Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
28723/17.8YIPRT.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
REPRESENTAÇÃO
VINCULAÇÃO DA SOCIEDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – Um acordo para o fornecimento de matéria-prima habitualmente utilizada na indústria da sociedade ré celebrado pelo pai do administrador único desta sociedade, seu trabalhador e encarregado geral, vincula-a perante a vendedora.

2 – Alguém que se apresenta objectivamente como representante da empresa e o faz de forma pública e estável, tendo efectivamente uma ligação funcional à mesma, é um preposto e os actos por ele praticados, em representação da sociedade, reproduzem-se na esfera jurídica desta, sobretudo quando desses actos tirou proveito.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO

1.1. D. L., Srl, intentou contra X, SA, procedimento de injunção, posteriormente transmutado para acção declarativa, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de 19.216,69 € (dezanove mil, duzentos e dezasseis euros, e sessenta e nove cêntimos), referente a fornecimento de mercadoria pela Autora à Ré, acrescida de juros de mora à taxa legal.
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A Ré deduziu oposição, concluindo pela improcedência da acção, alegando, em síntese, que não existiu qualquer fornecimento daquele valor entre as partes e que os fornecimentos realizados se encontram liquidados.
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Foi junto articulado de resposta, onde a Autora alegou que a mercadoria em causa havia sido encomendada em Março de 2016 pela empresa Calçado A, Lda., que partilha as mesmas instalações e funcionários com a Ré e que a pedido de ambas foi emitida uma nota de crédito à Calçado A e emitida nova factura à Ré, que usou a mercadoria.
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Admitida a intervenção da sociedade Calçado A, Unipessoal, Lda., veio esta alegar que comprou produtos à Autora e que cedeu uma quantidade de materiais à Ré, a pedido desta, que correspondia a cerca de 1.750,00 € (mil setecentos e cinquenta euros), tendo sido acordado que esta pagaria directamente à Autora.
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Realizou-se a audiência de julgamento e a Mma. Juiz proferiu sentença a julgar a acção totalmente procedente, por provada, com a consequente condenação da Ré a pagar à Autora a quantia de 19.216,69 € (dezanove mil, duzentos e dezasseis euros, e sessenta e nove cêntimos), acrescida de juros de mora desde a data de vencimento da factura e até integral pagamento, “às taxas legalmente e supletivamente estabelecidas”.
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1.2. Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação da sentença e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«I) São os seguintes os vícios que se apontam à Sentença em crise: a) Erro na resposta à matéria de facto quanto aos Factos Provados 2º, 4º, 5º e 6º; b) Erro de Direito.
II) Relativamente à alegada mercadoria fornecida, veio a Autora/Apelada dizer que foi encomendada pela empresa “Calçado A, Lda.”, em Março de 2016, empresa que partilha instalações com a Apelante e que, admitida a intervir nos autos, declarou ter adquirido aqueles produtos (peles) à Autora, ora Apelada, com a qual tinha já uma relação comercial antiga, e que cedeu somente uma pequena quantidade desses materiais à Apelante, a seu pedido, no valor aproximado de €1.750,00 (mil setecentos e cinquenta euros), que esta pagaria directamente ao fornecedor, ora Apelada.
III) E era esse o valor devido, e já liquidado, pela X, S.A. à D. L., SRL., conforme esta mesma nos articulados confessou ter recebido, demonstrado por peticionar o valor da factura em causa deduzido de tal montante de €1.750,00, ao contrário do que diz a Apelada, que pretendeu obter junto da recorrente X o pagamento da totalidade da encomenda efectuada pela Calçado A.
IV) A condenação da Ré/Recorrente, tese na qual embarcou o Tribunal a quo, assentou no seguinte:

i) Uma refacturação pela Autora (sim, este é o termo utilizado) à ré X de mercadoria fornecida pela Autora à chamada/interveniente Calçado A;
ii) Refacturação unilateralmente feita pela Autora, que o Tribunal todavia considerou consentida pela Ré X com base no depoimento do Agente Comercial da Autora, J. R.;
iii) Agente Comercial que, quando instado pelo mandatário da Ré, admitiu que tinha interesse directo na causa pois não havia ainda recebido a comissão daquela venda e só receberia quando cobrasse o seu valor da X;
iv) A factura da dita refacturação à X ter uma rúbrica de um ex-funcionário da X, L. C., este o qual, não negando a rúbrica, não explicou em que circunstâncias a apôs e que, instado directamente a tal, respondeu que não podia afirmar que havia verificado se a mercadoria dessa refacturação existia no armazém;
v) A dita refactura ter sida junta aos autos pela Aurora duas vezes, uma sem a rúbrica do ex-funcionário da X e, mais tarde, com a dita rúbrica aposta, tendo o Agente Comercial da Autora declarado que foi ele a entregar ao mandatário da Autora a refactura rubricada;
vi) O ex-funcionário da X que rubricou a refactura ter admitido que trabalha actualmente para uma empresa cliente da Autora e do dito Agente Comercial (coincidência das coincidências).
V) Assim, com base numa refactura rubricada e no depoimento do Agente Comercial da Autora (que confictamente representa os interesses dela em Portugal e que tem interesse directo na causa), surge a condenação da Ré/Recorrente, e faça-se Justiça sem prova do fornecimento à X, manifesta que foi a antipatia pela Ré criada no Tribunal.
VI) Passando à impugnação dos factos provados 2.º, 4.º, 5.º e 6.º da sentença a quo e do erro de julgamento, a Primeira Instância baseia as suas convicções nas declarações da testemunha J. R., as quais considerou idóneas e isentas, o que se afigura inaceitável e um erro de julgamento, porquanto esta testemunha é parte interessada na cobrança para receber comissões sobre os valores auferidos pela empresa “D. L., Srl.” da X.
VII) A realidade é que o Sr. J. R. não é funcionário da Apelada, é agente comercial que recebe a comissão de agente por cada transacção concretizada e cobrada; tem, portanto, a seu cargo, também, a cobrança, e cada cobrança não efectuada para a D. L., Srl, significa também o não recebimento da sua comissão de agente, facto que foi confirmado pela própria testemunha no seu depoimento aos minutos 14:20 a 14:55.
VIII) Por conseguinte, não andou bem o Tribunal a quo ao dar como provados os factos alegados pela Apelada apenas com base naquele testemunho, sem nenhuma reserva quanto à (conveniente) veracidade dos factos relatados.
IX) Esta mesma testemunha relata que, chegado o prazo de vencimento das facturas, foi falar com o responsável geral de armazém, Sr. D. M..
X) Ora, a incoerência reina, tanto mais que nenhuma factura indica prazo de vencimento e, perguntado sobre quando se venciam as facturas, ou quando é que falou, então, com o Sr. D. M., responsável geral de armazém da X, não soube responder, nem situar-se no tempo; veja-se a passagem do depoimento desta testemunha J. R., com início aos minutos 15:00 e fim aos 16:00.
XI) Assim, nunca se poderia ter dado como provados os factos 2º, 4º, 5º e 6º com base na conversa descrita pela testemunha, sendo que o douto Tribunal a quo não teve em conta, inclusivamente, as incoerências decorrentes do depoimento deste agente comercial, o senhor J. R., nomeadamente, quando não sabe especificar que parte da mercadoria foi devolvida, o que é de espantar, pois a mercadoria devolvida equivale a uma redução no valor da venda que era expectável, do qual se retiraria o valor da comissão do agente comercial, a título de remuneração.
XII) Assim, esta situação contende directamente com os valores que a testemunha esperava auferir, e deixou de auferir, em virtude da devolução de mercadorias, mas ela não sabe precisar que quantidade de mercadoria se devolveu: vide tempos 22:50 a 23:40 do depoimento da testemunha.
XIII) E as inconsistências continuam: a factura cujo pagamento a Autora/Apelada demandou, que diz ser assinada pelo funcionário de armazém da X, validando assim a dívida, é a mesmíssima factura que aparece inicialmente no processo sem estar assinada, e sempre por junção da Autora.
XIV) Assim, aos minutos 41:35 até aos 47:10 da gravação do seu depoimento, a testemunha J. R. é confrontada com a factura peticionada no processo pela Autora/Apelada, e responde à mandatária da Chamada sobre o que fez à factura peticionada que assinou o funcionário de armazém: diz que a envia para a empresa D. L. sua representada.
XV) A testemunha afirma que supostamente foi recolher a assinatura, enviando depois para a D. L., aqui Apelada, mas a factura peticionada e junta ao processo em 04 de Maio de 2017 não tem qualquer assinatura - vide a passagem do seu depoimento aos minutos 45:00, “só mando as facturas que estão assinadas (…) às vezes, chegam passado um mês (...)” e, ao tempo 46:13, espanta-se a Mma. Juiz: “Mas então não a enviou ainda?!”, porque até ao momento tinha dito que sim.
XVI) Esta situação ficou por explicar, inquinando a credibilidade que tal depoimento já pouco mereceria pela natureza do seu depoente, sendo que se seguiu um momento de cabal delírio, em que a mesma testemunha reverte as afirmações que acabara de fazer, dizendo à Ilustre Mandatária que não tinha percebido que se estava a falar daquela factura em concreto, mas que lhe estava a responder sobre o que faz à generalidade das facturas assinadas, no seu procedimento habitual - vide passagens do seu depoimento aos minutos 46:26 a 47:00.
XVII) É que a factura aparece mais tarde, no processo, já na versão assinada, e a testemunha diz que foi ela própria, J. R., quem a deu ao Advogado da Autora - vide passagens 47:02 a 47:10 do seu depoimento.
XVIII) Ora, inúmeras contradições vêm pejar o depoimento desta testemunha, com base no qual se decide toda uma causa, quando já o seu interesse directo na causa seria suficiente para suspeitar da isenção desse depoimento.
XIX) Desde logo, como não saberia de que factura se falava, se a testemunha foi confrontada com o documento no processo, antes de questionada?! Parece-nos evidente que a testemunha usou do tempo que levou a responder para pensar numa solução como resposta a uma questão para a qual não estava “preparada”.
XX) Ora, esta factura peticionada, teria sido, segundo a tese da Autora, assinada pelo funcionário de armazém da X à data dos factos, o Sr. L. C., este o qual, chamado a testemunhar pela Autora/Recorrida, trabalha agora numa empresa concorrente da aqui Ré/Recorrente, para quem a primeira testemunha, o representante da D. L. em Portugal, o Sr. J. R., vende produtos da D. L..
