Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
524/16.8T8EPS.G1
Relator: HELENA MELO
Descritores: ABUSO DE DIREITO
SERVIDÃO PREDIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. O abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium constitui uma das modalidades de abuso de direito, assente na boa-fé, tuteladora da confiança das pessoas, nas suas relações jurídicas e baseia-se, essencialmente, nos comportamentos contraditórios das pessoas.

II. Na sua estrutura, o venire pressupõe duas condutas da mesma pessoa, ambas lícitas, mas assumidas em momentos distintos e distanciadas no tempo, em que a primeira (o factum proprium) é contraditada pela segunda (o venire), de modo que essa relação de oposição entre as duas justifique a invocação do princípio do abuso de direito.

III. Age em abuso de direito o A. que, após a doação efectuada pela R., concordou com a manutenção da instalação de gás da R. no prédio doado, prédio este confinante com o prédio da doadora e que durante quatro anos manteve essa aprovação, o que gerou na R. a convicção de que a aprovação se manteria e que não teria de alterar a instalação por força da doação que efectuou ao A., adotando comportamento conforme com esta convicção, ou seja, não procedendo à alteração da instalação.

IV. Tendo as partes acordado na constituição de uma servidão com o fim de garantir a não construção de uma edificação, parede ou muro, um declaratário normal no lugar do real declaratário não deixaria de interpretar o contrato celebrado entre as partes no sentido de apenas não ser permitida a construção de qualquer edificação, muro ou parede. A expressão edificação que significa erigir uma construção, não abrange a colocação de uma grade. No entanto, tendo as partes igualmente acordado que a referida servidão se destinava a garantir as vistas, deve o gradeamento ser colocado a uma altura em que não as possa impedir, ou seja até à parte mais baixa da janela existente na moradia da Ré (1), ou até ao 1,5 m, se a altura mais baixa da janela for superior, porque em regra inferior à altura de uma pessoa, permitindo o visionamento, se essa altura for superior, a qual é suficiente para acautelar a entrada de pessoas e animais.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

J. P. e D. F., casados entre si, propuseram a presente ação de processo comum contra P. P., pedindo que se decida:

1 - decretar e condenar a Ré a deixar livre e desimpedido o prédio dos autores e com o mesmo objetivo condenada a retirar da faixa de terreno em questão, a instalação do gás, a casota de um cão e as duas torneiras e respetivas mangueiras, de que ela se serve quando entende, tal como se alegou no anterior art. 29º;
2 – decretar e condenar a Ré a reconhecer que os autores têm o direito de construir faixa de terreno com a largura de três metros a fim de garantir o respetivo direito de passagem;
3 – decretar e condenar a Ré a reconhecer que os autores têm o direito de vedar o seu prédio, no lado sul, com uma grade em ferro;
4 - decretar e condenar a Ré a pagar aos autores uma indemnização de cinco mil euros, pelos prejuízos causados, como se alegou no anterior art. 42º;
5 – decretar e condenar a Ré a abster-se da prática de quaisquer atos lesivos dos direitos referidos;
6 - ordenar o cancelamento de quaisquer registos efetuados em contrário do aqui peticionado.”

Alegam, para tanto e em resumo, que a ré lhes doou o prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, prédio esse que confronta com o prédio da ré identificado no artigo 6º da petição inicial, sendo que as partes acordaram a constituição de uma servidão de passagem e de vistas a onerar o prédio dos autores e a favor do prédio da ré, o que fizeram por escritura pública. Porém, as necessidades do prédio da ré, designadamente quanto à servidão de passagem, satisfazem-se com uma largura de 3 metros, inferior à que consta da referida escritura, motivo pelo qual entendem poder ocupar e construir na parte restante do seu prédio. Acresce que, quanto à servidão de vistas, uma vez que na escritura se consignou que não podem ser construídas quaisquer edificações, paredes ou muros no prédio dos autores, na parte voltada a sul, para o prédio da ré, deve entender-se que os autores podem vedar o seu prédio com uma grade.

Finalmente, a ré mantém no prédio dos autores uma instalação de gás, a casota do cão, duas torneiras e respetivas mangueiras, do que se serve quando entende, o que constitui uma ocupação abusiva por parte da ré.
Toda esta situação causa incómodos, preocupações e desgostos aos autores, pelo que devem ser indemnizados pela ré em quantia não inferior a € 5.000,00.
Citada, a ré veio apresentar contestação, impugnando os factos e alegando que a pretensão dos autores carece de absoluto fundamento legal, uma vez que as servidões, tendo sido constituídas por contrato, deverão ser reguladas, quanto à sua extensão e exercício, pelo respetivo título (contrato), não podendo ser modificados sem o consentimento da ré.

Termina pedindo a condenação dos autores como litigantes de má-fé, por alterarem conscientemente a verdade dos factos e fazerem um uso reprovável do processo, no pagamento de uma indemnização a seu favor de valor não inferior a € 5.000,00.

Realizou-se a audiência final e de seguida foi proferida sentença com o seguinte teor decisório:

“Em face do exposto, o tribunal decide:

A) Julgar a presente ação parcialmente procedente, e, em consequência:
a) Condenar a ré a retirar do prédio referido em 1. dos factos provados as torneiras e as respetivas mangueiras de que se serve (referidas no artigo 29º da petição inicial);
b) Absolver a ré do demais peticionado;
B) Não condenar os autores por litigância de má-fé nos presentes autos.
Custas a cargo dos autores e ré, na proporção de 5% e 95%, respetivamente – artigo 527º, n.º 1 e 2, do C.P.C..”

