Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
110/15.0T8CMN.G2
Relator: MARIA DA PURIFICAÇÃO CARVALHO
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
PRÉDIO URBANO
DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO
CONFISSÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. Para além do titular dos bens do Domínio Público ter de ser uma pessoa de direito público estes bens enquanto pertencentes a um regime de proteção especial e afetos à utilidade pública tais bens são inalienáveis (cf. n.º 2 do artigo 202.º do CC), impenhoráveis (cf. alínea b) do artigo 736.º al b) do CPC) e imprescritíveis (uma vez que não podem ser adquiridos por usucapião), segundo o Direito Civil.

II. Não é permitida confissão, desistência ou transacção que importe a afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis. (Art.º 289.º CPC).

III. Ao abrigo do disposto no art.º 17.º n.º 7 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, o Tribunal a quo apenas se poderia pronunciar sobre a integração do prédio urbano no Domínio Público Marítimo (DPM), após estarem concretamente estabelecidos os limites de tal domínio.

IV. A abertura do procedimento administrativo de delimitação deve ocorrer quando haja dúvidas fundadas na aplicação dos critérios legais à definição no terreno dos limites do domínio público hídrico, conforme se constata, a contrario, do teor do artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 353/2007 de 26 de Outubro.”
Decisão Texto Integral:
- Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães –


I.RELATÓRIO

Laura, casada, separada de pessoas e bens de Manuel, ambos residentes na Rua …, União de Freguesias de Viana do Castelo (Santa Maria Maior e Monserrate) e Meadela, Viana do Castelo intentou estes autos de acção declarativa sob a forma de processo comum contra o Estado Português, pedindo:

- se declare a inconstitucionalidade da primeira parte do segmento da norma prevista no art.º 5.º n.º 5 al. c) da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, por violação do princípio da não retroactividade da lei das Leis restritivas de direito, liberdades e garantias, quando interpretado no sentido de que, para que o reconhecimento da propriedade privada de construções que datam antes de 1951, sobre terrenos situados em parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis, possa ser obtido sem sujeição ao regime de prova estabelecido nos números anteriores do mesmo normativo legal, têm aqueles (terrenos) de estar integrados em zona urbana consolidada como tal definida no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar;
- se declare a inconstitucionalidade das normas previstas nos artºs 2.º, 3.º, 4.º, 11.º n.º 2, 12.º e 15.º nº 2 e 5 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, quando interpretados no sentido de que a mera classificação de certos bens como do domínio público implica a sua automática transferência para tal domínio, independentemente de justa indemnização, por violação do direito fundamental de propriedade, do princípio da não retroactividade das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias e do princípio de Estado de direito democrático, na sua dimensão relativa à segurança jurídica, por colocar em causa a confiança depositada no registo público da propriedade, plasmados nos artºs. 17.º, 18.º e 62.º n.º 1 e 2 da CRP; - se declare que a Autora é dona e legítima possuidora, com exclusão de outrem, Réu incluído, do prédio urbano descrito no art.º 1.º da petição inicial e que se mantém na sua titularidade e na dos seus antecessores, desde antes de 1951, nos termos e para os efeitos do disposto nos artºs. 1256.º, 1260.º, 1287.º, 1288.º, 1316.º e 1317.º CC e 10.º, 11.º, 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro;
- se condene o Réu a reconhecer e respeitar os direitos de propriedade plena da autora e a abster-se da prática de quaisquer actos ofensivos do mesmo.

Alega, para tanto e em súmula, que a Autora é a única e legítima proprietária de um barracão de rés-do-chão e terreno de rossio ou logradouro, atravessado por caminho público, a confrontar do Norte com João, do sul e poente com domínio público hídrico e de Nascente com Maria, com a área de 1.337,20 m2, sito no Lugar de …, na freguesia de …, concelho de Caminha, inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º ... e descrito na CRP de Caminha sob número ....
Tal prédio, de acordo com o Plano Director Municipal do concelho de Caminha e de harmonia com a localização do mesmo, insere-se, na carta de Ordenamento, em Espaço Urbanizável de média densidade (H2), com uma tipologia dominante de moradia isolada, geminada ou em banda (COS ≤ 0.50 e R/chão + 1).
Conforme carta de condicionantes, o prédio urbano localiza-se na faixa do Domínio Público Marítimo.
O artigo n.º ... foi inscrito na matriz no ano de 1950 e o prédio urbano sub judice já se encontra cadastrado, representado e identificado na carta militar desde 1949.
A edificação de tal prédio urbano tem a área actual de implantação de 105,80 m2 e a edificação está integrada em zona de perímetro urbano, fora da zona de risco de erosão ou de evasão do mar, e numa área urbana consolidada em termos de morfologia urbana e infra-estruturada.
O PDM de Caminha não adoptou a definição de zona urbana consolidada – que apenas existe no ordenamento jurídico desde a entrada em vigor do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, como não classifica nenhum tipo de espaço de uso da área do concelho com esta designação.

Alega os factos atinentes à aquisição do dito prédio por usucapião.

