Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3120/19.4T8GMR.G1
Relator: MARIA LUÍSA RAMOS
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
UNIDADES INDEPENDENTES
MODIFICAÇÃO DO TÍTULO CONSTITUTIVO DA PROPRIEDADE HORIZONTAL
USUCAPIÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/15/2021
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- No caso sub judice, estando em causa não um espaço comum de todos os condóminos, mas unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a rua, nomeadamente “Boxes”, a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, não poderá ser efetivada através de decisão judicial com base na aquisição por usucapião, apenas podendo tal modificação ocorrer com observância do disposto no artigo 1419º, n.º 1, do Código Civil, e, assim, apenas, por acordo de todos os condóminos expresso em escritura pública ou documento particular autenticado (sob pena de impossibilidade de se acautelarem todos os interesses em presença em virtude das legais limitações de julgamento decorrentes do pedido e causa de pedir).
II- E, em qualquer caso, não deve ser declarada a usucapião em caso de verificação de causas legais impeditivas da mesma ou da produção dos seus efeitos.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

F. A. e mulher, J. G., intentaram a presente Acção Declarativa, com Processo Comum, contra J. P., pedindo se condene o Réu a:

a)reconhecer que os Autores são donos e legítimos possuidores da fracção “AT”;
b) que esta é composta por habitação no terceiro andar e ainda uma divisão na sobre cave, designada por garagem 37;
c)a restituir aos AA. aquela garagem nº 37, com a área de 20 mts 2, situada na sobre cave, fila nascente segunda a contar do lado norte, livre de pessoas e bens pessoais;
c) e que o R. seja condenado a pagar aos AA. a quantia de € 2.500,00, a título de indemnização por danos morais.
Alegam os Autores que a garagem descrita faz parte da fracção “AT” de que são proprietários, em prédio constituído em propriedade horizontal, e mesma vem sendo ocupada pelo Réu, e notificado este para entregar a referida garagem aos Autores o Réu nada fez, continuando a ocupar a dita garagem.
Devidamente citado veio o Réu apresentar contestação, tendo alegado, em síntese, que o direito de propriedade relativo à dita garagem pertence, não aos Autores, mas ao próprio Réu, por ter sido adquirido por usucapião.
E, assim, conclui o Réu no sentido da improcedência da acção.
O Réu deduziu, ainda, pedido reconvencional contra os Autores, pedindo a condenação dos Autores/Reconvindos a: b)reconhecer que a referida garagem pertence ao Réu, podendo este retificar o título de propriedade horizontal em conformidade; c)a condenação dos Autores a absterem-se de praticar qualquer acto que impeça ou diminua a utilização por parte do Réu daquela garagem.
Os Autores ofereceram Réplica.
Foi dispensada a audiência prévia e proferido despacho saneador, tendo sido verificada a regularidade e a validade da instância, identificado o objecto do litígio, e enunciados os temas da prova.

Realizado o julgamento foi proferida decisão a julgar a acção, nos seguintes termos:

Pelo exposto, julgo a presente acção, intentada por F. A. e J. G. contra J. P., parcialmente procedente, por provada, e consequentemente:
- declaro que a fracção autónoma designada pelas letras AT, descrita na Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o n.º ..., composta por habitação no terceiro andar direito e garagem, sita na Rua da ..., Lugar de ..., freguesia de ..., em Guimarães, melhor identificada em 1., pertence aos AA.;
- declaro que a divisão existente na sobre cave do aludido prédio, com área de vinte metros quadrados, destinada a garagem, localizada na fila nascente, sendo a segunda a contar do lado norte, que vem sendo ocupada pelo R., integra a fracção autónoma designada pelas letras AT, pertença dos AA.;
- condeno o R. a entregar aos AA. a dita garagem, livre de pessoas e bens;
- julgo improcedente o pedido indemnizatório deduzido pelos AA. contra o R., absolvendo o mesmo de tal pedido.
Julgo totalmente improcedente a reconvenção, deduzida por J. P. contra F. A. e J. G., e, em consequência, absolvo os AA. dos pedidos contra si deduzidos pelo R.”

Inconformado veio o Réu recorrer interpondo recurso de apelação.

O recurso veio a ser admitido como recurso de apelação, com subida nos autos e efeito meramente devolutivo.

Nas alegações de recurso que apresenta o apelante formula as seguintes Conclusões:

