Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
721/16.6GAVNF.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
BERMA
ARTºS 1º ALS. B) E H) 17º NºS 1 E 2 E 99º NºS 1 E 2 AL. B) DO CE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/04/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Em face do disposto nos arts. 1º, als. b) e h), 17º, n.ºs 1 e 2, e 99º, n.ºs 1 e 2, al. b), do Código da Estada, a berma é a superfície da via pública contígua à faixa de rodagem, ladeando-a, destinada não ao trânsito de veículos, a não ser em situações excecionais, mas sim ao trânsito dos peões e desde que não haja de passeios, pistas ou passagens para o efeito, sendo que na ausência de qualquer desses locais, os peões poderão transitar pela parte da via pública especialmente destinada ao trânsito de veículos, ou seja, pela faixa de rodagem.

II) Assim, não existe berma num local em que a via pública, em virtude de se situar sobre um pontão, sofre uma redução da sua largura para 3,55 metros e em que toda a sua superfície está compreendida entre o gradeamento existente de ambos os lados, não havendo passeio nem qualquer delimitação ou demarcação, sendo, pois, toda ela destinada ao trânsito de veículos e constituindo faixa de rodagem, o que afasta a possibilidade de verificação da contraordenação de circulação de veículo nas bermas ou passeios, prevista no art. 17º, n.ºs 1 e 4, do Código da Estrada.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo comum, com intervenção de juiz singular, com o NUIPC 721/16.6GAVNF, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no Juízo Local Criminal de Vila Nova de Famalicão – J2, realizado o julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo (transcrição [1]):

«3. DECISÃO

Pelo exposto, o Tribunal julga procedente, por provada, a acusação pública, em função do que:

1. Condena o arguido, A. S., pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 145°, n°s 1, al. a) e 2 ex vi 132°, n° 2, al. h), e 69°, n° 1, al. b), todos do Código Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, nos termos do art. 50°, n°s 1 e 5 do Código Penal, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 6 (seis) meses;
2. Condena o arguido A. S., pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de omissão de auxílio, p.p. pelo art.° 200°, n.° 1 e 4 do Código Penal, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros).
3. Condena o arguido A. S., pela prática, em autoria material, de uma contraordenação, p.p. pelo art° 17°, n.° 1 e 4 do Código da Estrada, na coima de € 120,00 (cento e vinte) euros.»

2. Inconformado, o arguido recorreu dessa decisão, concluindo a motivação nos seguintes termos (transcrição):

«CONCLUSÕES:

I) O douto Tribunal recorrido deu como provado que o arguido “Sabia que não podia invadir berma existente na via pública, como fez, com pleno conhecimento que a mesma era para utilização dos peões“, no entanto tal facto deveria ter sido como não provado, em face dos elementos constantes do processo, nomeadamente, das fotografias juntas, pela GNR.

II) Com esta alteração, o arguido deve ser absolvido da prática da contraordenação, p. p. pelo art. 17º, n.º 1 e 4 do Código da Estrada, de que vinha acusado, uma vez que não existindo berma não é possível o cometimento da referida contraordenação.

III) O douto Tribunal recorrido deu como provado que: “- O arguido parou o veículo que conduzia ao lado do irmão e do interior disse-lhe “ não te metas na minha vida, que eu fodo-te “, ao que ele respondeu que ir pôr o assunto das partilhas no tribunal, querendo significar que era o juiz quem ia decidir.
- O arguido engrenou a primeira velocidade do veículo que conduzia e avançou na direção do irmão, apertando-o contra o gradeamento da ponte, a sensivelmente a 5 metros do final do gradeamento atento o sentido de marcha em que seguiam.
- O ofendido fugiu na direção de Couto de Cambeses, mas o arguido continuou a marcha e apertou novamente o irmão contra as grades com a parte lateral esquerda da carrinha.
- O ofendido gritou e o arguido, então, recuou e saiu dali em direção a Couto Cambeses.
- O ofendido permaneceu no local com dores, até que pessoa não identificada apareceu ali e chamou o 112, tendo ido de ambulância para o Hospital desta cidade, onde entrou às 13:57.
- Por causa das atitudes do arguido, o ofendido - benf. da SS n.º …478 e do SNS n.º …321 - sofreu
No ráquis, sem limitação da mobilidade da coluna dorso-lombar;
e
No abdómen, cicatriz trófica, mormocrómica no flanco esquerdo com 2 x 0,2 cm de maiores dimensões, lesões que lhe determinaram direta e necessariamente 61 dias de doença, sendo 2 dias com afetação da capacidade de trabalho geral e 61 dias com afetação da capacidade de trabalho profissional, e, como consequência permanente, a cicatriz no flanco esquerdo, que não desfigura de forma grave,
- O arguido agiu com o propósito conseguido de maltratar o corpo do ofendido, utilizando um meio (automóvel) que sabia ser idóneo a causar ferimentos graves e até a morte a uma pessoa, bem sabendo que a sua utilização o investia numa situação de superioridade em relação ao ofendido, seu irmão, o que se traduzia no emprego de um meio desleal.
- Não prestou o auxílio que deveria prestar ao seu irmão e que sabia que era necessário, saindo do local sem se importar com o que lhe pudesse ter acontecido e sem que providenciasse socorros para assistir à vítima, bem sabendo que esta poderia estar em perigo para a vida ou mesmo para a integridade física “, mas tais factos deveriam ter sido dados como não provados, uma vez que não foram corroborados por nenhuma testemunha ou outro meio de prova, a não ser o ofendido. Neste caso, deve funcionar o princípio do in dubio pro reu.

IV) Com estas alterações, o arguido deve ser absolvido dos crimes de ofensa à integridade física qualificada, em concurso real com um crime de omissão de auxílio.

V) No caso de não se entender assim, o que não se concede, então deverão ser reduzidas as penas aplicadas, ao recorrente, em face das circunstâncias que militam a seu favor.

VI) Devem, pois, ser reduzidas as penas aplicadas, quanto ao crime de ofensa à integridade física qualificada, deve a pena de prisão ser reduzida para 3 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, e a sanção acessória de proibição de conduzir veículos a motor deve ser reduzida para três meses; quanto ao crime de omissão de auxílio, deve a pena de multa ser reduzida para 50 dias de multa, à taxa diária de € 6,00; e quanto à contraordenação, deve a coima aplicada ser reduzida para € 60,00.

VII) Assim, a decisão da douta sentença recorrida violou os artigos 145º, 200º, 70º, 71º, todos do Código Penal e o n.º 1, do artigo 17º do Código da Estrada.

Nestes termos e nos mais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida, e substituída por outra, que absolva o recorrente dos crimes de vinha acusado, ou que reduza as penas aplicadas, quanto ao crime de ofensa à integridade física qualificada, para 3 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, e a sanção acessória de proibição de conduzir veículos a motor para três meses; quanto ao crime de omissão de auxílio para 50 dias de multa, à taxa diária de € 6,00; e quanto à contraordenação, para € 60,00.
FAZENDO ASSIM V. EX.AS
JUSTIÇA.»

