. e pela autora, actuando ininterruptamente, à vista e com conhecimento geral, sem oposição de quem quer que seja, com a convicção de quem exerce um direito próprio” ( cfr. factos provados nº 14, 15, 16).
Atenta a factualidade apurada resulta ser a Autora, e seus antecessores, os possuidores da parcela em questão, o interstício indicado no facto provado nº 14, desde há mais de vinte anos, exercendo na parcela os poderes correspondentes ao exercício do direito real de propriedade.
Provando-se ser a Autora a possuidora da parcela, relativamente à mesma, desde logo, se presume a titularidade do direito respectivo nos termos do artº 1268º do Código civil, por efeito dos efeitos presuntivos da “Posse” decorrentes do citado preceito legal, presunção não ilidida nem afastada por presunção fundada em registo a favor de outrem anterior ao início da posse, nos termos do indicado artigo.
Como se refere no Acórdão do STJ de 14/5/96, in “DR, II S, de 24/6/96, actualmente com a natureza de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência – “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”, acórdão cuja doutrina se mantém actual – cfr. Ac. do STJ de 15/2/2018, disponível em www.dgsi.pt, referindo-se no indicado Acórdão:- “A indagação sobre o “animus”, enquanto requisito integrante da posse, deverá circunscrever-se à questão de saber se os actos materiais praticados pelo alegado possuidor em relação à coisa revelam, a qualquer pessoa que os observe, a vontade de agir como se se tratasse do titular do direito a que o mesmo se arroga, não podendo ser rejeitadas a presença e a relevância desse elemento quando o “corpus” que o traduz denote, por parte de quem o exerce, a vontade de criar em seu benefício uma aparência de titularidade correspondente a esse direito real.- Ac. do STJ de 15/2/2018, supra indicado, e, no mesmo sentido, nomeadamente, Ac. STJ de 16/10/2018, todos in www.dgsi.pt.

No caso em apreço, tal correspondência entre os actos materiais exercidos pela possuidora e o exercício do direito de propriedade existe, e, assim, desde logo, nos termos acima indicados, e ao abrigo das legais presunções estabelecidas nos artº 1252º-nº2 e artº 1268º-nº1 do Código Civil, tem-se por reconhecida a “Posse” da Autora e a consequente aquisição originária, por usucapião, do direito de propriedade.
Termos em que se mantém o decidido.
Acresce que, in casu, ainda, e atento o factualismo provado acima referenciado dos factos provados nº 14, 16 e 20, dos mesmos resulta provado o elemento material (corpus) e o elemento intelectual (animus) da posse, mostrando-se verificada a usucapião nos termos dos artº 1287º e 1296º do Código Civil, e, assim, também por esta via, o declarado direito de propriedade da Autora relativamente à parcela em discussão.
“Para se adquirir, por usucapião, um direito susceptível de ser adquirido por essa via, é essencial ter a posse correspondente ao direito de cuja aquisição se trata, por certo lapso de tempo, nos termos do art.º 1287º do Código Civil” (…) “Como decorre do disposto no art.º 1251º, do mesmo Código Civil, haverá essa posse quando se “ actua por forma correspondente ao exercício desse direito (corpus da posse), independentemente de se ser ou não titular do mesmo, e, (…) quando essa actuação ( ou seja, o exercício de poderes de facto sobre a coisa (…)) seja acompanhada da “ intenção de agir como beneficiário do direito “ ( art.º 1253º-alínea.a) do Código Civil ) – animus da posse” - Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/1/2008, in www.dgsi.pt.
Concluindo-se, nos termos expostos, pela total improcedência do recurso de apelação.

Sumário ( artº 663º-nº7 do Código de Processo Civil ):

I. Verificando-se existir correspondência entre os actos materiais exercidos pela possuidora e o exercício do direito de propriedade, relativamente à parcela (interstício), por decorrência das legais presunções estabelecidas nos artº 1252º-nº2 e 1268º-nº1 do Código Civil tem-se por reconhecida a “Posse” da Autora e a consequente aquisição, originária, por usucapião, do direito de propriedade ( e cfr. jurisprudência uniformizada do AUJ do STJ de 14/5/96, in “DR, II S, de 24/6/96 ).
II. E, ainda, resultando provado o elemento material (corpus) e o elemento intelectual (animus) da posse, mostra-se verificada a usucapião nos termos dos artº 1287º e 1296º do Código Civil.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes, em partes iguais.
Guimarães, 25 de Fevereiro de 2021

( Maria Luísa D. Ramos )
( Eva Almeida )
( António Beça Pereira )