1. O Recorrente não concorda com a decisão proferida por entender que, partindo do princípio de é dono e legítimo possuidor da divisão existente na sobre cave do prédio em causa, com área de vinte metros quadrados, destinada a garagem, localizada na fila nascente, sendo a segunda a contar do lado norte em virtude de a ter adquirido por usucapião, sempre se impunha uma decisão diferente sobre a matéria de direito.
2. O Recorrente entende que a decisão em apreço deve ser revogada e substituída por outra que julgue improcedentes os pedidos deduzidos pelos Autores nas alíneas a) a c), e que, por via disso, julgue procedente a reconvenção deduzida pelo Recorrente e decida que se pode alterar o título constitutivo da propriedade horizontal, através da anexação à fracção autónoma aludida em 3. de parte física da fracção aludida em 1.
3. Uma vez que Tribunal a quo entendeu que a posse do Recorrente relativamente à dita garagem preenche os requisitos da aquisição por usucapião, não podemos deixar de dizer que o que aqui sustentaremos é a interpretação de que é possível a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, através de decisão judicial, que se funde em aquisição por usucapião e que ela operará mesmo relativamente a uma parte de uma fracção autónoma.
4. É, assim, posição do Recorrente que a decisão recorrida violou ou não fez a melhor interpretação e aplicação do disposto nos artigos 2.º e 7.º do Código de Registo Predial, e dos artigos 1414.º, 1415.º, 1417.º, 1418.º, 1419.º, 1422.º-A, todos do Código Civil.
5. Perante a convicção do Tribunal a quo de que a posse do Recorrente relativamente à garagem em questão cumpre os requisitos da aquisição por usucapião, sempre se dirá que este Tribunal deveria ter decidido como esta Relação decidiu no acórdão proferido em 30.05.2018, no processo n.º 8250/15.9T8VNF, in www.dgsi.pt, assim:
“IV. Pode ser adquirido por usucapião um lugar de estacionamento. V. O título constitutivo poderá ser alterado nos termos do art.º 1422º-A, nº 1 e 2 e 4 do CC, por acto unilateral constante de escritura pública, não sendo necessária a intervenção de todos os condóminos.”
6. Atento tal posição, entendemos que o disposto no artigo 1419.º, n.º 1 do Código Civil não poderá obstar à modificação do título constitutivo da propriedade horizontal através de decisão judicial e com base na aquisição por usucapião, mormente, através da integração física da garagem, que pertence à fracção dos Autores, na fracção autónoma do Recorrente.
7. Nessa medida, o título constitutivo da propriedade horizontal poderá ser alterado, nos termos do artigo 1419.º do Código Civil, por decisão judicial, não sendo necessária a intervenção de todos os condóminos. Se a propriedade horizontal pode ser constituída por usucapião (artº 1417º, nº 1 do Código Civil), também poderá ser alterada através da invocação da usucapião (defendendo esta possibilidade, vide DURVAL FERREIRA, em “Posse e usucapião”, pág. 446-447, da ed. de 2002, da Almedina).
8. No sentido de que pode ser adquirido por usucapião um lugar de estacionamento que integrava no título constitutivo outra fracção, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 9.5.2006, proferido no âmbito do processo 966/06, disponível em www.dgsi.pt.
9. E no sentido de que se pode adquirir por usucapião um lugar de estacionamento diferente do que consta do título de propriedade horizontal, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 30.05.2016, processo nº 1817/11, in www.dgsi.pt, que julgou procedente o pedido reconvencional deduzido no sentido do reconhecimento pelos autores de que o seu lugar do estacionamento é o situado no lado nascente sul por ter sido o que estes quiseram comprar e sempre utilizaram há mais de 28 anos, embora não fosse o que constava no título constitutivo da propriedade horizontal como afecto à fracção habitacional por eles adquirida.
10.Atento o exposto, impunha-se ao Tribunal de 1.ª instância reconhecer ser possível a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, pois que o disposto no artigo 1419.º, n.º 1 do Código Civil não pode impedir o funcionamento das normas legais atinentes à usucapião - cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20.11.2007, processo n.º 5404/2007-7, in www.dgsi.pt -,
11.Devendo, assim, decidir-se pela integração física à fracção do Recorrente de uma parte da fracção dos Autores, com a inerente alteração do título constitutivo da propriedade horizontal - cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 09.05.2006, processo n.º 966/06, in www.dgsi.pt.
12.Julgamos, pois, que o disposto no artigo 1419.º, n.º 1 do Código Civil não poderá obstar à modificação do título constitutivo da propriedade horizontal através de decisão judicial e com base na aquisição por usucapião - cfr. acórdãos do STJ de 4/2/2014, relator Conselheiro Fernandes do Vale e de 9/10/98, relator Santos Bernardino, in www.dgsi.pt e Ac. RC de 31/5/2005, Proc. 399704.dgsi.Net, relator Serra Baptista.
13.Até porque, se assim não fosse, não fazia qualquer sentido provar-se a aquisição por usucapião, como resulta dos autos, com a forçosa alteração da própria propriedade horizontal que daí deriva e não permitir a consolidação jurídica dessa realidade.
14.Em conclusão, e salvo o devido respeito por opinião diversa, a decisão em crise não se poderá manter, não podendo impedir o funcionamento das normas legais atinentes à usucapião,
15.Devendo o Tribunal recorrido substituir-se aos condóminos, modificando o título constitutivo da propriedade horizontal através de decisão judicial.
16.Por todo o exposto, considerando-se que a aquisição por usucapião de parte de uma fracção é possível e integrando a dita garagem na fracção autónoma aludida em 3), deveria o Tribunal a quo ter decidido pela modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, sem observância do estipulado no artigo 1419.º do Código Civil, porquanto podendo a propriedade horizontal ser constituída por usucapião nada impede que seja modificada por usucapião, não sendo necessária a intervenção de todos os condóminos.
17.Nessa medida, deverá a decisão em crise ser substituída por outra que declare que a divisão existente na sobre-cave do prédio em causa, com área de vinte metros quadrados, destinada a garagem, localizada na fila nascente, sendo a segunda a contar do lado norte pertence ao Recorrente, devendo ser integrada fisicamente na sua fracção autónoma identificada no ponto 3. da factualidade dada como provada.

Não foram oferecidas contra-alegações

O recurso veio a ser admitido neste tribunal da Relação na espécie e com os efeitos e regime de subida fixados no despacho de admissão do recurso na 1ª instância.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Delimitação do objecto do recurso: Questões a decidir.

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras (artº 635º-nº3 e 608º-nº2 do Código de Processo Civil), atentas as conclusões do recurso de apelação deduzidas, e supra descritas, são as seguintes as questões a apreciar:

- do mérito da causa:
- poderá proceder-se à modificação do título constitutivo da propriedade horizontal através de decisão judicial e apenas com base na aquisição por usucapião, (concretamente no que se refere a unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a rua, nomeadamente “Boxes)?
- deverá a decisão recorrida ser substituída por uma outra que declare que a divisão existente na sobre cave do prédio em causa, com área de vinte metros quadrados, destinada a garagem, localizada na fila nascente, sendo a segunda a contar do lado norte pertence ao Réu/Recorrente, devendo ser integrada fisicamente na sua fracção autónoma identificada no ponto 3. da factualidade dada como provada ?