XXI) No início do seu depoimento, questionado pelo mandatário da Recorrida, a testemunha L. C. descreve o procedimento normal que seguia enquanto funcionário de armazém, mas a questão de saber se esse mesmo procedimento foi cumprido no caso concreto em apreço é a verdadeira questão e não foi por ele confirmado. Não, pelo menos, no sentido de provar o alegado pela Autora/Recorrida.
XXII) Aos 5 minutos da gravação do seu depoimento, perguntado pela Mma. Juiz se tinha assistido a alguma reunião, ou combinado alguma coisa sobre este caso excepcional, a testemunha L. C. responde que não – cfr. transcrição da Alegação 36).
XXIII) A testemunha não se lembra de assinar aquela factura em concreto, não se recorda da situação, sequer, mas, visivelmente instruído, parece-nos, conta a “história desta factura” por palavras que ouviu a outrem; isto porque, na realidade, como repete ao longo do seu depoimento, não se recorda.
XXIV) Pelos 7’55 minutos do seu depoimento, a testemunha descreve novamente o procedimento geral e ao contar a história da factura insiste em reiterar o procedimento que seguia na generalidade dos casos, não se recordando da situação concreta em apreço, quando, em boa verdade, este caso concreto é tudo menos “geral”, por se revestir precisamente de especificidades que nos trazem ao foro.
XXV) A partir dos minutos 12:00 do seu depoimento gravado, é inequívoco, insistindo a Mma. Juiz nas questões específicas que levam a concluir se a testemunha sabe o que está ali a dizer, L. C. responde que não se recorda de nada.
XXVI) É verdade que esta testemunha poderia ter feito a contraprova que a mercadoria cujo pagamento se exige à X não se encontrava no seu stock; mas não se fazer uma contraprova do alegado pela Autora não pode permitir que, no probatório, se prove o seu contrário, i.e., o dito fornecimento à X!
XXVII) Contraprova que a testemunha não fez, por interesses pessoais ou, quando muito, conflito de interesses, porquanto a D. L., srl, representada em Portugal por J. R., testemunha referida supra, mantém relações comerciais com a empresa onde trabalha actualmente a testemunha.
XXVIII) É manifesta a recusa desta testemunha em fazer afirmações peremptórias quanto a esta questão, usando expressões como “suponho que...” (tempos 08:00 a 08:17 da gravação do seu depoimento) para descrever o que se passou quanto à história daquela factura em concreto, e mais: perguntado pelo ilustre Mandatário da Autora/Apelada se confirma que a mercadoria que consta da factura sub judice entrou no armazém da X, responde a testemunha L. C., ao tempo 07:15, não com o depoimento de factos, mas com uma presunção: “Se está aí a minha assinatura é porque entrou.”
XXIX) Acontece que isto mesmo contradiz o alegado pela Autora/Apelada, pois o que vem esta dizer é que a factura corresponde a material cedido pela Calçado A à X, sem que tenha existido deslocação física da mercadoria, uma vez que ambas partilham as suas instalações; ou seja: o funcionário de armazém teria de verificar se a mercadoria constante da factura teria não entrado, mas sim, permanecido no armazém, mas tal não aconteceu – cfr. a gravação do depoimento da testemunha L. C. aos tempos: 08:50 a 09:40. “isso não lhe sei dizer (...) não me recordo (...)”, tendo o mandatário da Ré perguntado à testemunha se, estando sob juramento, podia formar que aquela mercadoria refacturada à X estava nas instalações desta, ao que a testemunha respondeu perentoriamente “Não”.
XXX) Houve inclusive mercadoria devolvida à fornecedora D. L., Srl., e assim ficámos sem ter um depoimento que nos confirme o que se peticiona na acção: se a X deve ou não aquela quantia peticionada por ter recebido aquela mercadoria refacturada!
XXXI) Não se provou que a mercadoria descrita na refactura se encontrava nas instalações da X, aqui Apelante, não tendo tal mercadoria sido verificada pelo funcionário de armazém depoente aquando da aposição da sua assinatura na factura que o Sr. J. R. (testemunha acima) lhe apresentou, pelo que, assim, não se provou qual a mercadoria que foi devolvida e qual a que remanesceu na posse da Calçados A e foi entregue à X, que reitera não dever aqueles valores, nem se provou que tenha havido encomenda alguma que tenha dado entrada com a (re)factura cujo pagamento a A. exige à R. nos armazéns da última.
XXXII) Não houve nota de encomenda, não houve prova testemunhal que confirme qual a mercadoria que corresponde ao material listado na factura peticionada, não houve prova nenhuma produzida no sentido do peticionado, havendo, contudo, depoimentos dúbios e parciais, com manifesto interesse numa cobrança que junto da Calçado A, hoje em processo de insolvência, não se conseguirá lograr.
XXXIII) Quis-se inclusivamente fazer crer em sede de julgamento que a X existe à sombra da existência da Calçado A quando o não é: o filho do gerente da segunda é o proprietário e gerente da primeira, herdando do pai, simplesmente, o conhecimento pela área de actividade, desde logo, não sabendo operar em nenhuma outra, assim se tendo estabelecido.
XXXIV) Assistimos a uma leitura pervertida da absorção de funcionários da Calçado A pela X, quando o que se tentou foi não prejudicar, ou prejudicar o mínimo possível de pessoas/trabalhadores da Calçado A, com o seu processo de insolvência, tentando assegurar emprego a funcionários e até mesmo, considerando muitos como amigos pela gerência da insolvente.
XXXV) Na falta de prova, o Tribunal a quo, claramente inclinado para a posição processual a Autora, quis valer-se do regime legal da preposição, que se encontra previsto nos arts. 248º e seguintes do Código Comercial, isto para querer fazer crer que o Sr. D. M., pai do sócio-gerente da X, é um “proposto” da X e, por isso, poderia aceitar que se fizesse a refacturação à X da mercadoria confictamente fornecida à Calçado A, confessando em nome da X uma dívida de mercadoria fornecida à Calçado A, o que, no mínimo, é forçar os factos e a lei até eles darem o resultado jurídico pretendido.
XXXVI) Todavia, tal regime do art. 248º Cód. Comercial não pode aplicar-se com o apurado nos autos; aliás, conforme escreve M. Januário Gomes, “A qualificação do estatuto do gerente constitui, sem dúvida, o caso mais complexo. Na nossa opinião o gerente tanto pode se um trabalhador subordinado quanto um prestador de serviços, com poderes de representação; esta circunstância pressupõe naturalmente, a existência duma procuração ao lado da relação gestatória, trabalho ou prestação de serviços”.
XXXVII) Termos em que, deverão ser dados como não provados os factos 2º, 4º, 5º e 6º da Sentença a quo e, consequentemente, julgada improcedente a acção contra a X.
XXXVIII) A Sentença a quo ainda tem a veleidade de afirmar que “Não resultou provado qualquer facto extintivo, cujo ónus incumbia à Ré́”; perguntamos a que facto extintivo se refere o Tribunal a quo quando a Ré não alegou matéria de excepção, mas sim impugnação motivada, pelo que todo o ónus da prova competia à Autora que, obviamente, o não cumpriu.