3. A Exma. Procuradora Adjunta respondeu ao recurso, concluindo a sua contramotivação nos seguintes termos (transcrição):

«CONCLUSÕES:

I - Da análise das fotografias que a GNR juntou aos autos conclui-se que que não existia qualquer passeio na via, tal como constava da acusação. No entanto, o local onde ocorreram os factos que resultaram provados é uma superfície que ladeia a faixa de rodagem, ainda que não esteja demarcada. - cfr. art.° 1.°, al. b) e n.° 1 do art.° 17.° do Código da Estrada.
Em face do exposto, entendemos que os factos que resultaram provados ocorreram na berma, pelo que, improcede a argumentação do recorrente quanto a esta questão.
II - A decisão sobre a matéria de facto é perfeitamente compatível com as regras da experiência comum, não se tratando de decisão arbitrária, afastada da decorrência da prova em julgamento, antes se revelando uma das leituras possíveis e até a mais adequada, não resultando da mesma que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido, pelo que não ocorreu qualquer violação ao princípio do in dubio pro reo.
III - As penas aplicadas na sentença recorrida não merecem qualquer reparo, tendo respeitado quer as finalidades da punição definidas no art° 40°, n° 1 do Código Penal, quer os critérios legais de escolha e determinação das penas previstos nos art.s 70.° e 71.° do Código Penal, atendendo a todas as circunstâncias relevantes que foram devidamente ponderadas.
IV - Igualmente a coima de € 120,00 (cento e vinte) euros que foi aplicada ao arguido pela contraordenação que o mesmo praticou respeita os critérios legais da sua determinação, sendo perfeitamente justa e adequada.
V - Não foram violadas as normas jurídicas invocadas pelo recorrente nem quaisquer outras.

Termos em que,
se V. Exas. julgarem improcedente o recurso, mantendo a sentença recorrida, farão a habitual justiça!»

4. Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no sentido de o recurso merecer provimento parcial, devendo o arguido ser absolvido da contraordenação por que foi condenado, porquanto:

- Assiste razão ao recorrente quando alega que o tribunal não podia ter dado como provado que ele invadiu a berma existente na via pública, porquanto resulta da descrição da via efetuada pela GNR, conforme croquis elaborado e fotografias juntas, que a faixa de rodagem ocupava toda a via, não existindo no local onde se deu o embate qualquer berma, termos em que, nesta parte, a matéria de facto deve ser alterada, em conformidade, e o arguido absolvido da contraordenação que lhe vinha imputada.
- Quanto à impugnação da matéria de facto relativa aos crimes pelos quais o recorrente foi condenado, com fundamento no princípio in dubio pro reo, aquele não deu cumprimento aos ónus de especificação impostos pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412º do Código de Processo Penal, pelo que o tribunal ad quem só pode conhecer dos vícios a que alude o art. 410º, n.º 2, do mesmo código, sendo que a decisão em crise se encontra devidamente fundamentada, sendo apreensível o processo lógico-racional que esteve na base da formação da convicção do tribunal, não resultando da mesma que o julgador tenha tido dúvidas insanáveis quanto à matéria fáctica apurada e que, na dúvida, tenha optado por decidir contra o arguido, incorrendo em vício do erro notório na apreciação da prova, a que alude o art. 410º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, decorrente da violação do princípio in dubio pro reo.
- Pelas razões aduzidas na resposta ao recurso, as penas principais e a pena acessória encontradas pelo tribunal mostram-se justas e adequadas, obedecendo aos critérios legais, pelo que não merecem qualquer censura.
5. No âmbito do disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o recorrente não respondeu a esse parecer.
6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c), do citado código.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. DELIMITAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO

Em conformidade com o disposto no art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação pelo recorrente, não podendo o tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso [2].

Assim, no caso vertente, as questões a apreciar são:

a) - A impugnação da decisão sobre a matéria de facto por erro de julgamento e violação do princípio in dubio pro reo.
b) - A medida das penas principais
c) - A medida da pena acessória de proibição de conduzir.
d) - O montante da coima.

2. DA SENTENÇA RECORRIDA

É do seguinte teor a fundamentação de facto da sentença recorrida (transcrição):

«2. FUNDAMENTAÇÃO:
2.1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA:

1. O arguido e D. S., são irmãos germanos e estão de relações tensas, devido a questões de partilhas de bens.
2. No dia 23-09-2016, cerca das 13:00 horas, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula n°. …-BI-… (marca Mitshubishi, modelo Canter, de cor branca) pela Rua … em Arnoso Santa Eulália (freguesia do concelho de Vila Nova de Famalicão), no sentido desta para a freguesia de Couto Cambeses.
3. Atravessava um pontão com um sentido de trânsito em que só era permitido o atravessamento de um veículo e no sentido de trânsito sobredito (Arnoso Santa Eulália - Couto Cambeses).
4. Por sua vez, D. S. atravessava essa ponte a pé, no sentido Arnoso Santa Eulália - Couto Cambeses, caminhando na berma junto ao gradeamento esquerdo, atento o sentido de marcha.
5. Naquela ponte só era permitido o atravessamento de um veículo de cada vez.
6. O arguido parou o veículo que conduzia ao lado do irmão e do interior disse-lhe "não te metas na minha vida, que eu fodo-te", ao que ele respondeu que ia pôr o assunto das partilhas no tribunal, querendo significar que era o juiz quem ia decidir.
7. O arguido engrenou a primeira velocidade do veículo que conduzia e avançou na direção do irmão, apertando-o contra o gradeamento da ponte, a sensivelmente a 5 metros do final do gradeamento atento o sentido de marcha em que seguiam.
8. O ofendido fugiu na direção de Couto de Cambeses, mas o arguido continuou a marcha e apertou novamente o irmão contra as grades com a parte lateral esquerda da carrinha.
9. O ofendido gritou e o arguido, então, recuou e saiu dali em direção a Couto Cambeses.
10. O ofendido permaneceu no local com dores, até que pessoa não identificada apareceu ali e chamou o 112, tendo ido de ambulância para o Hospital desta cidade, onde entrou às 13:57.
11. Por causa das atitudes do arguido, o ofendido - benf. da SS n°. …478 e do SNS n°. 1…321 - sofreu
No ráquis, sem limitação da mobilidade da coluna dorso-lombar;
e
No abdómen, cicatriz trófica, mormocrómica no flanco esquerdo com 2 x 0,2 cm de maiores dimensões, lesões essas que lhe determinaram direta e necessariamente 61 dias de doença, sendo 2 dias com afetação da capacidade de trabalho geral e 61 dias com afetação da capacidade de trabalho profissional, e, como consequência permanente, a cicatriz no flanco esquerdo, que não desfigura de forma grave.
12. O arguido agiu com o propósito conseguido de maltratar o corpo do ofendido, utilizando um meio (automóvel) que sabia ser idóneo a causar ferimentos graves e até a morte a uma pessoa, bem sabendo que a sua utilização o investia numa situação de superioridade em relação ao ofendido, seu irmão, o que se traduzia no emprego de um meio desleal.
13. Não prestou o auxílio que deveria prestar ao seu irmão e que sabia que era necessário, saindo do local sem se importar com o que lhe pudesse ter acontecido e sem que providenciasse socorros para assistir à vítima, bem sabendo que esta poderia estar em perigo para a vida ou mesmo para a integridade física.
14. Sabia que não podia invadir berma existente na via pública, como fez, com pleno conhecimento que a mesma era para utilização exclusiva dos peões.