FUNDAMENTAÇÃO

I. OS FACTOS (São os seguintes os factos declarados provados, e não provados, na decisão recorrida):

1.Encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de Guimarães, sob o n.º ..., a fracção autónoma urbana designada pelas letras AT, como sendo composta por habitação no 3º andar direito e divisão na sobre-cave, designada por garagem 37, a que corresponde a licença de utilização nº 2376/2000, emitida pela Câmara Municipal ....
2. A fracção aludida em 1. encontra-se, desde 30/01/2018, registada na competente Conservatória do Registo Predial em nome dos AA., por compra a X – Sociedade de Mediação Imobiliária, Unipessoal, Lda.
3.Encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de Guimarães, sob o n.º ..., a fracção autónoma urbana designada pelas letras AW, como sendo composta por habitação no 5º andar esquerdo e divisão na sobre-cave, designada por garagem 41, a que corresponde a licença de utilização nº 2379/2000, emitida pela Câmara Municipal ....
4. A fracção aludida em 3. encontra-se, desde 30/05/2017, registada na competente Conservatória do Registo Predial em nome do R., por compra a A. N. e L. N..
5. As ditas fracções integram um prédio constituído em propriedade horizontal,
6. inscrito na respectiva matriz sob o artigo … e na Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o n.º ...,
7. sito na Rua da ..., Lugar de ..., freguesia de ..., em Guimarães.
8. Consta do título de constituição da propriedade horizontal relativo ao prédio aludido em 5. a 7. o seguinte: “(…) Fracção AT - Designada por terceiro andar direito, destinada a habitação, com área de cento e dezassete metros quadrados, composta de sala comum, dois quartos, cozinha, um quarto de banho, hall, lavandaria, despensa, com duas varandas exteriores, e ainda uma divisão na sobre-cave, designada por garagem trinta e sete, com área de vinte metros quadrados, destinada a garagem, localizada na fila nascente, sendo a segunda a contar do lado norte (…)”.
9.Mais consta de tal título de constituição da propriedade horizontal o seguinte: “(…) Fracção AW – Designada por quinto andar esquerdo, destinada a habitação, com área de cento e sessenta e três metros quadrados, composta de sala comum, três quartos, cozinha, dois quartos de banho, dois halls, despensa, lavandaria e duas varandas exteriores, e ainda uma divisão na sobre-cave, designada por garagem quarenta e um, com área de dezanove metros quadrados, destinada a garagem, localizada na fila poente, sendo a primeira a contar do lado norte (…)”.
10. Consta do alvará de licença de utilização referente à fracção aludida em 1., emitido pela Câmara Municipal ... em 31 de Outubro de 2000, que a fracção AT é composta por habitação do tipo T2 e “(…) possui na sobre-cave uma garagem identificada por 37, com área de 20 m2, localizada na fila nascente, sendo a segunda a contar do lado norte.”.
11.Consta do alvará de licença de utilização referente à fracção aludida em 3., emitido pela Câmara Municipal ... em 31 de Outubro de 2000, que a fracção AW é composta por habitação do tipo T3 e “(…) possui na sobre-cave uma garagem identificada por quarenta e um, com área de 19 m2, localizada na fila poente, sendo a 1ª a contar do lado norte.”.
12. Por escritura pública outorgada em 30 de Maio de 2017, o aqui R. declarou comprar a A. N. e L. N., que declararam vender ao R., a fracção aludida em 3.
13. Em 03 de Maio de 2000, os Srs. A. N. e L. N. celebraram com a sociedade comercial Imobiliária Y, Lda., construtora do prédio aludido em 5. a 7., por escrito, contrato promessa de compra e venda relativo à fracção aludida em 3.,
14. tendo-lhes, nessa altura e antes da outorga da escritura pública de compra e venda referente a essa fracção, sido entregues, por tal sociedade comercial, os documentos de fls. 40, verso, a 44, cujo teor aqui se dão por reproduzidos.
15. Quando adquiriu a fracção aludida em 3. à dita sociedade comercial, no ano de 2000, esta indicou ao Sr. A. N. que a garagem correspondente a essa fracção seria a garagem que continha inscrita, por pintura no respectivo portão, a referência “41 AW”, a qual se encontrava localizada na fila nascente da sobre-cave, sendo a segunda a contar do lado norte.
16. Antes de o aqui R. adquirir a fracção aludida em 3., o Sr. A. N. comunicou-lhe que a garagem correspondente a essa fracção era a garagem que continha inscrita, por pintura no respectivo portão, a referência “41 AW”, a qual se encontrava localizada na fila nascente da sobre-cave, sendo a segunda a contar do lado norte,
17. tendo-lhe inclusivamente mostrado essa garagem.
18. Desde o mês de Maio de 2000 que o R., por si e antepossuidores, tem vindo a usufruir, destinando-a a estacionamento de veículos automóveis, da garagem que contém inscrita, por pintura no respectivo portão, a referência “41 AW” e que se encontra localizada na fila nascente da sobre-cave, sendo a segunda a contar do lado norte, como se fosse integrada na fracção aludida em 3.,
19. de forma contínua,
20. à vista de todos,
21. sem oposição de ninguém,
22. ignorando estar a lesar direitos de outrem,
23. na convicção de que a mesma lhe pertence e de exercer sobre ela o direito de propriedade.
24. Em 12 de Fevereiro de 2019, os AA. requereram a notificação judicial avulsa do R., comunicando-lhe que a garagem por este ocupada faz parte da fracção aludida em 1. e fixando o prazo de 15 dias para que o R. procedesse à entrega aos AA. de tal garagem, livre de pessoas e bens.
25. O R. foi notificado da dita notificação judicial avulsa em 25 de Fevereiro de 2019, 26. tendo, no entanto, continuado a ocupar a aludida garagem.
27. A ocupação da dita garagem por parte do R. e a sua recusa em fazer cessar a mesma vem causando aos AA. arrelias, angústia, preocupações e incómodos.

FACTOS NÃO PROVADOS

a. O R., por si e antepossuidores, tem vindo a exercer sobre a garagem que contém inscrita a referência “41 AW” e que se encontra localizada na fila nascente da sobre-cave, sendo a segunda a contar do lado norte, os actos aludidos em 18. e pela forma aludida em 19. a 23., desde, pelo menos, o ano de 1996.
b. Por terem participado em diversas reuniões com a empresa de condomínios sem que tenha sido obtida qualquer solução para a sua pretensão, os AA. sofreram profundo desgaste.
c. O R. e, bem assim, os Srs. A. N. e L. N., às datas em que adquiriram a fracção aludida em 3., não podiam desconhecer que, no título de constituição da propriedade horizontal, constava, como pertencendo àquela fracção, uma outra garagem que não a por si ocupada, designadamente, a garagem localizada na fila poente da sobre-cave, sendo a primeira a contar do lado norte,
d. e que, por isso, estavam a ocupar uma garagem que não pertencia à fracção aludida em 3.