Termos em que, a sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que julgue a acção contra a X improcedente por não provada assim se fazendo a acostumada justiça!».
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A Autora apresentou contra-alegações, onde formula as seguintes conclusões:

«1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferido pela Mma. Juiz a quo que julgou procedente o pedido apresentado pela A., condenando, por conseguinte, “a Ré X SA. a pagar a Autora D. L., Srl, a quantia de € 12.216,69 (dezanove mil duzentos e dezasseis euros e sessenta e nove cêntimos), acrescida de juros moratórios desde a data de vencimento da factura até efectivo e integral pagamento, às taxas legalmente e supletivamente estabelecidas.”
2. Na presente acção, a Autora (Recorrida), apresentou Requerimento de Injunção contra a Ré (ora Recorrente), pedindo que a Ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 19.216,69 de capital devidos pelo fornecimento de mercadoria pela A. à Ré que não foi paga, encontrando-se as facturas emitidas, na sequência desse fornecimento, em divida alegando, em síntese, que no âmbito da sua actividade profissional forneceu à Requerida diversos produtos do seu fabrico, designadamente os constantes nas facturas juntas aos autos com o Req. Injuntivo, as quais foram devidamente enviadas à Recorrida e que esta não pagou, mantendo-se devedora da quantia de € 19.216,69.
3. A Ré contestou pugnando pela improcedência da acção invocando, desde logo, que não existiu fornecimento à Ré naquele montante e que os existentes foram integralmente pagos, esclarecendo a Autora que a mercadoria havia sido encomendada em março de 2016 pela empresa Calçados A, Lda., a pedido desta foi emitida uma nota de crédito à referida Calçados A, Lda., e emitida nova factura à Ré, que usou o referido material, pois as empresas à data partilhavam as mesmas instalações, funcionários e representante.
4. Proferida sentença foi julgada procedente a petição inicial porquanto “da matéria de facto provada resulta inequivocamente, que entre a Autora e a Ré foi celebrado um contrato de compra e venda, numa relação comercial, com a produção dos efeitos essenciais previstos do Código Civil, sendo, dado o objecto e a qualidade de comerciantes das intervenientes, aplicável ainda a disciplina do Código Comercial por força do seu art. 1 – artigo 463.º do Código Comercial.” A Mma. Juiz a quo chama, assim, aos autos a figura da preposição, cujo regime se encontra integrado nos artigos 248.º a 265.º do Código Comercial, sendo o mesmo definido como “o negócio jurídico, tipicamente tácito, através do qual uma pessoa coloca outra publicamente à frente de um seu comércio, negócio ou assunto, de modo estável, para tratar dele por sua conta.”
5. Vem a Recorrente alegar que não podiam ter sido dados como provados os factos n.º 2.º, 4.º, 5.º e 6.º, contudo cremos que pela prova produzida em sede de audiência, bem como dos documentos juntos aos autos pelas partes, não podia ter sido outra a decisão da Mma. Juiz a quo, sendo completamente descabida e desfasada da realidade, bem como não provada, a versão apresentada pela Recorrente nas suas alegações.
6. Os factos constantes nos artigos n.º 2.º, 4.º, 5.º e 6.º foram desde logo confirmados pela testemunha da A., J. R., agente da A. em Portugal que apresentou um depoimento sólido, consistente e imparcial, como bem foi valorado pela Mma. Juiz a quo, começando por explicar em Tribunal como se processou esta venda da D. L. para com, inicialmente a Calçados A, Lda., mas posteriormente para com a X com emissão de nota de devolução à Calçados A e factura à X (veja-se excerto min. 3.00 a 4.20 do referido depoimento e depoimento min. 08.30 a 09.10), bem como explicou que naquele período a sociedade Calçados A estava a passar a sua actividade, bem como trabalhadores e matérias primas para a empresa X, ambas representadas pelo mesmo sujeito, o Sr. D. M.. (06.00 a 07.40 e 08.20 a 08.24).
7. A testemunha esclareceu ainda que as facturas eram normalmente enviadas por correio e ele próprio entregava ao cliente uma cópia para assinar, que neste caso tinha sido assinada pelo Sr. L. C. (depoimento min. 09.10 a 09.30). Em sede de julgamento foi-lhe exibida a factura em divida nos autos e a testemunha confirmou que conhecia o referido documento e que a assinatura nele aposta foi efectuada na sua presença (depoimento min. 09.50 a 10.00) e questionado sobre o facto de saber se a X usou a mercadoria (depoimento min. 10.31 a 10.36), a testemunha afirmou que “usar usou, porque depois eu cheguei a ver o produto final com essa mercadoria” (excerto depoimento de 10.37 a 10.41).
8. A testemunha J. R. é clara quando refere que no caso dos autos tinha sido comunicado à D. L. que seria a X a pagar e a usar a mercadoria e como tal teriam de facturar à X, não tendo sido exigido trocas de e-mails e pedidos formais dessa “transferência”, ou pedido de nova nota de encomenda porque havia confiança nas pessoas e agilizaram e facilitaram o procedimento por estarem perante pessoas que conheciam há vários anos e nas quais confiavam, e no fundo a empresa na prática era a mesma, com o mesmo representante e com os mesmos funcionários e o material iria ser usado pela X, pois a Calçados A estava “vazia”. Veja-se o depoimento da testemunha excerto 26.32 a 26.44 “Se o Sr. D. M. me diz assim: A Calçados A está com dificuldades, eu vou fechar, pedir a insolvência, vou fechar, vou trabalhar agora com a X, sou eu que sou o responsável pela X e sou eu que vou receber a mercadoria, sou eu que a vou pagar.”
9. Ouvida a testemunha J. A., testemunha apresentada pela chamada, técnico de contas da Calçados A e funcionário da X (depoimento min. 01.10 a 01.15; 01.18 a 01.22 e 01.26 a 01.40), confirmou que era possível a X ter ficado com algum material fornecido à Calçados A pela D. L. (excerto depoimento min. 07.00 a 07.15), mais tendo explicado em tribunal a relação entre as empresas e a transição de uma empresa para a outra, nomeadamente os funcionários (depoimento 13.30 a 15.15), bem como de mercadoria. De acordo com a testemunha houve algumas encomendas que a Calçados A cedeu (palavra usada pela testemunhas) à X e a X deu seguimento a essas encomendas, (veja-se excerto min 17.40 a 17.50), afirmando, que “houve algumas situações que fornecedores terem aceite, por assim dizer, a devolução desses artigos e a … depois venderem essa mercadoria, portanto à X” (depoimento min 18.10 a 19.10), afirmando a min 20.00 a 20.30 que tem ideia de ter havido casos de re-facturação.
10. Ora, do claro e credível depoimento da testemunha Sr. J. A. é evidente e sem réstia de dúvida o que aconteceu à factura peticionada nos autos, pois não é sequer credível que uma empresa vazia e sem funcionários, precisasse de mercadoria para fazer… nada! Os funcionários e as encomendas estavam a ser processadas pela X que, obviamente, precisava de matéria-prima para as concretizar.
11. O depoimento da testemunha L. C. veio confirmar as versões já antes apresentadas pelas restantes testemunhas ouvidas em julgamento, nomeadamente a passagem de uma empresa para outra (excerto depoimento min. 02.24 a 02.40), sendo claro em dizer que sempre respondeu enquanto funcionário ao Sr. D. M., ou seja, ao mesmo sujeito, quer quando era funcionário da Calçados A, quer quando passou a ser funcionário da X, que para si sempre foi a mesma empresa, pois nada na prática mudou, referindo “eu sempre trabalhei na mesma empresa” (min. 02.54 a 02.56).
12. Mais tarde, veja-se depoimento em que a testemunha referiu que quando houve a passagem de uma empresa para a outra a mercadoria passou, o stock existente, para a X (excerto min 04.22 a 04.50).
13. Questionado sobre quais eram as suas funções na empresa e se tinha assinado o documento – factura junta aos autos – o mesmo confirmou que as suas funções consistiam, entre outras, em confirmar que o material tinha chegado, conferir o stock. Como era fiel de armazém verificava que o material estava na empresa, que tinha entrado na empresa, assinando as facturas (depoimento min 05.50 a 06.42). Mais confirmou a testemunha que sempre foi ele que assinou as facturas e confirmava a recepção/existência do material na empresa, tal função nunca foi posta em causa por ninguém e se constava a assinatura dele na factura junta aos autos é porque o material estava lá (min. 06.44 a 07.20), tendo tal circunstancialismo ocorrido quer com a D. L. quer com vários fornecedores (min. 07.25 a 07.40).
14. Ora, dos depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de audiências fácil é de concluir conforme concluiu a Mma. Juiz a quo, nada sendo de revogar, dando-se como provados os factos 2.º, 4.º, 5.º e 6.º, concluindo-se conforme Douta sentença a quo que “a Ré adquiriu as mercadorias facturadas, através de um representante da empresa que tinha poderes para o fazer perante terceiros; mal iam as empresas e o comércio em geral se as encomendas e vendas tivessem que ser feitas por documento assinado pelo legal representante”.
15. Conforme resulta da Douta sentença a quo, o caso dos autos enquadra-se indiscutivelmente no regime da PREPOSIÇÃO, regime jurídico aplicável aos autos que a Recorrente não conseguiu minimamente afastar. Pois bem, nos termos do disposto no art. 248.º do Código Comercial “é gerente de comércio todo aquele que, sob qualquer denominação, consoante os usos comerciais, se acha proposto para tratar do comércio de outrem no lugar onde este o exerce ou noutro qualquer.”, e conforme bem refere Pedro Leitão Pais de Vasconcelos “é o preposto que surge publicamente à frente de parte ou de toda a atividade do comerciante e que é publicamente identificado como sendo quem está à frente dessa atividade.”
16. No caso dos autos, conforme bem refere a Douta sentença, a Ré adquiriu as mercadorias facturadas para uso próprio informando, na pessoa do Sr. D. M., representante legal da Calçados A e pai do legal representante da X, mas agindo como representante desta como proposto. Assim, o Sr. D. M., agindo em representação da Recorrente informou a A., ora Recorrida, que seria a Ré a usar e a pagar mercadoria inicialmente encomendada pela Calçados A, vinculando a empresa desta forma perante a A., o que aconteceu! A Recorrida agiu conforme lhe foi solicitado pela sua parceira comercial.
17. Termos em que, bem esteve o Tribunal a quo a dar como provados os factos 2.º, 4.º, 5.º e 6.º da Sentença proferida pelo Mmo. Juiz a quo não havendo qualquer erro de julgamento e, consequentemente, mantendo-se a decisão recorrida.
Pede-se assim que o presente recurso seja considerado improcedente e em consequência seja mantida a sentença proferida».
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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1.3. QUESTÕES A DECIDIR