Mais alega a inconstitucionalidade da primeira parte do segmento da norma prevista no art. 5º, nº 5, al. c) da Lei nº 54/2005, de 15 de Novembro, por violação do princípio da não retroactividade da lei das Leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, quando interpretado no sentido de que, para o reconhecimento da propriedade privada de construções que datam antes de 1951, sobre terrenos situados em parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis, possa ser obtido sem sujeição ao regime de prova estabelecido nos números anteriores do mesmo normativo legal, têm aqueles (terrenos) de estar integrados em zona urbana consolidada como tal definida no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar.

Alega, ainda, a inconstitucionalidade das normas previstas nos artºs 2.º, 3.º, 4.º, 11.º n.º 2, 12.º e 15.º nº 2 e 5 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, quando interpretados no sentido de que a mera classificação de certos bens como do domínio público implica a sua automática transferência para tal domínio, independentemente de justa indemnização, por violação do direito fundamental de propriedade, do princípio da não retroactividade das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias e do princípio de Estado de direito democrático, na sua dimensão relativa à segurança jurídica, por colocar em causa a confiança depositada no registo público da propriedade, plasmados nos arts. 17.º, 18.º e 62.º n.º 1 e 2 da CRP.

O Réu Estado defendeu-se por excepção e por impugnação, nos termos constantes de fls. 80 a 83, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais.

Foi realizada audiência prévia, sem que tenha havido qualquer reclamação.
Admitidas as testemunhas arroladas e a documentação da prova, realizou-se audiência de discussão e julgamento com observância de todo o formalismo legal.
Seguiu-se sentença que terminou com o seguinte dispositivo.

Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente e consequentemente decido:

I - Reconhecer ou declarar a inconstitucionalidade das normas previstas nos artºs 2º, 3º, 4º, 11º nº 2, 12º e 15º nºs 2 e 5 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, quando interpretados no sentido deque a mera classificação de certos bens como do domínio público implica a sua automática transferência para tal domínio, independentemente de justa indemnização, por violação do direito fundamental de propriedade, plasmada no artº 62º nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.
II - Julgar improcedentes todos os restantes pedidos- alíneas a), c), d) e e) -e consequentemente deles absolvo do pedido o Réu Estado Português.
*
Custas por A e R sem prejuízo de isenções tributárias, com taxa de justiça fixada em 5/6 para a primeira e 1/6 para o segundo.
Notifique e Registe.

Descontente com a sentença a autora apresenta recurso que termina com as seguintes “conclusões”:

I- DA NULIDADE DA SENTENÇA

1. Estipula o disposto no art.º 615.º n.º al. c) CPC que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
2. O vício da decisão a que alude o art.º 615.º n.º 1 al. c) do NCPC (2013) – contradição entre os fundamentos e a decisão – existe quando a fundamentação de facto ou de direito aponta para um sentido, que lógica e formalmente não é comportado pela decisão, estando com ela em frontal colisão, tornando-a incoerente e ininteligível.
3. Isto balizado, peticionou a Autora na acção o disposto nas alíneas c), d) e e) da p.i., cujo teor, por economia e brevidade processual, se remete para as alegações do presente recurso, se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais e se encontra supra citado.
4. Consta do item “II. Factualidade assente” da sentença proferida pelo Tribunal a quo os factos provados elencados nos n.º 1, 4, 6, 7, 8, 9, 10 e 12, cujo teor, por economia e brevidade processual, se remete para as alegações do presente recurso, se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais e se encontra supra transcrito.
5. Discorre o Tribunal a quo no item “III. Da subsunção jurídica” da sentença proferida a fundamentação supra referida nas alegações de recurso, que ora se remete e se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
6. Acontece, porém, que, no final da sentença, no item “Decisão”, o Tribunal a quo julgou a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, decidiu:

“I - Reconhecer ou declarar a inconstitucionalidade das normas previstas nos artºs 2º, 3º, 4º, 11º nº 2, 12º e 15º nºs 2 e 5 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, quando interpretados no sentido de que a mera classificação de certos bens como do domínio público implica a sua automática transferência para tal domínio, independentemente de justa indemnização, por violação do direito fundamental de propriedade, plasmada no artº 62º nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.
II - Julgar improcedentes todos os restantes pedidos - alíneas a), c), d) e e) -e consequentemente deles absolvo do pedido o Réu Estado Português.”
7. O Tribunal a quo ao declarar a inconstitucionalidade das normas previstas nos art.°s 2.º, 3.º, 4.º, 11.º n.º 2, 12.º e 15.º n.º 2 e 5 da Lei 54/2005, de 15 de Novembro, quando interpretados no sentido de que a mera classificação de certos bens como do domínio público implica a sua automática transferência para tal domínio, independentemente de justa indemnização, por violação do disposto no art.º 62.º n.º 1 e 2 CRP,
8. tendo dado como provada a matéria de facto supra citada, constante do item “II. Factualidade assente” da sentença proferida,
9. considerado no ponto “III. Da Subsunção jurídica” i) que se as coisas eram propriedade particular, como tal têm de continuar, enquanto não forem expropriadas mediante a adequada indeminização, pois o contrário equivaleria a um confisco,
10. ii) que se os particulares que registaram a seu favor a propriedade dos terrenos implantados em parcelas do domínio público, gozam nessa medida da presunção da titularidade não só de que o direito existe, tal como consta do registo, como de que pertence, nesses precisos termos, ao titular inscrito (art.º 7.º CRP) e que quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz (art.º 350.º n.º 1 CC) e
11. iii) que o legislador dispõe de diversos mecanismos para instituir a eventual afectação pública desses terrenos, tais como o direito de preferência em caso de alienação forçada ou voluntária, a expropriação e a constituição de servidões administrativas e,
12. posteriormente, julga improcedentes os pedidos constantes das alíneas c), d) e e) da p.i.,
13. entra em contradição, atento que a fundamentação de facto e de direito aponta para um sentido, que lógica e formalmente não é comportado pela decisão, estando com ela em frontal colisão.
14. Com efeito, ao considerar inconstitucionais (e sem aplicabilidade nos presentes autos) as normas que definem em que consiste o domínio público hídrico (marítimo), que este pertence ao Estado, a largura de 50 metros da margem das águas do mar e o regime de prova documental previsto nos n.º 2 e 5 do art.º 15.º da Lei n.º 54/2005 de 15 de Novembro,
15. deveria ter declarado que a Recorrente é dona e legítima possuidora, com exclusão de outrem, Réu incluído, do prédio urbano descrito no pretérito art.º 1.º, tanto pela aquisição derivada do título – escritura pública de compra e venda e partilha –, como pela aquisição originária decorrente do preenchimento dos requisitos da usucapião,
16. que se mantém na sua titularidade e na dos seus antecessores, desde o ano de 1950, nos termos e para os efeitos do disposto nos art.°s 1256.º, 1258.º, 1259.º, 1260.º, 1261.º, 1262.º, 1268.º, 1287.º, 1288.º, 1316.º e 1317.º CC e
18. condenado o Recorrido a reconhecer e respeitar os direitos de propriedade plena da Autora e a abster-se da prática de quaisquer actos ofensivos do mesmo.
19. Não se desconhece que os prédios que pertencem ao domínio público do Estado não podem ser adquiridos por usucapião (art.º 202.º n.º 2 CC),
20. acontece, porém, que, face à inconstitucionalidade declarada das normas supra referidas que definem o domínio público marítimo e respectiva extensão, a Autora não adquiriu o prédio urbano identificado nos autos, pertencente, alegadamente, ao domínio público do Estado, por usucapião.
21. A Recorrente adquiriu, sim, o referido prédio que se encontrava no âmbito da propriedade privada através dos seus antecessores, por aquisição originária (usucapião), e por aquisição derivada (contrato - escrituras públicas de compra e venda e partilha).
22. Pelo que, a decisão proferida pelo Tribunal a quo enferma do vício de nulidade, por se encontrarem os fundamentos em oposição com a decisão, devendo ser julgados procedentes os pedidos constantes das alíneas c), d) e e) da p.i. (Art.°s 615.º e 617.º CPC)

II- DA ALTERAÇÃO DA DECISÃO – Art.º 662.º CPC

23. Da resposta do Tribunal a quo à matéria de facto vertida na sentença proferida com relevância para o presente recurso:

FACTOS PROVADOS DA SENTENÇA

3 - Tal prédio localiza-se na faixa do Domínio Público Marítimo.

