Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
52/20.7YRGMR.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: ESCUSA
FUNDAMENTOS LEGAIS
JUIZ INTERVENIENTE JULGAMENTO CONEXO
DEFERIMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: DEFERIDO O PEDIDO DE ESCUSA
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) O art. 43º do Código de Processo Penal exige, como requisito de ordem substantiva do pedido de escusa do juiz para intervir em determinado processo, que essa intervenção corra o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave adequado a gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade, ou quando tenha tido intervenção anterior no processo fora dos casos do artigo 40º do mesmo diploma (cf. nºs 1, 2 e 4).

II) Esta cláusula geral de suspeição revela que a preocupação central do regime legal em apreço é prevenir o perigo de a intervenção do juiz ser encarada com desconfiança e suspeita pela comunidade.

III) É natural e vulgar que um juiz tenha jurisdição em mais do que um processo com envolvimento das mesmas pessoas, pelo que a sua intervenção anterior num deles nem sempre constituirá, e em regra não constituirá, fundamento para um pedido de escusa.

IV) Todavia, existirá um motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, constituindo, assim, fundamento para deferir a escusa ao abrigo do disposto no art. 43º, n.ºs 1, 2 e 4, do Código de Processo Penal, a circunstância de a Mmª. Juíza requerente ter presidido ao julgamento de um processo conexo com aquele em que agora pede a escusa, por estarem em causa em ambos os processos factos ocorridos no mesmo episódio espácio temporal e inseridos no mesmo recorte de vida, tendo a Mmª. Juíza expressado na sentença proferida no primeiro processo uma convicção segura sobre a falta de credibilidade de duas testemunhas arroladas pelo aí arguido, por se mostrarem manipuladas e instrumentalizadas por este, criticando-o por as ter indicado, sendo elas as únicas testemunhas arroladas pelo mesmo no segundo processo.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. A Mmª. Juíza P. M., a exercer funções no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, no Juízo Local Criminal de Ponte da Barca, veio, ao abrigo do disposto nos arts. 43º, n.ºs 1, 2 e 4, e 45º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal requerer que lhe seja concedida escusa de intervenção no processo comum com intervenção de tribunal singular com o NUIPC 270/18.8GAPTB, invocando os seguintes fundamentos (transcrição[1]):

«Compulsados os autos, constata-se que foi proferida acusação particular pelo assistente A. P. contra a arguida S. D., pela prática de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.° do Código Penal.
Ora, os factos invocados na referida acusação particular tratam-se dos mesmos factos (parte deles) que o ora assistente invocou em sua defesa no âmbito dos autos com o n° 269/18.GAPTB, que correm termos neste tribunal e nos quais tem a qualidade de arguido e a ora arguida a qualidade de ofendida e demandante cível.
No âmbito desse processo, a signatária presidiu a audiência de julgamento e proferiu sentença a 09.10.2019 (que se encontra em fase de recurso no Tribunal da Relação de Guimarães), condenando o arguido A. P. em autoria material, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152°, n.º 1, alínea a) e n° 2, alínea a) do Código Penal, (…).
Posto isto e após análise da convicção plasmada na sentença que subscrevi, constato que, ao tomar posição sobre a prova então produzida, fiz referência expressa à falta de credibilidade das testemunhas arroladas pelo arguido (seus filhos), que são precisamente as testemunhas ora arroladas nestes autos relativamente ao mesmo episódio (que na versão da ora arguida se tratou de um atropelamento e na versão do ora assistente, se tratou da prática de um crime de dano pela arguida).
Entendo que a apreciação de situações como a presente devem ser apreciadas casuisticamente já que a intervenção de um juiz noutro processo (tendo em conta o disposto no artigo 43.°, n.º 2, do CPP) nem sempre constituirá — e em regra não constituirá — fundamento para formular um pedido de escusa. Mas parece-me que no caso concreto, salvo melhor opinião, a posição que plasmei na sentença condenatória por mim subscrita nos autos supra identificados pode, na perspetiva do homem comum e do cidadão médio, fazê-lo suspeitar que o juiz deixe de ser imparcial e que como tal prejudique a livre apreciação da prova a produzir.
Por outro lado, em bom rigor, a situação cai igualmente na situação prevista no artigo 43°, n.º 2, do CPP, dado que tive intervenção noutro processo em que os mesmos factos, apesar de vistos de um prisma distinto, se discutiram. Ou seja, a situação pode dar azo a um incidente de recusa com base em invocação de intervenção suspeita, alegada em fundamento sério e grave de desconfiança à imparcialidade do juiz. Ainda que não aceite a suspeita, a verdade é que a possibilidade de dedução do incidente de recusa está prevista para casos como o presente. (…).»