Tendo presente que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são:

i) – Mediante o reexame dos meios probatórios produzidos, verificar se existiu erro no julgamento da matéria de facto e, na afirmativa, se devem ser considerados como não provados os pontos 2º, 4º, 5º e 6º da matéria de facto provada;
ii) – Apurado o resultado da impugnação da matéria de facto, apreciar se se verifica o apontado erro na aplicação do direito, designadamente no que respeita ao recurso à figura jurídica da preposição.
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II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto

A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1º – A Autora é uma sociedade comercial de direito italiano que se dedica à produção e comercialização de pele.
A Requerente, no exercício da sua actividade comercial, forneceu produtos à Requerida, mediante o seu prévio acordo, constante da factura nº 527 de 15.07.2016 e com vencimento de 15.07.2016, no valor de 20.766,69 €, da qual permanece em dívida o valor de 19.216,69 € (dezanove mil duzentos e dezasseis euros e sessenta e nove cêntimos).
A mercadoria foi inicialmente encomendada e remetida para a empresa Calçado A, Lda., com sede na Rua (…), emitindo-se as seguintes facturas: nº 75 de 19/02/2016, nº 179 de 25/02/2016, nº 193 de 31/03/2016, nº 215 de 12/04/2016 e nº 232 de 15/04/2016.
Em virtude de dificuldades financeiras, a Chamada decidiu transferir a sua actividade para a Ré, que tem como gerente o filho do gerente da Chamada, e que ficou nas mesmas instalações e com os seus funcionários, encomendas e matérias-primas.
A Ré e a Chamada pediram à Autora a devolução da mercadoria existente referida em 3º com a emissão da correspondente nota de crédito a 30 de Junho de 2016.
Pela Ré foi escolhida a parte da mercadoria por si pretendida desta encomenda, que ficou nas mesmas instalações, tendo sido assinada a factura emitida referida em 2º pelo funcionário do armazém da Ré, L. C..
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Factos não provados:

O Tribunal a quo considerou que «não resultaram provados outros factos relevantes, excluindo considerações, conclusões jurídicas, designadamente que a Ré pagou as quantias devidas, que a Chamada cedeu uma quantidade de peles à Ré, correspondente a cerca de €1.750,00 (mil setecentos e cinquenta euros); que apenas esta parte seria feito o pagamento pela Ré directamente à Autora, que concordou».
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2.2. Do objecto do recurso

2.2.1. Impugnação da decisão da matéria de facto

Em sede de recurso, a Recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância.
Estão efectivamente atribuídos à Relação poderes de reapreciação da matéria de facto no âmbito de recurso interposto, que a transformam num tribunal de instância que também julga a matéria de facto, garantindo um duplo grau de jurisdição.

Para que a Relação possa conhecer da apelação da decisão de facto é necessário que se verifiquem os requisitos previstos no artigo 640º do CPC, que dispõe assim:

«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº 2 do artigo 636º».

No fundo, recai sobre o recorrente o ónus de demonstrar o concreto erro de julgamento ocorrido, apontando claramente os pontos da matéria de facto incorrectamente julgados, especificando os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida e indicando a decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre a factualidade impugnada.

Em todo o caso importa enfatizar que não se trata de uma repetição de julgamento, foi afastada a admissibilidade de recursos genéricos sobre a decisão da matéria de facto e o legislador optou «por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente» (1).
Delimitado pela negativa, segundo Abrantes Geraldes (2), o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto será, total ou parcialmente, rejeitado no caso de se verificar «alguma das seguintes situações:

a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º nº 4, e 641º, nº 2, al. b);
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a);
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».

Aplicando os aludidos critérios ao caso que agora nos ocupa, verifica-se que a Recorrente indica quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifica os meios probatórios que imporiam decisão diversa e menciona a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida sobre as questões de facto controvertidas. No que se refere à prova gravada em que faz assentar a sua discordância, procede à indicação dos elementos que permitem minimamente a sua identificação e localização.

Por isso, podemos concluir que a Recorrente cumpriu suficientemente o ónus estabelecido no citado artigo 640º do CPC e, por outro lado, tendo sido gravada a prova produzida na audiência de julgamento e dispondo dos elementos que serviram de base à decisão sobre os factos em causa, esta Relação pode proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada.

Quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal, tal matéria encontra-se regulada no artigo 662º do CPC, sob a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto”, que preceitua no seu nº 1 que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Por isso, passa-se a reapreciar a matéria de facto impugnada.
*

2.2.1.2. Com vista a ficarmos habilitados a formar uma convicção autónoma, própria e justificada, procedeu-se à audição integral da gravação dos depoimentos das testemunhas L. C., que já trabalhou tanto para a Ré como para a Chamada (começou por desenvolver funções para a Chamada durante vários anos e depois transitou para a Ré) e agora trabalha para outra empresa do ramo do calçado; J. R., empresário do ramo das peles para calçado, que é agente da Autora e de outros fornecedores de materiais para calçado em Portugal; J. A., que trabalhou para a Chamada e agora, desde Agosto de 2017, trabalha para a Ré.
Foram ainda analisados todos os documentos juntos aos autos.
Para melhor compreensão das questões factuais colocadas, foram ouvidas as alegações orais dos Advogados das partes.
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2.2.1.3. Por referência às suas conclusões, extrai-se que a Recorrente considera incorrectamente julgados os pontos 2º, 4º, 5º e 6º da matéria de facto provada.

Portanto, pretende que se considere como não provado que:

- «2º A Requerente, no exercício da sua actividade comercial, forneceu produtos à Requerida, mediante o seu prévio acordo, constante da factura nº 527 de 15.07.2016 e com vencimento de 15.07.2016, no valor de 20.766,69 €, da qual permanece em dívida o valor de 19.216,69 € (dezanove mil duzentos e dezasseis euros e sessenta e nove cêntimos)»;
- «4º Em virtude de dificuldades financeiras, a Chamada decidiu transferir a sua actividade para a Ré, que tem como gerente o filho do gerente da Chamada, e que ficou nas mesmas instalações e com os seus funcionários, encomendas e matérias-primas»;
- «5º A Ré e Chamada pediram à Autora a devolução da mercadoria existente referida em 3º com a emissão da correspondente nota de crédito a 30 de Junho de 2016»;
- «6º Pela Ré foi escolhida a parte da mercadoria por si pretendida desta encomenda, que ficou nas mesmas instalações, tendo sido assinada a factura emitida referida em 2º pelo funcionário do armazém da Ré, L. C.».

Há, assim, que verificar se a discussão probatória fundamentadora da decisão corresponde à prova realmente obtida ou, ao invés, se a mesma se apresenta de molde a alterar a factualidade impugnada, nos termos invocados pela Recorrente.
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2.2.1.4. O Tribunal a quo exprimiu a motivação da decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos:

«A convicção do Tribunal, que permitiu concluir pela prova dos factos que antecedem, tomou por base a ponderação crítica e confronto entre os meios de prova produzidos, as regras da experiência e o senso comum, tendo em conta as regras próprias da repartição do ónus da prova.