Os AA. não se conformaram e interpuseram o presente recurso de apelação, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:

A) Da instalação de gás da Ré no prédio dos Autores contra a vontade destes:

A) O Tribunal “a quo”, ao contrário do que decidiu em relação às torneiras e mangueiras, negou que os Autores tivessem o direito de exigir à Ré que retirasse a instalação de gás que esta mantém no prédio dos primeiros, argumentando que tal exigência constitui um “abuso de direito”, solução que consideramos excessiva, desequilibrada, abusiva e em nada consentânea com a fatualidade provada.
B) Ora, é indubitável que os Autores são os proprietários do prédio mencionado no Facto Provado 1) e, enquanto tal, gozam, nos termos do art. 1305º do Código Civil, de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem. Entre esses direitos está o de decidir o que pode ou não ocupar o seu prédio, nomeadamente a instalação de gás da Ré. Está dentro do seu poder/direito tolerar essa instalação durante algum tempo no seu prédio, tal como lhes compete decidir quando terminar com essa tolerância e exigir que a mesma seja retirada.
C) Os Autores ao remeter uma carta à Ré exigindo a sua remoção e concedendo um prazo razoável de 30 dias para o efeito, atuaram de boa fé, no exercício do seu direito de propriedade sobre o referido imóvel e dentro dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Tal ocorreu, quer quando os Autores exigiram à Ré que retirasse a mangueira e as torneiras do seu prédio (pretensão essa aceite pelo Tribunal), quer quando lhe exigiram que retirasse a instalação de gás (pretensão essa que o Tribunal indeferiu). Na nossa opinião, não existe qualquer motivo para tratar de modo diferente a questão das mangueiras relativamente à questão da instalação de gás.
D) O Tribunal “a quo” não entendeu assim, argumentando com 1) o decurso do tempo de 4 anos: (“durante mais de quatro anos, o autor sempre concordou, consentiu e nunca se opôs a que a ré mantivesse tal instalação do gás no seu prédio”) e 2) Essencialidade da infraestrutura e às dificuldades inerentes á sua alteração ou substituição: (“tanto mais que se tratava de uma instalação de gás, isto é, uma infraestrutura necessária ao seu prédio. Em face do exposto, temos como certo que se justifica que a confiança da ré seja devidamente tutelada, no que à instalação do gás diz respeito, atenta a essencialidade da infraestrutura referida e às dificuldades inerentes à sua alteração ou substituição”)
E) Ora, desde logo relativamente ao segundo argumento mencionado na anterior Conclusão D) (essencialidade da infraestrutura e às dificuldades inerentes à sua alteração ou substituição) não foram considerados provados quaisquer factos que permitissem constatar essa afirmação, factos esses que também não foram sequer alegados pela Ré na sua contestação.
F) A aplicação do regime jurídico do abuso de direito depende de haverem sido alegados e provados pelas partes factos que possibilitem concluir de tal modo, bem como de os mesmos estarem compreendidos no pedido da parte beneficiária, atento o princípio da vinculação do tribunal aos factos e pedido invocados pelas partes, os eventuais efeitos jurídicos susceptíveis de serem extraídos desse exercício abusivo do direito, o que manifestamente e na nossa opinião não ocorre no presente caso.
G) Motivo pelo qual esses argumentos/factos (essencialidade da infraestrutura e às dificuldades inerentes á sua alteração ou substituição) nunca poderiam ter sido utilizados pelo Tribunal “a quo” na fundamentação da sua decisão, o que deve ser decretado.
H) De qualquer modo, mesmo que assim não se entendesse, a verdade é que esses factos não correspondem à verdade, constituindo conclusões precipitadas e não baseadas em qualquer meio probatório. Seria fácil, rápido e barato mudar a localização da instalação de gás atualmente existente no prédio dos Autores para o prédio da Ré. Conforme demonstram as fotografias juntas aos autos, trata-se de uma pequena instalação, feita em tijolo, facilmente replicável no seu prédio. Por esse motivo, tais factos nunca seriam susceptíveis de fundamentar uma situação de abuso de direito.
I) Por outro lado, relativamente ao primeiro argumento mencionado na anterior Conclusão D. (mero decurso do tempo- cerca de 4 anos), entendemos que esse argumento/facto também não é suficiente para concluir por uma situação de abuso de direito. Segundo o acórdão do STJ de 19/10/2000, publicado em CJ, Ano VIII, Tomo III-2000, pág. 83 a 84, citado nos Acórdãos da Relação de Guimarães de 02/07/2009 e05/02/2013, ambos com texto integral em www.dgsi.pt, no seguimento da doutrina de autores alemães citada pelo Prof. António Meneses Cordeiro, em Da Boa Fé no Direito Civil, II, nota da pág. 811, a verificação do abuso de direito, na modalidade de “suppressio”, exige, além do não exercício do direito por um certo lapso de tempo, que o titular do direito se comporte como se o não tivesse ou como se não mais o quisesse exercer, que a contraparte haja confiado em que o direito não mais seria feito valer, que o exercício superveniente do direito acarrete para a contraparte uma desvantagem iníqua.
J) Ora, dos referidos Factos Provados não resulta qualquer indício que os titulares do direito se tivessem comportado como se o não tivessem ou como se não mais o quisessem exercer ou que a contraparte haja confiado em que o direito não mais seria feito valer ou que o exercício superveniente do direito acarrete para a contraparte uma desvantagem iníqua. Sendo certo que tais factos também nunca foram sequer alegados pela Ré na sua contestação. Deste modo, o simples decurso do tempo sem o eventual exercício de um direito não é suficiente para se poder concluir pelo abuso do direito. Muito menos por um prazo tão curto como são cerca de 4 anos.
K) Neste termos, inexiste qualquer situação de abuso de direito, pelo que deve ser deferido o pedido de condenação da Ré a retirar a instalação de gás que esta mantém no prédio dos Autores contra a vontade destes, com as consequências legais.

