Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
120724/15.0YIPRT.1.G1-A
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: REFORMA DE ACÓRDÃO
EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O art. 616º, do CPC, é uma norma de cariz excecional que contém um desvio à regra do esgotamento do poder jurisdicional, constituindo pressupostos da sua aplicação:
a) que não haja lugar a recurso;
b) que tenha ocorrido lapso manifesto;
c) que esse lapso manifesto se refira à determinação da norma aplicável ou à qualificação jurídica dos factos ou à omissão de consideração de documentos ou outros meios de prova plena que, só por si, implicassem decisão diversa da proferida.
II - O lapso manifesto a que se reporta este normativo “tem de ser evidente e incontroverso, revelado por elementos que são exteriores ao despacho não se reconduzindo à mera discordância quanto ao decidido”.
III - “O incidente de reforma não deve ser usado para manifestar discordância do julgado ou tentar demonstrar ‘error in judicando’ (que é fundamento de recurso) mas apenas perante erro grosseiro e patente, ou ‘aberratio legis’, causado por desconhecimento, ou má compreensão, do regime legal”.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

AA e BB vieram instaurar contra CC ação executiva com vista a obter o cumprimento coercivo das obras que o executado se comprometeu a realizar no âmbito de transação efetuada entre as partes e devidamente homologada, as quais se encontram descritas nos nºs 1 a 7 do ponto 5 do requerimento executivo.
Alegaram que as obras referidas em 1 a 6 do no nº 5 do requerimento executivo deveriam ter sido realizadas até 31.7.2016. Quanto à obra referida em 7, relativa à reparação das fissuras existentes no barbecue, uma vez que não foi fixado prazo para a sua realização, reputam como suficiente para tal efeito o prazo de 15 dias.
Pediram ainda o pagamento da indemnização e a fixação de sanção pecuniária compulsória.
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Tramitados os autos e realizada perícia, em 8.2.2022, foi proferido despacho (ref. citius ...96) com o seguinte teor:
Atento o teor do relatório de peritagem apresentado e datado 10/10/2021, atestando a conformidade dos trabalhos executados e cumprido que se mostra o contraditório, tem-se por concluída a prestação de facto a que o executado se achava obrigado desde a data da verificação (10/10/2021).
Assim, por necessária deriva, declara-se extinta a sanção pecuniária compulsória a que o executado se encontra adstrito desde a decisão sob a referência citius ...57, de 9/8/2019.
Notifique.
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Em 2.3.2022 o executado apresentou requerimento (ref. Citius ...28) dizendo que informou o tribunal da conclusão das obras em 4.12.2020.
Não pode ser responsabilizado pelo facto de o senhor perito só ter verificado a conformidade dos trabalhos quase um ano após a sua conclusão. Assim, requereu que seja declarada extinta a sanção pecuniária à data de 4.12.2020, data de conclusão das obras, e que sejam descontados os três meses de declaração do estado de emergência nos quais o executado não pôde efetuar qualquer trabalho.
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Em 28.3.2022, os exequentes apresentaram requerimento (ref. Citius ...08) opondo-se à pretensão do executado.
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Em 17.5.2022 foi proferido despacho (ref. Citius ...01) com o seguinte teor:

Requerimento sob a ref.ª ...28:
Com a decisão proferida em 08/02/2022, ref.ª citius ...96, que declarou concluída a prestação de facto a que o executado se achava obrigado desde a data da verificação (10/10/2021), bem com a sanção pecuniária compulsória, e considerando que o mecanismo processual adequado a ver alteradas decisões judiciais encontra um regime próprio na lei processual civil, não tendo o mesmo sido utilizado, mostra-se esgotado o poder jurisdicional deste Tribunal, razão por que nada há a determinar.
Notifique.
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O executado não se conformou e interpôs recurso deste despacho, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