2. Os documentos juntos pela requerente e os que foram solicitados por este Tribunal, concretamente certidão de peças processuais extraídas dos dois referidos processos, atestam que:

- A requerente do presente pedido de escusa exerce funções de juíza de direito no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, no Juízo Local Criminal de Ponte da Barca, tendo-lhe sido distribuído para julgamento o processo com o NUIPC 270/18.8GAPTB.
- Nesse processo, o assistente, A. P., deduziu acusação particular contra a arguida, S. D., sua ex-mulher, pela prática de um crime de dano, previsto e punido pelo art. 212º, n.º 1, do Código Penal.
- Para tanto, imputa-lhe os seguintes factos: no dia 30 de dezembro [de 2018], quando o assistente se dirigiu com os filhos menores do casal, J. S., I. D. e J. D., à casa de morada de família, para entregar uma cópia de todas as chaves da habitação à arguida, esta colocou-se atrás do seu carro, já com o motor a trabalhar, impedindo-o de sair do local, após o que foi pelo lado do condutor, começando a pontapear o veículo no guarda-lamas e na porta do condutor, causando danos cuja reparação ascende a € 541,20.
- A requerente presidiu à audiência de julgamento e, em 09-10-2019, proferiu sentença no processo com o NUIPC 269/18.4GAPTB, a condenar o aí arguido e agora assistente, A. P., pela prática de um crime de violência doméstica contra a aí ofendida e agora arguida S. D..
- Nessa sentença foi dado como provado, nomeadamente, que no dia 30 de dezembro de 2018, a ofendida S. D. deslocou-se à residência do ainda casal, com o intuito de pedir ao arguido que lhe entregasse a chave que a impedia de trancar a habitação por dentro, o que ele recusou, introduzindo-se, ato contínuo, no seu veículo automóvel e, ao sair do local, em manobra de marcha atrás fê-lo em direção à mãe dos seus filhos, vindo a embater propositadamente com o mesmo na pernas desta, causando-lhe mal, estar, dores, incómodos e duas equimoses.
- Em sede de motivação da decisão de facto dessa sentença, a Mm.ª Juíza fez referência expressa à falta de credibilidade das testemunhas aí arroladas pelo arguido – J. S. e I. D., filhos menores do casal -, e que são as únicas testemunhas arroladas pelo mesmo na acusação particular deduzida no processo n.º 270/18.8GAPTB.

- Concretamente, aí fez consignar o seguinte (transcrição):

«(…)
Esta manipulação [dos filhos pelo pai] tornou-se evidente com os depoimentos das crianças em tribunal (depoimentos esses totalmente induzidos e preparados) e através da consulta do relatório de audição técnica especializada, email de sinalização para a CPCJ. (…), e ata de conferência de pais, documentos relativos ao processo de regulação das responsabilidades parentais e juntos aos autos (…).