24. Salvo o devido respeito por entendimento contrário, a matéria de facto vazada neste item, o Tribunal a quo devê-la-ia ter dado “por não provada”.
25. Da prova produzida em sede de audiência final não resultou como provado que o facto inserido no ponto 3 do item “II. Factualidade assente” da sentença proferida pelo Tribunal a quo ocorreu porque resulta confessado pela Autora que tal prédio se localiza na faixa do Domínio Público Marítimo.
26. Para tanto, será necessário reapreciar a prova documental e o discorrido no articulado (p.i.) da Recorrente, passando-se de seguida à indicação com exactidão do documento n.º 2, sob epígrafe “CERTIDÃO” junto aos autos com a p.i., na parte em que é relevante para a alteração da decisão sobre a matéria de facto.
27. O Tribunal a quo formou a sua convicção para determinar a matéria de facto dada como provada estribando-se 11 na alegada declaração confessória discorrida pela Autora no articulado (p.i.) e objecto de prova nos presentes autos.
28. Confronte-se com o teor do art.º 3.º vertido na p.i., em que a ora Recorrente refere que o prédio urbano se localiza na faixa do Domínio Público Marítimo, conforme a carta de condicionantes,
29. tendo apenas citado e tido por referência o conteúdo da certidão emitida pela CMC,
30. sendo certo que, conforme infra se deixa expendido, não é da competência desta entidade administrativa (CMC) a delimitação dos leitos e margens dominiais confinantes com terrenos de outra natureza, ao abrigo disposto nos art.°s 11.º n.º 2 e 17.º n.º 2 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro. (Cf. doc. n.º 2, sob epígrafe “CERTIDÃO” junto aos autos com a p.i.)
31. A confissão judicial espontânea pode ser feito no articulado, no entanto, não faz prova contra o confitente se for declarada insuficiente por lei ou se recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis. (art.°s 354.º als. a) e b) 356.ºCC)
32. Na verdade, a prova da delimitação do domínio público hídrico, ao abrigo disposto nos art.°s 11.º n.º 2 e 17.º n.º 2 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, apenas pode ser efectuada através de documento escrito autêntico (delimitação efectuada pela Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., homologada por resolução do Conselho de Ministros e publicada no Diário da República). (Art.º 362.º, 363.º, 364.º e 369.º CC e 17.º n.º 6 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro)
33. A livre apreciação da prova não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes. (Art.º 607.º n.º 5 CPC, segunda parte)
34. Não é permitida confissão, desistência ou transacção que importe a afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis. (Art.º 289.º CPC)
35. Da matéria de facto alegada na p.i. não se pode retirar da mesma que exista confissão judicial espontânea feita pela Recorrente através do articulado, sendo que, a que, eventualmente, se considere que existe, é inadmissível ao abrigo do disposto no art.º 354.º CC,
36. não tendo assim a matéria alegada força probatória plena e, por isso, não existe matéria de facto suficiente de que resultou provado o vertido no ponto 3. (art.°s 352.º, 353.º, 354.º als. a) e b), 356.º n.º 1, 358.º CC e 465.º CPC)
37. Do que resulta que a Recorrente não confessou, como não poderia confessar, que o prédio urbano se encontra na faixa do Domínio Público Marítimo.
38. Por outro lado, a delimitação dos leitos e margens dominiais confinantes com terrenos de outra natureza compete ao Estado, que a ela procede oficiosamente, quando necessário, ou a requerimento dos interessados. (Art.º 17.º n.º 2 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro)
39. A partir de tal determinação fica estabelecido até onde se estende o domínio público marítimo, i.e., até onde vai fisicamente a largura de 50 metros da margem das águas do mar. (Art.º 11.º n.º 2 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro)
40. Conforme se deixou predito, tal delimitação é da incumbência de serviços oficiais do Estado, na dependência do Ministério do Ambiente, e, em particular, da Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., e,
41. uma vez homologada por resolução do Conselho de Ministros, é publicada no Diário da República. (Art.º 17.º n.º 6 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro
42. Isto balizado, relativamente ao local onde se insere a parcela em causa nos autos não existe qualquer homologação e publicação a que se refere o disposto no art.º 17.º n.º 6 da Lei 54/2005, de 15 de Novembro.
43. Esta questão a dilucidar assume natureza prévia e até prejudicial, nos termos expostos.
44. Nesse contexto, conforme requerido foi pelo Digníssimo Magistrado do Ministério Público, deveria ter tido lugar previamente o procedimento administrativo a que alude o disposto no art.º 17.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, em articulação com o disposto no DL n.º 353/07, de 26 de Outubro, diploma que estabelece o regime a que fica sujeito o procedimento da delimitação do domínio público hídrico.
45. Com efeito, ao abrigo do disposto no art.º 17.º n.º 7 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, o Tribunal a quo apenas se poderia pronunciar sobre a integração do prédio urbano no Domínio Público Marítimo (DPM), após estarem concretamente estabelecidos os limites de tal domínio.
46. Pelo que, para a determinação dos limites do leito e margem do mar no local em causa deverá ser accionado o correspondente processo de delimitação do domínio público hídrico em conformidade com o disposto no art.º 17.º e 20.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, e no DL n.º 353/2007,de 26 de Outubro.
47. E, por isso, verifica-se que existe erro de julgamento do Tribunal a quo.
48. Face ao expendido, as concretas especificações de prova trazidas à colação pela ora recorrente têm virtualidade para impor decisão diversa da recorrida sobre o ponto da matéria de facto ora impugnado. (Art.º 640.º n.º 1 al. b) CPC)
49. Pelo exposto, não se pode aceitar a resposta a este ponto da matéria factual controvertida como “provado” e, ao invés, deveria ter sido negativa.
50. Pelo que, a resposta à matéria de facto constante do item 3 deve ser alterada para não provada.
51. Foi, consequentemente, violado pelo Tribunal a quo o disposto no art.º 607.º n.os 4 e 5 segunda parte CPC.
52. Podendo este Tribunal alterar a resposta (decisão) do tribunal a quo ao abrigo do disposto no art.º 662.º n.º 1 CPC.
53. Por último, caso se entenda que não constam do processo todos os elementos que, nos termos do n.º 1 do art.º 662.º CPC, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto,
54. e por se considerar útil ao apuramento e à descoberta da verdade material e se revelar necessária e essencial para a boa decisão da causa e justa composição do litígio a realização da delimitação do domínio público hídrico ao abrigo do disposto no art.º 17.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, 55. deve ainda a Relação, mesmo oficiosamente, determinar a anulação a decisão proferida na 1.ª instância,
56. quando repute deficiente a decisão sobre o ponto 3 da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta. (art.°s 411.º e 662.º nº 1 e 2 al. c) CPC)
57. Destarte, ao dar como provado este ponto da matéria de facto – 3 – violou o tribunal a quo o disposto nos art.°s 289.º, 411.º, 465.º e 607.º nº 4 e 5 CPC, 352.º, 353.º, 354.º als. a) e b), 356.º n.º 1 e 358.º n.º 1 CC.