O fornecimento dos bens pela Autora à Ré, e toda a sequência dos factos, foi dado como provado atendendo ao depoimento do representante da Autora em Portugal, J. R., que tem conhecimento direto e circunstanciado dos factos.

Como representante da Autora e de outras marcas no ramo do calçado, descreveu que sempre contactou com o gerente da Calçados A, Sr. D. M., e que vendeu as peças descritas nas faturas juntas. Depois de entregues e no período de pagamento, aquele referiu-lhe que não poderia pagar, que a empresa ia fechar, continuando a atividade com outra empresa, a aqui Ré, que iria ficar com parte da mercadoria. Foi acordada a emissão de nota de crédito e a emissão de nova fatura, nos termos dos documentos juntos, tendo-lhe sido fornecidos os elementos todos da empresa da Ré, para a faturação e avaliação de crédito.

Acrescentou que as empresas continuaram no mesma localização, com os mesmos funcionários e atividade, sendo que o referido Sr. D. M. continua, como sempre à frente da empresa, na parte das encomendas e pagamentos. Continuou a fazer-lhe encomendas, pela Ré, por outras marcas que representa.

Refere que depois de emitida fatura, a levou a assinar ao responsável de armazém da Ré, L. C., a fim de confirmação do material que efetivamente ficou para a Ré. Ainda que não se lembrasse em concreto da situação, este, chamado a testemunhar, confirmou a assinatura como sendo a dele, constante da fatura de fls. 67. Referiu ainda que este era um procedimento normal, no âmbito das suas funções, conferir e assinar os materiais entrados na empresa.

Acrescentou ainda que depois de trabalhar na Calçado A, em 2016 mudou, em termos legais, para a X, mas que em termos práticos nada mudou, continuando mesmo a responder perante o Sr. D. M..

As versões apresentadas em sede de contestações não resultaram provadas por qualquer meio, não tendo sido junto qualquer documento comprovativo (nem mesmo depois de pedido) de outros fornecimentos a que corresponderiam os pagamentos alegados, nem mesmo das alegadas transações entre Ré e Chamada.

Pelo contrário, a testemunha J. A., TOC da Calçado A e agora funcionário da Ré, veio confirmar que a primeira há alguns anos teve muitos problemas financeiros, tendo colapsado por volta de maio de 2016, e ainda que, embora em concreto não conheça a operação efetuada, confirma que a Ré incorporou todos os funcionários, material e encomendas da Calçado A, e que a forma como esta transferência ocorreu foi precisamente através da devolução da Calçado A e venda à Ré X, esta será mesmo o procedimento contabilístico normal e a maneira de o fazer.
Confirmou ainda que o referido Sr. D. M. continua a trabalhar na Ré, como encarregado geral, num trabalho conjunto com o filho.
Com este enquadramento só se pode concluir que a Ré adquiriu as mercadorias faturadas, através de um representante da empresa que tinha poderes para o fazer perante terceiros; mal iam as empresas e o comércio em geral se as encomendas e vendas tivessem que ser feitas por documento assinado pelo legal representante».
*
2.2.1.5. Revistos todos os meios de prova produzidos, esta Relação não detectou erros manifestos, contradições, incoerências ou implausibilidades na decisão da matéria de facto. Num plano mais aprofundado de análise e confronto dos meios probatórios, também não se constata a existência de erro de julgamento, pelo que não há fundamento para alterar a decisão do Tribunal a quo, por a mesma, partindo dos documentos juntos aos autos, estar em consonância com a prova testemunhal produzida na audiência final.

Com efeito, primeiro, verifica-se que as versões factuais que a Ré e a Chamada trouxeram aos autos, através de impugnação motivada, não têm suporte em qualquer elemento probatório, sendo para o efeito manifestamente insuficiente o depoimento de J. A., técnico de contas da Ré, o qual, justiça lhe seja feita, esclareceu parte substancial dos factos relativos à transferência de trabalhadores, matérias-primas e encomendas da Chamada para a Ré.

Segundo, embora os documentos juntos aos autos sejam relevantes, só por si, seriam insuficientes para demonstrar os factos que a Recorrente impugna. Por isso, a prova testemunhal foi decisiva na formação da convicção do Tribunal recorrido, em especial o depoimento de J. R..

No caso em apreciação nem sequer se pode afirmar que os depoimentos das três testemunhas são inconciliáveis entre si, na medida em que as testemunhas L. C., que trabalhava para a Ré na altura dos factos em discussão, e J. A., técnico de contas tanto da Chamada como da Ré, não conseguiram esclarecer o que em concreto sucedeu quanto aos bens objecto da factura e ao alegado acordo entre a Autora e o Sr. D. M., gerente da Chamada e encarregado geral da Ré. A única testemunha que descreveu o que concretamente aconteceu foi J. R., agente da Autora, que confirmou os factos descritos em 2º, 4º, 5º e 6º da factualidade dada como provada, dos quais, conforme se fez constar da sentença, «tem conhecimento directo e circunstanciado dos factos».

Terceiro, é inequívoco que num primeiro momento a Chamada encomendou a mercadoria que se mostra descrita na factura nº 527, de 15.07.2016. As correspondentes encomendas constam dos documentos de fls. 37 a 41 (docs. 1 a 4, juntos com o requerimento apresentado na audiência prévia). Tal mercadoria foi entregue nas instalações da Chamada (docs. de fls. 59 a 62), tendo sido objecto da devida facturação (docs. de fls. 42 a 47). Como resulta evidente dos três depoimentos, que neste ponto são inequívocos, a Chamada e a Ré partilhavam as mesmas instalações. Portanto, a mercadoria deu entrada no armazém da Chamada e da Ré, o que constitui um ponto de partida objectivo e seguro para a subsequente análise da prova produzida e do resultado probatório expresso na decisão.

Quarto, apesar de a testemunha J. R. ter confirmado os factos descritos em 2º, 4º, 5º e 6º da factualidade dada como provada e de inexistir verdadeira contraprova (ou algo de semelhante) susceptível de infirmar o que afirmou, importa verificar se o aludido depoimento tem suporte noutros elementos dos autos, atento o facto de a Ré alegar que o mesmo não é merecedor de credibilidade. Repare-se que não estamos no plano da invocação da inexistência de prova susceptível de alicerçar a decisão da matéria de facto, mas sim de aferir se a mesma não deve merecer credibilidade por alguma razão substancial, para além do interesse da aludida testemunha, que existe e ela própria o referiu durante o seu depoimento. Todavia, uma coisa é o interesse e outra, bem diferente, é mentir. E, no fundo, trata-se de saber, face à invocação da Ré, se existem indícios de que mentiu.

Comecemos por verificar se tem algum fundamento a tese da Autora sobre a existência de uma “transferência” da mercadoria da Chamada para a Ré e consequente afectação à actividade desta.
A este propósito, verifica-se que a Chamada e a Ré partilhavam a mesma sede e instalações. Além disso, o gerente da Chamada é o pai do administrador único (segundo a testemunha J. A., R. M. à data do julgamento já teria a qualidade de gerente, pelo que terá existido entretanto, mas não está documentado, uma transformação da sociedade) da Ré. Não só isso resulta dos documentos juntos aos autos (por exemplo, docs. de fls. 48 a 58; existem ainda múltiplos documentos onde estão mencionadas as instalações das duas sociedades), como foi confirmado pelas três testemunhas.