Como já referimos, em tribunal foram inquiridos os filhos mais velhos do casal (tendo sido arrolados como testemunhas pelo próprio arguido), (…).
Estas testemunhas depuseram de forma incongruente e denotou-se preparação nos seus depoimentos. Denotou-se, ainda, que se encontram totalmente manipulados contra a sua progenitora, comportamentos que também foram constatados pelos técnicos que procederam à audição técnica especializada do arguido e da ofendida, no processo de regulação das responsabilidades parentais.
As testemunhas acusaram a mãe de ser violenta, de insultar o pai, de lhes ter batido, de não ser carinhosa (acusações que já constavam da ata de conferência de pais relativa ao mesmo processo de regulação das responsabilidades parentais). No entanto, estranhamente, não correu nenhum processo contra a demandante cível relativa a agressões aos filhos menores ou ao arguido …
Estranhamente, também, o filho menor do ex-casal, o único que gosta da mãe e que mantém os contactos com esta, não foi arrolado como testemunha pelo arguido.
Ora, em relação a J. S., denotou-se sofrimento na criança por estar a depor em tribunal e viu-se claramente que foi forçado a isso. Aliás, o facto de o arguido não poupar os filhos de apenas catorze anos de idade deste sofrimento, de deporem em juízo contra a progenitora, vindo denegrir a imagem desta, é demonstrativo dos sentimentos negativos que nutre pela mesma e de que se encontra disposto a tudo para a fazer sofrer.
Já no tocante a I. D., o seu depoimento foi desprovido de sentido, pois sem ninguém lhe ter perguntado, a testemunha, de mote próprio, adiantou-se e referiu que no dia do atropelamento, a sua tia D. chegou, mas não assistiu a nada, e que os avós não estavam lá. Referiu, ainda, que a mãe é que se colocou por trás do carro do pai e depois fingiu que se magoou.
Ora, ainda que a ofendida se tenha colocado por detrás do veículo, como é que se explica que o arguido não tenha parado o carro de imediato e tenha mantido a marcha-atrás?
Se a ofendida fingiu que se magoou, então como se explicam as lesões que a mesma apresentava aquando do exame a que foi submetida no gabinete de medicina legal)?
Por outro lado, a testemunha veio dizer que está zangada com a mãe, porque esta sempre a humilhou, pois queria que fossem crianças perfeitas e que tivessem boas notas. E referiu, ainda, que a mãe lhes batia e os insultava.
Conforme já mencionámos, não cremos que assim fosse, pois se isto fosse verdade, resulta das regras da experiência comum e dos juízos de normalidade, que um pai extremoso e dedicado aos filhos não teria permitido e teria ele próprio pedido o divórcio e efetuado queixa da demandante, o que não aconteceu. (…)».

3. Não se tornando necessária a produção de outras provas, e uma vez colhidos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento de mérito.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. A aplicação do princípio do juiz natural, consagrado no art. 32º, n.º 9, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “[n]enhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”, pressupondo, assim, que o juiz que intervém no processo é aquele que deve intervir de acordo com as regras da competência legalmente definidas para o efeito, com base em critérios de distribuição aleatória, pode gerar efeitos perversos, nomeadamente em situações em que o juiz não oferece garantias de imparcialidade e de isenção para o ato de julgar.

Para estes casos estabeleceu o legislador regras que permitem, legalmente, o afastamento do juiz natural, designadamente a que está prevista no art. 43º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ao dispor que "[a] intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade", podendo ainda "… constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º" (n.º 2), acrescentando o n.º 3 do mesmo preceito que "[a] recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis”.

No que tange ao próprio juiz, verificando-se qualquer das condições previstas nos n.ºs 1 e 2, não pode o mesmo declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir (n.º 4 do citado artigo).
Assim, para além dos requisitos formais previstos no art. 44º do Código de Processo Penal, a concessão da escusa depende da verificação, em concreto, dos requisitos substantivos previstos nos n.ºs 1 ou 2 do art. 43º do mesmo diploma, supra transcritos.
Conquanto o nosso ordenamento jurídico não defina explicitamente o que se deve entender por imparcialidade do tribunal, o art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos[2], sob a epígrafe ”Direito a um processo equitativo”, contém, no seu n.º 1, uma referência a esse conceito, dispondo que "[q]ualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, (…)".