II. O DIREITO

- do mérito da causa

Tendo nos autos sido proferida sentença a, nomeadamente, declarar que a divisão existente na sobre cave do aludido prédio, com área de vinte metros quadrados, destinada a garagem, localizada na fila nascente, sendo a segunda a contar do lado norte, que vem sendo ocupada pelo Réu, integra a fracção autónoma designada pelas letras AT, pertença dos Autores; condenando-se o Réu a entregar aos Autores a dita garagem, livre de pessoas e bens; e, julgando-se totalmente improcedente a reconvenção, deduzida pelo Réu, absolvendo-se os AA. do pedido reconvencional, vem o Réu recorrer, alegando que não concorda com a decisão proferida por entender que, partindo do princípio de que é dono e legítimo possuidor da divisão existente na sobre cave do prédio em causa, supra descrita, destinada a garagem, em virtude de a ter adquirido por usucapião, sempre se impunha uma decisão diferente sobre a matéria de direito, devendo a decisão em apreço deve ser revogada e substituída por outra que julgue improcedentes os pedidos deduzidos pelos Autores nas alíneas a) a c), e que julgue procedente a reconvenção deduzida pelo Recorrente e decida que se pode alterar o título constitutivo da propriedade horizontal, através da anexação à fracção autónoma aludida em 3. de parte física da fracção aludida em 1.
Relativamente à decisão proferida fundamenta-se na sentença recorrida: “ (…) Assim sendo, o caso sub judice deverá ser analisado à luz do estipulado no artigo 1419º, nº 1, do CC. Este preceito legal, como vimos, exige, para a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, o acordo de todos os condóminos expresso em escritura pública ou documento particular autenticado.
Do exposto, deverá concluir-se, como se conclui, entre muitos outros, no aludido acórdão do TRP – (reportando-se ao Ac. TRP de 13/09/2016, proferido no processo n.º 2144/10.1TBPVZ.P1, in www.dgsi.pt) - , no sentido de que a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal não poderá ser efectivada através de decisão judicial e com base, somente, na aquisição por usucapião, apenas podendo tal modificação ocorrer com observância do disposto no artigo 1419º, nº 1, do CC.
Entendo, pois, que o tribunal só pode declarar adquiridas por usucapião fracções autónomas completas, sob pena de, considerando o estipulado no dito artigo 1419º, n.º 1, do CC, se incorrer em fraude à lei (cfr. acórdão do STJ de 13/12/2007, proferido no processo 07A3023, in www.dgsi.pt).
Outra alternativa não restará, pois, face ao acima exposto, que não seja a de considerar improcedente a reconvenção deduzida pelo R.
Considerando que a fracção aludida em 1. se encontra registada na competente Conservatória do Registo Predial com aquisição a favor dos AA. e que, nos termos do constante do título constitutivo da propriedade horizontal, a garagem em discussão nesta acção faz parte dessa fracção, deverão ser julgados procedentes os pedidos deduzidos pelos AA. nas alíneas a) a c)”.
Mais se fundamentando na sentença: “ (…) Revertendo ao caso sub judice, temos que resultou provado que o R., desde o mês de Maio de 2000, por si e antepossuidores, tem vindo a usufruir, destinando-a a estacionamento de veículos automóveis, da garagem que contém inscrita, por pintura no respectivo portão, a referência “41 AW”, a qual se encontra localizada na fila nascente da sobre-cave, sendo a segunda a contar do lado norte, como se fosse integrada na fracção aludida em 3., o que vem fazendo de forma contínua, à vista de todos, sem oposição de ninguém, ignorando estar a lesar direitos de outrem e na convicção de que a mesma lhe pertence e de exercer sobre ela o direito de propriedade. Constata-se, pois, que a posse do R. é não titulada, de boa fé, pacífica e pública. Estando em causa um bem imóvel e não sendo a posse do R. violenta, oculta nem de má fé, o lapso de tempo exigido para a usucapião é de quinze anos (cfr. artigo 1296.º, 1.ª parte, do CC). Perante a factualidade dada como provada, dúvidas não poderão restar, pois, de que a posse do R. relativamente à dita garagem cumpre os requisitos da aquisição por usucapião.”

Constituindo questões objecto de decisão no presente recurso saber se:

- Poderá proceder-se à modificação do título constitutivo da propriedade horizontal através de decisão judicial e apenas com base na aquisição por usucapião.
- E, se deverá a decisão recorrida ser substituída por uma outra que declare que a divisão existente na sobre cave do prédio em causa, com área de vinte metros quadrados, destinada a garagem, localizada na fila nascente, sendo a segunda a contar do lado norte pertence ao Réu/Recorrente, devendo ser integrada fisicamente na sua fracção autónoma identificada no ponto 3. da factualidade dada como provada.
Trata-se de questões que radicam em entendimentos divergentes na jurisprudências, nas Relações, e, ainda, nomeadamente, do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos que se irão expor.
- ( Indo limitar-se a presente decisão, tão só, e atento o concreto objecto factual em apreciação, ao que se refere a unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a rua, nomeadamente “Boxes).
1. Relativamente à aquisição pelo Réu, por usucapião, do indicado espaço- garagem - foi declarado na sentença, nos termos acima indicados, que “Perante a factualidade dada como provada, dúvidas não poderão restar, pois, de que a posse do R. relativamente à dita garagem cumpre os requisitos da aquisição por usucapião.”
Nestes termos, beneficiando a decisão o Réu apelante na parte relativa ao reconhecimento de que a referida garagem, que integra a fracção autónoma designada pelas letras AT, pertença dos Autores, que vem sendo ocupada pelo Réu, lhe pertence, tendo-a adquirido por usucapião, em via de recurso está esta matéria excluída do objecto de discussão em virtude da aplicação do Princípio da Proibição da Reformatio in Pejus que vigora no direito processual civil.
Relativamente ao Princípio de Proibição da Reformatio in Pejus, traduzindo-se este na proibição de o julgamento do recurso agravar a posição do recorrente, tornando-a pior do que seria se ele não tivesse recorrido (A. Reis, in Código de Processo Civil, anotado, Vol. V, pg. 311, com referência e citando Prof. Andrade), o que se traduz, no caso sub judice, na impossibilidade de se discutir a invocada aquisição da garagem da fracção dos Autores pelo Réu, por usucapião, tendo sido esta declarada na sentença, nos termos acima expostos (e, muito embora não conste do dispositivo).
Nestes termos, e tendo em atenção o pedido reconvencional formulado nos autos, designadamente, tendo sido pedido o reconhecimento de que a referida garagem pertence ao Réu, podendo este retificar o título de propriedade horizontal em conformidade (al.b), e, a condenação dos Autores a absterem-se de praticar qualquer acto que impeça ou diminua a utilização por parte do Réu daquela garagem (al.c)), deverá, no âmbito do presente recurso, ser decidido se tal aquisição por usucapião pelo Réu da garagem que integra a fracção autónoma designada pelas letras AT, pertença dos Autores, deverá vir a ser declarada em sede de procedência do pedido reconvencional, como pretende o apelante, e quais os legais efeitos da mesma decorrentes.
2. A propriedade horizontal vem regulada nos artigos 1414º e seguintes do Código Civil, traduzindo-se num direito real autónomo, de que podem ser objecto partes de edifícios, concretamente, fracções autónomas que constituam unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a ruacaracterização que respeitam, in casu, para além da fracção autónoma de cada uma das partes, Autores e Réu, as respectivas garagens pois se trata de “boxes” com autonomia e saída própria para a via pública (cfr. factos provados nº 16 a 18).
Nos termos do artigo 1420º, do citado código, sendo os respectivos titulares proprietários exclusivos das fracções autónomas e comproprietários das demais partes comuns.
Dispõe o artigo 1417º, do citado código, que “A propriedade horizontal pode ser constituída por negócio jurídico, usucapião, decisão administrativa ou decisão judicial, proferida em acção de divisão de coisa comum ou em processo de inventário”.
E, nos termos do artº 1419º, do mesmo diploma legal, sob a epígrafe “Modificação do título”, estatui-se: “ Sem prejuízo do disposto (…), o título constitutivo da propriedade horizontal pode ser modificado por escritura pública ou por documento particular autenticado, havendo acordo de todos os condóminos”.
Ainda, dispondo os artº 59º e 60º do Código de Notariado:
Artigo 59.º
Constituição de propriedade horizontal
1 - Os instrumentos de constituição da propriedade horizontal só podem ser lavrados se for junto documento, passado pela câmara municipal, comprovativo de que as fracções autónomas satisfazem os requisitos legais.
2 - Tratando-se de prédio construído para transmissão em fracções autónomas, o documento a que se refere o número anterior pode ser substituído pela exibição do respectivo projecto de construção e, sendo caso disso, dos posteriores projectos de alteração aprovados pela câmara municipal.
3 - O documento autêntico que se destine a completar o título constitutivo da propriedade horizontal, quanto à especificação das partes do edifício correspondentes às fracções autónomas ou ao seu valor relativo, expresso em percentagem ou permilagem, não pode ser lavrado sem a observância do disposto nos números anteriores.
Artigo 60.º
Modificação de propriedade horizontal
1 - Os instrumentos de modificação do título constitutivo da propriedade horizontal que importem alteração da composição ou do destino das respectivas fracções só podem ser lavrados se for junto documento camarário comprovativo de que a alteração está de acordo com os correspondentes requisitos legais.
2 – (…)
Relativamente à aplicação e alcance da norma do artº 1419º do Código Civil diverge a jurisprudência e doutrina (v., a título meramente exemplificativo: Ac. STJ de 6/12/2018, P.8250/15.9T8VNF.G1.S1 e jurisprudência e doutrina aí citadas, e, Ac. STJ de 19/12/2011, P.6115/08.0TBAMD.L1.S2, e, igualmente, jurisprudência e doutrina aí citadas, todos in www.dgsi.pt ).
Nos termos das disposições legais supra citadas, e, reportando-nos, na discussão relativa à aplicação e alcance da citada norma do artº 1419º do Código Civil, no caso sub judice, em que está em causa não um espaço comum de “garagem” de todos os condóminos, de que se irá afectar materialmente uma parcela, ou lugar de garagem, individualmente, a cada condómino, mas, distintamente, constituindo-se as respectivas garagens em “boxes”, em unidades independentes, com autonomia e saída própria para a via pública, individualmente afectadas a um condómino de acordo com os títulos documentais, entendemos que o título constitutivo só pode ser modificado por acordo de todos os condóminos e não por sentença judicial, apenas podendo tal modificação ocorrer com observância do disposto no artigo 1419º-nº1 do Código Civil, e, assim, por acordo de todos os condóminos expresso em escritura pública ou documento particular autenticado.
E, desde logo, em virtude de, nestes casos, em que não está em causa um espaço comum de todos os condóminos, a decisão por via judicial, com vista à modificação do título constitutivo de propriedade horizontal, mesmo que com a necessária presença na acção de todos os condóminos, não ser suficiente ou adequada a salvaguardar ou acautelar todos os interesses em presença, desde logo por força da legal limitação de julgamento face à materialidade do caso concreto; designadamente, como no caso sub judice, e a final, se irá fundamentar e concluir (v. ponto nº 3, infra e artº 33º do CPC ).