1 – Por despacho judicial de 8/02/2022, foi decidido: “tem-se por concluída a prestação de facto a que o executado se achava obrigado desde a data da verificação (10/10/2021)”.bem como, “declara-se extinta a sanção pecuniária compulsória a que o executado se encontra adstrito desde a decisão (...) de 09/08/2019”.
2 – Com data de 2/03/2022, o Executado veio requerer que a extinção da sanção pecuniária compulsória fosse reportada à data de 4/12/2020, correspondente à da conclusão por si, das obras que estava compelido a realizar, tendo ainda requerido que no período que decorreu desde 9/08/2019 a 4/12/2020 fossem descontados “os três meses da declaração do estado de emergência, nos quais o ora requerente não pôde efectuar qualquer trabalho”.
3 – Sendo que, o despacho recorrido não apreciou as duas questões suscitadas pelo Executado, por ter considerado que “mostra-se esgotado o poder jurisdicional deste Tribunal”, logo salvo o devido respeito, sem qualquer razão, porém, uma vez que tais questões não foram objecto de qualquer decisão no despacho anterior, de 8/02/2022, nem em qualquer outro.
4 - Na verdade, a decisão de 8/02/2022 limita-se a considerar extinta a sanção pecuniária compulsória, não esclarecendo sequer, a que data se reporta tal extinção, nomeadamente, se à data da própria decisão, se também se reporta à data da verificação da conformidade dos trabalhos pelo perito (10/10/2021), se à data em que o Executado veio comunicar nos autos a realização integral dos trabalhos a que estava obrigado (4/12/2020), declaração verídica, conforme verificado posteriormente pelo perito, ou se a qualquer outra data.
5 – Acresce que, a decisão de 8/02/2022 também não se pronunciou sobre a pretensão formulada pelo Executado, de dever ser descontado ao período de incumprimento, o prazo de três meses correspondentes ao período do estado de emergência, pretensão que só foi formulada no Requerimento de 2/03/2022. Porquanto, torna-se assim evidente que o Tribunal recorrido não decidiu as questões submetidas pelo Executado à sua apreciação, como deveria fazer, por imposição do artº 608º, nº 2 do CPC.
6 - Omissão de pronúncia que provoca a nulidade da douta decisão recorrida, por força do artº 615º, nº 1, alínea d), do CPC, o que ora se requer.
De qualquer forma, devem as pretensões do Executado proceder.
7 - Na verdade, o Executado informou nos autos em 4/12/2020 o cumprimento da sua obrigação de prestação de facto, tendo desde tal data até à apresentação do relatório pericial que verificou e comprovou tal cumprimento, o Executado não realizou qualquer outro trabalho ou serviço na obra referenciada nos autos.
8 - Não pode por isso, ser imputado ao Executado, para efeitos de eventual exigência da sanção pecuniária compulsória que foi estipulada nos autos, o período de tempo que decorreu desde o cumprimento da prestação (em 4/12/2020) até à verificação de tal incumprimento pelo perito judicial (em 10/10/2021).
9 – Isto porque não cabia ao Executado a notificação do perito para realizar o relatório pericial, nem a deslocação do perito ao local para proceder à inspecção da obra, nem ainda, as diligências do perito para elaborar o novo relatório pericial e juntá-lo aos autos. 10 – Desta forma, a sanção pecuniária compulsória tem de se reportar, sempre e em qualquer circunstância, ao “atraso no cumprimento” da prestação pelo devedor – cfr. artº 829º-A, nº 1 do Cód. Civil. Devendo por isso, em complemento do despacho de 8/02/2022, deve ser especificado que a extinção da sanção pecuniária compulsória se considera reportada à data de 4/12/2020, correspondente à data do cumprimento pelo Executado da prestação de facto a que estava adstrito.
11- Finalmente, deve ser devidamente considerado que o Decreto do Presidente da República nº 14-A/2020, de 18/03 decretou o estado de emergência todo o território nacional com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, diploma que foi regulamentado pelo Decreto do Conselho de Ministros nº 2-A/2020, 20/03, o qual determinou o dever geral de recolhimento domiciliário e a suspensão das actividades económicas, com algumas excepções, entre as quais, não se encontra a construção civil, imposições legais que só cessaram em 3/06/2020.
12 – Constata-se assim, e é notório que durante os três meses em que vigorou o estado de emergência, o Executado também não pôde realizar os trabalhos a que estava vinculado, por razões legais, independentes da sua vontade. Razão pela qual, também tal período de 3 meses deve ser desconsiderado para efeitos de contagem do período de incumprimento da prestação de facto sujeito à sanção pecuniária compulsória estipulada nos autos.
13 - Assim, ainda em complemento do despacho de 8/02/2022, deve ser especificado que deve ser descontado ao período de incumprimento da prestação de facto exequenda, o prazo de três meses correspondentes ao período legal do estado de emergência em vigor entre Março e Junho/2020.
14 - Foram violados ou mal interpretados os artigos 608º, nº 2 e 615º, nº 1, alínea d), do CPC, o artº 829º-A, nº 1 do Cód. Civil e os artigos 1º e 2º do Decreto do Presidente da República nº 14-A/2020, de 18/03 e 5º, nº 1 e 9º nº 1, do Decreto do Conselho de Ministros nº 2-A/2020, 20/03.