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, em extensa jurisprudência, tem vindo a densificar o conceito de “tribunal imparcial”, entendendo[3] que a imparcialidade do tribunal deve ser apreciada segundo uma dupla perspetiva: segundo uma apreciação subjetiva, relativamente à convicção e ao pensamento do juiz numa dada situação concreta, não podendo o tribunal manifestar subjetivamente qualquer preconceito ou prejuízo pessoais, sendo que a imparcialidade pessoal do juiz se deve presumir até prova em contrário; e também, segundo uma apreciação objetiva, isto é, saber se o juiz oferece garantias bastantes para excluir a este respeito qualquer dúvida legítima.
Entre nós, também o Tribunal Constitucional[4] reconhece essas duas vertentes, objetiva e subjetiva, do conceito de “imparcialidade”, concretamente na consagração constitucional do princípio do acusatório (art. 32º, n.º 5 da Constituição), e do princípio do processo justo e equitativo na consagração das garantias de defesa (art. 32.º, n.º 1), os quais visam assegurar um julgamento independente e imparcial.
A imparcialidade do juiz constitui, assim, uma garantia essencial para quem submeta a sua causa à apreciação e decisão de um tribunal, termos em que se impõe que o desempenho do cargo seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral da comunidade, de modo a que encare a decisão como resultado de um julgamento objetivo e imparcial.

A propósito das referidas vertentes do conceito de imparcialidade, refere o Supremo Tribunal de Justiça o seguinte[5]:

«Na perspetiva ou aproximação subjetiva ao conceito, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, e pressupõe a determinação ou a demonstração sobre aquilo que um juiz, que integre o tribunal, pensa no seu foro interior perante um certo dado ou circunstância, e se guarda, em si, qualquer motivo para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão. A perspetiva subjetiva, por princípio, impõe que existam provas que permitam demonstrar ou indiciar relevantemente uma tal predisposição, e, por isso, a imparcialidade subjetiva presume-se até prova em contrário. Neste aspeto, a função dos impedimentos constitui um modo cautelar de garantia da imparcialidade subjetiva.

Mas a dimensão subjetiva não basta à afirmação da garantia. Releva, também, e cada vez mais com acrescido reforço, uma perspetiva objetiva, que é consequencial à intervenção no direito processual, com o suporte de um direito fundamental, de um conceito que não era, por tradição, muito chegado à cultura jurídica continental: a aparência, que é traduzida no adágio "justice must not only be done; it must also be seen to be done", que revela as exigências impostas por uma sensibilidade acrescida dos cidadãos às garantias de uma boa justiça.
Na abordagem objetiva, em que são relevantes as aparências, intervêm, por regra, considerações de carácter orgânico e funcional (v. g., a não acumulabilidade de funções em fases distintas de um mesmo processo), mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio, objetivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra si.
Mas devem ser igualmente consideradas outras posições relativas que possam, por si mesmas e independentemente do plano subjetivo do foro interior do juiz, fazer suscitar dúvidas, receio ou apreensão, razoavelmente fundadas pelo lado relevante das aparências, sobre a imparcialidade do juiz; a construção conceptual da imparcialidade objetiva está em concordância com a conceção moderna da função de julgar e com o reforço, nas sociedades democráticas de direito, da legitimidade interna e externa do juiz.
A imparcialidade objetiva apresenta-se, assim, como um conceito que tem sido construído muito sobre as aparências, numa fenomenologia de valoração com alguma simetria entre o "ser" e o "parecer". Por isso, para prevenir a extensão da exigência de imparcialidade objetiva, que poderia ser devastadora, e para não cair na "tirania das aparências" (cfr., Paul Martens, "La tyrannie des apparences", "Revue Trimestrielle des Droits de L´Homme", 1996, pag. 640), ou numa tese maximalista da imparcialidade, impõe-se que o fundamento ou motivos invocados sejam em cada caso, apreciados nas suas próprias circunstâncias, e tendo em conta os valores em equação - a garantia externa de uma boa justiça, que seja mas também pareça ser. (…)
As aparências são, pois, neste contexto, inteiramente de considerar, sem riscos devastadores ou de compreensão maximalista, quando o motivo invocado possa, em juízo de razoabilidade, ser considerado fortemente consistente («sério» e «grave») para impor a prevenção.»