III- DO DIREITO

DO PRINCÍPIO DA NÃO RETROACTIVIDADE DA LEI N.º 54/2005, DE 15 DE NOVEMBRO Sem prejuízo do que se deixou supra vertido nos itens anteriores,
58. A Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, veio delimitar quais os recursos hídricos que integram o domínio público e aqueles que, ao invés, pertencem aos particulares.

59. Assim, nos termos do disposto no art.º 2.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, o domínio público hídrico compreende o domínio público marítimo, o domínio público lacustre e fluvial, e, ainda, o domínio público das restantes águas.
60. O domínio público marítimo, que inclui as águas costeiras e territoriais, as águas interiores sujeitas à influência das marés, bem como os respectivos leitos, fundos marinhos e margens, pertence sempre ao Estado, nos termos do disposto nos art.°s 3.º e 4.º do referido diploma legal.
61. A Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro revogou, parcialmente, o DL n.º 468/71, de 5 de Novembro, concretamente, os capítulos I e II do diploma em apreço.
62. Estabelece o disposto no art.º 2.º al. o) do RJUE que «Zona urbana consolidada» é a zona caracterizada por uma densidade de ocupação que permite identificar uma malha ou estrutura urbana já definida, onde existem as infraestruturas essenciais e onde se encontram definidos os alinhamentos dos planos marginais por edificações em continuidade.
63. Apenas a partir da entrada em vigor do RGEU, isto é, só a partir de Agosto de 1951, é que se regulamentou de forma sistemática e coerente a actividade da construção de obras particulares, designadamente a execução, ampliação e alteração de edificações, e se especificaram quais eram aquelas cuja execução dependia de licenciamento.
64. “O levantamento de edificações e outras construções começou por ser uma actividade livre de constrangimentos de direito público, sendo que apenas com a entrada em vigor da Portaria de 6/06/1838 se introduziu a possibilidade de sujeição a prévio licenciamento administrativo.

