Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1958/15.0T9BRG.G1
Relator: CLARISSE GONÇALVES
Descritores: DESPACHO RECEBIMENTO ACUSAÇÃO
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
ARTºS 311º E 313º DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Proferido despacho a que aludem os artºs 311º e 313º do CPP, apresentadas e admitidas as contestações dos arguidos (que nenhuma questão levantaram), admitida a prova e aberta que foi a audiência para realização do julgamento tendo por base a acusação recebida – de fls. 580 a 586 – não se mostra possível “represtinar” uma acusação que já foi declarada nula pelo titular da acção penal enquanto teve o dominus do inquérito.

II) De acordo com o princípio da preclusão, uma vez praticado determinado ato ele adquire foros de definitivo naquele processado (preclusão intraprocessual ou efeito intraprocessual da preclusão).

III) Assim, recebida que foi uma determinada acusação será ela que fixa o objecto dos autos e com base na qual será realizado a audiência de julgamento. O poder jurisdicional do juiz fica esgotado quanto à matéria em causa (efeito preclusivo do caso julgado).
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

- 1. No processo comum, com intervenção de Tribunal Singular, com o nº 1958/15.0T9BRG, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no Juízo Local Criminal de Barcelos, Juiz 2, foi proferido:

- DESPACHO, a 2 de Outubro de 2017, onde se decidiu (transcrição):

“Nessa medida, depois de tudo visto e sem necessidade de mais considerações, decide-se:

i) Declarar juridicamente inexistentes os despachos proferidos pelo Ministério Público a fls. 535/536 e 578 e seguintes dos autos;
ii) Rejeitar a acusação pública deduzida a fls. 277 e seguintes, ao abrigo do artigo 311º, nº 2, alínea a) e n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal, por ser manifestamente infundada, no que respeita à sociedade arguida “X – Industria de Perfis, S. A. – Em Liquidação”;
iii) Receber a acusação deduzida pelo Ministério Público a fls. 277 e seguintes contra os arguidos D. S., J. S., D. M. e “XX – Comércio, S. A. – Em Liquidação”, todos melhor identificados a fls. 278/279, pelos factos e disposições legais constantes da referida acusação e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
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Para julgamento neste Tribunal designo o dia 29.11.2017, pelas 9.30 horas, e o dia 06.12.2017, pelas 09:30 horas, como segunda data, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 312.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
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Os arguidos aguardarão os ulteriores termos do processo sujeitos a Termo de Identidade e Residência, já prestados nos autos, atenta a inexistência de exigências cautelares que justifiquem a aplicação de outra medida de coacção.
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Admito liminarmente o pedido de indemnização civil de fls. 612 e seguintes, bem como a prova que o acompanha, mas apenas quanto aos arguidos D. S., J. S. e “XX – Comércio, S. A. – Em Liquidação, rejeitando-o relativamente à demandada “X – Industria de Perfis, S. A. – Em Liquidação”, atento o princípio da adesão plasmado no artigo 71.º, do Código de Processo Penal, e tendo em conta que, no que respeita a esta sociedade, a acusação foi rejeitada por ser manifestamente infundada.
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Cumpra o disposto no artigo 78.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
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Notifique, sendo ainda os arguidos para, querendo, apresentarem nova contestação, tendo como referência a delimitação do objecto do processo operada pela acusação ora recebida.” (fls. 775 e 776).

e

- SENTENÇA, datada, lida e depositada a 18 de Dezembro de 2017 (fls. 887, 895v. e 896), com a seguinte “Decisão” (transcrição):

Parte Crime
Pelo exposto, julga-se a acusação procedente e, em consequência, decide-se:

a) condenar o arguido D. S. pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido no art.º 107, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/01, de 5 de Junho e com referência ao art.º 105, n.º 5, do mesmo diploma e art.º 30, do Código Penal, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), no total de € 1.120,00 (mil cento e vinte euros);
b) condenar o arguido J. S. pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido no art.º 107, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/01, de 5 de Junho e com referência ao art.º 105, n.º 5, do mesmo diploma e art.º 30, do Código Penal, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), no total de € 1.120,00 (mil cento e vinte euros);
c) condenar o arguido D. M. pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido no art.º 107, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/01, de 5 de Junho e com referência ao art.º 105, n.º 5, do mesmo diploma e art.º 30, do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), no total de € 1.400,00 (mil e quatrocentos euros);
d) condenar a arguida “XX -Indústria de Perfis, S.A. - Em Liquidação” pela autoria de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, por força do estatuído nos artigos 7.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, na pena de 200 (duzentos) dias de multa dias de multa, à taxa diária de € 10 (dez euros), tudo no valor global de € 2.000,00 (dois mil euros).
*
Mais se condenam os arguidos no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça para cada um deles no mínimo legal e reduzindo-a a metade por força da confissão dos factos realizada pelos arguidos D. S., J. S. e D. M. (por si e enquanto legais representantes da sociedade arguida).
*
Parte Civil

Julga-se parcialmente procedente a acção cível e, em consequência:

i) Declara-se extinta a instância por inutilidade superveniente legal da lide, nos termos artigo 277, alínea e), do Código de Processo Civil, no que respeita à demandada “XX -Indústria de Perfis, S.A. - Em Liquidação”;
ii) Condenam-se os demandados D. S., J. S. e D. M. a pagar solidariamente ao Instituto da Segurança Social, I. P. a quantia de € 33.885,83, acrescida de juros de mora à taxa prevista no art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 77/99, de 16 de Março, contados a partir do termo do prazo em que cada uma das quantias referentes às quotizações deduzidas devia ter sido entregue e até efectivo e integral pagamento.
Custas a cargo dos demandados D. S., J. S. e D. M. – art.º 523.º do Código de Processo Penal e artigo 527.º, n.ºs 1 a 3, do Código de Processo Civil.
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Boletins à Direcção dos Serviços de Identificação Criminal.
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Notifique.
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Proceda-se ao depósito.
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Face ao disposto no artigo 78.º, n.º 2, do Código Penal e 472.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e tendo como referência as anteriores condenações impostas a todos os arguidos, após trânsito, requisite certificados do registo criminal actualizados, abrindo de seguida vista ao Ministério Público.” (fls. 894v. e 895).

- 2. Inconformados com ambas as decisões (do DESPACHO e da SENTENÇA), o Ministério Público e o arguido J. S., interpuseram os respectivos recursos, sendo que da sentença o recurso foi interposto também pelo arguido D. S..

- 2. A.) Do DESPACHO

- 2. A. 1.) O Ministério Público apresentou as seguintes conclusões (transcrição):