Terminou pedindo que se considere nula a decisão recorrida, por omissão de pronúncia, e, em qualquer caso, que a mesma seja substituída por outra que, em complemento do despacho de 8.02.2022, especifique que a extinção da sanção pecuniária compulsória se considera reportada à data de 4.12.2020, correspondente à data do cumprimento pelo executado da prestação de facto a que estava adstrito e bem assim que ao período de incumprimento da prestação de facto exequenda deve ser descontado o prazo de três meses correspondentes ao período legal do estado de emergência que vigorou entre março e junho de 2020.
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Foi proferido acórdão que elencou como questões a decidir:

I - saber se a decisão recorrida é nula, por omissão de pronúncia quanto às questões suscitadas pelo executado/recorrente no requerimento de 2.3.3022;
II - saber se com a prolação do despacho de 8.2.2022 ficou esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido quanto às questões suscitadas pelo executado/recorrente no requerimento de 2.3.3022;
III - em caso de resposta negativa à questão anterior, saber se devem ser julgadas procedentes as pretensões deduzidas pelo executado/recorrente no requerimento de 2.3.3022, no sentido de a produção de efeitos da extinção da sanção pecuniária compulsória se reportar a 4.12.2020 e de ser efetuado o desconto dos três meses de declaração do estado de emergência.

O acórdão apreciou as aludidas questões e julgou a apelação improcedente, confirmando o despacho recorrido.
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O recorrente veio pedir a reforma do acórdão, defendendo que a decisão recorrida deve ser considerada nula, por omissão de pronúncia e, em qualquer caso, deve ser substituída por outra que, em complemento do despacho de 8.2.2022, especifique que a sanção pecuniária compulsória se considera reportada à data de 4.12.2020, correspondente à data do cumprimento pelo executado da prestação de facto exequenda a que estava adstrito, e bem assim que ao período de incumprimento da prestação de facto exequenda deve ser descontado o prazo de três meses correspondentes ao período legal do estado de emergência que vigorou entre março e junho de 2020.

Como fundamento do pedido de reforma alegou, em síntese, que:
- afirmar que não pode pronunciar-se sobre o mérito de questões com o argumento de que o poder jurisdicional se encontra esgotado é evitar a pronúncia sobre essas mesmas questões;
- é não emitir uma decisão sobre o mérito de tais questões, nomeadamente julgando-as procedentes ou improcedentes;
- o acórdão julgou as questões suscitadas com manifesto lapso e erro na qualificação jurídica dos factos;
- as questões não foram objeto de apreciação no despacho anterior de 8.2.2022, nem em qualquer outro;
- a decisão de 8.2.2022 limita-se a considerar extinta a sanção pecuniária compulsória, não esclarecendo a que data se reporta tal extinção;
- a afirmação feita no acórdão reclamado de que a extinção se reporta a 10.10.2021 é um contrassenso e um absurdo;
- o relatório pericial tem a data de elaboração mas não a data da verificação pelo perito das obras realizadas pelo executado;
- quanto ao desconto ao período de incumprimento do prazo de 3 meses correspondentes ao estado de emergência, é manifesto o lapso do tribunal de recurso pois tal questão não foi ponderada nem apreciada em qualquer dos despachos proferidos nos autos principais, como reconhece o acórdão recorrido, e se assim é, não se pode concluir que ficou esgotado o poder jurisdicional quanto a todas as matérias que digam respeito ao período em que vigorou a sanção pecuniária compulsória, designadamente quanto às que foram concretamente decididas e quanto às que não foram;
- tal julgamento viola a norma do art. 621º segundo a qual a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga;
- o despacho de 8.2.2022 não julgou se devia ser descontado um determinado período de tempo ao prazo de incumprimento, não podendo concluir-se que julgou tal questão improcedente porque dela não conheceu;
- não se vislumbra fundamento jurídico para alicerçar a imputação ao executado:
a) do período que decorreu entre a sua afirmação em 4.12.2020 de que tinha concluído as obras;
b) do período que decorreu entre a data da observação do perito de que as obras estavam concluídas e a data da elaboração do relatório pericial;
c) do período referente à pandemia, durante o qual o executado não pôde realizar quaisquer trabalhos.
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Não foi apresentada resposta pela parte contrária ao pedido de reforma apresentado.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Os factos relevantes para a decisão a proferir são os que se encontram descritos no relatório os quais resultam da consulta dos atos praticados no processo.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

O recorrente veio pedir a reforma do acórdão com os fundamentos que supra sintetizámos.