B) Da definição do conteúdo e extensão da servidão de vistas:

L) Ora, mais uma vez é indubitável que os Autores são os proprietários do prédio mencionado no Facto Provado 1) e, enquanto tal, gozam, nos termos do art. 1305º do Código Civil, de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem. Entre esses direitos está, em princípio, o de decidir como e quando vedar o seu prédio livremente (cfr. arts. 1305º e 1356º do Código Civil).
M) Obviamente que, como resulta do Facto Provado 6, os Autores voluntariamente limitaram esse direito a vedar o seu prédio, mas apenas nos exactos termos constantes no texto da escritura constitutiva da servidão aqui em causa ou seja: 1) Os Autores constituíram no seu prédio, a favor do prédio da Ré, uma SERVIDÃO DE VISTAS; 2) No prédio serviente, exclusivamente na parte voltada a sul para o prédio dominante, não poderão ser construídas quaisquer edificações, paredes ou muros. 3) Que esta restrição à construção apenas incide sobre aquela parcela de terreno que constitui a servidão de passagem acima constituída, a assinalada a cor amarela na planta topográfica referida; 4) A servidão é constituída no sentido de garantir as vistas do prédio da segunda outorgante, através dos vãos da moradia já existente, uma vez que eles distam menos de três metros do limite da propriedade em que se insere a indicada moradia, cumprindo assim o referido prédio todos os exigências e requisitos camarárias exigidos para efeitos de manutenção dos referidos vãos.
N) Ora, para interpretar o título em causa, o Tribunal “a quo” cita o art. 236º do Código Civil, mas omite (e, pior, na nossa modesta opinião infringe) o disposto nos artigos 237ºe 238º do mesmo Código, os quais têm perfeita aplicação no presente caso, tanto mais que a constituição de servidão de vistas em causa é um negócio formal. Tendo em conta esses preceitos legais, a interpretação do título constitutivo da servidão de vistas tem de ter um sentido com correspondência no texto do documento, sendo que, em caso de dúvida e no caso dos negócios gratuitos (como é o presente caso), deve prevalecer o sentido menos gravoso para o disponente.
O) Assim, tendo em conta esses princípios, não nos parece adequado o entendimento sufragado pelo Tribunal “a quo” no sentido de que o “(…) encargo imposto sobre o prédio dos autores implica a proibição da colocação de qualquer vedação deste na parte voltada a sul para o prédio da ré. Com efeito, como o prédio que é hoje dos autores era da ré, antes da doação, não existia qualquer problema com as confrontações e distâncias dos vãos da moradia ao limite do prédio. Com o “destaque” do prédio que é hoje dos autores, operado por via da doação, a questão colocou-se às partes, tendo-se constituído a servidão de forma a impedir que a referida moradia deixasse de cumprir os requisitos de licenciamento camarário. Em face deste contexto, estamos em crer que o título constitutivo da servidão dita uma interpretação lata no sentido de que a proibição de construir “edificações, paredes ou muros” tem de ser entendida como uma proibição de colocação de qualquer vedação ou sinal físico erigido de delimitação das propriedades que possa fazer perigar o licenciamento da dita moradia (artigos 1564º e 1565º, do C.C.) (…)”
P) Esse entendimento (cfr. anterior Conclusão P) é, na nossa opinião, manifestamente abusivo pois tratando-se de uma evidente constituição de uma servidão de vistas, o seu objetivo é proteger/conceder o benefício de facultar luz e ar ao prédio dominante e não evitar/suprir eventuais dificuldades de licenciamento camarário da moradia. Aliás, esse objetivo é o único que se encontra refletido no texto do título constitutivo da servidão, uma vez que no mesmo é expressamente referido que “A servidão é constituída no sentido de garantir as vistas do prédio da segunda outorgante, através dos vãos da moradia já existente”; A colocação de uma grade salvaguardaria de modo evidente o direito da Ré a beneficiar de luz e ar no seu prédio, nomeadamente na sua janela e varanda. Mais… O Tribunal poderá, aliás, se assim entender limitar a altura dessa grade à parte mais baixa da janela existente na moradia da Ré, de modo a salvaguardar totalmente esse benefício.
Q) Esse entendimento (cfr. anterior Conclusão P) é ainda manifestamente abusivo pois o texto do título constitutivo da servidão não refere em algum lado, nem sequer indicia, que a proibição de construir “edificações, paredes ou muros” tem de ser entendida como uma proibição de colocação de qualquer vedação ou sinal físico erigido de delimitação das propriedades que possa fazer perigar o licenciamento da dita moradia. Essa interpretação é excessiva, abusiva e não tem cabimento no texto do título constitutivo. Se as partes expressamente referiram que “não poderão ser construídas quaisquer edificações, paredes ou muros” temos de presumir que foi exactamente isso que quiseram dizer e acordar. Aliás, tal decorre da aplicação conjunta do art. 1356º do Código Civil (“A todo o tempo o proprietário pode murar, valar, rodear de sebes o seu prédio, ou tapá-lo de qualquer modo.”) com o texto do título constitutivo da servidão que limitou de modo bem específico esse direito. Se as partes tivessem querido estabelecer uma proibição da colocação de qualquer vedação na parte voltada a sul para o prédio da ré, teriam dito precisamente isso. Mas não foi isso que quiseram fazer, nem o que efetivamente fizeram. Não proibiram toda e qualquer vedação, mas apenas edificações, paredes ou muros, o que não corresponde a uma grade, uma sebe viva, etc.
R) Esse entendimento (cfr. anterior Conclusão P) é abusivo pois não resulta dos factos provados que a construção de uma grade no limite dos prédios em questão nos presentes autos seja susceptível de colocar em causa o licenciamento camarário da moradia da Ré. Aliás, tal facto não foi sequer alegado pela Ré pelo que, mais uma vez, não poderia ter sido considerado/ponderado pelo Tribunal “a quo”.
S) Aliás, essa interpretação efetuada pelo Tribunal não faz qualquer sentido. A colocação de uma grade no limite dos prédios em questão (aliás tal como a construção de muros até 1,8m de altura), nomeadamente por não confinar com a via pública, constitui uma obra de escassa relevância urbanística, logo com isenção de controlo camarário, nos termos do art. 6º, n.º 1, alínea c) e art. 6º-A, n.º1, alínea b) do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (DL 555/99, de 16 de Dezembro, com as redações posteriores). Por esse motivo, se a construção/colocação de muros/vedações/grades que não confrontem com a via pública está isento de controlo camarário parece-nos óbvio que, com a sua colocação, nunca ficará em causa o licenciamento camarário da moradia da Ré. Consequentemente, o entendimento do Tribunal não faz qualquer sentido.
T) Esse entendimento (cfr. anterior Conclusão P) é excessivo pois, ainda que pudessem existir dúvidas, a interpretação do título constitutivo de servidão no sentido de permitir a colocação de uma grade seria aquela que teria o sentido menos gravoso para os disponentes, aqui Autores, uma vez que se tratou de um negócio gratuito, logo sempre deveria ser esse o sentido a prevalecer, atento o disposto no art. 237º do Cód. Civil.
U) Face ao exposto, a interpretação do título constitutivo de servidão efetuada do Tribunal “a quo” no sentido de ser entendida como uma proibição de colocação de qualquer vedação ou sinal físico erigido de delimitação das propriedades que possa fazer perigar o licenciamento da dita moradia é manifestamente abusiva, excessiva e desproporcional, pois significa que os Autores não podem vedar o seu prédio, seja de que modo for, tendo de aceitar e “engolir” a constante e injustificada entrada e permanência da Ré (sem ser apenas para passagem), ), seus animais e pertences. Ora, isto implica uma oneração excessiva, injustificada e imprevisível do prédio dos Autores. A utilização do prédio dos Autores pela Ré está perfeitamente definida no título constitutivo de servidão, sendo certo que nele não consta qualquer proibição absoluta de vedar o seu prédio como o Tribunal “a quo” pretende agora impor. O bom senso impõe que possam ser colocados alguns limites e evitar o contacto excessivo entre as partes, principalmente nestes casos em que existem fortes desavenças. A solução apontada pelo Tribunal “a quo” peca por não possuir bom senso, pois é muito previsível que seja fonte de graves problemas futuros em vez de, preventivamente, os evitar. Trata-se, pois, de um entendimento excessivo, injustificado e abusivo, pelo que não pode ter cabimento e deve ser revogado pelo Tribunal da Relação.
V) Neste termos, inexiste qualquer situação de abuso de direito, pelo que deve ser deferido o pedido de condenação da Ré a retirar a instalação de gás que esta mantém no prédio dos Autores contra a vontade destes, com as consequências legais.