- I. A acusação de fls. 578 a 586 é válida porque, efetivamente, a acusação de fls. 277 a 282 é nula ao abrigo do disposto no artigo 119.º, al. d) do CPP conforme se refere no douto despacho de fls. 535 e 536 sendo que o MP de forma preventiva e legalmente admissível, reparou essa nulidade repondo a legalidade processual penal.
- II. Quanto à questão a decidir acompanhamos na integra o entendimento do Ministério Público nas alegações de recurso que foram apreciadas pelo Tribunal Superior no supra referido Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24 de abril de 2017, proferido no processo n.º 180/07.4 JABRG. G1 relatado pela Exm.º Sr.ª Desembargadora, Dr.ª Fátima Furtado, disponível in www.dgsi.pt. Com efeito,
- III. Não obstante o terminus formal do inquérito, o Ministério Público mantém competência para a prática de atos de índole formal e substancial posteriores, nomeadamente conhecendo de eventuais invalidades anteriormente cometidas, apreciando causas supervenientes que obstem ao exercício da ação penal (v.g. desistência de queixa, amnistia, prescrição) e promovendo as diligências necessárias à remessa dos autos para julgamento.
- IV. Os mesmos poderes são ex lege atribuídos ao juiz de instrução criminal, que exerce todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento, nos termos do artigo 17.º do Código de Processo Penal.
- V. «A declaração de nulidade determina quais os atos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respectivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade» (art. 122.º, n.º 2, do CPP; art. 202.º do CPC);
- VI. O princípio da irretratabilidade da acusação significa apenas que o Ministério Público não pode retirar uma acusação/arquivamento por si formulada, não abrangendo a possibilidade da sua correção quando ela, por qualquer motivo, seja inválida.
-VII. Apenas aquilo que é processualmente válido pode desencadear esse efeito preclusivo: quod nullum est nullum producit effectum; se uma acusação inválida não produz efeitos, então também não produziu esse efeito preclusivo de não poder jamais ser retirada nem, de alguma forma, corrigida.
- VIII. À semelhança do autor da petição inicial, o Ministério Público pode antes da remessa dos autos para julgamento, por força do princípio da legalidade do exercício da ação penal, consagrado no artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa, corrigir uma acusação nula que tenha proferido anteriormente.
- IX. Os arguidos não devem poder beneficiar de um qualquer erro formal, cometido pelo Ministério Público, nomeadamente quando a renovação do processo importar a renovação da possibilidade de se defender.
- X. Uma vez que o Ministério Público não é infalível, o interesse punitivo estadual impõe que uma acusação inválida possa ser corrigida até à sua remessa para julgamento e à formação da relação jurídica processual trilateral, sob pena de se afetar o direito de acesso ao direito e aos tribunais (art. 20.º da CRP).
- XI. Tal como os erros dos outros sujeitos processuais, também os erros do Ministério Público devem poder ser corrigidos, não podendo a pretensão punitiva estadual ficar exclusivamente dependente da bondade da sua atuação.
- XII. A declaração de uma acusação nula e a sua substituição por outra não violou os direitos de defesa dos arguidos, uma vez que estes foram notificados da nova acusação, tendo tido a possibilidade de a impugnar, suscitando a sua comprovação judicial (Aliás, no presentes autos, os arguidos não requereram a abertura de instrução e nada disseram sobre a questão ora suscitada em sede de contestação).
- XIII. A concessão da referida prerrogativa não viola os princípios da igualdade e da proporcionalidade, nem constituiu nenhum atropelo dos princípios do justo processo, da igualdade de armas, da lealdade processual e da vinculação temática da acusação.
- XIV. Relativamente à questão a decidir cumpre desde já referir que o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de maio de 2016, proferido no processo n.º 88/10.6 JAPDL. LI-3 relatado pela Exm.º sr.ª Desembargadora, Dr.ª Maria da Graça Santos Silva incide sobre uma questão não coincidente com a questão apresentada nestes autos e somente sobre a questão de saber se proferido um determinado despacho – no caso, uma acusação - é, ou não, legal, a sua substituição por outro, ainda que o primeiro não tenha sido cumprido, ou seja, não se mostre notificado aos intervenientes processuais. No referido aresto, o Tribunal referiu que uma vez proferida a acusação (ou qualquer despacho do MP no âmbito do inquérito), seja qual for o tratamento que lhe tenha sido dado (isto é, tenham eles sido notificados, ou não) está precludida a possibilidade de o MP renovar a prática do acto sendo que o ato praticado tornou-se definitivo e parte integrante do processado, tenha ele sido vertido em papel ou em sistema informatizado. Por outras palavras, no processo supra referido, o Tribunal superior não se pronunciou sobre a questão de saber se é possível ao MP declarar nula uma acusação ao anterior.
- XV. Diferentemente, o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24 de abril de 2017, proferido no processo n.º 180/07.4 JABRG. G1 relatado pela Exm.º Sr.ª Desembargadora, Dr.ª Fátima Furtado, disponível in www.dgsi.pt., pronunciou-se sobre a questão de saber se é legalmente admissível o Ministério Publico declarar nula uma acusação anteriormente elaborada.
- XVI. Como se referiu supra, acompanhamos na íntegra o entendimento do Ministério Público nas alegações de recurso que foram apreciadas pelo Tribunal Superior no supra referido Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24 de abril de 2017, proferido no processo n.º 180/07.4 JABRG. G1 relatado pela Exm.º Sr.ª Desembargadora, Dr.ª Fátima Furtado, disponível in www.dgsi.pt.
- XVII. A segunda questão enunciada pelos arguidos no dia 5 de junho de 2017 fica assim prejudicada.

Face ao exposto, pugnamos pela revogação do douto despacho judicial de fls. 772 a 776 e a sua substituição por outro que indefira o requerido pelos arguidos J. S., D. M. e D. S. no dia 5 de junho de 2017 considerando-se que os despachos proferidos pelo Ministério Público a fls. 535/536 e 578 e seguintes dos autos não são juridicamente inexistentes mas antes válidos determinando-se, consequentemente, a realização do julgamento tendo por referência a acusação do Ministério Público de fls. 587 a 601 a qual é válida para os devidos efeitos legais.

Vªs Exªs, porém, farão a costumada JUSTIÇA.” (fls. 801v. a 803).

- 2. A. 1. 1.) O arguido, J. S., apresentou resposta ao dito recurso entendendo dever ser o mesmo “julgado improcedente com as legais consequências.” (fls. 906v.).

- 2. A. 2.) O arguido, J. S., interpôs recurso do dito DESPACHO, tendo formulado as seguintes conclusões:

1.Nos presentes autos, aberta a audiência de julgamento, o ora Recorrente apresentou uma questão prévia ou incidental, cujo conteúdo se encontra transcrito supra na motivação do presente recurso e que aqui se dá por integralmente reproduzida.
2.Em síntese, no âmbito do inquérito foi deduzida uma primeira acusação pelo Ministério Público, tendo o mesmo nessa sequência vindo a declarar nula essa acusação e posteriormente veio a deduzir uma segunda acusação.
3.No requerimento apresentado em acta aquando da abertura da audiência de julgamento, foi o seguinte o peticionado:

«Assim sendo, a acusação datada de 27 de Fevereiro de 2017 é juridicamente inexistente, e não lhe pode ser atribuído qualquer valor jurídico, nem dela podem advir consequências e modificações no mundo do direito e dos factos, nenhum efeito tendo pois o seu recebimento, por despacho judicial, com as legais consequências.
Isto posto, temos a primeira das acusações deduzida, que porém, não obedece ao disposto no artigo 283º do C.P.P., conforme o Ministério Público admitiu no seu despacho em que a declara nula.
De modo que, também quanto a esta resta conhecer oficiosamente, nos termos do disposto nos artigos 311º n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea a), do vício da acusação manifestamente infundada.»
4.Vem o presente recurso apresentado na sequência do despacho proferido pelo Tribunal “a quo” na sequência da questão prévia apresentada, em que se decidiu o seguinte, citamos:

(…) Nessa medida, depois de tudo visto e sem necessidade de mais considerações, decide-se:
i) Declarar juridicamente inexistente os despachos proferidos pelo Ministério Público a fls. 535/536 e 578 e seguintes dos autos;
ii) Rejeitar a acusação pública deduzida a fls. 277 e seguintes, ao abrigo do artigo 311º n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal, por ser manifestamente infundada, no que respeita à sociedade arguida “X – Indústria de Perfis, S.A. – Em Liquidação”;
iii) Receber a acusação deduzida pelo Ministério Público a fls. 277 e seguintes contra os arguidos D. S., J. S., D. M. e “XX – Comércio, S. A. – Em Liquidação”, todos melhor identificados a fls. 278/279, pelos factos e disposições legais constantes da referida acusação e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
(…) Admito liminarmente o pedido de indemnização civil de fls. 612 e seguintes, bem como a prova que o acompanha, mas apenas quanto aos arguidos D. S., J. S. e “XX – Comércio, S. A. – Em Liquidação, rejeitando-o relativamente à demandada “X – Indústria de Perfis, S. A. – Em Liquidação”, atento o princípio da adesão plasmado no artigo 71.º, do Código de Processo Penal, e tendo em conta que, no que respeita a esta sociedade, a acusação foi rejeitada por ser manifestamente infundada.»
5.Ora, é quanto ao decidido nos pontos ii), iii) e quanto à admissão do pedido de indemnização civil que incide o objecto do presente recurso.
6.E, assim é porque, andou mal o Tribunal “a quo” ao ter rejeitado a acusação pública de fls. 277 (1ª acusação proferida) apenas no que respeita à sociedade arguida “X – Indústria de Perfis, S. A. – Em Liquidação”.
7.Na verdade a acusação de fls. 277 e seguintes deveria ter sido rejeitada no seu todo, desde logo, atendendo ao manifesto erro na identificação da sociedade comercial arguida que se identificou como sendo a “X – Indústria de Perfis, S. A. – Em Liquidação”, quando os factos decorrentes da acusação não lhe são correspondentes mas antes à sociedade comercial “XX – Comércio S. A. – Em Liquidação”.
8.E, por outro lado, a acusação de fls. 277 e seguintes deveria ter sido rejeitada por estarmos no âmbito dos presentes autos perante conexão de processos, o que obriga a que a acusação seja una, sob pena de nulidade insanável.
9.Analisando o manifesto erro na indicação da denominação social de cada uma das sociedades comerciais arguidas [X e XX], verificamos que não muda apenas o número 2 ou 3, porquanto, à XX, acrescenta-se “Comércio S. A. – Em Liquidação” e à X, “Industria de Perfis, S. A. – Em Liquidação”.
10.Constatada esta diferença substancial, outra solução não existe que não seja a de lançar mão do disposto no artigo 311º n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal, que nos ensina que, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de: rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada. E, a acusação considera-se manifestamente infundada quendo não contenha a identificação do arguido.
11.É certo que a nulidade do disposto no artigo 283º n.º 3 se considera sanável e por isso passível de correcção, no entanto, com o merecido respeito, essa correcção não podia ser promovida no presente caso pelo Tribunal “a quo”, a quem competia proferir despacho de rejeição da acusação porque a mesma não contem a correcta identificação da arguida e por isso ser do conhecimento imediato do Tribunal.
12.De modo que, sobre a acusação proferida a fls. 277 e seguintes dos autos, deveria ter incidido despacho de rejeição no seu todo, com as legais consequências.
13.Mas, acresce a isto o facto de no âmbito dos presentes autos ter sido proferido pelo Ministério Público em, 26.11.2015, ou seja, muito tempo antes de ser proferida acusação, despacho a ordenar a apensação de processos [sublinhado nosso].
14.Aliás, essa factualidade resulta do despacho proferido pelo Ministério Público a declarar a nulidade da primeira acusação [de fls. 277 e seguintes], entretanto declarado inexistente, em que se fez constar o seguinte, citamos: “Por outro lado, dispõe o n.º 4, do artigo 283º do Código de Processo Penal, que em caso de conexão de processos é deduzida uma única acusação. Contudo, em razão da instrução em separado dos processos cuja apensação se determinou, não contemplou a acusação toda a matéria do inquérito, como se impunha que tivesse feito, por força daquele despacho de apensação de processos, o que redunda inequivocamente na nulidade insanável prevista no artigo 119º, d), do Código de Processo Penal”.
15.De onde resulta que o Tribunal “a quo” tinha conhecimento do identificado despacho a ordenar a apensação dos processos, e bem assim, tinha conhecimento de que a acusação tem de ser una, sob pena de nulidade insanável [sublinhado nosso].
16.Porém, quanto a esta questão o Tribunal “a quo” não se pronunciou.
17.No entanto, apesar disso, o Tribunal “a quo” entendeu sanar um alegado lapso na identificação de uma das arguidas, e fê-lo em violação do disposto no artigo 311º n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea a), acrescendo ainda o facto de não ter considerado que nos autos existe um despacho que ordenou a apensação de processos, despacho esse que não é inexistente, e que determina para futuro que a acusação tinha de ser única.
18.No entanto, não foi assim que aconteceu, o que torna a acusação de fls. 277 e seguintes para todos os efeitos nula, nulidade essa que é insanável e de conhecimento oficioso.
19.Ora, face ao que fica dito, ao Tribunal “a quo” competia rejeitar a acusação pública deduzida a fls. 277 e seguintes contra todos os arguidos, com as legais consequências.
20.Uma vez que assim não fez, incorreu em violação do disposto nos artigos 311º n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea a), 283º n.º 3, alínea a) e n.º 4 e 119º, alínea d), todos do Código de Processo Penal, bem como, em violação do princípio da segurança jurídica.
21.De outra banda, o tribunal a quo recebeu liminarmente o pedido de indemnização civil de fls. 612 e seguintes, na parte em que se encontra formulado contra os arguidos D. S., J. S. e “XX – Comércio, S. A. – Em Liquidação, rejeitando-o por sua vez quanto à demandada “X – Industria de Perfis, S. A. – Em Liquidação”.
22.Sucede porém, que aquele pedido de indemnização civil é contemporâneo da segunda acusação deduzida e entretanto declarada inexistente.
23.Está por isso, também o pedido de indemnização civil ferido do vício de inexistência e, ainda que assim não fosse, o mesmo é extemporâneo. Vejamos pois,
24.Compulsados os autos, verifica-se que o pedido de indemnização civil foi apresentado pelo Demandante Instituto da Segurança Social, I. P., na sequência de ter sido notificado da acusação de fls. 578 e seguintes dos autos [segunda acusação proferida já declarada inexistente].
25.Não se ignora que vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio do aproveitamento dos actos praticados, porém, com o merecido respeito, considera-se ser de mediana evidência que tendo o pedido de indemnização civil sido uma consequência da segunda acusação proferida, tanto mais que apenas nessa sequência foi apresentado, estando a segunda acusação ferida do vício mais grave do nosso ordenamento jurídico que é o da inexistência, esse vício estende-se ao pedido de indemnização civil apresentado.
26.Por outro lado, compulsados os autos verifica-se que a primeira acusação foi expedida para o Instituto da Segurança Social, I. P. em 01 de Fevereiro de 2017, tendo a notificação sido recebida no dia 02 de Fevereiro de 2017.
27.O prazo de que dispunha para deduzir pedido de indemnização civil era de 20 dias.
28.Porém, o pedido de indemnização civil deu entrada em 28 de Março de 2017.
29.De onde resulta à saciedade que o pedido de indemnização civil ainda que não estivesse ferido pelo vício da inexistência, o que não se concede, era extemporâneo.
30.De modo que, o pedido de indemnização civil não podia ser recebido liminarmente, antes deveria não ter sido recebido ou rejeitado pelos fundamentos acabados de expor.
31.Assim não tendo sucedido, o tribunal a quo incorreu em violação do disposto nos artigos 77º e 311º do Código de Processo Penal e em violação do princípio da segurança jurídica.

TERMOS EM QUE:

Deverá ser concedido provimento ao presente recurso, devendo o Douto despacho ser alterado, nos termos sobreditos.
Para além das peças processuais que o Tribunal venha a reputar convenientes para a instrução do presente recurso, desde já se requer seja o mesmo instruído com o despacho que ordenou a apensação de processos, com a acusação de fls. 277 e seguintes, com o despacho de fls. 535 e 536, com a acusação de fls. 578 e seguintes, com a notificação da acusação de fls. 277 e seguintes e da acusação de fls. 578 e seguintes ao Demandante Civil Instituto da Segurança Social, I.P., com o pedido de indemnização apresentado nos autos e com a acta de audiência de julgamento do dia 05.06.2017.

Assim farão V. Exas. a Acostumada Justiça” (fls. 809 a 812).

– 2. A. 2. 1.) O Ministério Público, apresentou resposta a este recurso tendo concluído (transcrição):

- I. O arguido J. S. interpôs recurso do despacho judicial de fls. 772 a 776 na parte em que o Tribunal recebeu a acusação deduzida pelo Ministério Público a fls. 277 e seguintes contra os arguidos D. S., J. S., D. M. e “XX – Comércio, S. A. – Em Liquidação”, todos melhor identificados a fls. 278/279 e após ter determinado a rectificação da mesma ao abrigo do disposto nos artigos 380, n.º 1, alínea b) e n.º 2 e 97.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal no que concerne à sociedade arguida.
II. O Ministério Público igualmente interpôs recurso do douto despacho judicial de fls. 772 a 776 datado de 2 de outubro de 2017.
III. Com efeito, com os fundamentos alinhados no recurso de fls. 796 a 803 e que nesta sede se reafirmam, consideramos que a decisão que, em nosso entender, se impunha no despacho judicial de fls. 772 a 776 era a de considerar que os despachos proferidos pelo Ministério Público a fls. 535/536 e 578 e seguintes dos autos não são juridicamente inexistentes mas antes válidos recebendo consequentemente a acusação proferida pelo Ministério Público a fls. 587 a 601 para julgamento contra os arguidos ali identificados.
IV. A decisão judicial quanto à retificação na identificação da sociedade arguida na acusação de fls. 277 e seguintes foi realizada tendo em consideração, entre o mais, a posição do Ministério Público que oportunamente detetou esse lapso e afirmou a necessidade de correcção da identificação da sociedade arguida nessa acusação (cfr. despacho do Ministério Público de fls. 535, 536 e o requerimento do Ministério Público de fls. 756 a 760 (concretamente no penúltimo parágrafo de fls. 760).
V. No que concerne à segunda questão apresentada pelo recorrente (saber se o Tribunal quando recebeu a acusação recebeu uma acusação nula ao abrigo do artigo 283.º, n.º 4 do CPP) sempre se dirá que, o Tribunal, por via do despacho de fls. 772 a 776, limitou-se a conhecer a questão suscitada pelo arguido J. S. na audiência de julgamento – cfr- fls. 747 e 748 – cfr. transcrição integral do requerimento apresentado pelo arguido a fls. 762 a 765- (saber se era ou não de atribuir efeito jurídico à acusação de fls. 578 a 586 elaborada pelo Ministério Público na sequência do despacho de fls. 535 e 536). Ora, o Tribunal limitou-se a conhecer essa questão que tinha sido suscitada pelo arguido por via do requerimento de fls. 762 a 765. Tendo decidido de forma negativa, o Tribunal recebeu a acusação primeiramente deduzida.
VI. Não obstante o recurso ora apresentado pelo arguido J. S., o Ministério Público mantém o recurso de fls. 796 a 803 nos seus precisos termos.