E, independentemente da possibilidade legal estabelecida no artº 1417º-nº1 do Código Civil de a propriedade horizontal poder ser constituída por usucapião. (v. neste sentido Ac.TRG de 11/1/2018, P.4080/16.9T8BRG-A.G1, Ac.TRG de 30/5/2018, P. 8250/15.9T8VNF.G1, in www.dgsi.pt), e, da imposição, nestes casos, de, como se decide já no Ac. STJ de 4/10/2018, P.4080/16.9T8BRG-A.G1.S1, in www.dgsi.pt, que “A ação em que se vise o reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião terá de correr entre todos os condóminos para que a respetiva sentença possa ter eficácia de caso julgado material em relação a todos eles”.
Ainda, e como se refere no Ac. do STJ de 6/12/2018 - “A produção de efeitos jurídicos correspondentes à modificação do título constitutivo da propriedade horizontal (…) deve compatibilizar-se com regras imperativas em matéria de direito do urbanismo ligadas ao licenciamento da construção e da utilização de edifícios e respetivas frações”.
Mais se fundamentando no indicado aresto: (…) Leia-se ainda o Ac. do STJ de 29-11-06, 06A3355, em www.dgsi.pt, em cujo sumário se refere que “a constituição da propriedade horizontal por decisão judicial depende da verificação simultânea, quer dos requisitos civis previstos no art. 1417º do CC, quer dos requisitos administrativos fixados no RJUE. Ou ainda o A. do STJ de 18-903, CJ, t. III, p. 36, quando nele se refere que “a possibilidade de modificação do título constitutivo da propriedade horizontal por escritura pública, havendo acordo de todos os condóminos, não afasta as normas imperativas de interesse e ordem pública relativa à conformidade da constituição com o projeto licenciado”.
Entendimento também expresso por Fernando Pereira Rodrigues, quando refere que “o tribunal não pode alterar o título constitutivo da propriedade horizontal em violação das normas legais em vigor, designadamente sem aprovação de todos os condóminos e junção de documento emanado da Câmara Municipal comprovativo de que a alteração está de acordo com as leis e regulamentos em vigor na autarquia” (Usucapião, pp. 16 e 17)”.
Concluindo-se, pela improcedência, relativamente à primeira questão, na parte em apreciação, dos fundamentos da apelação, nos termos expostos.
3. Relativamente à segunda questão em análise, no sentido de saber se deverá a decisão recorrida ser substituída por uma outra que declare que a divisão existente na sobre cave do prédio em causa, com área de vinte metros quadrados, destinada a garagem, localizada na fila nascente, sendo a segunda a contar do lado norte pertence ao Réu/Recorrente, devendo ser integrada fisicamente na sua fracção autónoma identificada no ponto 3. da factualidade dada como provada, também chegamos a uma conclusão negativa, confirmando-se a decisão recorrida de improcedência do pedido reconvencional, na sua totalidade, também nesta parte por fundamentos de direito não coincidentes.
Com efeito, cremos ocorrerem no caso sub judice causas legais impeditivas do funcionamento ou da produção dos efeitos da usucapião.
Por um lado, desde logo, e no seguimento dos fundamentos expostos no Ac. STJ de 6/12/2018, supra citado, há que considerar que nos termos do disposto no artº 1287º do Código Civil a produção de efeitos da usucapião não poderá efectivar-se em caso de “disposição legal em contrário”, designadamente, impeditiva da mesma ou dos seus legais efeitos, fundamentando-se no indicado Ac.do STJ: “A usucapião não constitui um instituto jurídico isolado, fazendo parte de um vasto “arquipélago” que engloba outras normas que a condicionam ou impedem, umas integradas no Cód. Civil e outras que emergem de diplomas avulsos como os que regulam a matéria de direito do urbanismo ou do licenciamento da construção ou utilização de edifícios”.
Assim, constituirá causa legal de impedimento da produção de efeitos da usucapião e sua declaração judicial, no caso concreto, as razões já expostas supra, ponto nº1, designadamente, “a invocação da usucapião contra o titular do direito de propriedade - não pode constituir uma forma de contornar ou ultrapassar os limites à negociabilidade ou transmissibilidade de bens por via do acordo de vontades”- Ac. citado e por referência à norma do artº 1419º do Código Civil.
“O direito do urbanismo, as regras sobre construções e edificações ou, como ocorre no caso sub judice, o regime jurídico-civilístico da propriedade horizontal constituem domínios em que, por via de disposições legais claras ou a partir da pré-compreensão de tais realidades, nos deparamos com impedimentos ao reconhecimento de efeitos jurídicos sustentados na figura da usucapião” (cfr. Ac. STJ citado e em entendimento que perfilhamos e seguimos).
Ainda, e, como vem referido no Ac. STJ de 19/9/2002, P.02B2147, e por referência ao Assento do STJ de 10 de Maio de 1989, in DR nº 161/1989, I Série—15/7/1989, com o seguinte teor: “Nos termos do artigo 294.º do Código Civil, o título constitutivo ou modificativo da propriedade horizontal é parcialmente nulo ao atribuir à parte comum ou a fracção autónoma do edifício destino ou utilização diferentes dos constantes do respectivo projecto aprovado pela câmara municipal”, - “A afectação de mais uma garagem a uma fracção autónoma e a concomitante privação de garagem de outra fracção autónoma importa modificação do título constitutivo da propriedade horizontal que é nula se for desconforme com o que haja sido aprovado pela Câmara Municipal - art.ºs 1416º, nº1, 1419º, nº1, do Cód. Civil, e Assento de 10 de Maio de 1989. Aliás, a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal só pode ser feita com a intervenção de todos os condóminos ou por decisão judicial com força do caso julgado oponível a todas - art.º 1419º do Cód. Civil”.
Ao que acresce que, no caso sub judice, a procedência da pretensão do Réu/apelante, e da Reconvenção, com a correspondente declaração da aquisição por usucapião pelo Réu da dita garagem e modificação do título de propriedade horizontal, por via judicial, determinaria, nos seus efeitos, quer jurídicos, quer práticos, que o Réu ficaria detentor de dois espaços de garagens – box- e os Autores de nenhum, (atentos os concretos pedidos e causa de pedir), situação de evidente e flagrante injustiça e desproporcionalidade, deste modo, igualmente, impeditiva da prevalência do invocado direito de propriedade por usucapião do Réu contra o direito registral inscrito dos Autores e titulado no título de Propriedade Horizontal, nos termos legais do artº 335º do Código Civil, por verificação de “Colisão de Direitos”, e/ou por verificação de exercício ilegítimo do direito por “Abuso de Direito” nos termos do artº 334º, do citado diploma legal, decorrente dos limites e fins do próprio direito.
Adequabilidade que se poderia alcançar, ao invés, por estabelecimento de acordo de todos os condóminos expresso em escritura pública ou documento particular autenticado, nos termos da forma legal prevista no artº 1419º-nº1 do Código Civil, obtendo-se o efeito útil normal.
Concluindo-se, nos termos expostos, pela improcedência do recurso de apelação, mantendo-se a sentença recorrida, embora por não inteiramente coincidentes fundamentos de direito.