TERMOS em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e substituindo-o por outra que julgue procedente a presente ação e, em consequência, defira e condene a Ré nos pedidos formulados pelos Autores na sua p.i.

A parte contrária contra-alegou, tendo apresentado as seguintes conclusões:

a) - A conduta dos AA., reiterada, persistente e que nasceu aquando da própria aquisição do prédio e se manteve durante mais de quatro anos, criou na R. a expectativa e confiança de que tal atitude se manteria.
b) - Ao pedir a condenação da R. a remover a referida instalação de gás, os AA. agem com abuso de direito.
c) - A essencialidade de uma instalação de gás é um facto notório e decorre das regras da experiência.
d) - A aplicação do instituto do abuso de direito não carece de invocação pelas partes, nada obstando a que o Tribunal se socorra do mesmo desde que se verifiquem os respectivos pressupostos.
e) - O que efectivamente releva para aferir da existência de um abuso de direito é a confiança gerada pela conduta da contraparte.
f) - É perfeitamente legítimo que a R., tendo doado aos AA. o prédio em causa e continuando, com o consentimento destes, a utilizar a mencionada instalação de gás, confiasse que tal utilização não lhe viesse a ser negada.
g) - Resulta do respectivo título constitutivo que não estamos perante uma verdadeira servidão de vistas, mas sim perante uma servidão predial inominada. h) - O objectivo visado com a constituição de tal servidão está igualmente consagrado no título, não se tratando apenas de facultar luz e ar ao prédio dominante, mas sim de garantir que a moradia da R. continue a respeitar as regras camarárias.
i) - A colocação de uma vedação, seja qual for a sua natureza, no limite das propriedades seria susceptível de pôr em causa o cumprimento de tais regras.
j) - Face aos critérios constantes do artigo 2360 do Código Civil, o Tribunal a quo interpretou de forma correcta a convenção que constituiu a servidão.
k) - Ainda que estivéssemos perante uma simples servidão de vistas, o que não se concebe, a colocação de um gradeamento em ferro seria sempre susceptível de pôr em causa a garantia que resultaria dessa servidão.
1) - As vistas do prédio da R. serão necessariamente afectadas se os AA. vedarem a sua propriedade com um gradeamento, dado que este, em função da sua configuração, poderá ter um efeito impeditivo ou fortemente limitativo das vistas que a servidão visa garantir.

II – Objeto do recurso

Considerando que:

. o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,
. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

as questões a decidir são as seguintes:

. se os factos apurados são suficientes para se concluir que o A. ao exigir a retirada da instalação do gás age em abuso de direito;
. se a servidão constituída por contrato, denominada pelas partes de “servidão de vistas” impede a colocação de um gradeamento pelos AA.

III – Fundamentação

Na 1ª instância foram considerados provados e não provados os seguintes factos:
Factos provados:

1. Os autores são donos do prédio urbano sito na rua ..., Esposende, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... e inscrito na matriz predial urbana como artigo …;
2. O prédio referido em 1. foi doado pela ré ao autor em 06/07/2012;
3. A ré é dona do prédio urbano sito na rua …, Esposende, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº … e inscrito na matriz predial urbana como artigo 1473;
4. O prédio referido em 1. confronta a poente e a sul com o prédio referido em 3.;
5. Por escritura pública datada de 09/07/2012 – junta aos autos a fls. 12 a 14 (incluindo versos) cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido -, os autores e a ré, na qualidade de primeiro e segundo outorgantes, respetivamente, declararam: “Que vêm, por esta escritura constituir uma servidão de passagem nos termos seguintes: 1.1 – O primeiro outorgante constitui sobre o prédio identificado na alínea A) - referido em 1. - (que passa a ter a natureza de prédio serviente), e a favor do prédio identificado na alínea B) – referido em 3. – (que passa a ter a natureza de prédio dominante), uma SERVIDÃO DE PASSAGEM destinada a permitir a passagem a pé e através de veículos motorizados e não motorizados para o prédio dominante (artigo 1473), na direcção poente/nascente, por uma faixa de terreno que tem no seu início a largura de seis vírgula oito metros quadrados e no seu fim a largura de três vírgula quarenta metros quadrados e um comprimento de trinta e três metros quadrados, largura essa que diminui até atingir os referidos três vírgula quarenta metros quadrados aos nove metros quadrados de comprimento, com uma área total de cento e trinta e quatro metros quadrados, parcela essa que confronta do norte com A. C., do Sul com P. P., do nascente com J. P. e do Poente com Rua da .... 1.2. A área da servidão de passagem é constituída por toda a faixa de terreno do prédio serviente localizada a poente do mesmo, parcela essa que dá acesso à referida Rua da ..., e devidamente assinalada a cor amarela, numa planta topográfica que me foi apresentada e que arquivo.”;
6. Na referida escritura, consta ainda: “(…) o primeiro outorgante constitui no seu referido prédio, o acima identificado na alínea A) (que passa a ter a natureza de prédio serviente), a favor do prédio da segunda outorgante, o acima identificado na alínea B) (que passa a ter a natureza de prédio dominante, uma SERVIDÃO DE VISTAS nos termos seguintes: 2.1 – No prédio serviente, exclusivamente na parte voltada a sul para o prédio dominante, não poderão ser construídas quaisquer edificações, paredes ou muros. 2.2 – Que esta restrição à construção apenas incide sobre aquela parcela de terreno que constitui a servidão de passagem acima constituída, a assinalada a cor amarela na planta topográfica referida; 2.3 – A servidão é constituída no sentido de garantir as vistas do prédio da segunda outorgante, através dos vãos da moradia já existente, uma vez que eles distam menos de três metros do limite da propriedade em que se insere a indicada moradia, cumprindo assim o referido prédio todos os exigências e requisitos camarárias exigidos para efeitos de manutenção dos referidos vãos.”;
7. A faixa/parcela de terreno referida em 5. e 6. foi marcada no local com recurso a uma linha de paralelo que assinala a separação do prédio referido em 1. do prédio referido em 3.;
8. Após a doação referida em 2., a ré manteve no prédio referido em 1., com a concordância do autor, uma instalação do gás, duas torneiras e respetivas mangueiras, que já existiam quando o prédio era seu, servindo-se das mesmas quando necessita, sem que o autor se opusesse;
9. Por carta datada de 06/09/2016, o autor solicitou à ré que retirasse o descrito em 7. e uma casota de um cão do prédio referido em 1., no prazo de 30 dias.

Factos não provados:

a) A servidão de passagem referida em 5. foi constituída porque a ré pretendeu ter acesso ao seu prédio pelo lado norte/nascente, a fim de poder transportar a mãe no veículo automóvel que possui, pois de outro modo não o poderia fazer a partir desse lado do prédio;
b) Após a doação referida em 2., a ré manteve no prédio referido em 1. uma casota de um cão;
c) A ré não reconhece ao autor o gozo pleno do prédio referido em 1, questionando-o publicamente, o que causa ao autor incómodos, preocupações e desgostos;
d) Os autores propuseram a presente ação com o objetivo de se eximirem ao cumprimento do livremente acordado com a ré;
e) A ré vive revoltada, indignada e angustiada por causa da pendência dos presentes autos.

Mais se consignou que o facto provado 7. foi considerado ao abrigo do disposto no artigo 5º, nº 2, alínea a), do C.P.C. e que os demais factos alegados na petição inicial e na contestação não foram considerados em sede de fundamentação de facto por se mostrarem ou conclusivos ou se mostrarem irrelevantes em face da questão de direito em causa nos autos.

Do abuso de direito

Vieram os apelantes alegar que o tribunal para julgar verificado o abuso de direito veio fundamentar-se em factos que não foram considerados provados e que nunca foram sequer alegados pela R. na sua contestação.

Na sentença recorrida entendeu-se que os AA. ao reclamarem a retirada da instalação de gás da Ré que se encontra no seu prédio, estão a agir em abuso de direito.

O Mmo Juiz a quo consignou a propósito na sentença recorrida:

No caso dos autos, a ré doou o prédio ao autor em julho de 2012, altura em que já tinha no referido prédio a instalação do gás que beneficia o seu próprio prédio (referido em 3.). Desde então e durante mais de quatro anos, o autor sempre concordou, consentiu e nunca se opôs a que a ré mantivesse tal instalação do gás no seu prédio. Esta atitude do autor, reiterada, persistente e que nasceu aquando da própria aquisição do prédio e se manteve durante mais de quatro anos (o autor pediu à ré que retirasse a instalação do gás em setembro de 2016) criou na ré a expetativa e confiança de que tal atitude se manteria, tanto mais que se tratava de uma instalação de gás, isto é, uma infraestrutura necessária ao seu prédio. Em face do exposto, temos como certo que se justifica que a confiança da ré seja devidamente tutelada, no que à instalação do gás diz respeito, atenta a essencialidade da infraestrutura referida e às dificuldades inerentes à sua alteração ou substituição. Não assim no que respeita às torneiras e mangueiras, porquanto tais elementos são facilmente alteráveis e substituíveis.”

Alegam os apelantes que nunca foi alegado pela R. na contestação nem foi dado como provado que a instalação de gás era uma infraestrutura essencial e a existência de dificuldades inerentes à sua alteração ou substituição.

Efectivamente tal não foi alegado pela apelada. No entanto, não estava o tribunal impedido, na aplicação do direito aos factos, de considerar que a estrutura em causa era essencial e a existência de dificuldades inerentes à sua alteração ou substituição. Foi um juízo de valor que formulou. Na sua actividade de aplicação do direito aos factos, o tribunal faz juízos e efectua raciocínios e, no caso, não se nos afigura que tenho formulado um juízo incorrecto. A instalação de gaz é essencial em qualquer habitação, seja para confeccionar alimentos, seja para aquecer as águas sanitárias, seja para alimentar uma caldeira a gás. E a alteração das instalações carece de procedimentos específicos, pela perigosidade do elemento gás e do seu potencial tóxico e explosivo. Assim, o tribunal não estava impedido de efectuar tais juízos.

Vejamos seguidamente se os factos apurados permitem que se conclua pela existência de abuso de direito:

O instituto do abuso de direito, consagrado no artigo 334 do C.Civil, é uma cláusula geral, que tem por fim temperar o exercício dos direitos subjectivos, intervindo em situações excepcionais, quando, do exercício de qualquer direito, sejam ultrapassados, de forma intolerável, inadmissível, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito.

Têm sido apontadas diversas modalidades de abuso de direito:
. venire contra factum proprium;
.supressio;
. inalegabilidade formal; e,
.tu quoque.

O abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium constitui uma das modalidades de abuso de direito, assente na boa-fé, tuteladora da confiança das pessoas, nas suas relações jurídicas. “Baseia-se, essencialmente, nos comportamentos contraditórios das pessoas. Estas, depois de tomarem uma determinada atitude, perante os outros, devem ser coerentes, mantendo o mesmo comportamento para o futuro, evitando a lesão das expectativas geradas à volta do seu comportamento anterior.

O que é importante, para o caso desta modalidade de abuso de direito, é saber quando é que um comportamento é relevante, isto é, gera a confiança no outro, de molde a que acredite que não terá um comportamento contrário. E, em face desta crença, organiza a sua vida económico-social, esperando que o outro não altere o seu comportamento. O comportamento, gerador da confiança nos outros, tem de ser expresso e inequívoco, de molde a que seja vinculativo para a parte. Só nestas circunstâncias é que o outro acredita ou tem razões fortes para acreditar que vai honrar, no futuro, o seu compromisso. Não basta uma mera aparência para que se gere a confiança, para que se acredite que a actuação futura irá ser sempre nesse sentido. É necessária uma atitude concludente, inequívoca, assumida, expressamente, perante o outro, com uma força tal, que não deixe dúvidas, que no futuro não irá ser surpreendido com um comportamento contrário.” (2)

Na sua estrutura, o venire pressupõe duas condutas da mesma pessoa, ambas lícitas, mas assumidas em momentos distintos e distanciadas no tempo, em que a primeira (o factum proprium) é contraditada pela segunda (o venire), de modo que essa relação de oposição entre as duas justifique a invocação do princípio do abuso de direito.

A modalidade de supressio se traduz no não exercício do direito durante um lapso de tempo por tempo prolongado, de modo que crie na contraparte a representação de que esse direito não mais será exercido, conduzindo o exercício tardio a uma desvantagem injustificada para esta. Como se refere no Ac. do TRP de 15.12.2005 (proc. nº 0535984) “Pretendeu-se, durante algum tempo, equiparar a supressio ao venire contra factum proprium.
O venire contra factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Há, pois, similitudes entre as duas figuras porque a realidade social da supressio, que o Direito procura orientar, está na ruptura das expectativas de continuidade de auto-apresentação praticada pela pessoa que, tendo criado no espaço jurídico uma imagem de não-exercício, rompa, de súbito, o estado gerado. Tal também acontece no venire contra factum proprium porque entre os dois comportamentos contraditórios decorre sempre um lapso de tempo.
A diferença é que na supressio o tempo tem uma projecção de maior relevo: é pela sua continuidade que o não exercício suscita as expectativas sociais de que essa auto-representação se mantém (sublinhado nosso). O decurso do tempo é a expressão da inactividade, traduzindo, como tal, o factum proprium.Com a supressio não se pretende penalizar o não exercício do direito pelo seu titular, considerando-o um desvalor em si mesmo, mas sim beneficiar a contra-parte, evitando que o exercício retardado do direito surja, para esta, como uma injustiça, quer inflingindo-lhe uma desvantagem desconexa na panorâmica geral do espaço jurídico, quer acarretando-lhe um prejuízo não proporcional ao benefício colhido pelo exercente.

Podemos assim dizer, sinteticamente, que a supressio se traduz no não exercício do direito durante um lapso de tempo de tal forma longo que crie na contraparte a representação de que esse direito não mais será exercido, conduzindo o exercício tardio a uma desvantagem injustificada para esta.

O nosso CC admite pelo artº 334º, em mera ponderação dedutiva, a supressio. Dentro da lógica interna da sua norma, a supressio opera contra o titular do direito por este não dever, no seu exercício exceder os limites impostos pela boa fé, exigindo-se ainda que o excesso seja manifesto. [Expusemos, de forma muito sintética, o desenvolvido estudo de Menezes Cordeiro na obra citada, págs. 797 e seguintes]”.

A situação de abuso de direito por inalegabilidade formal consiste na invocação da invalidade formal de um negócio pela parte que provocou intencionalmente a ocorrência do vício de que decorre ou que, embora não a tenha provocado participou na sua prática. A invocação do vício formal, nestas circunstâncias, constitui um comportamento contraditório, que frustra a expectativa da outra parte, contraria a boa-fé e é desconforme com os bons costumes. Este caso tem sido tratado em numerosas decisões judiciais que o qualificam, como “venire factum proprium” como ocorreu no Ac. do TRL de 24.04.2008, proc. nº 2889/2008-6, onde se considerou abusivo o comportamento dos apelados que durante 12 anos nunca questionaram a validade de um contrato aceite e querido à época pelos apelados, período durante o qual receberam, inclusive, as respectivas contrapartidas financeiras decorrentes da assinatura de tal contrato, e que posteriormente instauraram acção fundamentando-se na nulidade desse acordo.

O tu quoque, por sua vez, pretende obviar que alguém que desrespeitou um comando possa depois vir exigir a outrem o seu acatamento (cf. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português. Tomo IV, pág. 327).

Todas estas figuras têm pontos de contacto.

O Mmo Juiz a quo não qualificou o abuso de direito que entendeu verificar-se, mas que se nos afigura poder revestir a modalidade de venire contra factum próprio – num primeiro momento o A. concorda que a instalação a gás se mantenha no seu prédio, logo após a doação e posteriormente, quatro anos volvidos (porque, como alegam os AA. as relações entre os irmãos deixaram de ser as normais - artº 30º da p.i. ), exige a sua retirada, adoptando um comportamento contraditório com o que inicialmente adoptou.

Os apelantes consideram que não se apuraram factos que permitam concluir pela sua anuência para o futuro da manutenção da situação descrita no ponto 8 e que não existe qualquer razão para conferir tratamento diverso ao pedido de retirada da instalação a gás, relativamente ao pedido de retirada das duas torneiras e respectivas mangueiras, como se verificou.

O Mmo Juiz a quo assentou o tratamento diferente que conferiu à instalação de gás que manteve com o fundamento no instituto do abuso de direito e às duas torneiras e respectivas mangueiras, por estas últimas serem facilmente alteráveis e substituíveis.

A questão das duas torneiras e mangueiras não tem interesse em sede de recurso, porque a R. se conformou com a condenação na sua retirada.