Dispõe o art. 613º, nº 1, do CPC, (diploma ao qual pertencem todas as normas subsequentemente citadas sem menção de diferente origem) que:

1 - Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
2 - É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.
3 - O disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se, com as necessárias adaptações aos despachos.

Estas normas são aplicáveis na 2ª instância, por força do estabelecido no art. 666º.

O princípio do esgotamento do poder jurisdicional, consagrado no art. 613º, nº 1, justifica-se pela necessidade de evitar a insegurança e incerteza que adviriam da possibilidade de a decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, funcionando como um obstáculo ou travão à possibilidade de serem proferidas decisões discricionárias e arbitrárias.
Assim, uma vez prolatada uma decisão, “o tribunal não a pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se, pois, de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais. (...) Graças a esta regra, antes mesmo do trânsito em julgado, uma decisão adquire com o seu proferimento um primeiro nível de estabilidade interna ou restrita, perante o próprio autor da decisão” (Rui Pinto in CPC Anotado, Vol. II, pág. 174).

Portanto, da extinção do poder jurisdicional decorre esta consequência irrecusável: o juiz não pode, motu proprio, voltar a pronunciar-se sobre a matéria apreciada (cf. Acórdão da Relação de Coimbra, de 17.4.2012, Relator Henrique Antunes, in www.dgsi.pt).
Prolatada a decisão, e ressalvados os casos de retificação, reforma ou suprimento de nulidades, por força do esgotamento do poder jurisdicional fica vedada a possibilidade de essa decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu.

Como tal, podemos afirmar que da “extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem dois efeitos: um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; outro negativo, consistente na insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa in CPC Anotado, 2ª ed., Vol. I, pág. 762).

Por conseguinte, tendo sido proferido acórdão, ficou esgotado o poder jurisdicional, não podendo ser alterada a decisão proferida, salvos os casos de retificação de erros materiais, suprimento de nulidades e reforma da sentença, nos termos previstos nos arts. 614º a 617º, conforme permitido pelo art. 613º, nº 2.

No que especificamente concerne à reforma da sentença, ou do acórdão, dispõe o art. 616º, na parte que aqui releva, que:

2 - Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:
a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;
b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.


Esta norma contém um desvio à regra do esgotamento do poder jurisdicional, constituindo pressupostos da sua aplicação:
a) que não haja lugar a recurso;
b) que tenha ocorrido lapso manifesto;
c) que esse lapso manifesto se refira à determinação da norma aplicável ou à qualificação jurídica dos factos ou à omissão de consideração de documentos ou outros meios de prova plena que, só por si, implicassem decisão diversa da proferida.

O lapso manifesto a que se reporta este normativo “tem de ser evidente e incontroverso, revelado por elementos que são exteriores ao despacho não se reconduzindo à mera discordância quanto ao decidido” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa in CPC Anotado, Vol. I, 2ª ed., pág. 764).
Como exemplo de erros revelados por recurso a elementos exteriores à decisão, para efeitos de possibilidade da sua reforma à luz do art. 616º, nº 2, temos o caso de o juiz aplicar uma norma revogada, omitir a aplicação de norma existente, qualificar os factos com ofensa de conceitos ou princípios elementares de direito ou não reparar que está feita a prova documental, por confissão ou por admissão de certo facto, incorrendo assim em erro grosseiro (cf. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, Vol. 2º, pág. 742).
O lapso manifesto tem a ver com uma flagrantemente errada interpretação de preceitos legais (não por opção por discutível corrente doutrinária ou jurisprudencial) podendo, no limite, ter por base o desconhecimento. O incidente de reforma não deve ser usado para manifestar discordância do julgado ou tentar demonstrar ‘error in judicando’ (que é fundamento de recurso) mas apenas perante erro grosseiro e patente, ou ‘aberratio legis’, causado por desconhecimento, ou má compreensão, do regime legal” (Rui Pinto in CPC Anotado, Vol. II, pág. 182).