Provou-se ainda que:

15. A. S. reintegrou na sequência do seu divórcio ocorrido há 4 anos, o agregado de origem constituído apenas pelo progenitor o qual faleceu um ano depois.
16. Nesta sequência, o arguido mantém-se a residir só na habitação, património ainda indiviso e propriedade sua e dos seis irmãos.
17. Ao nível sociocomunitário constata-se que A. S. projeta uma imagem normativa, sendo referenciado como trabalhador, não sobressaindo qualquer referência ou indicador passível de constituir fator de risco. Mantém um relacionamento de proximidade afetivo-relacional com os 4 filhos, com 14, 18, 21 e 27 anos respetivamente, os quais residem com a mãe, ex-cônjuge do arguido.
18. A. S. abandonou a escolaridade aos 13 anos, com a 3a classe, reportando um forte absentismo, devido ao trabalho no campo que realizava para ajudar os seus pais, caseiros agrícolas. A trabalhar com regularidade desde os 15 anos e, há 23 anos na empresa "...", como servente de armazém, o arguido é referenciado pela proprietária, como trabalhador competente, disponível, com um relacionamento adequado com colegas e respeitador das regras de funcionamento da empresa.
19. A sua subsistência é assegurada pelos rendimentos do trabalho, restando-lhe após a pensão de alimentos de 250 euros mensais atribuída aos seus filhos e um montante aproximado de 150 euros em combustível, se fixará em cerca de € 550,00 a 600,00.
20. A. S., à data dos factos subjacentes ao presente processo, assim como atualmente reside só, na habitação que é ainda património indiviso e propriedade sua e dos irmãos.
21. A. S. e o seu irmão mais novo correlacionam a conflitualidade com dois dos irmãos mais novos, designadamente com o ofendido no presente processo, a questões derivadas das partilhas dos bens familiares. Em termos sociais, a atual situação jurídico-penal do arguido é do domínio público e ao que tudo indica não causou qualquer impacto sobre a imagem positiva que projeta, de acordo com as fontes contactadas.
22. No meio social onde se insere é referenciado como trabalhador, não sobressaindo qualquer referência ou indicador menos favorável na interação com os outros, ainda que evidencie algum défice nas competências de resolução de problemas e de autocontrolo.
23. Após os factos, o arguido não voltou a abordar o ofendido.
24. Nada consta do seu Certificado de Registo Criminal, junto aos autos.
*
2.2. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA:

1. Do lado esquerdo da ponte, existe um passeio com uma largura de cerca de meio metro e junto do gradeamento do pontão.
2. Perante o facto aludido em 6), o arguido disse ao ofendido: "olha que eu esmago-te aí, tu vais ver agora".
3. O arguido para efetuar a manobra referida em 7) galgou o passeio.
*
2.3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:

O Tribunal fundamentou a sua convicção, no que respeita aos factos constantes da acusação pública no depoimento da testemunha e ofendido D. S., que não obstante a posição que ocupa, descreveu os factos pormenorizadamente, sem hesitações e sem contradições.
O relato que efetuou coincidiu com a narrativa factual e sequencial que constava da acusação, pelo que nos dispensamos de reproduzir o que pelo mesmo foi dito, tanto mais que o seu depoimento está documentado através da gravação.
Esta versão não só foi congruente como está ainda confirmada pelo teor das lesões descritas na documentação clínica de fls. 24 a 27 e nos relatórios da perícia de avaliação do dano corporal, de fls. 17 a 19, 67 a 68.

Para além do mais, a testemunha R. G., guarda da GNR, contou que foi chamado ao local, após os factos, pelos Bombeiros que estavam a efetuar o transporte do ofendido para o hospital, por haver a notícia de um atropelamento dolosamente provocado. Referiu a testemunha que se deslocou ao hospital para abordar o ofendido e nesse momento contou o que se tinha passado.
E o que esta testemunha contou - por ouvir dizer ao ofendido - coincidiu com o relato que o ofendido efetuou em sede de julgamento. Não se crê que, estando o ofendido no estado debilitado nas urgências do hospital, tenha inventado a agressão de seu irmão naquele momento.
As lesões verificaram-se efetivamente e estão de acordo com a descrição que o ofendido efetuou, coincidem ainda com o tipo de veículo utilizado pelo arguido.

Assim, é mais que manifesta a plausibilidade do relato do ofendido D., e como tal se atribuiu credibilidade, não obstante não haver mais testemunhas presenciais dos factos, pois as testemunhas M. S. e M. N., vizinhas, não presenciaram os factos, tendo a primeira se apercebido do barulho da sirene do INEM, quando estava em casa.
Acresce ainda dizer que o arguido optou por se remeter ao silêncio, mesmo após a produção de prova. Se bem que não possa ser prejudicado, do seu silêncio não se pode interpretar que os factos não ocorreram como contou o seu irmão e ofendido.
Mais nenhuma versão ou causa para as lesões efetivamente ocorridas foi apresentada, as circunstâncias referentes ao conflito entre os dois irmãos mostra-se igualmente espelhada no relatório social.
Em face do exposto, a cabalmente convincente e confirmada versão do ofendido não dá margem nenhuma para ponderar sobre a aplicação do princípio in dubio pro reu.
Atendeu-se ao relatório social, ao certificado do registo criminal e ainda ao extrato de remunerações, de fls. 140, tendo o tribunal após a consulta do mesmo, deduzido as despesas relacionadas com pensão de alimentos e combustível (cfr. relatório social), concluído por um rendimento líquido de cerca de 550 a 600 euros.
Atendeu-se ainda às fotografias do local juntas a fls. 11 e à participação do acidente de viação, de fls. 10.
Quanto à matéria de facto não provada, não foi feita prova e a inexistência de passeio, as tão só de berma resultou das fotografias e dos depoimentos supra referidos do guarda R. e do ofendido.»

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1 – Da impugnação da matéria de facto por erro de julgamento e violação do princípio in dubio pro reo

Discordando da decisão proferida pela primeira instância sobre a matéria de facto, o recorrente insurge-se contra a mesma, defendendo que os factos que transcreve, correspondentes aos que foram vertidos nos pontos 6º a 14º da matéria assente, não deveriam ter sido dados como provados, porquanto os descritos neste último ponto são contrariados pelos elementos constantes do processo, nomeadamente as fotografias juntas pela GNR, e os elencados nos restantes pontos não foram corroborados por nenhuma testemunha ou outro meio de prova, a não ser o ofendido, devendo, neste caso, funcionar o princípio in dubio pro reo.