A obrigatoriedade de submissão das obras particulares de construção civil a prévio licenciamento administrativo só veio a ser consagrada pelo Decreto com força de Lei de 31 de Dezembro de 1864, mas restrito às cidades de Lisboa e Porto.
Este limitado âmbito territorial das obras sujeitas a licenciamento foi mantido pelo Decreto de 14 de Fevereiro de 1903 que definiu o regime jurídico da construção, aprovando o Regulamento da Salubridade das Edificações Urbanas.
A situação manteve-se, no essencial, até à publicação do RGEU, aprovado pelo DL nº 38352 de 7/08/1951, diploma que revogou aquele Regulamento da Salubridade das Edificações Urbanas.”
65. O edifício descrito no art.º 1.º da p.i. foi construído e inscrito na matriz respectiva no ano de 1950, data anterior à entrada em vigor do RGEU12, do PDM de Caminha13, do RJUE e da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro.
66. O regulamento do PDM de Caminha constitui o instrumento definidor das linhas gerais de política de ordenamento físico e de gestão urbanística do território municipal, estabelecendo as principais regras a que devem obedecer a ocupação, uso e transformação do solo. (Art.º 1.º n.º 1 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 158/95, de 29 de Novembro)
67. Este regulamento é indissociável das plantas de ordenamento e de condicionantes do PDM de Caminha. (art.°s 3.º RJUE e 1.º n.º 3 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 158/95, de 29 de Novembro)
68. O perímetro urbano é o conjunto do espaço urbano, do espaço urbanizável e dos espaços industriais que lhes sejam contíguos. (Art.º 6.º n.º 18 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 158/95, de 29 de Novembro)
69. Aqui chegados, o prédio urbano sub judice, de acordo com o PDM de Caminha e de harmonia com a localização do mesmo,
70. insere-se, na carta de Ordenamento, no perímetro urbano, em Espaço Urbanizável de média densidade (H2), com uma tipologia dominante de moradia isolada, geminada ou em banda (COS ≤ 0.50 e R/chão + 1). (Cf. Item “II. Factualidade assente” e doc. n.º 2 junto aos autos com a p.i.)
71. O PDM de Caminha não adoptou a definição de zona urbana consolidada, como não classifica nenhum tipo de espaço de uso da área do concelho com esta designação. (art.°s 8.º e 9.º da Resolução do Conselho de Ministros n.º 158/95, de 29 de Novembro)
72. A definição do conceito de zona urbana consolidada e a exigência deste pressuposto legal para o reconhecimento de propriedade não foi consagrada no RGEU, no DL n.º 468/71, de 5 de Novembro e no Decreto de 31 de Dezembro de 1864.
73. A edificação do prédio urbano em apreço nos autos, com a área actual de implantação, já existe há mais de 65 anos,
74. i.e., desde o ano de 1950 que, mercê dos regimes jurídicos vigentes à data da sua realização, se encontrava isenta de controlo prévio (licenciamento da operação urbanística) e de obtenção prévia de autorização de utilização por parte da administração. (Doc. n.º 4 junto aos autos com a p.i.)
75. Por força do disposto na al. c) do n.º 5 do art.º 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, o reconhecimento da propriedade privada do prédio urbano em apreço sobre as margens do mar,
76. não está sujeito ao regime de prova estabelecido nos números 1 a 4 da mesma norma,
77. caso esteja integrado em zona urbana consolidada como tal definida no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar, e se se encontrar ocupado por construção anterior a 1951, documentalmente comprovado.
78.Os diplomas supra mencionados no art.º 65 apenas dispõem para o futuro (ex. nunc). (Art.º 12.º CC)
79. E, por isso, uma vez que a edificação sub judice que foi construída ao abrigo de direito anterior e a utilização respectiva não pode ser afectada por normas legais e regulamentares supervenientes – princípio tempus regict actum. (Art.º 60.º RJUE)
80. Ao contrário do que sufraga o Tribunal a quo, a Lei Nova que contém a norma prevista no art.º 2 al. o) RJUE e no PDM de Caminha (zona urbana) não deve ser aplicada no caso em apreço,
81. atento que, o disposto nestes preceitos legais não dispõem directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas – direito de propriedade do prédio urbano que se mantém na titularidade da Recorrente e na dos seus antecessores, desde o ano de 1950, cuja edificação nele foi construída há mais de sessenta e cinco anos - e
82. não se deve abstrair dos factos que lhes deram origem e, por isso, deve aplicar-se a Lei em vigor no momento em que ocorreram, a Lei Antiga, que, no caso em apreço, conforme se deixou sobredito, não existia no ano de 1950.
83. Caso assim seja o Tribunal a quo está a atribuir um efeito retroactivo que a Lei Nova (RGEU, art.º 2 al. o) RJUE e PDM de Caminha) não o consagrou e que viola os princípios da não retroactividade da Lei (tempus regist factum) e do tempus regict actum (art.º 60.º RJUE).
84. E, por isso, não podes ser aplicado o disposto no n.º 2 do art.º 12.º CC, no que concerne à referência ao conceito de zona urbana consolidada previsto na al. c) do n.º 5 do art.º 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro.
85. Uma questão é a aplicabilidade de uma norma (PDM ou RJUE) que vem classificar o uso e ocupação de determinada área do território e definir determinado conceito para um terreno que ainda não foi submetido a nenhuma operação urbanística e de edificação15,
86. outra diversa é condicionar o reconhecimento da propriedade privada de um prédio urbano à obrigatoriedade de este ter de se enquadrar em determinada área do território e respectiva classificação que não existia à data de aquisição do terreno e construção da edificação.
87. O direito de propriedade, garantido pela Constituição, é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, conforme infra se expende.
88. Daí que, não seja admissível a aplicação ao reconhecimento de propriedade do caso sub judice - cuja edificação existe, pelo menos, desde o ano de 1950 –, o pressuposto previsto na primeira parte da alínea c) do n.º 5 do art.º 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro,
89. uma vez que a consagração de definição de conceitos e a exigência de pressupostos em normas prescritas em diplomas legais que entraram em vigor em momento posterior à data de construção de determinada edificação,
90. viola o princípio da não retroactividade da lei das Leis restritivas de direitos, liberdades e garantias (direito de propriedade). (Art.°s 17 e 18.º CRP)
91. Pelo que, salvo o devido respeito por entendimento contrário, a primeira parte do segmento da norma prevista art.º 15.º n.º 5 al. c) da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro supra citado enferma do vício de inconstitucionalidade,
92. quando interpretado no sentido de que, para que o reconhecimento da propriedade privada de construções que datam antes de 1951, sobre terrenos situados em parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis,
93. possa ser obtido sem sujeição ao regime de prova estabelecido nos números anteriores do mesmo normativo,
94. têm aqueles (terrenos) de estar integrados em zona urbana consolidada como tal definida no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, 95. por violação do princípio da não retroactividade da lei das Leis restritivas de direito, liberdades e garantias. (art.°s 17.º, 18.º n.º 3 e 62.º nºs 1 e 2 CRP)
96. Por via disso, deve reconhecer-se a propriedade privada da Autora a totalidade da área do prédio urbano sub judice,
97. por ter sido construída a edificação há mais de sessenta e cinco anos, antes de Agosto de 1951, de Dezembro de 2005 e da entrada em vigor do RJUE.
98. Destarte, ao assim não entender, violou o tribunal recorrido o disposto nos art.°s 17.º, 18.º n.º 3 e 62.º n.º 1 e 2 204.º CRP, 12.º n.º 1 e 2 CC, 60.º RJUE.