Sendo certo que ocorreu uma devolução de uma pequena parte da mercadoria (ao que parece, três “pacotes”; é essa a expressão que consta das gravações; esses ditos pacotes – embalagens - foram recolhidos pela testemunha J. R.), a transferência das restantes mercadorias não exigia uma recolha e uma subsequente entrega, uma vez que tudo estava no mesmo local. Este facto tem uma consequência: gera dificuldades de produção de prova à Autora, uma vez que se tivesse ocorrido transferência entre instalações situadas em locais diferentes sempre haveria, por exemplo, guias de transporte.

Sabemos também que a Chamada na altura estava a atravessar grandes dificuldades económicas (a testemunha J. A. falou mesmo em «colapso») e que sensivelmente em Maio de 2016 cessa a sua actividade. A forma como as três testemunhas descrevem o que sucedeu nessa altura só se diferencia em termos de grau. Para a testemunha L. C. a Ré e a Chamada eram a mesma “coisa” (parece poder concluir-se que não havia verdadeira autonomia material, sendo certo que a testemunha trabalhou para ambas as empresas, conhecia bem a situação e afirmou que quando, em 2016, mudou da Chamada para a Ré, na prática nada mudou, continuando a responder perante o Sr. D. M.); a testemunha J. A. disse que a Chamada ainda terminou algumas encomendas, mas que outras passaram para a Ré por acordo com as empresas que tinham feito as encomendas e admitiu a existência, pelo menos parcial, de transferência de matérias-primas da Chamada para a Ré; a testemunha J. R. pronunciou-se no sentido de ter ocorrido uma transferência total, sendo certo que na prática, segundo este depoimento e o da testemunha L. C., ambas eram “representadas” pelo Sr. D. M.. É relevante notar que a testemunha J. A., confrontado pelo mandatário da Autora sobre o imobilizado existente nas instalações, respondeu que o mesmo era da Ré desde há vários anos; significa isto que pouco ou nada havia para transferir na prática, para além dos trabalhadores (e da matéria-prima, que estava no mesmo armazém), questão que se traduzia numa mera mudança de entidade patronal, que não de local de trabalho.

É neste enquadramento peculiar, emergente da especial relação entre a Chamada e a Ré, desde logo em termos espaciais, que surge o litígio dos autos e os referidos elementos tornam credível a versão da Autora e da testemunha J. R.. Se ambas partilhavam as suas instalações, a mercadoria (peles para calçado) “cedida” pela Calçado A à X não carecia de deslocação física, sendo apenas necessário adaptar os procedimentos habituais (que as três testemunhas descreveram, em particular as testemunhas L. C. e J. R.) ao caso concreto.

E isso foi feito, embora em termos algo “abreviados”: a Autora emitiu notas de crédito reportadas as 30.06.2016 (v. fls. 63-66), assim como emitiu a factura correspondente ao material “cedido” pela Chamada à Ré e o fiel do armazém da Ré (ou seja, a testemunha L. C.; salientando-se que à data de 15.07.2017 era trabalhador da Ré e não da Chamada) assinou/rubricou essa factura, o que atesta o facto de a mesma se encontrar no armazém da Ré (já no contra-interrogatório, afirmou «Se está aí a minha assinatura é porque entrou»). Note-se que a testemunha L. C. confirmou a assinatura da factura, embora já não se recordasse da situação, e descreveu o procedimento normal que seguia enquanto funcionário do armazém. Além disso, estão demonstrados quatro pagamentos feitos pela Ré, diferidos no tempo (15.10.2016, 17.02.2017, 21.02.2017 e 31.03.2017), por conta da factura nº 527 de 15.07.2016 (v. docs. de fls. 68-72), ficando em dívida 19.216,69 €.

Quinto, passemos à questão seguinte, que é a de saber se os bens fornecidos à Calçado A e “cedidos” à X - o que deu causa à emissão da factura nº 527 de 15.07.2016 - foram objecto de um acordo entre a Autora e a Ré sobre tal “cedência”.

Pese embora todas as críticas que a Ré tece à decisão da matéria de facto, a verdade é que a mesma, sobre a questão factual ora em apreciação, está em consonância com o que a testemunha J. R. afirmou na audiência final e que pudemos constatar na gravação do seu depoimento.

Aí se fez constar, com inteira pertinência e conformidade com os dados objectivos que a aludida testemunha carreou, que a mesma, «Como representante da Autora e de outras marcas no ramo do calçado, descreveu que sempre contactou com o gerente da Calçados A, Sr. D. M., e que vendeu as peças descritas nas faturas juntas. Depois de entregues e no período de pagamento, aquele referiu-lhe que não poderia pagar, que a empresa ia fechar, continuando a atividade com outra empresa, a aqui Ré, que iria ficar com parte da mercadoria. Foi acordada a emissão de nota de crédito e a emissão de nova fatura, nos termos dos documentos juntos, tendo-lhe sido fornecidos os elementos todos da empresa da Ré, para a faturação e avaliação de crédito.

Acrescentou que as empresas continuaram no mesma localização, com os mesmos funcionários e atividade, sendo que o referido Sr. D. M. continua, como sempre à frente da empresa, na parte das encomendas e pagamentos. Continuou a fazer-lhe encomendas, pela Ré, por outras marcas que representa».

Portanto, face a este depoimento e à inexistência de qualquer elemento de ordem objectiva que o coloque em crise, está demonstrado o aludido acordo, nos exactos termos que se deram como provados.

A Ré nas suas alegações contesta que o referido Sr. D. M. pudesse vincular a X perante a Autora, mas a sentença é inteiramente clara sobre esse ponto. Aponta explicitamente as razões por que considera que o Sr. D. M. vinculava a Ré, indicando os factos emergentes dos depoimentos que levam à referida conclusão.

Em sede de livre apreciação da prova, e é nesse âmbito que a questão se coloca, era legítimo ao Tribunal a quo concluir: «Com este enquadramento só se pode concluir que a Ré adquiriu as mercadorias faturadas, através de um representante da empresa que tinha poderes para o fazer perante terceiros; mal iam as empresas e o comércio em geral se as encomendas e vendas tivessem que ser feitas por documento assinado pelo legal representante». Tal conclusão está de harmonia com as regras da experiência comum.

Face à prova produzida, as mercadorias cujo pagamento a Autora reclama nesta acção deram efectivamente entrada no armazém da Ré (v. depoimento das testemunhas L. C. e J. R., e a assinatura da factura por um trabalhador da Ré) e a matéria-prima foi utilizada pela Ré (v. depoimento da testemunha J. R.).

Se a Ré voluntariamente utilizou na sua indústria matéria-prima que a Autora, também de forma voluntária, fez chegar ao armazém daquela, o que qualquer pessoa exterior à situação conclui é que existiu um acordo entre essas duas pessoas jurídicas. E independentemente de qualquer consideração jurídica, também qualquer pessoa seria levada a concluir que uma vendeu e a outra comprou essa mercadoria.