Face ao exposto, pugnamos pela revogação do douto despacho judicial de fls. 772 a 776 e a sua substituição por outro que indefira o requerido pelos arguidos J. S., D. M. e D. S. no dia 5 de junho de 2017 considerando-se que os despachos proferidos pelo Ministério Público a fls. 535/536 e 578 e seguintes dos autos não são juridicamente inexistentes mas antes válidos determinando-se, consequentemente, a realização do julgamento tendo por referência a acusação do Ministério Público de fls. 587 a 601 a qual é válida para os devidos efeitos legais.

Vªs Exªs, porém, farão a costumada JUSTIÇA.” (fls. 898v. e 899).

A demandante, ISS,IP/Centro Distrital de Braga respondeu aos recursos interpostos, formulando as seguintes conclusões:

1. Com o devido respeito, entende-se que a decisão que se impunha nos presentes autos era a de considerar que os despachos proferidos pelo Ministério Público a fis. 535/536 e 578 e seguintes dos autos não são juridicamente inexistentes, mas antes válidos havendo pois que admitir entre o mais a acusação proferida pelo Ministério Público, a fls. 587 a 601 e os autos prosseguirem com a realização do julgamento.
2. O ISSJP, enquanto lesado manifestou nos autos o propósito de ponderar, em devido tempo, a sua constituição de assistente nos autos e eventual dedução de Pedido de Indemnização Civil (PIC).
3. O ISS,lP foi notificado da primeira acusação deduzida (fls. 277 e ss dos autos), nos termos do artº 50º nº 2 do RGIT.
4. Ora, ainda no decurso do prazo para dedução do PIC foi recebida nova notificação judicial, dando conta da declaração de nulidade da acusação proferida, motivo pelo qual não se deduziu, nessa fase processual o respetivo PIC.
5. Foi, entretanto, enviada nova, notificação ao Respondente, dando conta da segunda acusação deduzida e que constitui fls. 578 e ss. dos autos.
6. Tempestivamente pelo ISS,lP/Centro Distrital de Braga foi junto aos autos o pedido de indemnização civil contra XX. — Comércio SA., X — INDUSTRIA DE PERFIS, SA., D. S., J. S. D. M..
7. E porque preenchidos os demais requisitos legais, foi (e bem) o PIC admitido liminarmente.
8. Baseado no princípio do aproveitamento dos atos praticados que vigora no nosso ordenamento jurídico, outro não pode ser o desfecho senão o de manter válido e eficaz o PIC junto aos autos.
9. Caso assim não se entenda, o que não se concede, outra solução não restaria que não fosse a remessa de nova notificação ao ora Respondente, possibilitando-o de juntar aos autos novo PIC atento o despacho judicial de 02/1 0/2017 de recebimento da acusação deduzida a fls. 277 e seguintes.
10. De facto, não pode ao ISS,lP/Centro Distrital de Braga, lesado nos autos, ser retirada a possibilidade de exercer um direito, na sequência das vicissitudes processuais que se vieram a verificar nos presentes autos.
11. Quanto à restante motivação e conclusões expostas pelo Recorrente, entende o Respondente não lhe assistir qualquer razão, pelo que pugna pela sua improcedência TERMOS EM QUE,

A - Considerando a motivação, fundamentação de facto e de direito e conclusões do Recurso, interposto pelo Ministério Público, pugna-se pela revogação do douto despacho judicial de fls. 772 a 776 e a substituição por outro que indefira o requerido pelos arguidos J. S., D. M. e D. S. no dia 05/06/2017, considerando-se que os despachos proferidos pelo Ministério Público a fls. 535/536 e 578 e:seguintes dos autos não são juridicamente inexistentes mas antes válidos determinando-se, consequentemente, a realização do julgamento tendo por referência a acusação do Ministério Público de fls. 587 a 601 a qual é válida para os devidos efeitos legais;
B - Caso assim não se entenda, sempre se deverá considerar válido e eficaz o PIC deduzido pelo JSS,IP/Centro Distrital de Braga a fls. 612 e seguintes, atento o princípio do aproveitamento dos atos praticados que vigora no nosso ordenamento jurídico;
C - A assim não ser, dever-se-á ordenar a remessa de nova notificação ao ora Respondente, possibilitando-o de juntar aos autos novo PIC atento o despacho judicial de 02/10/2017 de recebimento da acusação deduzida a fis. 277 e seguintes.
V. Exas, no entanto, farão a habitual J U S T I Ç A!” (fls. 848v. e 849).

- 2. B.) Da SENTENÇA

- 2. B. 1.) O Ministério Público, apresentou as seguintes conclusões (transcrição):

I. A douta sentença de fls. 887 a 895 foi proferida na sequência do julgamento ordenado após ter sido proferido o douto despacho datado de 2 de outubro de 2017 de fls. 772 a 776 por via do qual o douto Tribunal decidiu:

a) Declarar juridicamente inexistentes os despachos proferidos pelo Ministério Público a fls. 535/536 e 578 e seguintes dos autos;
b) Rejeitar a acusação pública deduzida a fls. 277 e seguintes, ao abrigo do artigo 311º, nº 2, alínea a) e n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal, por ser manifestamente infundada, no que respeita à sociedade arguida “X – Industria de Perfis, S. A. – Em Liquidação”;
c) Receber a acusação deduzida pelo Ministério Público a fls. 277 e seguintes contra os arguidos D. S., J. S., D. M. e “XX – Comércio, S. A. – Em Liquidação”, todos melhor identificados a fls. 278/279, pelos factos e disposições legais constantes da referida acusação e que aqui se dão por integralmente reproduzidos e designando datas para julgamento.
II. O Ministério Público por não se conformar com o douto despacho judicial de fls. 772 a 776 interpôs recurso do mesmo a fls. 796 a 803/813 a 827. A decisão que, em nosso entender, se impunha era a de considerar que os despachos proferidos pelo Ministério Público a fls. 535/536 e 578 e seguintes dos autos não são juridicamente inexistentes mas antes válidos havendo pois que admitir entre o mais a acusação proferida pelo Ministério Público a fls. 587 a 601 e os autos prosseguirem com a realização do julgamento.
III. O Ministério Público mantém o interesse na apreciação do mencionado recurso o qual foi admitido por via do douto despacho judicial fls. 830.
IV. Por se manter o entendimento constante das alegações do recurso de fls. 796 a 803/813 a 827 e que aqui se dão para os devidos efeitos legais por integralmente reproduzidas vem agora interpor recurso também da douta sentença proferida a fls. 887 a 895 porquanto, em nosso entender, o julgamento deveria ter incidido sobre a acusação proferida pelo Ministério Público a fls. 587 a 601 e não sobre a acusação de fls. 277 e seguintes.
Por esse motivo e com os fundamentos que mantemos no recurso de fls. 796 a 803/813 a 827 consideramos que deverá ser ordenada a realização do julgamento quanto a todo o objeto processual constante de fls. 587 a 601.
Vªs Exªs, porém, farão a costumada JUSTIÇA.” (fls.916).