Termos em que, e no que mais Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, alterando-se a decisão na parte em apreço nos termos expostos, revogando-se a sentença proferida, substituindo-se por outra, tudo de molde a que seja julgada a acção procedente, por provada, condenando-se o Recorrido dos pedidos a), c), d) e e) da p.i., com o que se fará INTEIRA JUSTIÇA.

O Magistrado do MPº em representação do Estado apresenta contra-alegações.

II- CUMPRE APRECIAR E DECIDIR.

Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquele cujo conhecimento oficioso se imponha.

Assim são questões a conhecer neste processo as seguintes:

- se a sentença proferida enferma da nulidade apontada.
- erro na apreciação da prova quanto ao facto impugnado.
- erro na aplicação do direito, como consequência da pugnada alteração da decisão da matéria de facto.

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**
III. FUNDAMENTAÇÃO.
● De Facto:

O Tribunal recorrido deu como provada e não provada a seguinte factualidade:

1 - Encontra-se registada a favor da autora a propriedade de um barracão de rés-do-chão e terreno de rossio ou logradouro, atravessado por caminho público, a confrontar do Norte com João, do sul e poente com caminho público e de Nascente com Maria, com a área coberta de 80 m2 e descoberta de 720 m2, sito no Lugar de …, na freguesia de …, concelho de Caminha, inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º ... e descrito na CRP de Caminha sob número ....
2 - O prédio referido no nº 1, de acordo com o Plano Director Municipal do concelho de Caminha e de harmonia com a localização do mesmo, insere-se, na carta de Ordenamento, em Espaço Urbanizável de média densidade (H2), com uma tipologia dominante de moradia isolada, geminada ou em banda (COS ≤ 0.50 e R/chão + 1).
3 - Tal prédio localiza-se na faixa do Domínio Público Marítimo.
4 - O prédio inscrito na matriz sob o artigo n.º ... foi-o na matriz no ano de 1950.
5 - A edificação sub judice está integrada em zona de perímetro urbano, fora da zona de risco de erosão ou de evasão do mar e em zona infraestruturada.
6 - A Autora, por si e seus antecessores, há mais de 60 anos que, por o barracão mencionado artigo 1º se situar próximo do mar e as algas marinhas darem à costa próximo dele, vem-se dedicando à apanha e secagem do sargaço, colhendo-o para o vender à indústria farmacêutica e com ele adubar e fertilizar os campos agrícolas.
7 - Desde 1999, durante dois ou três anos, o dito barracão foi utilizado para viveiro de aquacultura de marisco e para fins de investigação na área da biologia aplicada.
8 - A autora e seus antecessores realizaram obras de conservação do edifício, pintaram as fachadas, nomeadamente, ao longo de mais de 60 anos, com o espírito próprio de quem exerce o direito de propriedade.
9 - A autora passou a pagar os consumos de água e de luz, a cuidar da sua limpeza, conservação, segurança e a fazer as reparações mais urgentes.
10 - A requerimento da Autora foi atribuído ao prédio descrito no artigo 1º pela Junta de Freguesia de …, concelho de Caminha, o número de identificação ....
11 - O Município C infra-estruturou o local em que se insere o prédio referido em 1 com rede de esgotos, rede de água, e rede de electricidade com iluminação pública.
12 - A Autora tem vindo a praticar, ininterruptamente, os factos referidos em 6 a 9, inclusive, desde o dia 05 de Setembro de 1996, em exclusivo, de forma pública, pacífica, contínua e de boa fé, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, com o espírito e convicção de quem é exerce o direito de propriedade.
13 - Em data não concretamente apurada, o Município C procedeu à abertura da Rua das Camboas.
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Factos não provados
Não se provou que:

- O prédio referido em 1 já se encontra cadastrado, representado e identificado na carta militar desde 1949.
- A edificação de tal prédio urbano tem a área actual de implantação de 105,80 m2.
- A edificação em causa encontra-se numa área urbana consolidada em termos de morfologia urbana.
- No dito barracão a Autora guarda neles todos os aprestos.
- A autora e os seus antecessores vêm introduzindo arranjos e melhoramentos nesse terreno de acordo com a sua vontade e gosto.
- E colocaram vedações para demarcar o edifício.
- O Município C procedeu recentemente à abertura da Rua das …, dividindo o prédio urbano mencionado no art.º 1 em duas parcelas, sem que tenha pago o devido preço ou a justa indemnização à autora pela área do terreno sobre a qual foi construída a via pública.
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● De Direito:
Questão Prévia

Antes de mais uma nota quanto ao modo como se encontra formulado o recurso da autora.

Nos termos do n.º 1 do artigo 639.º do Código de Processo Civil, o recorrente deve terminar as alegações com as respectivas conclusões, que são a indicação de forma sintética dos fundamentos por que se pede a alteração ou anulação da decisão.

A formulação das conclusões do recurso tem como objectivo sintetizar os argumentos do recurso e precisar as questões a decidir e os motivos pelos quais as decisões devem ser no sentido pretendido. Com isso pretende-se alertar a parte contrária – com vista ao pleno exercício do contraditório – e o tribunal para as questões que devem ser decididas e os argumentos em que o recurso se baseia, evitando que alguma escape na leitura da voragem da alegação, necessariamente mais extensa, mais pormenorizada, mais dialéctica, mais rica em aspectos instrumentais, secundários, puramente acessórios ou complementares.