3.1.1 - Nos termos do art. 428º do Código de Processo Penal, diploma a que pertencem todos os artigos citados sem qualquer referência, os tribunais da relação conhecem não só de direito mas também de facto, assim se concretizando a garantia do duplo grau de jurisdição na matéria de facto, sendo que uma das vertentes aqui admitida é a da impugnação ampla, visando o chamado erro de julgamento, precisamente aquela de que o recorrente lança mão.

Este erro resulta da forma como foi valorada a prova produzida, ocorrendo quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tenha sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. O erro de julgamento pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi.

Nesta forma de impugnação ampla, os poderes de cognição do tribunal de recurso não se restringem ao texto da decisão recorrida (como acontece com os vícios previstos no art. 410º, n.º 2), alargando-se à apreciação do que contém e se pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, sempre delimitada pelo recorrente através do ónus de especificação previsto nos n.ºs 3, als. a), b) e c), e 4 do art. 412º, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431º, al. b).

Todavia, conforme jurisprudência constante [3], esse recurso sobre a matéria de facto não visa a realização de um segundo e novo julgamento, com base na audição de gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse, destinando-se antes a obviar a eventuais erros ou incorreções da mesma, na forma como apreciou a prova, quanto aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O que se visa é, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, através da avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida.

Como é salientado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-01-2010 [4], "(…) o regime do recurso em matéria de facto, se não exige do tribunal de recurso uma avaliação global, impõe-lhe, todavia, como se referiu, que confronte o juízo sobre os factos do tribunal recorrido com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifica nas conclusões da motivação.

A decisão do recurso sobre a matéria de facto exige que aprecie se, no caso concreto, a matéria de facto, rectius, os pontos questionadas da matéria de facto, tem efetivo suporte, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados na decisão recorrida e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem «decisão diversa». (…)

Mas a convicção autónoma sobre o sentido da decisão em matéria de facto relativamente aos pontos questionados só poderá resultar da ponderação, em concreto, das provas identificadas pelo recorrente que o tribunal de recurso deve analisar em juízo e ponderação autónomos; as razões da convicção têm de ser as razões da convicção do próprio tribunal formadas perante os elementos de prova que ponderou nos limites do recurso, e não a assunção ou a recuperação genéricas da convicção ou dos termos da convicção do tribunal recorrido. (…)

Com efeito, a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto tem como pressuposto que o princípio da livre apreciação da prova (e a livre convicção, no sentido materialmente adequado do conceito) não esteja deferido, ou seja passível de aplicação, apenas ao tribunal de 1ª instância, mas também à instância de recurso no limite dos poderes de cognição definidos pela delimitação do recorrente.
A livre convicção do tribunal de recurso substitui-se, nos limites da cognição, à convicção do tribunal recorrido, aceitando-a na identidade de apreciação, ou sobrepondo-lhe, se for o caso, a sua própria convicção.".

Assim se compreende a exigência que é feita nas als. a), b) e c) do n.º 3 do art. 412º, no sentido de o recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto ter de especificar, respetivamente, os concretos pontos da mesma que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e, sendo caso disso, as que devem ser renovadas.
A especificação dos concretos pontos factuais traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
Por seu lado, a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico dos meios de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual impõem decisão diversa da recorrida.
Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nesses meios de prova não sustenta o facto dado por provado ou como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que considera incorretamente julgado.

3.1.2 – Em relação à impugnação da matéria de facto dada como provada nos pontos 6ª a 13ª, relativa ao seu comportamento para com o ofendido e que veio a ser considerada como integrante dos elementos objetivos e subjetivos dos crimes de ofensa à integridade física qualificada e de omissão de auxílio pelos quais foi condenado, o recorrente fundamenta a imposição de uma decisão diversa da recorrida na alegada insuficiência do depoimento da testemunha D. S. (ofendido), para servir de sustentáculo probatório a tais factos, uma vez que não foi corroborado por nenhuma testemunha ou por qualquer outro meio de prova.

O recorrente faz, assim, assentar as razões da sua discordância relativamente à forma como o tribunal a quo decidiu essa factualidade na circunstância de a Mm.ª Juíza ter formado a sua convicção sobre a decisão fática com base em elementos probatórios que, no seu entender, não permitem dar como provados os factos impugnados.

Não alega, portanto, o recorrente que a descrição que a sentença recorrida, na motivação da decisão de facto, faz do depoimento do ofendido não corresponde ou contraria o que, na realidade, este afirmou, nem sequer que o mesmo foi infirmado por outros elementos probatórios. Antes se limita a sustentar que não tendo tal depoimento sido corroborado por outros meios de prova, não deveria ter sido considerado suficiente para dar como provados os factos impugnados, sendo caso para fazer funcionar o princípio in dubio pro reo.

Vejamos se assim é.
Ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador, importa ter presente que entre nós vigora o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º, segundo o qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Tal não significa que a atividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais.
Concedendo esse princípio uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, o julgador deverá ser capaz de o fundamentar de modo lógico e racional.
A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária dos meios de prova, impondo-lhe a lei que extraia deles um convencimento lógico e motivado, avaliando-os com sentido de responsabilidade e bom senso.
Mais se exige que o julgador indique os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos pelos quais relevaram ou obtiveram credibilidade no seu espírito. Não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto.

Se a decisão factual da primeira instância se baseia numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível, optando por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção, obtida com os benefícios da imediação e da oralidade, apenas deverá ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização, pelas mesmas regras.
Na realidade, ao tribunal de recurso cabe, sem esquecer as limitações derivadas da falta de imediação, analisar o processo de formação da convicção do julgador do tribunal a quo, verificando se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar, não bastando, para uma eventual alteração, uma diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova testemunhal produzida.

Por isso, a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzem a ela, já não o devendo ser quando, perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente. Ou seja, o tribunal da relação só pode e deve determinar uma modificação da matéria de facto quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão [5].
No caso vertente, como resulta da leitura da motivação da decisão de facto, supra transcrita, a Mmª. Juíza norteou-se pelo princípio da livre apreciação da prova e pelas regras da experiência comum, procedendo à avaliação global e conjugada da prova produzida, numa perspetiva crítica, que registou de uma forma proficiente.
Em relação aos pontos de facto em apreço (6º a 13º), relativos aos comportamentos do arguido que estão na base da sua condenação pelos crimes de ofensa à integridade física qualificada e omissão de auxílio, essa convicção assentou essencialmente no depoimento da testemunha D. S., que o tribunal considerou ter descrito tais factos pormenorizadamente, sem hesitações e sem contradições, não obstante a posição interessada que ocupa, por ser o ofendido.

Porém, contrariamente ao que é sustentado pelo recorrente, a convicção do tribunal não se estribou apenas nesse elemento probatório. Como é expressamente referido na motivação da decisão de facto, a Mm.ª Juíza também ponderou que a versão do ofendido, em si mesma congruente, foi ainda confirmada pela natureza das lesões descritas na documentação clínica junta a fls. 24 a 27 e nos relatórios da perícia de avaliação do dano corporal juntos a fls. 17 a 19 e 67 a 68. Ou seja, não só o ofendido apresentava efetivamente lesões, tendo sido transportado pelos bombeiros para o hospital, onde foi assistido às mesmas, como estas são compatíveis com a forma de agressão por si descrita, traduzida em o arguido, com o veículo automóvel que conduzia, o ter apertado contra o gradeamento da ponte por onde ele caminhava.