Nessa linha, o art. 43º do Código de Processo Penal exige, como requisito de ordem substantiva do pedido de escusa do juiz para intervir em determinado processo, que essa intervenção corra o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave adequado a gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade, ou quando tenha tido intervenção anterior no processo fora dos casos do artigo 40º do mesmo diploma (cf. nºs 1, 2 e 4).
Esta cláusula geral de suspeição revela que a preocupação central do regime legal em apreço é prevenir o perigo de a intervenção do juiz ser encarada com desconfiança e suspeita pela comunidade, sendo que, na sua interpretação e aplicação, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem adotado um critério particularmente exigente, pois que, estando em causa o princípio do juiz natural, deve tratar-se de uma suspeição fundada em motivo sério e grave, como requer o citado art. 43º, n.º 1.
O presente pedido de escusa é solicitado com a invocação de motivos que têm a ver inteiramente com a referida dimensão objetiva, estando, pois, em causa as aparências, que podem afetar, não rigorosamente a boa justiça, mas sim a compreensão externa sobre a garantia da boa justiça, que terá não só o ser, mas também de o parecer.
Do que se trata é averiguar se a projeção externa da imparcialidade do juiz é suscetível de suscitar reparos no público em geral e, particularmente, nos destinatários da decisão que o mesmo venha a proferir na causa.
Para tanto é necessário, como vimos, que os motivos invocados sejam sérios, graves e adequados a gerar a desconfiança na imparcialidade do juiz.
Significa isto que não basta um qualquer motivo que impressione subjetivamente o cidadão em geral ou algum destinatário da decisão, relativamente ao risco da existência de algum prejuízo ou preconceito contra este.
O que se exige é que o motivo invocado seja tal modo relevante que, objetivamente, não só pelo destinatário da decisão, mas também pelo homem médio, com conhecimento desinteressado da situação, possa ser entendido como suscetível de afetar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.
Para a procedência do pedido de escusa não são suficientes quaisquer razões, mesmo que desconfortáveis ou penosas para o juiz, antes se exigindo que sejam fortes a ponto de abalar a credibilidade, isto é, que sejam motivos sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade.
A gravidade e a seriedade dos motivos hão de resultar de uma determinada situação concreta, reveladora dos elementos processuais (intervenções anteriores) ou pessoais (relação de proximidade, amizade ou confiança com interessados na decisão) que sejam de molde a suscitar dúvidas ou apreensões a um homem médio inserido na comunidade onde o juiz exerce a sua função quanto à existência de qualquer prejuízo ou preconceito deste sobre a matéria da causa ou sobre a posição de algum destinatário da decisão.
Os motivos sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, hão de resultar de objetiva justificação, avaliando-se as circunstâncias invocadas pelo requerente, não pelo convencimento subjetivo deste, mas pela valoração objetiva das mesmas circunstâncias a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o julgador.

2. No caso em apreço, analisando os respetivos fundamentos, constata-se que o pedido de escusa se baseia na intervenção da Mmª. Juíza requerente num julgamento anterior, realizado no processo n.º 269/18.4GAPTB, respeitante a um crime conexo com aquele que constitui o objeto do processo n.º 270/18.8GAPTB, que agora lhe foi distribuído para julgamento, envolvendo os mesmos intervenientes, ainda que em posições opostas.

Naquele primeiro processo, o aí arguido, A. P., foi acusado e condenado pela prática de um crime de violência doméstica em relação à sua ex-mulher, S. D., envolvendo, para além de outros episódios de maus tratos, uma situação ocorrida no dia 30-12-2018, junto à casa de morada de família do ex-casal, em que o arguido, ao sair do local no seu veículo automóvel, em manobra de marcha atrás, fê-lo em direção à ofendida, vindo a embater propositadamente com o mesmo nas pernas desta.