Na verdade, a “reforma da decisão não é um recurso – nem na modalidade de reapreciação ou reponderação, nem da de reexame (...), pelo que não pode servir para mera manifestação de discordância do julgado, mas apenas, e sempre perante o juízo decisor – tentar suprir uma deficiência notória” (Acórdão do STJ, de 18.3.2021, Relator Ilídio Sacarrão Martins, in www.dgsi.pt).

Dito de outro modo, a reforma do acórdão, que possui carácter excecional, “destina-se a corrigir um erro juridicamente insustentável e, como a jurisprudência tem vindo a afirmar, só será admissível perante erros palmares, patentes, que, pelo seu carácter manifesto, se teriam evidenciado ao autor ou autores da decisão, não fora a interposição de circunstância acidental ou uma menor ponderação tê-la levado ao desacerto.
Essa faculdade não se destina à mudança do decidido com base nas divergências entre as partes e o tribunal quanto à interpretação e aplicação das regras de direito ou quanto ao apuramento, interpretação e qualificação dos factos relevantes, as quais, se encerrarem erros de julgamento, só poderão ser corrigidos por recurso, nos casos em que a lei ainda o admita” (Acórdão do STA, de 1.7.2020, Relator FRANCISCO ROTHES, processo n.º 0153/07.7BECTB, in www.dgsi.pt).

Ora, transpondo estas considerações para o caso dos autos, verifica-se que o recorrente, tecendo várias considerações para concluir em sentido oposto ao acórdão reformando, mais não faz do que manifestar o seu desacordo sobre o acórdão, repetindo, no essencial, os argumentos que já havia usado nas alegações do recurso de apelação, os quais já foram objeto de análise e subsequente apreciação, tendo sido julgados improcedentes.

Discordando do acórdão em causa, o recorrente não aponta qualquer lapso manifesto por ter ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, e ainda menos por desconsideração de documentos que constem do processo e que, se atendidos, implicariam necessariamente decisão diversa da proferida.

Refere que houve violação do disposto no art. 621º, segundo a qual a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga, porque o despacho de 8.2.2022 não julgou se devia ser descontado um determinado período de tempo ao prazo de incumprimento, não podendo concluir-se que julgou tal questão improcedente porque dela não conheceu. E, citando o acórdão reformando, diz que considera que não se pode concluir que “com a prolação do despacho de 8.2.2022 ficou esgotado o poder jurisdicional quanto a todas as matérias que digam respeito ao período em que vigorou a sanção pecuniária compulsória, designadamente quanto às que foram concretamente decididas e quanto às que não foram”.

Efetivamente, o acórdão contém a frase citada. Porém, a mesma não foi transcrita na sua integralidade, só tendo sido transcrita na parte em que o recorrente pretende dela extrair uma ilação que beneficie a interpretação que sustenta, de ter ocorrido lapso na norma aplicável e violação do disposto no art. 621º.

Porém, não houve nenhum lapso, manifesto ou não, e o que se diz no acórdão é o seguinte:
 
A pretensão manifestada pelo executado de ser descontado a este período os três meses correspondentes ao estado de emergência, por não ter podido prestado qualquer trabalho, é matéria que, se fosse admitida, implicaria a alteração do que foi decidido em 8.2.2022.
É verdade que essa concreta matéria não foi apreciada em 8.2.2022 porque o executado nessa altura não tinha manifestado essa pretensão, o que só veio a fazer no requerimento de 2.3.2022. Mas nem por isso se pode concluir que o poder jurisdicional sobre a questão não esteja esgotado. Na verdade, com a prolação do despacho de 8.2.2022 ficou esgotado o poder jurisdicional quanto a todas as matérias que digam respeito ao período em que vigorou a sanção pecuniária compulsória, designadamente quanto às que foram concretamente decididas e quanto às que não foram, unicamente porque não foram suscitadas quando podiam e deviam ter sido deduzidas até esse momento por já se verificarem. Ora, o executado, se entendia que havia qualquer período a descontar na sanção pecuniária compulsória a que sabia que se encontrava sujeito desde a prolação do despacho 9.8.2019, designadamente por ter estado impedido de realizar trabalhos enquanto vigorou o estado de emergência, tinha que ter alegado tal situação em momento anterior, designadamente no requerimento que apresentou em 4.12.2020 em que suscitou a realização da perícia para atestar a realização da prestação de facto. À data em que este requerimento foi apresentado, a situação de facto em que se alicerça a pretensão do executado/recorrente de desconto do período de declaração do estado de emergência já existia, pelo que se impunha que o executado tivesse formulado esse pedido para que o tribunal o pudesse ter apreciado quando foi proferida a decisão de 8.2.2022. Não o tendo feito, por aplicação dos princípios da concentração da defesa, da eventualidade e da preclusão que decorrem do art. 573º, aplicáveis à execução ex vi art. 551º, nº 2, com as necessárias adaptações, fica precludido o direito de o fazer posteriormente. Se assim não se entendesse, o executado/recorrente poderia, de forma enviesada, obter a alteração do decidido em 8.2.2022, invocando factos que já existiam antes dessa data, mas que o mesmo não cuidou de alegar no processo apesar de estar em condições de o fazer pois os factos não são supervenientes.
Deste modo, e pelas razões expostas, entendemos que efetivamente com a prolação do despacho de 8.2.2022 ficou esgotado o poder jurisdicional do tribunal no que concerne ao período temporal durante o qual vigorou a sanção pecuniária compulsória razão pela qual lhe estava vedado apreciar o requerido pelo executado em 2.3.2022, sob pena de proferir uma decisão juridicamente inexistente.”