Mais considerou a Mm.ª Juíza que, de acordo com o depoimento prestado pela testemunha R. G., guarda da GNR que se deslocou às urgências do hospital para abordar o ofendido sobre o sucedido, este relatou-lhe os factos de forma coincidente com a descrição que fez em julgamento, não sendo crível que estando debilitado, tenha inventado a agressão nesse momento.

Perante todos estes elementos, conjugadamente valorados, o tribunal considerou ser mais que manifesta a plausibilidade do relato do ofendido, como tal lhe atribuindo credibilidade, não obstante não haver mais testemunhas presenciais dos factos, acrescendo que, tendo o arguido optado por não prestar declarações, no uso do direito que lhe assiste, esse seu silêncio não pode ser interpretado no sentido de que os factos não ocorreram como contou o ofendido.

Assim, e uma vez que mais nenhuma versão nem causa para as lesões efetivamente ocorridas foi apresentada, concluiu a julgadora que “a cabalmente convincente e confirmada versão do ofendido não dá margem nenhuma para ponderar sobre a aplicação do princípio in dubio pro reo”.

A tudo isto acrescentamos a circunstância de arguido e ofendido, sendo irmãos, se encontrarem de relações tensas, devido a questões de partilhas de bens, sendo que aquele se mantém a residir sozinho na habitação que faz parte do património ainda indiviso, conforme foi dado como provado nos pontos 1º e 16º, sem qualquer impugnação, situação litigiosa essa que confere plausibilidade ao comportamento do arguido, objetivado em avançar com o veículo em direção ao ofendido na sequência de lhe este lhe ter dito que ia pôr o assunto das partilhas no tribunal (cf. ponto 6º).
A decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto encontra-se, assim, devidamente fundamentada, permitindo-se dessa forma aos sujeitos processuais e a este tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional subjacente à convicção do julgador.

Com efeito, a Mmª. Juíza expôs, de forma clara e segura, as razões que fundamentam sua opção, justificando os motivos que levaram a dar credibilidade à versão resultante do depoimento do ofendido, relevando a sua razão de ciência e a credibilidade que mereceu, ainda com apoio testemunhal, documental e pericial, não se dispondo da versão do próprio arguido sobre os acontecimentos, uma vez que não quis prestar declarações.

Nada há a censurar nesse processo lógico e racional subjacente à formação da convicção da julgadora, o qual se mostra explicitado em termos perfeitamente percetíveis e assimiláveis, não se evidenciando qualquer afrontamento às regras da experiência comum, ou qualquer apreciação manifestamente incorreta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis, pelo que nenhuma censura pode merecer o juízo valorativo acolhido em primeira instância, subtraído a qualquer dúvida, inexistindo motivos para reconhecer razão ao recorrente quando invoca a violação do princípio in dubio pro reo, postulado do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

É sabido que no processo penal não tem aplicação o ónus da prova formal, segundo o qual cada uma das partes terá de produzir as provas necessárias a sustentar os factos que alega, porquanto, vigorando o princípio da investigação, recai sobre o juiz o ónus de investigar e esclarecer oficiosamente o facto submetido a julgamento.

Em consequência, se uma vez produzida toda a prova, persistir uma dúvida razoável sobre determinados factos no espírito do julgador, esse non liquet na questão da prova tem de ser resolvido a favor do arguido. Sendo o direito penal um direito de culpa, a qual representa um limite intransponível para a decisão, “os princípios da presunção de inocência e de in dubio pro reo constituem a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta, como suporte axiológico-normativo da pena” [6].

Conforme ensina Figueiredo Dias [7], “relativamente ao facto sujeito a julgamento, o princípio [in dubio pro reo] aplica-se sem qualquer limitação, e portanto não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude, de exclusão da culpa e de exclusão da pena bem como às circunstâncias atenuantes, sejam elas «modificativas» ou simplesmente «gerais». Em todos estes casos a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de atuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido”.

Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, será dado como não provado se lhe for desfavorável, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa.

Contudo, para tanto não basta dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou que derivem da sua interpretação da factualidade revelada nos autos. Da mesma forma que também não é suficiente a circunstância de terem sido apresentadas em audiência versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes.

Acresce que não é toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio, mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada. A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio [8].

A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Terá de ser uma dúvida séria, positiva, racional e que ilida a certeza contrária. Por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a íntima convicção do tribunal, que seja argumentada e coerente.

Em suma, o princípio in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.

No âmbito dos seus poderes de cognição sobre a matéria de facto, compete ao tribunal da relação sindicar a concreta utilização do princípio in dubio pro reo por parte da primeira instância.

Com efeito, a violação desse princípio pode resultar da análise do texto da própria decisão recorrida e do processo decisório nela evidenciado, ocorrendo quando se concluir que o tribunal recorrido ficou em dúvida quanto a elementos que permitem estabelecer o grau de culpabilidade do arguido e, nesse estado de dúvida, decidiu contra ele.

Para além dessa situação, de verificação pouco frequente, a imputação da violação do princípio in dubio pro reo torna necessário demonstrar a existência de erro na apreciação dos meios probatórios produzidos, através do reexame dos mesmos, com vista a evidenciar que, em face da carência ou insuficiência da prova, o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida quanto a factos relevantes para a responsabilidade criminal do arguido.

No caso dos autos, como ressuma da motivação da decisão de facto, o tribunal a quo considerou provados os factos em apreço para além de qualquer dúvida razoável sobre eles, ou seja, sem ter dúvidas em fixar a sua ocorrência tal como se encontram descritos, não decorrendo da sentença a existência ou confronto da julgadora com qualquer dúvida insanável, que, aliás, expressamente afastou, motivo pelo qual não houve que a valorar a favor do arguido, tendo-se, pois, baseado num juízo de certeza e não dubitativo.

O recorrente apela ao princípio in dubio pro reo única e exclusivamente com fundamento em o depoimento do ofendido, cuja credibilidade nem sequer põe em causa, não ter sido corroborado por outros depoimentos testemunhais ou por outros meios de prova, invocando, pois, a insuficiência desse meio de prova.

Porém, como vimos e claramente dá conta a motivação da decisão de facto, tal alegação não tem correspondência com a realidade, uma vez que o depoimento do ofendido foi objeto de várias corroborações periféricas, sem sentido perfeitamente convergente.

De todo o modo, ainda que tal não sucedesse, sempre haveria que ter presente que num sistema de prova livre, como é o consagrado no art. 127º, a prova de um facto pode resultar da valoração de um único meio de prova, nomeadamente do depoimento de uma testemunha, ainda que seja o próprio ofendido. O que é necessário é que esse meio de prova, fundamentador da convicção, seja credível e que o tribunal explique as razões que lhe determinaram a atribuição de credibilidade, como inequivocamente sucede no caso vertente, pelas razões supra expostas.