Como resulta da motivação da decisão de facto da sentença proferida nesses autos, no processo de formação da sua convicção sobre tal factualidade, a Mmª. Juíza desvalorizou por completo os depoimentos das testemunhas de defesa J. S. e I. D., ambos menores de 14 anos e filhos do casal, que negaram tais factos, tendo inclusivamente a segunda afirmado que a mãe é que se colocou por trás do carro do pai e depois fingiu que se magoou.
Para tanto, a julgadora consignou que tais depoimentos foram totalmente induzidos e preparados, denotando que as testemunhas se encontram totalmente manipuladas pelo pai, que as forçou a depor contra a mãe.
No âmbito das considerações sobre a credibilidade dessas testemunhas, a Mmª. Juíza criticou o arguido, por não poupar os filhos de apenas catorze anos de idade ao sofrimento de deporem em juízo contra a progenitora, vindo denegrir a imagem desta, afirmando que tal é demonstrativo dos sentimentos negativos que nutre pela mesma e de que se encontra disposto a tudo para a fazer sofrer.
Será tal circunstancialismo suficiente para concluir que a julgadora já terá um pré-juízo formado em relação ao objeto do processo que agora lhe foi distribuído ou que o cidadão médio possa ter essa perceção?
Recorde-se que, no segundo processo, está em causa o facto de a arguida ter desferido pontapés no carro do assistente, sendo que as duas únicas testemunhas arroladas por este na acusação particular são precisamente os dois referidos filhos menores do ex-casal, que a Mmª. Juíza no âmbito do processo anterior, por factos conexos, inseridos no mesmo pedaço de vida e inclusivamente ocorridos no mesmo episódio espácio temporal, considerou que mentiram, por estarem manipuladas e forçadas pelo pai a depor contra a mãe, tendo ainda censurado o arguido por as ter arrolado como testemunhas.
Apesar de a resposta à primeira questão supra formulada ser claramente negativa, entendemos que já deverá ser positiva em relação à segunda.
Na verdade, a decisão de facto proferida no processo n.º 269/18.4GAPTB mostra-se fundamentada de forma objetiva e racional, com base na livre apreciação da prova produzida em julgamento.
Compreende-se a motivação da Mmª. Juíza requerente, ao colocar perante este Tribunal a questão de poder ser escusada de intervir num segundo julgamento, relativo a factos ocorridos entre os mesmos intervenientes e no mesmo episódio espácio temporal em que tiveram lugar os factos conexos que julgou anteriormente num outro processo, em que desconsiderou os depoimentos de determinadas testemunhas, comuns a ambos os processos, por lhe terem parecido instrumentalizadas e manipuladas pelo sujeito processual que as arrolou.
Certamente que a julgadora voltaria a ter um desempenho profissional imparcial e isento no segundo julgamento, o que nesta sede nem sequer se discute.
O juiz probo, possuidor das normais características de qualquer juiz, está preparado e sabe exercer o seu múnus sem se deixar influenciar pelo que se passou num julgamento anterior, no âmbito de um processo conexo com o que tem agora para julgar, ainda que com os mesmos intervenientes, e por factos ocorridos num dos episódios em causa no primeiro processo, mormente no que concerne à falta de credibilidade de testemunhas que são comuns a ambos os processos.
Tal circunstância não impedirá a Mmª. Juíza requerente de atuar no segundo julgamento com objetividade e imparcialidade, obedecendo apenas à lei no processo de valoração da prova, independentemente da convicção que formou no julgamento anterior.
Aliás, é natural e vulgar que um juiz tenha jurisdição em mais do que um processo com envolvimento das mesmas pessoas, pelo que a sua intervenção anterior num deles nem sempre constituirá, e em regra não constituirá, fundamento para um pedido de escusa.
Todavia, de acordo com as considerações tecidas supra, a questão que se coloca é a saber se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, em face da posição assumida pela Mmª. Juíza no processo anterior, sentir dúvidas, receio ou apreensão, razoavelmente fundados pelo lado relevante das aparências, sobre a sua imparcialidade para intervir no julgamento do processo conexo.

Como já referimos, o próprio art. 43º do Código de Processo Penal, no seu n.º 2, prevê que "[p]ode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º".