Os apelantes citam em abono da sua tese o Ac. do TRG de 05.02.2013, proc. nº 4838/09. No entanto, a factualidade apurada nesses autos, não é idêntica à apurada naqueles. No citado acórdão apurou-se que determinadas construções efectuadas pelo R., promitente vendedor foram efectuadas após a celebração do contrato promessa, com o conhecimento do autor, prédio que o A. veio posteriormente a adquirir a outrem, e que face a essa factualidade, não pode concluir-se que o autor não viria, posteriormente, a exigir a restituição do seu prédio na íntegra, livre de pessoas e coisas, até porque dos autos não resultou, nem foi alegado, nenhum facto que permitisse concluir os motivos pelos quais o contrato promessa não foi convertido em contrato definitivo e de quem foi o incumprimento.

No caso dos autos ora em recurso, a situação é diferente. Não estamos apenas perante uma actuação passiva do A., que nada reclamou durante alguns anos; pelo contrário, este teve uma actuação positiva, concordando com a manutenção da instalação que se encontrava no local onde hoje se situa na altura da doação, quiçá, como contrapartida e agradecimento pela doação que a R. lhe fez ou pelos laços de parentesco que os unem, pois A. e R. são irmãos.

E foi esta actuação positiva do A. e a manutenção da situação durante alguns anos, que gerou na R. a convicção de que a aprovação se manteria e que não teria de alterar a instalação por força da doação que efectuou ao A., adotando comportamento conforme com esta convicção, ou seja, não procedendo à alteração da instalação, pelo que o comportamento posterior do A., exigindo a mudança da instalação constitui abuso de direito.

Tem sido entendido, designadamente, no Ac. do STJ de 10.05.00 (BOL. 497º/343) que “Não prevendo a lei, expressamente, as consequências jurídicas do abuso do direito, entende-se que os seus efeitos «serão os correspondentes à forma de actuação do titular», variando a sanção do acto abusivo, conforme os casos, por «apelo às regras gerais e mesmo à equidade», «entre a indemnização do dano causado (reparação em dinheiro ou reconstituição natural, no todo ou em parte, da situação anterior), a nulidade do negócio jurídico, a validade de acto formalmente nulo ou a ineficácia de certa conduta».
No caso, o abuso de direito conduz à paralisação do direito do A.

Da alegada servidão de vistas

Na sentença recorrida entendeu-se que a servidão constituída pelas partes por contrato, não obstante o nome que lhe foi atribuído, não consubstanciava uma verdadeira de vistas, tratando-se de uma servidão predial inominada.

No contrato celebrado entre as partes está definido o conteúdo da servidão: no prédio dos autores (serviente), exclusivamente na parte voltada a sul para o prédio da ré (dominante), não poderão ser construídas quaisquer edificações, paredes ou muros, sendo a restrição apenas incidente sobre a parcela de terreno que constitui a servidão de passagem também constituída no mesmo contrato.

Os autores pretendem vedar o seu prédio na parte voltada a sul para o prédio da R., com uma grade em ferro e defendem que a servidão porque não constitui uma edificação, paredes ou muros, não o impede.

Escreveu-se a propósito na sentença recorrida:

“O título constitutivo é claro quanto à vontade, intenção e objetivo das partes ao impor a restrição de construção no prédio dos autores: visou-se impedir que fosse construída qualquer edificação que implicasse que os vãos da moradia existente no prédio da ré tivessem de ser alterados por ficarem em contravenção com as exigências e requisitos camarários, já que se situam a menos de três metros do limite do prédio.

Em face disto – que é o que resulta da interpretação normal da declaração negocial seguindo os critérios plasmados no artigo 236º, do C.C. – estamos em crer que o encargo imposto sobre o prédio dos autores implica a proibição da colocação de qualquer vedação deste na parte voltada a sul para o prédio da ré. Com efeito, como o prédio que é hoje dos autores era da ré, antes da doação, não existia qualquer problema com as confrontações e distâncias dos vãos da moradia ao limite do prédio. Com o “destaque” do prédio que é hoje dos autores, operado por via da doação, a questão colocou-se às partes, tendo-se constituído a servidão de forma a impedir que a referida moradia deixasse de cumprir os requisitos de licenciamento camarário. Em face deste contexto, estamos em crer que o título constitutivo da servidão dita uma interpretação lata no sentido de que a proibição de construir “edificações, paredes ou muros” tem de ser entendida como uma proibição de colocação de qualquer vedação ou sinal físico erigido de delimitação das propriedades que possa fazer perigar o licenciamento da dita moradia (artigos 1564º e 1565º, do C.C.).”

Os apelantes entendem que o acordo entre as partes não pode ser interpretado no sentido considerado pelo tribunal recorrido que não teve em conta o disposto nos artigos 237º e 238º do CC, pois que se trata de um negócio gratuito e formal e por outro lado, estando a colocação de uma grade no limite dos prédios em questão que não confina com a via pública não sujeita a controlo camarário, nunca ficará em causa o licenciamento camarário da moradia da R..

Vem-se entendendo que, à luz do paradigma da teoria da impressão do destinatário, que o declaratário corresponde à figura do homem médio, sem especiais conhecimentos jurídicos ou técnicos, tendo em consideração, em matéria de interpretação do contrato, o sentido que melhor corresponda à sua natureza e objecto, adoptando o sentido comum ou ordinário dos termos utilizados no texto do contrato.

O contrato pode ser celebrado a título oneroso (venda, dação em cumprimento, troca, sociedade, etc.) como a título gratuito (doação, etc). A servidão tanto pode nascer dum contrato exclusiva ou especialmente destinado à sua constituição, como de um contrato principalmente afecto a uma outra finalidade (v.g. alienação de um prédio em que o alienante se reserve um direito de servidão sobre o prédio vendido em proveito de um outro que continua a pertencer-lhe).

No contrato de constituição de servidões celebrado entre as partes consta que a constituição é gratuita.

O fim da servidão está claramente expresso no texto do contrato “garantir as vistas do prédio da segunda outorgante, através dos vãos da moradia já existente, uma vez que estas distam menos de três metros do limite da propriedade em que se insere a indicada moradia, cumprindo assim o referido prédio todas as exigências e requisitos camarários exigidos para efeitos de manutenção dos referidos vãos”.