Não só há muito que deixou de vigorar a velha regra traduzida pelo brocardo latino "testis unus, testis nullus" (uma só testemunha, nenhuma testemunha), como os depoimentos não valem pelo número, mas pelo peso da credibilidade que merecem [9].
Inexistem, pois, razões que devessem ter levado o tribunal a quo a ficar com qualquer réstia de dúvida sobre os factos impugnados.

Em face de tudo quanto fica exposto, é de concluir que o recorrente, com a sua argumentação, não logrou demonstrar a imposição de uma decisão diversa da recorrida quanto aos factos agora em análise, nos termos exigidos pela al. b) do n.º 3 do art. 412º, pelo que é de manter integralmente a factualidade dada como provada nos pontos 6º a 13º.

Consequentemente, improcede a pretensão do recorrente em ser absolvido dos crimes de ofensa à integridade física qualificada e de omissão de auxílio, uma vez que a verificação dos respetivos elementos típicos decorre dessa factualidade.

3.1.3 – Impugna ainda o recorrente os factos vertidos no ponto 14º da matéria provada, cujo teor é o seguinte: “Sabia [o arguido] que não podia invadir berma existente na via pública, como fez, com pleno conhecimento que a mesma era para utilização exclusiva dos peões”.

Para tanto, sustenta, no que tem a concordância da Exma. Procuradora-Geral Adjunta, que tais factos não deveriam ter sido dados como provados, em face dos elementos constantes do processo, concretamente as fotografias do local e as medições efetuadas pela GNR, dos quais resulta que não existe qualquer berma para utilização dos peões, pugnando, assim, perante essa alteração da matéria de facto, pela sua absolvição da prática da contraordenação prevista e punida pelo art. 17º, n.ºs 1 e 4 do Código da Estrada, aprovado pelo DL n.º 114/94, de 03 de maio.
Embora não seja expressamente referido na motivação do recurso, essa impugnação é necessariamente extensível ao segmento do ponto 4º em que se refere que o ofendido caminhava na berma.
Cremos assistir razão ao recorrente.

Segundo a definição constante da al. b) do art. 1º do Código da Estrada, a berma é a “superfície da via pública não especialmente destinada ao trânsito de veículos e que ladeia a faixa de rodagem”, sendo esta, de acordo com a al. h) do mesmo artigo, a “parte da via pública especialmente destinada ao trânsito de veículos”.

Por seu turno, dispõe o art. 17º do mesmo diploma, sob a epígrafe “Bermas e passeios”, que “os veículos só podem circular nas bermas ou nos passeios desde que o acesso aos prédios o exija, salvo as exceções previstas em regulamento local” (n.º 1) e que “sem prejuízo do disposto no número anterior, os velocípedes podem circular nas bermas fora das situações previstas, desde que não ponham em perigo ou perturbem os peões que nelas circulem” (n.º 2).

Com relevo para a questão em apreço, preceitua ainda o art. 99º, n.º 1, do Código da Estrada, que “os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas”, acrescentando o n.º 2, na sua al. b), que na falta desses locais ou na impossibilidade de os utilizar, os peões podem transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos.

Em face deste quadro legal, parece inequívoco que a berma de uma via pública é um espaço contíguo à faixa de rodagem, ladeando-a, destinada não ao trânsito de veículos, a não ser em situações excecionais, mas sim ao trânsito dos peões e desde que não haja de passeios, pistas ou passagens para o efeito, sendo que na ausência de qualquer desses locais, os peões poderão transitar pela parte da via pública especialmente destinada ao trânsito de veículos, ou seja, pela faixa de rodagem.

Ora, no caso vertente, analisando o croquis e as fotografias que constam da participação de acidente de viação elaborada pela GNR por ocasião dos factos em apreço, junta a fls. 7 a 11 e a que a Mm.ª Juíza atendeu, conforme expressamente refere na motivação da decisão de facto, constata-se inequivocamente que no local da via pública por onde o ofendido caminhava quando o arguido, ao volante de um veículo automóvel, avançou na sua direção, apertando-o contra o gradeamento, não existe qualquer berma.

Com efeito, nesse preciso local, a via pública, denominada Rua da Minhoteira, sofre uma redução da sua largura, em virtude de se situar sobre um pontão, estando delimitada de ambos os lados por um gradeamento, devido a questões de segurança, sendo que na parte exterior do mesmo inexiste qualquer espaço por onde os peões possam transitar.

Mais se constata que toda a superfície da via pública compreendida entre esse gradeamento, com apenas 3,55 metros de largura e uniformemente asfaltada, é destinada ao trânsito de veículos, não havendo passeios nem qualquer delimitação ou demarcação.

Como tal, não existe berma, enquanto superfície da via pública destinada especialmente ao trânsito de peões e onde os veículos automóveis, como era o caso da viatura conduzida pelo arguido, não podem circular, a não ser em situações excecionais, como seja o acesso a prédios.

Estamos, pois, perante um local em que toda a superfície da via pública constitui faixa de rodagem, na qual, porém, os peões podem transitar, como fazia o ofendido, embora com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, dada a inexistência de passeios, pistas, passagens ou bermas destinadas à circulação pedestre.

Consequentemente impõe-se alterar a decisão sobre a matéria de facto, nos seguintes termos:

- Eliminar o segmento “na berma” constante do ponto 4º, que passa a ter a seguinte redação: "Por sua vez, D. S. atravessava essa ponte a pé, no sentido Arnoso Santa Eulália - Couto Cambeses, caminhando junto ao gradeamento esquerdo, atento o sentido de marcha".
- Eliminar o ponto 14º dos factos provados, que transita para o elenco dos não provados.

Por força desta alteração na decisão factual, em consequência da qual fica indemonstrada a existência de berma e, logicamente, que o arguido tenha circulado nela com o veículo automóvel, impõe-se absolvê-lo da prática da contraordenação prevista e punida pelo citado art. 17º, n.ºs 1 e 4, do Código da Estrada, uma vez que a sua conduta dada como provada não integra a factualidade típica dessa infração estradal.
Nos termos expostos, procede parcialmente a questão da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com a consequente absolvição do recorrente da prática da contraordenação prevista e punida pelo art. 17º, n.ºs 1 e 4, do Código da Estrada, pela qual foi condenado, deixando prejudicada a apreciação da questão relativa ao montante da coima aplicada.

3.2 - Da medida das penas principais

Subsidiariamente, insurge-se o recorrente contra as penas principais que lhe foram aplicadas pela prática dos crimes de ofensa à integridade física qualificada (7 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano) e de omissão de auxílio (140 dia de multa, à taxa diária de € 6), entendendo que devem ser reduzidas, respetivamente para 3 meses de prisão, mantendo-se a suspensão decretada, e para 50 dias de multa, invocando, para tanto, as circunstâncias de estar integrado social e laboralmente, manter um relacionamento de proximidade afetiva com os 4 filhos, ser primário e não ter voltado a abordar o ofendido.
Vejamos se lhe assiste razão.