- 2. B. 2.) Os arguidos, J. S. e D. S., interpuseram recurso da dita SENTENÇA, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. Nos presentes autos, foi proferida sentença que condenou os aqui recorrentes J. S. e D. S. pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido no art.º 107, do Regime Geral das Infracções Tributárias, e com referência ao art.º 105, n.º 5, do mesmo diploma e art.º 30, do Código Penal, tendo ainda os mesmos sido condenados a pagar solidariamente ao Instituto da Segurança Social, I. P. a quantia de €33.885,83, acrescida de juros de mora.
2. Porém, os recorrentes não podem conformar-se com a douta sentença.
3. De facto, conforme se demonstrará, não se encontram preenchidos todos os elementos objectivos do tipo legal de crime em que os recorrentes foram condenados, o mesmo sucedendo com o elemento subjectivo.
4. Para a avaliação da verificação daqueles elementos são relevantes os seguintes factos considerados na douta sentença, citamos:

Não provado o seguinte facto: «Que os arguidos tivessem utilizado em proveito próprio as contribuições devidas e não entregues à Segurança Social descritas nos factos provados.»

Provados os seguintes factos:

«No período a que se reportam os factos supra descritos, a sociedade arguida encontrava-se numa situação económica deficitária.
Face às enunciadas dificuldades, os montantes provenientes de prestações retidas ao Estado mencionados nos factos provados, foram utilizados para o pagamento de salários, para promover a auto-preservação da empresa e garantir as condições de emprego aos seus trabalhadores.»
5. A conduta típica prevista nos artigos 107º e 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias, reconduz-se para além da não entrega à administração tributária, no prazo legalmente previsto, de prestação tributária deduzida, também à apropriação das prestações tributárias.
6. Não se diga que o termo “apropriação” foi eliminado do texto da lei em abono da tese de que a “apropriação” já não é necessária para se dar como consumado o tipo legal aqui em crise.
7. Conquanto, apesar de o termo “apropriação” ter sido eliminado da letra, não deixa de estar nele [no espírito] implícito, assim continuando a constituir pressuposto objectivo do tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal.
8. Da decisão da matéria de facto, resulta de forma expressa que os ora recorrentes não se apropriaram das prestações que teriam de ser entregues à Segurança Social.
9. Nessa conformidade, não restava outra solução ao Tribunal “a quo” que não a de julgar improcedente a acusação e em consequência, decidir pela absolvição dos arguidos, ora recorrentes. 10. De outra banda, o crime de abuso de confiança à Segurança Social constitui um crime doloso, sendo pois necessário que o agente represente a violação da relação de confiança que consiste no dever de entregar a prestação tributária deduzida e, não a queira entregar.
11. Ora, no caso dos autos, sabe-se que não foi isso que sucedeu [de contrário face aos factos dados como provados e ao facto não provado, supra transcritos].
12. Necessário seria pois, que se verificasse motivo [que se provassem factos] de onde pudesse derivar um juízo de reprovação e de culpa sobre o concreto comportamento adoptado pelos arguidos, o que com o merecido respeito, se entende não ter sucedido.
13.Os arguidos, ora recorrentes, não criaram voluntariamente uma situação de não entrega das prestações tributárias, mas antes se viram confrontados com uma situação económica deficitária da sociedade comercial da qual eram administradores.
14.Perante tais dificuldades, viram-se obrigados a afectar os recursos de que a sociedade comercial dispunha no sentido da manutenção e na perspectiva de lograr alcançar a sobrevivência da empresa e dos postos de trabalho.
15. Na verdade, e seguindo sempre de perto os factos considerados como provados e o facto não provado reflectidos na douta sentença, confrontaram-se os arguidos com uma verdadeira necessidade de assim proceder.
16. Determina o nº 1 do artigo 36º do Código Penal que, “Não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos … satisfazer o dever … de valor igual ou superior ao dever … que sacrificar”.
17. Taipa de Carvalho ensina-nos que: “… não pode, sem mais, negar-se a existência de um verdadeiro conflito de deveres, e eventual exclusão da ilicitude penal, na hipótese em que o patrão, na impossibilidade de pagar os salários e os impostos, cumpre o dever jurídico-laboral em detrimento do dever jurídico-penal fiscal”, Américo Taipa de Carvalho, Direito Penal, parte Geral, Volume II, Publicações Universidade Católica, 2004, pag. 222.
18. No caso dos autos, temos um verdadeiro conflito de deveres, conflito esse que é gerador da exclusão da ilicitude penal.
19. De onde, também por esta via, os arguidos deveriam ter sido absolvidos.
20. De tudo, resulta que a douta sentença proferida pelo Tribunal “a quo” incorreu em violação das normas legais ínsitas nos artigos 107º e 105º do RGIT, bem como, nos artigos 34º e 36º do Código Penal.
21.Face a tudo quanto acaba de se referenciar, os elementos objectivos e subjectivos tipificados não se encontram preenchidos, pelo que deverá ser revogada a Douta sentença, e por conseguinte, os arguidos absolvidos, devendo também em consequência disso, o pedido de indemnização civil ser julgado improcedente.

TERMOS EM QUE:

Deverá ser concedido provimento ao presente recurso e deverá a Douta Sentença deve ser alterada, nos termos sobreditos.
Assim se fazendo a Acostumada Justiça.” (fls. 910v. a 912).

. – 2. B. 2. 1.) O Ministério Público, apresentou resposta a este recurso tendo concluído (transcrição):

“- I. Nos termos e para os devidos efeitos legais consigna-se que o Ministério Público mantém os recursos interpostos a fls. 796 a 803/814 a 827 e 915 a 916 bem como o teor da resposta de fls. 897 a 899/900 a 903.
II. Sobre as questões de direito suscitadas no recurso de fls. 908 a 912 entendemos que não assiste razão aos recorrentes.
III. No crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo art. 107.º do RGIT, a apropriação não é elemento objetivo do tipo, sendo, por conseguinte, tipicamente irrelevante que não conste da factualidade provada tal apropriação, sem prejuízo de o destino destas quantias, se vier a apurar-se em concreto, poder relevar na definição da responsabilidade penal do agente, nomeadamente para efeitos de escolha e medida da pena.
IV. A obrigação de pagamento dos salários aos trabalhadores da empresa é hierarquicamente inferior ao dever legal de entregar á Segurança Social a contribuição descontada no salário dos mesmos trabalhadores, a qual visa satisfazer bens coletivos essenciais á existência e funcionamento do Estado Social de Direito (artºs 1º e 63º CRP).
V. O pagamento dos salários não constitui causa de exclusão da culpa nem da ilicitude quanto ao crime de abuso de confiança à Segurança Social.
Este o entendimento que perfilhamos.
Vª s Exªs, porém, farão a costumada justiça.” (fls. 923).

- 3. - Neste tribunal da Relação de Guimarães, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta tomou conhecimento do processo, apondo o seu visto, conforme estatui o disposto no artº 416º, nº 1 e nº 2, do Código de Processo Penal (fls. 936).

- 4. Efectuado o exame preliminar, foi designada data para a audiência e completados os vistos (cfr. fls. 937 a 939).

- 5. Houve lugar à audiência, nos termos do disposto no artº 423º do Código de Processo Penal.

II – FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o artº 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso. (1)

Posto isto, comecemos pelo recurso interposto pelo Ministério Público do DESPACHO proferido a 2.10.2017, de fls. 772 a 776.

Vejamos.

O DESPACHO recorrido tem o seguinte teor (transcrição):

J. S., arguido nos autos, veio, em sede de audiência de julgamento, sustentar que a segunda acusação formulada nos autos, datada de 27 de Fevereiro, é juridicamente inexistente, não lhe podendo ser atribuído qualquer efeito jurídico, nem dela podem advir quaisquer consequências e modificações do direito e dos factos, não produzindo também nenhum o despacho judicial que a recebeu.

Mais acrescenta que a primeira acusação deduzida é manifestamente infundada, nos termos do disposto nos artigos 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal, vício que importa conhecer oficiosamente.
*
Os arguidos D. M. e D. S. aderiram ao requerimento formulado pelo arguido J. S..
*
Respondeu o Ministério Público pugnando pela validade da acusação proferida pelo Ministério Público a fls. 578 e seguintes, com o consequente prosseguimento dos autos e realização do julgamento.

Para o caso do Tribunal vir a conhecer a segunda questão invocada pelos arguidos alega que a primeira acusação deduzida nos autos padece de lapso susceptível de correcção, requerendo que se tome em consideração, a esse propósito, aquilo que já se encontra consignado no despacho de fls. 535/536.
*
Apreciando e decidindo

A questão central colocada pelos arguidos consiste em saber se, como aconteceu nos presentes autos, é legalmente admissível que o Ministério Público, por sua própria iniciativa, possa declarar nula uma acusação inicialmente proferida e já notificada aos sujeitos processuais, substituindo-a por outra que acrescenta mais um arguido e amplia o objecto do processo.
Depois, caso se conclua no sentido da inadmissibilidade de tal conduta processual, haverá que estabelecer as respectivas consequências.