Nenhuma das partes menciona qual o preceito legal que exige a manutenção de 3 metros entre vãos.

Estará eventualmente em causa o disposto no artº 73º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (DL 38382/51) que dispõe que as janelas dos compartimentos das habitações deverão ser sempre dispostas de forma que o seu afastamento de qualquer muro ou fachada fronteiros, medido perpendicularmente ao plano da janela e atendendo ao disposto no artigo 75.º, não seja inferior a metade da altura desse muro ou fachada acima do nível do
pavimento do compartimento, com o mínimo de 3 metros. Além disso não deverá
haver a um e outro lado do eixo vertical da janela qualquer obstáculo à iluminação a distância inferior a 2 metros, devendo garantir-se, em toda esta largura, o afastamento mínimo de 3 metros acima fixado.


Ora, como se salientou no Ac. do STJ de 09.05.2100, Revª nº 6275/07.7TBVFX.L1, de 9/5/11), os princípios essenciais a ter em consideração, em matéria de interpretação, são os seguintes:

- A declaração negocial valerá de acordo com a vontade real do declarante, se esta for conhecida do declaratário - artº 236, nº2, CC;
- Não o sendo, valerá com o sentido que possa ser deduzido por um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (teoria da impressão do destinatário) - artº 236, nº1;
- Nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto - artº 238, nº1; dito doutra forma: para que possa valer, o sentido atribuído pelo “declaratário normal”deverá estar expresso, ainda que de forma imperfeita, no próprio texto do documento que corporiza a garantia prestada;
- O sentido sem correspondência mínima no texto poderá ainda valer se traduzir a vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem e essa validade - artº 238º, nº2.

“O que basicamente se retira do artº 236º do CC é que, em homenagem aos princípios da protecção da confiança e da segurança do tráfico jurídico dá-se prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário (receptor). A lei, no entanto, não se basta com o sentido compreendido realmente pelo declaratário (entendimento subjectivo deste) e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal, típico, colocado na posição do real declaratário, depreenderia (sentido objectivo para o declaratário) –(cfr. acordão do STJ de 28.10.97, BMJ 470, 597. Há que imaginar - escreve o Prof. Paulo Mota Pinto em Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, 208 - uma pessoa com razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas figurando-a na posição do real declaratário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este efectivamente conheceu (mesmo que um declaratário normal delas não tivesse sabido - por exemplo, devido ao facto de o real declaratário ser portador de uma cultura invulgarmente vasta e superior à média) e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo Ainda segundo este mesmo autor, “… a interpretação da declaração negocial não tem em vista apurar a vontade do declarante ou um sentido que este tenha querido declarar, estando antes em causa o sentido objectivo que se pode depreender do seu comportamento”. Importa por fim acrescentar que estando-se no caso sub judice em presença dum contrato, e dum contrato tipicamente sinalagmático, há que atender, simultaneamente, às declarações de ambas as partes porque ambas são, também simultaneamente, declarante e declaratário (neste sentido, Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, II, 2ª edição, pág. 435). Tudo isto significa em termos práticos que o intérprete deve, relativamente a ambos os contraentes, tentar definir a posição em que se encontram perante a declaração da contraparte, e colocar um declaratário ideal (normal) na posição de declaratário real”. (extracto retirado do Ac. do STJ de 12.06.2012, proc. 14/06).

Pires de Lima e Antunes Varela ensinam que a regra do artº 237º do CC não prevalece sobre as regras do artº 236º. Apenas há que recorrer ao disposto no artº 237º, se a declaração, consultados todos os elementos utilizáveis para a sua interpretação de harmonia com o critério fixado artigo 236º do CC, comportar ainda mais do que um sentido baseados em razões de igual força.

Ora, um declaratário normal no lugar do real declaratário não deixaria de interpretar o contrato celebrado entre as partes no sentido de apenas não ser permitida a construção de qualquer edificação, muro ou parede, que possa reduzir a distância de 3 metros. A expressão edificação que significa erigir uma construção, não se nos afigura abranger a colocação de uma grade. A colocação desta grade porque não é uma edificação, parede ou muro não colide com a manutenção da necessária distância de 3 metros, mas terá de ser colocada de modo a não impedir também as vistas, pois que foi também fundamento da constituição da servidão, garantir as vistas, devendo assim ser colocada a uma altura em que não as possa estorvar, ou seja até à parte mais baixa da janela existente na moradia da Ré (3), ou até ao 1,5 m, se a altura mais baixa da janela for superior, porque em regra inferior à altura de uma pessoa, permitindo o visionamento, se essa altura for superior, a qual é suficiente para impedir a entrada de pessoas e animais.

Ainda que assim não se entendesse, em caso de dúvida, haveria que interpretar o acordado, tendo em conta o disposto nos artº 237º e 238º do CC, cujas regras conduziriam à mesma conclusão. Assim, se se considerasse que o acordado pelas partes, no desconhecimento da vontade real do declaratário, permitia mais do que uma interpretação, ambas de igual força, teria de prevalecer, em caso de dúvida do sentido da declaração, no caso de negócios gratuitos, como é o caso do dos autos, o sentido menos gravoso para o disponente. E o sentido menos gravoso é aquele que permite a colocação de uma grade por não poder ser considerada edificação, muro ou parede. Deve assim proceder a parcialmente a pretensão dos apelantes.

IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, revogam parcialmente a sentença recorrida, condenando a R. a reconhecer que os AA. têm o direito de vedar o lado sul com uma grade, nos termos supra expostos, confirmando no demais, a sentença recorrida.
Custas por ambas as partes na proporção de 20% para a R. e 80% para os AA.
Notifique.
Guimarães, 17 de dezembro de 2018

Helena Melo
Pedro Damião e Cunha
Maria João Matos


1. O que os apelantes admitem nas suas alegações, de modo a compatibilizar com o acordado entre as partes.
2. Cfr. se defende no extracto retirado do Ac. do TRG de 23.04.2015, proferido no proc. 495/08, acessível em www.dgsi.pt.
3. O que os apelantes admitem nas suas alegações, de modo a compatibilizar com o acordado entre as partes.