3.2.1 – De acordo com o disposto no art. 40º, n.º 1, do Código Penal, a aplicação de penas e de medidas de segurança, tem como finalidade “a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. A proteção de bens jurídicos consubstancia-se na denominada prevenção geral, enquanto a reintegração do agente na sociedade, ou seja, o seu retorno ao tecido social lesado, se reporta à denominada prevenção especial.
O legislador quis, desta forma, oferecer ao julgador critérios seguros e objetivos de individualização da pena, quer na escolha, quer na dosimetria, sempre no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional, de que em caso algum a pena pode ultrapassar a culpa. Em conformidade, dispõe o n.º 2 do citado artigo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Em consonância com estes princípios, dispõe o art. 71º, n.º 1, do mesmo código que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.

De acordo com os ensinamentos de Anabela Miranda Rodrigues [10], a medida da pena há de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e definida e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização; a pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa. Mais adianta que é o próprio conceito de prevenção geral de que se parte – proteção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e no reforço) da validade da norma jurídica violada - que justifica que se fale de uma moldura de prevenção. Proporcional à gravidade do facto ilícito, a prevenção não pode ser alcançada numa medida exata, uma vez que a gravidade do facto ilícito é aferida em função do abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade. A satisfação das exigências de prevenção terá certamente um limite definido pela medida da pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto ótimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, que não pode ser excedido em nome de considerações de qualquer tipo, ainda quando se situe abaixo do limite máximo consentido pela culpa. Mas, abaixo daquela medida (ótima) de pena (da prevenção), outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a proteção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral.

A mesma autora apresenta, então, três proposições em jeito de conclusões e de forma sintética: “Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas”. E finaliza, afirmando: “É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, diretamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente”.

Em suma, o limite mínimo da pena deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral que no caso se façam sentir, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva, ao passo que o limite máximo não deve exceder a medida da culpa do agente revelada no facto, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do mesmo; e, dentro desses limites mínimo e máximo, a pena deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todos exigível, sendo, pois, as razões de prevenção especial que servem para encontrar o quantum de pena a aplicar [11].

Por seu lado, as várias alíneas do n.º 2 do art. 71º do Código Penal elencam, a título exemplificativo, as seguintes circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, devendo o tribunal abster-se de considerar aquelas que já fazem parte do tipo de crime cometido:

- O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente (al. a);
- A intensidade do dolo ou da negligência (al. b);
- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (al. c);
- As condições pessoais do agente e a sua situação económica (d);
- A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime (al. e);
- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena (al. f).

Assim, as circunstâncias e os critérios do art. 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente [12].

3.2.2 – Posto isto, analisemos a situação concreta, sabido que, em face da matéria de facto provada, o arguido se constituiu autor material dos crimes de ofensa à integridade física qualificada e de omissão de auxílio pelos quais foi condenado.

Tais crimes são abstratamente puníveis, respetivamente, com pena de prisão de 1 mês a 4 anos (arts. 41º, n.º 1, 143º, n.º 1, e 145º, n.ºs 1, al. a), e 2, com referência ao art. 132º, n.º 2, al. h), todos do Código Penal), e com pena de multa de 10 a 240 dias ou com pena de prisão de 1 mês a 2 anos (art.s 41º, n.º 1, 47º, n.º 1, e 200º, n.ºs 1 e 2, do mesmo código).

Não sendo questionada a opção pela pena não privativa da liberdade em relação a este último crime, cumpre apenas apreciar se as penas concretamente aplicadas se mostram ou não ajustadas quanto à sua medida.

Não há dúvidas de que é suscetível de revista a correção do procedimento ou das operações de determinação da medida da pena, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de fatores relevantes para aquela determinação, ou, pelo contrário, a indicação de fatores que devem considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Estando a questão do limite da culpa plenamente sujeita a revista, assim como a forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, já não o está a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, exceto quando tiverem sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada [13].

Assim, o tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, apenas quando detetar incorreções ou distorções no processo de aplicação da mesma, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que a regem. Nesta sede, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.
A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na deteção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exato de pena que, decorrendo duma correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada [14].

Conforme consta da sentença recorrida, a Mmª. Juíza fundamentou a fixação das penas concretas em 7 meses de prisão para o crime de ofensa à integridade física qualificada e de 140 dias de multa para o crime de omissão de auxílio, considerando que (transcrição):

«(…) ponderam em desfavor do arguido:

· O grau elevado da ilicitude do facto (atendendo à forma como a agressão foi perpetrada, infligida sobre o seu próprio irmão, o défice de contenção que o arguido manifesta perante um conflito);
· As consequências do facto – que apesar de não serem muito graves implicaram tratamento 61 dias de doença, com uma cicatriz permanente;
· A intensidade do dolo (direto) do agente;

Ponderam em favor do arguido:

· A ausência de antecedentes criminais;
· Estar integrado familiar e socialmente.»
Em relação ao crime de omissão de auxílio atendeu-se ainda à frieza manifestada pelo arguido.
Afigura-se-nos acertada a elencagem desses fatores e a ponderação que deles foi feita pelo tribunal a quo.
O pendor atenuante das circunstâncias invocadas pelo recorrente, relativas à ausência de antecedentes criminais e à integração familiar e social, já foi adequadamente ponderado, não se vendo razões justificativas para lhe atribuir um maior relevo.

Por seu turno, a circunstância de o arguido estar profissionalmente integrado, uma vez que trabalha com regularidade desde a juventude e há 23 anos na mesma empresa, sendo um trabalhador competente, disponível, com relacionamento adequado com colegas e respeitador das regras de funcionamento da empresa, embora não seja referenciada na fundamentação da determinação das penas concretas, corresponde ao que é esperado do cidadão comum, não lhe podendo ser conferido um valor atenuante tal que justifique uma redução das penas aplicadas.

Por fim, a circunstância de o arguido não ter voltado a abordar o ofendido, igualmente invocada, não encontra respaldo na matéria de facto provada, pelo que não pode ser valorada.

Não merece, pois, censura o elenco dos fatores e a ponderação que deles foi feita pelo tribunal a quo para determinar a medida das penas, não se descortinando circunstâncias, mormente as invocadas pelo recorrente, que imponham uma redução das mesmas, apresentando-se igualmente como correto o procedimento e as operações seguidas nessa tarefa.

Em suma, sopesando todas as apontadas circunstâncias atendíveis, concretamente as exigências de prevenção geral, que fazem elevar o limite mínimo necessário para assegurar a proteção das expectativas comunitárias, atenta a gravidade da conduta do agente, bem como elevado grau de ilicitude, a intensidade da culpa e a ausência de particulares exigências de prevenção especial, afigura-se-nos que a medida concreta de cada uma das penas encontradas apresenta-se como necessária para satisfazer as finalidades da punição, não excedendo o limite estabelecido pela medida da culpa, pelo que não se apresenta desproporcionada, expressando uma correta e adequada valoração dos fatores atendíveis.
Note-se que a pena de 7 meses de prisão, aplicada pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, se ficou no 1º sétimo da moldura abstrata, ao passo que a pena de multa, relativa ao crime de omissão de auxílio, não foi muito além do meio da respetiva moldura.
Em conclusão, a decisão recorrida não violou os critérios de determinação da pena, enunciados nos invocados arts. 40º, n.ºs 1 e 2, e 71º do Código Penal, tendo igualmente sido respeitado o princípio da proporcionalidade na graduação da pena, ínsito no art. 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Em conclusão, improcede este segmento do recurso.