Sumário ( artº 663º-nº7 do Código de processo Civil )

I. No caso sub judice, estando em causa não um espaço comum de todos os condóminos, mas unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a rua, nomeadamente “Boxes”, a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, não poderá ser efectivada através de decisão judicial com base na aquisição por usucapião, apenas podendo tal modificação ocorrer com observância do disposto no artigo 1419º-nº 1 do Código Civil, e, assim, apenas, por acordo de todos os condóminos expresso em escritura pública ou documento particular autenticado (sob pena de impossibilidade de se acautelarem todos os interesses em presença em virtude das legais limitações de julgamento decorrentes do pedido e causa de pedir).
II. E, em qualquer caso, não deve ser declarada a usucapião em caso de verificação de causas legais impeditivas da mesma ou da produção dos seus efeitos.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, em julgar improcedente o recurso de apelação, mantendo-se a sentença recorrida, embora por não inteiramente coincidentes fundamentos de direito.
Custas pelo Réu/apelante.
Guimarães, 15 de Abril de 2021

( Maria Luísa Duarte Ramos )
( Eva Almeida )
( António Beça Pereira )

- "Voto vencido conforme declaração que junto”

Voto de vencido

No acórdão deixou-se dito que:
"Relativamente à aquisição pelo Réu, por usucapião, do indicado espaço- garagem - foi declarado na sentença, nos termos acima indicados, que "Perante a factualidade dada como provada, dúvidas não poderão restar, pois, de que a posse do R. relativamente à dita garagem cumpre os requisitos da aquisição por usucapião."
Nestes termos, beneficiando a decisão o Réu apelante na parte relativa ao reconhecimento de que a referida garagem, que integra a fracção autónoma designada pelas letras AT, pertença dos Autores, que vem sendo ocupada pelo Réu, lhe pertence, tendo-a adquirido por usucapião, em via de recurso está esta matéria excluída do objecto de discussão em virtude da aplicação do Princípio da Proibição da Reformatio in Pejus que vigora no direito processual civil.

Face a estes pressupostos enuncia-se a seguinte questão:

"(…) deverá, no âmbito do presente recurso, ser decidido se tal aquisição por usucapião pelo Réu da garagem que integra a fração autónoma designada pelas letras AT, pertença dos Autores, deverá vir a ser declarada em sede de procedência do pedido reconvencional, como pretende o apelante, e quais os legais efeitos da mesma decorrentes."

E o acórdão resolve esta questão dizendo que:

«(…) entendemos que o título constitutivo só pode ser modificado por acordo de todos os condóminos e não por sentença judicial, apenas podendo tal modificação ocorrer com observância do disposto no artigo 1419.º-n.º 1 do Código Civil, e, assim, por acordo de todos os condóminos expresso em escritura pública ou documento particular autenticado.»
Com o devido respeito, não subscrevo esta posição, dado que, "embora a forma mais frequente de constituição da propriedade horizontal seja o negócio jurídico, o certo é que também pode ser constituída por usucapião ou decisão judicial." (1) Essa possibilidade está também implícita no acórdão de 11-1-2018 desta relação, no processo 4080/16.9T8BRG-A.G1, em que fui relator, e no aresto do STJ de 4-10-2018 (Proc. 4080/16.9T8BRG-A.G1.S1) que confirmou aquele acórdão (2).
Considero, assim, que é possível alterar o título constitutivo da propriedade horizontal através de decisão judicial, caso em que esta então consistirá no "título constitutivo da propriedade horizontal, que a passa a documentar e é levado ao registo predial." (3)

No citado acórdão de 11-1-2018, em que fui relator, afirmou-se que:

«Sabemos que "a usucapião representa (…) uma forma de aquisição originária. O novo titular recebe o seu direito independentemente do direito do titular antigo. Em consequência, não lhe podem ser opostas as exceções de que seria passível o direito daquele titular" (4). Por isso mesmo é que parte da jurisprudência entende que "não existe obstáculo a que a usucapião sirva para legitimar uma operação de divisão material de um prédio, ainda que, na sua origem, tenham sido desrespeitados certos condicionalismos impostos" (5), uma vez que "a usucapião serve, além do mais, para "legalizar" situações de facto "ilegais", mantidas durante longos períodos de tempo, inclusive até a apropriação ilegítima ou ilícita de uma coisa" (6). De registar igualmente que «nada obsta à aquisição por usucapião dos chamados "direitos nus"» (7).
Sabemos ainda que a usucapião também opera na propriedade horizontal, onde "o único limite estará então e apenas no âmbito do objeto essencial da propriedade horizontal, definido no art. 1415.º do Cód. Civil, visto que a posse (referimo-nos logicamente à posse boa para usucapião, ou seja pública e pacífica) tem de ter cabimento na respetiva categoria legal, não sendo concebível a aquisição de um direito real fora dos seus elementos típicos e por força do próprio princípio da tipicidade taxativa subjacente ao art. 1306.º, n.º 1" (8).
É até admissível a aquisição por usucapião de uma parte comum de um prédio em propriedade horizontal (9).»
Ao dizer-se, neste particular cenário, que a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal está sujeita à "observância do disposto no artigo 1419.º-n.º 1 do Código Civil", como se diz no acórdão, está a introduzir-se como requisito para o reconhecimento da aquisição por usucapião o "acordo de todos os condóminos".
Se "pela usucapião adquirem-se direitos reais sobre coisas" (10) e se esta consiste numa aquisição originária do direito (11), não se vê como possa estar ela limitada pela vontade de terceiros. Salvo melhor juízo, a aquisição originária do direito não pode depender do "acordo de todos os condóminos", sob pena de se esvaziar aquela forma de aquisição. A aquisição originária do direito, pela sua própria natureza, tem que se poder concretizar mesmo contra a vontade "de todos os condóminos"; ela opera "independentemente do consentimento dos demais condóminos" (12). E não esqueçamos que não constitui pressuposto da usucapião o acordo dos terceiros que, direta ou indiretamente, possam, de algum modo, ver os seus direitos ser por ela afetados.
Mas, como se sublinha no citado acórdão do STJ de 4-10-2018, "a ação em que se vise o reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião terá de correr entre todos os condóminos para que a respetiva sentença possa ter eficácia de caso julgado material em relação a todos eles."
Ora, isso não sucede nos autos.
Para impedir a preterição do litisconsórcio necessário (passivo) na lide reconvencional, o Meritíssimo Juiz devia, ao abrigo do disposto nos artigos 590.º n.º 2 a) e 6.º n.º 2 do Código de Processo Civil, no despacho pré-saneador ter advertido os réus de que se ocorria este problema e convidá-los a requererem a intervenção principal dos restantes condóminos (13).
Mas tal não foi feito.
Sucede que "não existe uma expressa previsão das consequências decorrentes da omis­são de despacho de aperfeiçoamento em qualquer das situações previstas no ano 590.º, n.os 2, 3 e 4, em casos em que seja proferida decisão (despacho saneador ou despacho saneador-sentença) refletindo o vício cuja correção não foi, contudo, encetada." (14) Por isso, afigura-se que "a não prolação do despacho pré-saneador prescrito pelas disposições conjugadas dos arts. 590.º 2. a) e 6.º 2 constitui uma irregularidade passível de influir no exame ou decisão da causa, o mesmo é dizer que a omissão desse despacho gera uma nulidade processual, nos termos do art. 195.º, traduzida na omissão (pelo juiz) de um ato (a prolação do despacho pré-saneador) que a lei prescreve, estando tal nulidade submetida ao regime dos arts. 197.º e 199.º." (15)
Porém, essa nulidade não foi, em momento algum, arguida nos autos.
Por outro lado, afigura-se que a dispensa "de autorização dos restantes condóminos", prevista no artigo 1422.º-A do Código Civil, não é aplicável à situação dos autos uma vez que, para além do mais, aqui não está em causa "a junção, numa só, de duas (…) frações do mesmo edifício".
Na verdade, o objeto da reconvenção é a "garagem 41", "localizada na fila poente, sendo a primeira a contar do lado norte", a qual, como consta do título de constituição da propriedade horizontal (16), é uma parte da "fração autónoma urbana designada pelas letras AW" que pertence ao réu; não constitui a totalidade da fração AW.
Significa isso que, com a sua reconvenção, o réu não pretende juntar à sua fração uma outra fração; ele quer, sim, juntar à sua fração uma parte de uma outra fração.
Como se viu, o artigo 1422.º-A do Código Civil refere-se à "junção, numa só, de duas ou mais frações do mesmo edifício", pelo que este preceito não abarca, pelo menos, os casos de junção, numa só, de uma fração e parte de outra fração contra a vontade do titular desta segunda.
Na interpretação deste artigo 1422.º-A há ainda que ter em devida consideração que "havendo junção de frações com a criação de uma nova fração esta fica a ter o valor total das que foram juntas, expresso em percentagem ou permilagem do valor total do prédio, como constar do título constitutivo da propriedade horizontal." (17) Ora, se a uma fração se junta apenas uma parte de outra, contra a vontade do titular desta e se discute tal matéria na ausência dos restantes condóminos, como é que depois se determina a permilagem, quer da fração que foi ampliada, quer da que ficou reduzida?
Aqui chegados, resta concluir que na lide reconvencional, independentemente do mais, há preterição de litisconsórcio necessário passivo, pelo que se impunha a absolvição dos autores dessa instância, nos termos do disposto no artigo 278.º n.º 1 d) do Código de Processo Civil.
António Beça Pereira



1. Aragão Seia, Propriedade Horizontal, 2.ª Edição, pág. 35.
2. Os dois acórdãos estão publicados em www.dgsi.pt.
3. Aragão Seia, Propriedade Horizontal, 2.ª Edição, pág. 35.
4. Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 1978, pág. 337.
5. Ac. Rel. Porto de 22-6-2006 no Proc. 0632159, www.gde.mj.pt.
6. Ac. STJ de 6-4-2017 no Proc. 1578/11.9TBVNG.P1.S1. Dentro desta linha de raciocínio pode ver-se os Ac. Rel. Lisboa de 16-2-2017 no Proc. 2148/13.2TBCSC.L1-8, Ac. Rel. Lisboa de 15-10-2015 no Proc. 1737-11.4TBALM.L1-6, Ac. Rel. Lisboa de 1-2-2011 no Proc. 136/05.1TBFUN.L1-1 e Ac. Rel. Porto de 28-4-2005 no Proc. 0531457, todos em www.gde.mj.pt.
7. José Alberto Vieira, Direitos Reais, 2008, pág. 408.
8. Ac. STJ de 3-6-2008, Processo 1437/08, em www.colectaneadejurisprudencia. com.
9. Neste sentido veja-se os Ac. Rel. Lisboa de 14-4-2005 no Proc. 2043/05-6, Ac. Rel. Coimbra de 9-5-2006 no Proc. 966/06, Ac. Rel. Lisboa de 20-11-2007 no Proc. 5404/07 e Ac. Rel. Lisboa de 15-5-2008 no Proc. 426/08-2, todos em www.colectaneade jurisprudencia.com, Ac. Rel. Lisboa de 15-3-2007 no Proc. 915/07-2, em www.gde.mj.pt e Sandra Passinhas, A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, pág. 147 e 148, citada no Ac. Rel. Lisboa de 14-4-2005, Processo 2043/05-6, em www.colectaneadejurisprudencia.com.
10. Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 1978, pág. 336.
11. Cfr. Ac. STJ de 5-5-2016 no Proc. 5562/09.4TBVNG.P2.S1 e Ac. STJ de 29-1-2014 no Proc. 1206/11. 2TBCHV.S1, ambos em www.gde.mj.pt, e Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 1978, pág. 337.
12. Citado Ac. STJ de 4-10-2018 no Proc. 4080/16.9T8BRG-A.G1.S1, em www.gde.mj.pt.
13. Neste sentido veja-se Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 3.ª Edição, pág. 243.
14. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª Edição, pág. 706.
15. Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 3.ª Edição, pág. 245.
16. E no registo predial. Cfr. factos 3, 4, 5, 6, 9 e 11 dos factos provados.
17. Aragão Seia, Propriedade Horizontal, 2.ª Edição, pág. 120.