Vejamos, pois.

Dissertando sobre esta questão em sentido mais amplo, Paulo Dá Mesquita, Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, Coimbra Editora, 2003, página 207, explica que da articulação do modelo jurídico-constitucional do Ministério Público com a estrutura do processo penal, em particular dos princípios do acusatório e do contraditório, resulta uma tendencial irretractabilidade dos actos decisórios do inquérito, sendo essa auto-vinculação imediata quando em causa está um despacho de acusação.

E como acrescenta mais à frente aquele autor (obra citada, fls 290/291), este princípio da irretractibilidade da acção penal tem como corolário lógico, no que respeita ao despacho de acusação, a vinculação externa do Ministério Público, com a consequente proibição de intervenção intra-orgânica revogatória, poder de intervenção que, no acto processual de encerramento do inquérito, se cinge apenas a determinadas decisões de arquivamento.

Ou seja, uma vez proferido o despacho acusatório, e à semelhança daquilo que sucede com qualquer despacho judicial que decida sobre o mérito da causa, fica esgotado o poder do magistrado titular do inquérito sobre o respectivo objecto (ou qualquer possibilidade de intervenção hierárquica revogatória), apenas se excluindo deste regime a possibilidade de correcção de erros materiais ou outros lapsos cuja eliminação não importe uma modificação essencial, aplicando assim, nesta parte, o regime previsto no artigo 380, n.º 1, alínea b) e n.º 2 e 97.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal.

E estando vedada à Sr.ª Magistrada do Ministério Público titular do inquérito a possibilidade de alterar o despacho de acusação que havia inicialmente proferido, por maioria de razão, também nunca lhe seria permitido declarar nulo tal despacho, como, efectivamente, veio acontecer.

Nessa medida, à semelhança daquilo que se fez consignar no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 24.04.2017, Processo n.º 180/07.4JABRG.G1, relatado pela Sr.ª Desembargadora Fátima Furtado, publicado na internet, em www.dgsi.pt (aresto citado pelo arguido J. S. no requerimento em apreciação), a nova acusação proferida em 27.02.2017, constante de fls. 578 e seguintes dos autos, é um acto juridicamente inexistente, não lhe podendo ser atribuído qualquer efeito jurídico (vício que, como é óbvio, também se estende ao despacho proferido a fls. 535/536, que declarou nula a primeira acusação).

E porque tal despacho acusatório é absolutamente desprovido de qualquer valor ou relevância jurídica, nenhum efeito produziu o despacho judicial proferido a fls. 638 a 640, que recebeu essa acusação.

Resta a acusação pública deduzida pelo Ministério Público a fls. 277 e seguintes, que mantém a sua plena validade, havendo assim, relativamente a ela, que proferir o despacho de saneamento do processo, previsto no artigo 311.º, do Código de Processo Penal.

Nesta parte, argumenta o arguido J. S. que essa acusação não obedece ao disposto no artigo 283.º, do Código de Processo Penal, conforme admitiu o Ministério Público no despacho que declarou a sua nulidade.
Entende que essa acusação deverá considerar-se manifestamente infundada, nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal, que essa acusação.

Nos termos daquilo que conjugadamente se dispõe no artigo 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal, a acusação que não contenha a identificação do arguido considera-se manifestamente infundada e deve ser rejeitada pelo tribunal.
A questão coloca-se, em concreto, apenas no que respeita às sociedades arguidas “XX – Comércio, S. A. – Em Liquidação” e “X – Industria de Perfis, S. A. – Em Liquidação”, sendo certo que quanto aos demais arguidos pessoas singulares nenhum problema se suscita relativamente às suas identificações.
E o problema reside, conforme já assinalava no despacho de fls. 535/536, num lapso relativo à denominação social da arguida “XX”, que se confundiu com a “X”, sendo certo que esse lapso nem sequer se estendeu à sede social ou NIPC daquela sociedade, que se encontram correctamente indicados.

Trata-se, pois, conforme também se salientava no aludido despacho e agora o Ministério Público reitera a fls. 760, de um mero lapso de escrita, passível de correcção nos termos do já citado regime dos artigo 380, n.º 1, alínea b) e n.º 2 e 97.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal, correcção essa que, realizando-se de imediato, tem como consequência, efectivamente, que a acusação é manifestamente infundada no que respeita à sociedade “X – Industria de Perfis, S. A. – Em Liquidação”, a qual, como já se viu, só aí constava por mero lapso de escrita, sendo certo que, com a correcção de tal erro, a acusação pública passou a ser totalmente omissa no que respeita a esta sociedade.

Já no que concerne à sociedade arguida “XX – Comércio, S. A. – Em Liquidação”, com a rectificação do lapso ora determinada, que deverá concretizar-se assinalando a alteração no local próprio, nenhum problema se coloca quanto à sua identificação, improcedendo assim o invocado vício.
Nessa medida, depois de tudo visto e sem necessidade de mais considerações, decide-se:

i) Declarar juridicamente inexistentes os despachos proferidos pelo Ministério Público a fls. 535/536 e 578 e seguintes dos autos;
ii) Rejeitar a acusação pública deduzida a fls. 277 e seguintes, ao abrigo do artigo 311º, nº 2, alínea a) e n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal, por ser manifestamente infundada, no que respeita à sociedade arguida “X – Industria de Perfis, S. A. – Em Liquidação”;
iii) Receber a acusação deduzida pelo Ministério Público a fls. 277 e seguintes contra os arguidos D. S., J. S., D. M. e “XX – Comércio, S. A. – Em Liquidação”, todos melhor identificados a fls. 278/279, pelos factos e disposições legais constantes da referida acusação e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
*
Para julgamento neste Tribunal designo o dia 29.11.2017, pelas 9.30 horas, e o dia 06.12.2017, pelas 09:30 horas, como segunda data, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 312.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
*
Os arguidos aguardarão os ulteriores termos do processo sujeitos a Termo de Identidade e Residência, já prestados nos autos, atenta a inexistência de exigências cautelares que justifiquem a aplicação de outra medida de coacção.
*
Admito liminarmente o pedido de indemnização civil de fls. 612 e seguintes, bem como a prova que o acompanha, mas apenas quanto aos arguidos D. S., J. S. e “XX – Comércio, S. A. – Em Liquidação, rejeitando-o relativamente à demandada “X – Industria de Perfis, S. A. – Em Liquidação”, atento o princípio da adesão plasmado no artigo 71.º, do Código de Processo Penal, e tendo em conta que, no que respeita a esta sociedade, a acusação foi rejeitada por ser manifestamente infundada.
*
Cumpra o disposto no artigo 78.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
*
Notifique, sendo ainda os arguidos para, querendo, apresentarem nova contestação, tendo como referência a delimitação do objecto do processo operada pela acusação ora recebida.” (fls. 772 a 776).

- A) 1. APRECIAÇÃO DO RECURSO

O despacho acima transcrito, despacho recorrido, foi proferido na sequência de um requerimento apresentado pelo arguido, J. S., em sede de audiência de discussão e julgamento, de 5 de junho de 2017, com o seguinte teor:

“J. S., Arguido nos autos aqui em referência, vem expor nos termos do disposto no artº 338º do CPP o seguinte:

Em 31.01.2017, na sequência de despacho com encerramento do inquérito, o Ministério Público deduziu acusação contra o ora arguido, imputando-lhe a prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punível pelos artigos 107º, n.º 1, por referência ao artigo 105º n.ºs, 1 e 4 do RGIT – Regime Geral das Infracções Tributárias – cfr. fls. 277 a 282 do 1º volume dos autos.
O arguido foi notificado da acusação em 01 de Fevereiro de 2017, tendo sido advertido de que dispunha do prazo de 20 dias para, querendo, requerer a abertura da instrução.
Em 06 de Fevereiro de 2017, o Ministério Público proferiu um despacho e declarou nula aquela acusação proferida a fls. 277 a 282 dos autos.
Despacho que foi notificado ao arguido e à sua defensora.
Entretanto, em 27.02.2017, foi proferida acusação contra o ora arguido, imputando-o desta feita de dois crimes de abuso de confiança contra a Segurança Social, previstos e puníveis pelos artigos 107º, n.º 1, por referência ao artigo 105º n.ºs, 1 e 4 do RGIT – Regime Geral das Infracções Tributárias – cfr. fls. 578 a 586 do 2º volume dos autos.
Acusação esta que foi também notificada ao ora Arguido e à sua defensora.
A acusação veio a ser recebida e designada data para a realização da audiência de julgamento.
O ora arguido apresentou contestação e arrolou testemunhas.
Aqui chegados, há uma questão prévia a analisar, conquanto, a acusação proferida de fls. 578 a 586 do 2º volume dos autos é inexistente.