Este último artigo, que prevê vários casos de impedimento de intervenção do juiz em julgamento, tem em vista garantir a imparcialidade do juiz enquanto elemento fundamental à integração da função jurisdicional, face a intervenções processuais anteriores que, pelo seu conteúdo e âmbito, são consideradas como razão impeditiva de futura intervenção.
Na verdade, o envolvimento do juiz no processo, através da sua direta intervenção enquanto julgador, através da tomada de decisões, implica sempre a formação de juízos e convicções, sendo suscetível de condicioná-lo em futuras decisões, assim afetando a sua imparcialidade objetiva, razão pela qual o legislador impede os julgadores de intervir nas situações em que a cumulação de funções processuais pode fazer suscitar no interessado, bem como na comunidade, apreensões e receios, objetivamente fundados.
Constitui elemento comum a todas as causas de impedimento tipificadas nas al.s a) a e) do art. 40º a intervenção anterior do juiz no processo, ou seja, a intervenção em fase anterior do processo.
O que não sucede, é certo, no caso em análise, em que a Mmª. Juíza requerente da escusa presidiu a um julgamento que teve lugar noutro processo, ainda que conexo.
Todavia, afigura-se-nos que a ratio legis subjacente às situações de impedimento tipificadas na lei estende-se a este caso, atentas as suas especificidades.
Na verdade, o objeto do processo que agora foi distribuído para julgamento insere-se num dos episódios objeto de apreciação no processo anterior, havendo todas as razões para admitir que as testemunhas arroladas pelo assistente também estarão manipuladas e instruídas por ele para depor contra a arguida, confirmando os factos imputados a esta, à semelhança do que sucedeu no julgamento do processo anterior.
Assim, para o cidadão médio, a intervenção da requerente no julgamento do segundo processo poderá ser adequada a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, uma vez que se poderá admitir a possibilidade de ter a sua convicção já formada em relação à falta de credibilidade das duas únicas testemunhas arroladas na acusação do segundo processo e, consequentemente, em relação ao objeto do mesmo, por se inserir na mesma realidade histórica daquela que já foi anteriormente julgada por si.
Pelo exposto, afigura-se-nos que existe um motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, constituindo, assim, fundamento para deferir a escusa ao abrigo do disposto no art. 43º, n.ºs 1, 2 e 4, do Código de Processo Penal, a circunstância de a Mmª. Juíza requerente já ter presidido ao julgamento de um processo conexo com aquele em que agora pede a escusa, por estarem em causa em ambos os processos factos ocorridos no mesmo episódio espácio temporal e inseridos no mesmo recorte de vida, tendo a Mmª. Juíza expressado na sentença proferida no primeiro processo uma convicção segura sobre a falta de credibilidade de duas testemunhas arroladas pelo aí arguido, por se mostrarem manipuladas e instrumentalizadas por este, criticando-o por as ter indicado, sendo elas as únicas testemunhas arroladas pelo mesmo no segundo processo.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em deferir o pedido de escusa formulado pela Mmª. Juíza P. M., a exercer funções no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, no Juízo Local Criminal de Ponte da Barca, relativamente à sua intervenção no processo comum, com intervenção de juiz singular, com o NUIPC 270/18.8GAPTB, processo este que deverá ser remetido ao juiz que, de harmonia com as leis da organização judiciária, deva substituir a requerente (art. 46º do Código de Processo Penal).

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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
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Guimarães, 09 de março de 2020

(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)
(assinado eletronicamente, conforme assinaturas apostas no canto superior esquerdo da primeira página)


1. - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo a correção de manifestos lapsos de escrita, a formatação e a ortografia utilizada, que são da responsabilidade do relator.
2. - “Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais”, Roma, 4.11.1950, com entrada em vigor na ordem jurídica portuguesa a 09 de Novembro de 1978 - (Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, publicada no Diário da República, I Série, n.º 236/78).
3. - Nomeadamente no acórdão Lavents v. Letónia, de 28-11-2002.
4. - Nomeadamente nos acórdãos n.º 124/90, de 19-04-1990 (processo n.º 58/89), n.º 935/96, de 10-07-1996 (processo n.º 674/92) e n.º 186/98, de 18-02-1998 (processo n.º 528/97), todos disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt.
5. - Cf., nomeadamente, o acórdão de 13-04-2005 (processo n.º 05P1138), disponível em http://www.dgsi.pt.