3.3 - Da medida da pena acessória

A prática do crime de ofensa à integridade física qualificada pelo qual o recorrente foi condenado, por ter sido cometido com a utilização de veículo e por a sua execução ter sido por este facilitada de forma relevante, para além da pena principal (prisão) é ainda sancionada com proibição de conduzir veículos com motor por um período entre 3 meses e 3 anos, por força do disposto no art. 69º, n.º 1, al. b), do Código Penal.
No caso vertente, o tribunal recorrido fixou essa pena acessória em 6 meses, quantitativo contra o qual se insurge o recorrente, pugnando pela sua redução para o mínimo legal, invocando o mesmo conjunto de circunstâncias que invocou para obter a redução das penas principais.

3.3.1 – A referida sanção inibitória tem natureza de pena acessória, como resulta claramente do texto do citado artigo, da sua inserção sistemática e do elemento histórico [15], traduzindo-se numa censura adicional pelo crime praticado.
Correspondendo a uma manifesta necessidade de política criminal, que se prende com a elevada sinistralidade rodoviária, a aplicação de tal pena acessória visa dissuadir os condutores de se absterem de comportamentos no exercício da condução com consequências extremamente nefastas.

A propósito das suas finalidades, refere Figueiredo Dias [16] que, “se (…) pressuposto material de aplicação desta pena deve ser que o exercício da condução se tenha revelado, no caso, especialmente censurável, então essa circunstância vai elevar o limite da culpa do (ou pelo) facto. Por isso à proibição de conduzir deve também assinalar-se (e pedir-se) um efeito de prevenção geral de intimidação, que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro do limite da culpa (…). Por fim, mas não por último, deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano”.
A pena em apreço tem, assim, uma função preventiva adjuvante da pena principal, sendo a sua finalidade a intimidação da generalidade e dirigindo-se ainda à perigosidade do agente.
Embora distintas nos seus pressupostos, quer a pena principal quer a acessória assentam num juízo de censura global pelo crime praticado. Daí que para a determinação da medida concreta de uma e de outra se imponha o recurso aos critérios estabelecidos no art. 71º do Código Penal.

Como já referimos supra a propósito da determinação da pena principal, para onde remetemos, nos termos desse preceito, a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo o tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra ele.

Quanto aos factos praticados, haverá que ter em consideração todas as circunstâncias que caracterizam a gravidade da violação jurídica cometida (o dano, material ou moral, causado pela conduta e as suas consequência típicas, o grau de perigo criado nos casos de tentativa e de crimes de perigo, o modo de execução do facto, o grau de conhecimento e a intensidade da vontade nos crimes dolosos, a reparação do dano pelo agente, o comportamento da vítima, etc.).
Quanto à personalidade do agente, haverá que atender às condições pessoais, situação económica, capacidade para se deixar influenciar pela pena (sensibilidade à pena), falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, e conduta anterior e posterior ao facto [17].

3.3.2 – No caso vertente são fortes as exigências de prevenção geral, atentos os elevados índices de sinistralidade estradal que se verificam em Portugal, com devastadoras consequências, demonstrando o insucesso das repetidas campanhas de segurança rodoviária. Continua, pois, a sentir-se uma particular necessidade de combater essa sinistralidade.
Assim, a medida ótima de tutela do bem jurídico e das expectativas comunitárias faz elevar consideravelmente os limites da moldura da prevenção geral.
Também o grau de ilicitude é elevado, como grave foi o modo de execução dos factos e o grau de violação dos deveres impostos ao agente.
Acresce a gravidade das consequências do crime, a natureza dos interesses tutelados e a intensidade da conduta dolosa, sendo, ainda, de realçar as modestas condições pessoais e económicas e a ausência de antecedentes do arguido.

Face a todo o descrito circunstancialismo, afigura-se-nos que a medida da pena acessória de proibição de conduzir fixada pela primeira instância em 6 meses se apresenta como necessária para se atingir o nível mínimo de verdadeira advertência penal, de modo a que a eficácia preventiva de tal pena não fique irremediavelmente afetada, pelo que não peca por excesso.

Pelo exposto, também este segmento do recurso improcede.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido, A. S., e, em consequência, decidem:

A) - Introduzir as seguintes alterações na decisão sobre a matéria de facto:

- Eliminar o segmento “na berma” constante do ponto 4º;
- Eliminar o ponto 14º dos factos provados, que transita para o elenco dos não provados.

B) - Por força disso, absolver o arguido da prática da contraordenação prevista e punida pelo art. 17º, n.ºs 1 e 4, do Código da Estrada, pela qual foi condenado.

C) - Quanto ao mais, confirmar a sentença recorrida.

Sem custas, atenta a parcial procedência do recurso (arts. 513º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal).
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
*

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Guimarães, 04 de junho de 2018

(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)


[1] - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo a correção de gralhas evidentes, a formatação do texto e a ortografia utilizada, que são da responsabilidade do relator.
[2] - Como resulta do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série-A, de 28-12-1995.
[3] - Cf., nomeadamente, os acórdãos do STJ de 17-03-2016 (processo n.º 849/12.1JACBR.C1.S1), de 20-01-2010 (processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1), de 14-03-2007 (processo n.º 07P21) e de 23-05-2007 (processo n.º 07P1498) e do TRP de 11-07-2001 (processo n.º 110407), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[4] - Proferido no processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[5] - Cf. o acórdão do STJ de 25-03-2010 (processo n.º 427/08.OTBSTB.E1.S1), disponível em http://www.dgsi.pt.
[6] - Vd. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, pág. 519.
[7] - In Direito Processual Penal, I, pág. 215.
[8] - Cf. o acórdão do STJ de 04-11-1998, in BMJ n.º 481, pág. 265.
[9] - Cf. os acórdãos do TRG de 25-02-2008 (processo 557/07-1) e do TRP de 20-12-2011 (processo n.º 51/08.7GAMCD.P1), disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[10] - “O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, Abril/Junho de 2002, págs. 147 e ss.
[11] - Cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, págs. 227 e ss..
[12] - Cf. o acórdão do STJ de 28-09-2005, in Coletânea de Jurisprudência-STJ, 2005, tomo 3, pág. 173.
[13] - Vd. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 196 a 197.
[14] - Cf. o acórdão do TRE de 22-04-2014, disponível em http://www.dgsi.pt.
[15] - Atas da Comissão de Revisão do Código Penal, n.ºs 5, 8, 10 e 41.
[16] - In Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime, Aequitas Editorial Notícias, 1993, pág. 165.
[17] - Vd. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 245.