Com efeito, do artigo 262º n.º 1 do Código de Processo Penal decorre que “o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação”.

A fase do inquérito encerra-se, nomeadamente, com a prolação da acusação, conforme resulta do artigo 276º n.º 1 do C.P.P., e, com esse encerramento, cessa e esgota-se a direcção do Ministério Público nesta fase processual [artigo 263º n.º 1 do C.P.P.].
Naturalmente que, durante o inquérito, o Ministério Público tem competência para declarar um acto processual inexistente, nulo ou irregular ou uma prova proibida, ressalvada a competência própria do juiz de instrução.
Porém, a competência do Ministério Público para declarar um acto processual inexistente, nulo ou irregular conhece limites que decorrem dos princípios da legalidade e acusatório, designadamente, um limite temporal, ou seja, o encerramento do inquérito.
Está pois, vedado ao Ministério Público declarar a nulidade de uma acusação proferida nos autos, depois do encerramento do inquérito.
“Um dos princípios que enforma o direito processual penal e civil é o da preclusão e pode definir-se como «a perda, a extinção ou a consumação de uma faculdade processual».
Constitui um princípio com um campo de aplicação muito amplo quer em processo civil quer em processo penal e aplica-se aos actos das partes e aos dos Magistrados.
Quer isto dizer que, uma vez proferida a acusação, fica precludida a possibilidade de o Ministério Público renovar a prática desse acto.
«A decisão final do inquérito de acusação obedece, por força do seu carácter irretractável, a um regime de impugnação especial fixado na lei processual (artigo 287.º do CPP).» - vide Paulo Pinto de Albuquerque, em Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, página 147, nota 6.
O princípio da preclusão manifesta-se em várias vertentes, sendo uma delas habitualmente designada por consumativa, que é precisamente a perda da oportunidade de se praticar o ato processual, por o ato já ter sido praticado, já estar consumado.
Encontramos uma das materializações desta vertente do princípio da preclusão no artigo 613.º do Código de Processo Civil, ao estabelecer que uma vez proferida a sentença fica esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. Princípio que se estende aos despachos, nos termos do n.º3 do mesmo normativo.

No Código de Processo Penal não há disposição semelhante, embora a sua aplicação se harmonize perfeitamente com as normas deste diploma, designadamente com a previsão, no seu artigo 380.º, e a título excecional, dos estritos casos em que os lapsos da sentença e dos demais atos decisórios do juiz e do Ministério Público Cfr. n.º 3 do artigo 380.º e respetiva remissão para o artigo 97.º, ambos do Código de Processo Penal, podem ser objeto de correção.

Sendo por conseguinte aquele artigo 613.º do Código de Processo Civil aplicável também ao processo penal, por força da remissão feita no artigo 4.º do Código de Processo Penal.

Face a tudo quanto acaba de se expor, a acusação representa um acto decisório que não pode ser repetido, por com a sua prolação se ter esgotado o poder do magistrado titular do inquérito sobre o respetivo objeto, independentemente de a acusação conter ou não deficiências que possam comprometer o seu êxito.

Pois a consequência do esgotamento do poder de finalizar o inquérito, com a dedução da acusação, é precisamente a de que o magistrado não possa mais, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu, ainda que logo a seguir se arrependa, designadamente por vir a constatar que nela errou.

Outra solução não consentem as regras processuais já supra identificadas, que dessa forma também dão corpo a princípios fundamentais de um processo penal próprio de um Estado de Direito Democrático, como sejam os princípios do processo justo e da lealdade processual.

Princípios que se refletem na proteção da confiança recíproca na atuação processual, que deve pautar a conduta de todos os intervenientes processuais, no princípio de igualdade de armas e até no princípio da vinculação temática da acusação, como forma de assegurar a plenitude da defesa, garantindo ao arguido que apenas tem que defender-se dos factos acusados e não de outros.

Assim sendo, a acusação datada de 27 de Fevereiro de 2017 é juridicamente inexistente, e não lhe pode ser atribuído qualquer valor jurídico, nem dela podem advir consequências e modificações no mundo do direito e dos factos, nenhum efeito tendo pois o seu recebimento, por despacho judicial, com as legais consequências.

Neste sentido, os Acórdãos do TRL, relativo ao processo n.º 88/10.6JAPDL.L1-3, de 11.05.2016 e do TRG, relativo ao processo n.º 180/07.4JABRG.G1, de 24.04.2017, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
Isto posto, temos a primeira das acusações deduzida, que porém, não obedece ao disposto no artigo 283º do C.P.P., conforme o Ministério Público admitiu no seu despacho em que a declara nula.
De modo que, também quanto a esta resta conhecer oficiosamente, nos termos do disposto nos artigos 311º n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea a), do vício da acusação manifestamente infundada.»
Sobre o acabado de expor veio a incidir o despacho acima transcrito e que é alvo de recurso.

Para melhor compreensão, façamos a “cronologia processual”:

- a 31 de janeiro de 2017, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos D. S., J. S., D. M., e X - Indústria de Perfis, S.A. – Em Liquidação. Foi aí imputado aos arguidos a co-autoria material de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelos artºs 107º, nº 1, por referência ao artº 105º, nºs 1 e 4, do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001 de 05 de junho e 30º, nº 2, do Código Penal. E foi imputado a arguida X – Indústria de Perfis, S.A. – Em Liquidação a prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social p. e p. pelo artº 107º, nº 1, por referência aos artºs 105º, nºs 1 e 4, e 7º, nº 1, do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001 de 05 de junho - (fls. 277 a 282);
- a 1 de fevereiro de 2017, foi enviada a todos os arguidos a notificação da acusação, concedendo-lhes o prazo de vinte dias, nos termos do disposto no artº 287º do Código de Processo Penal, para, querendo, requererem a abertura de instrução - (fls. 287 a 296);
- a 1 de fevereiro de 2017 foi enviada notificação ao Instituto da Segurança Social – IP, Núcleo de investigação Criminal de Braga, “de que foi deduzida acusação no inquérito acima referenciado, nos termos do artº 283º do Código de Processo Penal e para no prazo de vinte dias, a contar da presente notificação, deduzir, querendo, o pedido de indemnização civil, nos termos do disposto no artº 77º, nº 2, do mesmo diploma” – (fls. 297).
- a 6 de fevereiro de 2017, o Ministério Público declarou nula a acusação proferida nos autos, argumentando que “em razão da instrução em separado dos processos cuja apensação se determinou, não contemplou a acusação toda a matéria do inquérito, como se impunha que tivesse feito, por força do despacho de apensação de processo, o que redunda inequivocamente na nulidade insanável prevista no artº 119º, al. d), do Código de Processo Penal.” - (fls. 535 e 536).
- efectivamente, a 26 de novembro de 2015, foi determinada “a apensação nestes autos do inquérito nº 516/15.4T9BRG, nos termos do disposto no artº 29º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal.” (fls. 16);
- a 7 de fevereiro de 2017 foi enviada a todos os arguidos a notificação do despacho proferido no dia anterior – (fls. 537 a 543);
- a 9 de fevereiro de 2017, o Ministério Público deduziu nova acusação contra os arguidos D. S., J. S., D. M., XX – Comércio S.A. – Em Liquidação e X - Indústria de Perfis, S.A. Foi aí imputado aos arguidos a co-autoria material de dois crimes de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelos artºs 107º, nº 1, por referência ao artº 105º, nºs 1 e 4, do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001 de 05 de junho. E foi imputado a cada uma das arguidas, XX – Comércio, S.A. – Em Liquidação e X – Indústria de Perfis, S.A., a prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social p. e p. pelo artº 107º, nº 1, por referência aos artºs 105º, nºs 1 e 4, e 7º, nº 1, do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001 de 05 de junho - (fls. 578 a 584/585);
- a 6 de março de 2017, foi enviada a todos os arguidos a notificação desta nova acusação, concedendo-lhes o prazo de vinte dias, nos termos do disposto no artº 287º do Código de Processo Penal, para, querendo, requererem a abertura de instrução - (fls. 588 a 600);
- a 6 de março de 2017 foi enviada notificação ao Instituto da Segurança Social – IP, Núcleo de investigação Criminal de Braga, “de que foi deduzida acusação no inquérito acima referenciado, nos termos do artº 283º do Código de Processo Penal e para no prazo de vinte dias, a contar da presente notificação, deduzir, querendo, o pedido de indemnização civil, nos termos do disposto no artº 77º, nº 2, do mesmo diploma” – (fls. 601).
- a 27 de março de 2017, o Instituto da Segurança Social, I.P. – Centro Distrital de Braga deduziu, ao abrigo do artº 77º, nº 2 do Código de Processo Penal, pedido de indemnização civil contra: XX – Comércio SA, X – Indústrias de Perfis, SA, D. S., J. S. e D. M. – (fls. 612 a 614);
- a 6 de abril de 2017 foi determinada a remessa “à distribuição como Processo Comum Singular, pela Instância Local Criminal de Barcelos” – (fls. 629);
- a 19 de abril de 2017 foi proferido despacho de recebimento da “acusação pública, de fls. 580-586, contra D. S., J. S., D. M., XX – Comércio, S.A. – Em Liquidação e X – Indústria de Perfis, S.A.(…)”, designado dia para julgamento e admitido o pedido de indemnização civil apresentado pelo Instituto de Segurança Social, I.P – Centro Distrital de Braga, de fls. 612 e ss – (fls. 638 a 640);
- a 24 de abril de 2017 foi enviada aos arguidos a notificação da data para realização da audiência de discussão e julgamento e, para querendo, contestarem no prazo de vinte dias – (fls. 648 a 656);
- a 15 de maio de 2017 o arguido J. S. apresentou a sua contestação, oferecendo “o merecimento dos autos e o que em sede de audiência de julgamento se apurar” – (fls. 691 e 692);
- a 16 de maio de 2017, o arguido D. M. apresentou contestação, oferecendo “em sua defesa o merecimento dos autos bem como tudo quanto de favorável resultar da discussão da causa em audiência de discussão e julgamento” – (fls. 698 e 699);
- a 18 de maio de 2017, o arguido D. S., contestou, oferecendo “em sua defesa o merecimento dos autos bem como tudo quanto de favorável resultar da discussão da causa em audiência de discussão e julgamento” – (fls. 720);
- a 29 de maio de 2017, foi proferido despacho a admitir as contestações e os róis de testemunhas apresentados – (fls. 732);
- a 5 de junho de 2017 foi iniciada a audiência de discussão e julgamento e, em acta, “feito um requerimento pela Ilustre Defensora Oficiosa do arguido J. S.”, acompanhado depois pelos arguidos D. M. e D. S., que já acima transcrevemos e que levou à prolação do despacho objeto de recurso, datado de 2 de Outubro de 2017.