Ainda no plano da mera experiência comum, se D. M. se apresenta nas relações com terceiros como representante da Ré, tendo efectivamente uma ligação com essa sociedade, no mínimo de natureza laboral (v. depoimento da testemunha J. A., que afirmou que o Sr. D. M. trabalha para a Ré desde que a Chamada “colapsou”; sendo certo que os depoimentos das duas outras testemunhas são claros no sentido de aquela pessoa representar a Ré, de ser muito mais do que um mero trabalhador), além de ser o pai do seu único administrador, qualquer pessoa seria levada a concluir que, ao negociar com aquele um acordo para o fornecimento de matéria-prima habitualmente utilizada na indústria da Ré e que por esta foi efectivamente utilizada, estava a estabelecer um acordo com a Ré.

Se já é assim no plano do intérprete leigo em matéria de direito, por maioria de razão o será para o jurista. Salvo o devido e merecido respeito pelas alegações da Ré, carece de sentido a ideia de que somente o administrador único de uma sociedade, ou um representante com procuração para o efeito, pode vincular validamente esta num normal contrato de fornecimento de materiais habituais para a sua indústria. Não é sequer preciso recorrer ao desenvolvido estudo de Pedro Pais de Vasconcelos, denominado “A Preposição” (3), que a sentença muito a propósito citou, bastando atentar no que J.M. Coutinho de Abreu (4) diz a este respeito: «Os gerentes, auxiliares e caixeiros são qualificados pelo CCom. como mandatários comerciais com representação (…). É uma qualificação hoje insubsistente. Compreendia-se naquele tempo, dada a velha ideia de que os poderes de representação voluntária tinham de assentar num contrato de mandato (…). Actualmente (e desde há muito tempo) não é assim. Os poderes de representação voluntária podem resultar de outros negócios jurídicos. Por exemplo, do contrato de trabalho: “Quando a natureza da actividade [para que o trabalhador é contratado] envolver a prática de actos jurídicos, considera-se que o contrato de trabalho concede ao trabalhador os necessários poderes, salvo se a lei exigir instrumento especial (art. 115º, 3, do CT)».

Em suma, não se descortina qualquer erro de julgamento do Tribunal recorrido, pelo que a apelação da decisão de facto improcede.
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2.3. Da matéria de Direito

O quadro factual relevante com vista à sua subsunção jurídica é o mesmo que serviu de base à prolação da sentença recorrida.
A Autora estrutura a causa de pedir da acção na alegação de que forneceu produtos à Ré e que esta não efectuou o pagamento do preço acordado, no valor de 19.216,69 €.
Tanto a Autora como a Ré são comerciantes. A primeira dedica-se à comercialização de pele; a segunda ao fabrico de calçado e neste utiliza, além do mais, pele.

Os factos dados como assentes permitem a conclusão de que entre as partes foi celebrado um acordo. Nesse acordo, a Autora foi representada por J. R., agente comercial desta, e a Ré por D. M., pai do administrador único desta sociedade, seu trabalhador e encarregado geral. A sentença, e bem, qualificou o representante da Ré como preposto e com inteira razão: o Sr. D. M. apresentava-se objectivamente como representando a empresa, o que fazia de forma pública e estável. Portanto, os actos por ele praticados, em representação da sociedade Ré, reproduzem-se na esfera jurídica desta (5), tanto mais que deles tirou proveito, não sendo oponível à Autora as questões inerentes às vicissitudes das relações internas entre Ré e preposto.

O acordo consistiu, em concreto, num contrato de compra e venda, tendo por objecto o fornecimento de produtos do comércio da Autora à Ré, contra o pagamento do respectivo preço.

Com efeito, nos termos do artigo 874º do Código Civil, «compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço».

Mais: essa compra e venda deve ser qualificada como mercantil, pois, não só se insere na actividade de duas empresas comerciais, nos termos do artigo 230º do Código Comercial, mas também está contemplada como tal no artigo 463º do referido Código.

Sendo um contrato de compra e venda mercantil é-lhe aplicável subsidiariamente, nos termos do artigo 3º do Código Comercial, o regime jurídico da compra e venda civil, previsto no artigo 874º e seguintes do Código Civil

Tratando-se de um contrato bilateral e oneroso, dele decorrem os seguintes efeitos obrigacionais: para a Autora (vendedora) a obrigação de entregar à Ré a mercadoria que esta lhe comprou; para a Ré (compradora) a obrigação de pagar o preço dos artigos que lhe foram fornecidos e facturados contra a entrega da mercadoria ou no prazo convencionado. No caso, a factura vencia-se em 15.07.2016.

Ora, se assim é, tendo a Autora entregue à Ré os produtos vendidos, impendia sobre esta, conforme estipula o artigo 879º, al. c), do Código Civil, a obrigação de pagar o preço.
Flui do conjunto dos factos provados que a Ré não cumpriu com a sua obrigação, pois que vinculada a pagar o preço dos produtos fornecidos, no valor de 19.216,69 €, não o fez.

Assim sendo, a Autora tem sobre a Ré um crédito de 19.216,69 €.

A Autora pediu ainda a condenação da Ré em juros de mora já vencidos, sobre a mencionada quantia de 19.216,69 €, calculados à taxa legal, e bem assim nos juros que se vencerem até integral pagamento.

Tratando-se de obrigação pecuniária, assiste efectivamente à Autora o direito de exigir da Ré o pagamento de juros de mora a contar do dia da constituição em mora (cfr. artigos 804º, 805º e 806º, nº 1, do Código Civil).
Na factura constava a data do respectivo vencimento (15.07.2016), pelo que está concretamente determinado dia da constituição em mora da Ré relativamente à factura.
Por outro lado, ao crédito da Autora é aplicável a taxa supletiva de juros moratórios relativa a créditos de que sejam titulares empresas comerciais singulares ou colectivas.

Com efeito, trata-se de um crédito emergente de actividades mercantis e a Autora é comerciante, titular de uma empresa comercial, tal como vem definida no artigo 230º do Código Comercial, pelo que há que ter em conta o disposto no artigo 102º §3º do mesmo Código, aplicável por não ter sido convencionada pelas partes uma taxa de juros para este efeito.
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2.4. Sumário

1 – Um acordo para o fornecimento de matéria-prima habitualmente utilizada na indústria da sociedade ré celebrado pelo pai do administrador único desta sociedade, seu trabalhador e encarregado geral, vincula-a perante a vendedora.
2 – Alguém que se apresenta objectivamente como representante da empresa e o faz de forma pública e estável, tendo efectivamente uma ligação funcional à mesma, é um preposto e os actos por ele praticados, em representação da sociedade, reproduzem-se na esfera jurídica desta, sobretudo quando desses actos tirou proveito.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
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Guimarães, 22.11.2018
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)


1. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 163. No mesmo sentido Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, 2015, pág. 463.
2. Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, págs. 168 e 169.
3. Almedina, 2017.
4. Curso de Direito Comercial, Almedina, Vol. I, 11ª edição, 2018, pág. 151.
5. Pedro Pais de Vasconcelos, A Preposição, Almedina, 2017, pág. 16.