Por conseguinte, e lendo na integralidade a fundamentação do acórdão quanto a esta concreta matéria, verifica-se que não há qualquer lapso, manifesto ou não, nem qualquer violação do disposto no art. 621º, estando devidamente explanado o raciocínio seguido e a decisão alcançada, os quais têm sustentação nas normas legais invocadas.

Não foi invocado erro na determinação de qualquer outra norma jurídica aplicável.

Na verdade, o que o recorrente pretende é utilizar o incidente de reforma para obter a alteração da decisão, com a qual não concorda, insistindo e repetindo argumentos que já tinha apresentado no recurso, e que não foram acolhidos para sustentar a sua posição, tecendo várias considerações que mais não são do que a manifestação do seu desacordo e inconformismo relativamente ao decidido, não invocando qualquer situação passível de se enquadrar nas hipóteses em que a lei permite a reforma da decisão, pois não aponta nem demonstra qualquer erro manifesto, palmar ou evidente cometido no acórdão por manifesto lapso.

Porém, como explanado, não é essa a finalidade do incidente de reforma, o qual, constituindo um desvio à regra geral do esgotamento do poder jurisdicional, só é admissível nos apertados limites que já deixámos delineados.
A ser acolhida a perspetiva do recorrente, todas as decisões passariam a poder ser objeto de pedido de reforma bastando que a parte vencida viesse alegar que houve um lapso manifesto na prolação da decisão.

Assim, tendo o acórdão proferido decidido as questões recursórias supra elencadas, com essa prolação esgotou-se o poder jurisdicional, nos termos do n.º 1 do art.º 613.º, e, não ocorrendo qualquer das situações previstas no seu n.º 2, designadamente no na al. a) do n.º 2 do art.º 616.º, aplicáveis por força do do art.º 666.º, a pretensão do recorrente tem que improceder.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em indeferir o pedido de reforma do acórdão.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC e art.º 7.º, n.º 4, do RCP e tabela II anexa).
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Sumário (da responsabilidade da relatora, conforme art. 663º, nº 7, do CPC):

I - O art. 616º, do CPC, é uma norma de cariz excecional que contém um desvio à regra do esgotamento do poder jurisdicional, constituindo pressupostos da sua aplicação:
a) que não haja lugar a recurso;
b) que tenha ocorrido lapso manifesto;
c) que esse lapso manifesto se refira à determinação da norma aplicável ou à qualificação jurídica dos factos ou à omissão de consideração de documentos ou outros meios de prova plena que, só por si, implicassem decisão diversa da proferida.
II - O lapso manifesto a que se reporta este normativo “tem de ser evidente e incontroverso, revelado por elementos que são exteriores ao despacho não se reconduzindo à mera discordância quanto ao decidido”.
III - “O incidente de reforma não deve ser usado para manifestar discordância do julgado ou tentar demonstrar ‘error in judicando’ (que é fundamento de recurso) mas apenas perante erro grosseiro e patente, ou ‘aberratio legis’, causado por desconhecimento, ou má compreensão, do regime legal”.
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Guimarães, 11 de maio de 2023

(Relatora) Rosália Cunha
(1ª Adjunta) Lígia Venade
(2º Adjunto) Fernando Barroso Cabanelas