Nesta sequência de actos processuais, ressalta desde logo que o tribunal a quo, por despacho que proferiu a 19 de Abril de 2017, recebeu “a acusação pública de fls. 580 a 586, contra D. S., J. S., D. M., “XX – Comércio, S.A. – Em Liquidação” e “X – Indústria de Perfis, S.A.”, pelos fundamentos de facto e de direito dela constante, os quais se dão, aqui, por reproduzidos, e que, a provarem-se determinam a eventual prática:

- pelos arguidos D. S. e D. M., de 2 (dois) crimes de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelo artº 107º, nº 1, do RGIT, por referência ao artº 105º, nºs 1 e 4, do mesmo diploma legal;
- pelas arguidas “XX” e “X”, cada uma, de 1 (um) crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelo artº 107º, nº 1, por referência aos artºs 105º, nºs 1 e 4 e 7º, nº 1, ambos do RGIT.
(cfr. artºs 311º, nºs 1 e 2, al. a) e 3, a contrario e 313º, nº 1, al. a), ambos do Código de Processo Penal).”
Designou data para realização da audiência de julgamento – “5 de junho de 2017 pelas 14 horas” ou 8 de junho de 2017, pelas 14 horas e 30 minutos.”
Identificou os Ilustres Defensores dos arguidos.

Determinou que os arguidos aguardassem a ulterior tramitação do processo sujeitos às obrigações decorrentes do Termo de Identidade e Residência, respectivamente já prestado nos autos.
Admitiu o pedido de indemnização civil apresentado pelo Instituto da Segurança Social, I.P. – Centro Distrital de Braga, de fls. 612 e segs.
Determinou o cumprimento do disposto nos artºs 78º e 79º, ambos do Código de Processo Penal e a notificação nos termos dos artºs 313º, nº 2 e 317º, do mesmo diploma, sendo ainda os arguidos para os termos do disposto no artº 315º, nº 1 daquele código.
E, logo no início, após determinar a autuação como processo comum com intervenção de tribunal singular, o Mtmº Juiz a quo consignou que “o Ministério Público tem legitimidade para promover a ação penal (cfr. artº 48º do Código de Processo Penal, e artº 107º, este do Regime Geral de Infrações Tributárias - ). O processo é o próprio. Mostra-se isento de nulidades ou outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa e de que cumpra conhecer.”

Proferido este despacho, apresentadas e admitidas as contestações dos arguidos (que nenhuma questão levantaram), admitida a prova e aberta que foi a audiência para realização do julgamento tendo por base a acusação recebida – de fls. 580 a 586 – cremos não ser possível “represtinar” uma acusação que já foi declarada nula pelo titular da acção penal enquanto teve o dominus do inquérito.

De acordo com o princípio da preclusão, uma vez praticado determinado ato ele adquire foros de definitivo naquele processado (preclusão intraprocessual ou efeito intraprocessual da preclusão).

Assim, recebida que foi uma determinada acusação será ela que fixa o objecto dos autos e com base na qual será realizado a audiência de julgamento. O poder jurisdicional do juiz fica esgotado quanto à matéria em causa (efeito preclusivo do caso julgado).

Proferida a sentença ou proferido um despacho que decida sobre determinada questão, fica precludida a possibilidade do Tribunal voltar a pronunciar-se sobre essa mesma questão, sendo que a decisão proferida só permite a correcção de lapsos a que se refere o artº 380º do Código de Processo Penal.

O disposto no citado artº 380º, nº 1 e nº 2 aplica-se, como determina o nº 3, aos actos decisórias previstos no artº 97º do Código de Processo Penal.
Proferido o despacho a que alude o artº 311º está precludida a possibilidade de o juiz renovar a prática do acto. O acto praticado tornou-se definitivo e parte integrante do processado.

Acresce que, ainda que assim não se entendesse, podendo ser defensável que não se forma caso julgado formal com o recebimento da acusação, sempre se diga que a primeira acusação deduzida nos autos padecia de omissão de pronúncia porque deixava de fora, sem objecto de apreciação, parte da factualidade constante num dos seus apensos, razão pela qual sempre poderia o Ministério Público proceder à declaração da sua nulidade. Realce-se que não se trata de matéria exclusiva da competência do Juiz de Instrução, por se encontrar excluída da matéria da reserva jurisdicional prevista no artº 268º do Código de Processo Penal.

De harmonia com o expendido, e, de qualquer das formas, torna-se inevitável a revogação do despacho exarado de fls. 772 a 776, devendo a audiência de julgamento realizar-se com referência à acusação que foi recebida (aliás, o recebimento até foi precedido do despacho do Ministério Público remetendo os autos para julgamento (fls. 625), depois dos arguidos e seus defensores terem sido notificados da “nova” acusação).
É esta acusação que, inexoravelmente, condicionará os ulteriores termos do processado.
Naturalmente que fica prejudicada a apreciação de todas as demais questões suscitadas por qualquer dos recorrentes.

III - DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interlocutório interposto pelo Ministério Público (ainda que por razões distintas das por si aduzidas) e revogar o despacho recorrido – de fls. 772 a 776 -, determinando que seja proferido novo despacho em consonância com o ora decidido, prosseguindo os autos a subsequente tramitação processual.
Sem custas.
(Texto elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários – artº 94º, nº 2, do Código de Processo Penal).
Guimarães, 22 de Outubro de 2018,

(Clarisse Gonçalves)
(Mário Silva)
(Fernando Monterroso)


1- Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., pág. 335; Sima Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., pág. 103; entre muitos, os Acs. do STJ, de 25.06.1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03.02.1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág. 196.