Esse objectivo da boa administração da justiça é, ou devia ser, um fim em si. O não cumprimento dessa exigência constitui não apenas uma violação da lei processual como um menosprezo pelo trabalho da parte contrária e do próprio tribunal. Daí que o artigo 641.º, n.º 2, do Código de Processo Civil comine a falta de conclusões com a sanção da rejeição do requerimento de interposição de recurso, funcionando essa sanção de forma automática, sem qualquer convite prévio ao aperfeiçoamento, como sucede quando as conclusões sejam deficientes, obscuras ou complexas (artigo 639.º, n.º 3).

Ora, no caso, como infelizmente se vai tornando norma, verifica-se que a recorrente redigiu as suas alegações, dividindo-as em parágrafos com numeração, depois escreveu a expressão “conclusões” e a seguir repetiu na quase totalidade as alegações, o que manifestamente não constitui uma forma válida de cumprimento da exigência legal.

Ressalve-se, contudo, que a transcrição só não é total, porque a recorrente teve a pequena astúcia de eliminar um ou outro parágrafo interlocutório e inócuo.

Por conseguinte do ponto de vista substancial, a consequência devia ser a pura e simples rejeição do recurso por falta de conclusões. Com efeito, se essa sanção se aplica mesmo nas situações em que a falta se deve a mera desatenção ou até lapso informático, deve aplicar-se por maioria de razão às situações em que consciente e deliberadamente o mandatário se limita a repetir o texto das alegações, não podendo deixar de saber que não está, como devia, a formular conclusões.

Com muito boa vontade e atendendo apenas ao aspecto formal, poder-se-ia convidar a recorrente a aperfeiçoar (melhor dizendo, a formular) as “conclusões”. Considerando, porém, a simplicidade das questões colocadas e da decisão a proferir vamos prosseguir e apreciar as questões.
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Apreciação do recurso apesentado pela autora
Nulidade da sentença

Nas conclusões de recurso suscita a apelante a nulidade da sentença por violação do disposto na alínea c) do artº 615º do CPC.

Vejamos.
A sentença na sua formulação pode conter vícios de essência, vícios de formação, vícios de conteúdo, vícios de forma, vícios de limites.
As nulidades da sentença incluem-se nos “vícios de limites” - artº 615º do CPC, considerando que nestas circunstâncias, face ao regime do citado artº, a sentença não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia.

E assim, como tem sido entendido, sem controvérsia, os vícios determinantes de nulidade da sentença correspondem a casos de irregularidades que afectam formalmente a sentença e provocam dúvida sobre a sua autenticidade, como é a falta de assinatura do juiz, ou ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adoptado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia) — als. a) a e) do n.º 1 do art.º 615 do CPC.
São sempre vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afectada.
Não se verificando nenhuma das causas previstas naquele número pode haver uma sentença com um ou vários erros de julgamento, mas o que não haverá é nulidade da decisão.
No despacho que admitiu o recurso, a juiz do tribunal “a quo” não se pronunciou sobre a nulidade da sentença, nos termos do art. 617º/1 CPC.
Atenta a simplicidade das questões suscitadas e face aos elementos que constam dos autos, não se mostra indispensável ordenar a baixa dos autos para a apreciação da nulidade, nos termos do art. 617º/5 CPC, passando-se a conhecer desde já da mesma.
**
Decorre do disposto no art.º 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão, ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

Trata-se – como os demais enunciados nesta disposição legal - de um vício de natureza formal e não substancial.

Explica, a este propósito, Pais do Amaral (1) que "(...) a sentença tem de ser entendida pelos destinatários. Doutro modo, de nada lhes servirá. Por isso, a sentença tem de ser clara, de forma que na sua interpretação se não hesite entre dois sentidos e se conheça claramente o seu alcance."

No caso em apreciação, a sentença especificou quais os factos provados e não provados e fundamentou a sua convicção quanto a tais factos, nos termos do disposto no artigo 607.º do C.P.Civ.

Sequencialmente, analisou a matéria de facto à luz das pretensões das partes, concluindo pela decisão final.
Não se verifica qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão, nem qualquer vício de raciocínio que tenha levado a uma decisão em sentido oposto àquele que deveria ter sido, atenta a matéria de facto dada como provada.

Como bem refere o Magistrado do MPº Não corresponde à realidade que o tribunal a quo tenha considerado inconstitucionais as normas que definem em que consistem o domínio público hídrico, ou seja as dos artigos 2º a 5º da Lei 54/2005 de 15 Novembro.
O que o tribunal considerou inconstitucional foram as normas dos artigos 2º, 3º 4º 11º nº 2, 12º e 15º nº 2 e 5 da referida Lei, quando interpretadas no sentido de que a mesma classificação de certos bens como do domínio público implica a sua automática transferência para tal domínio, independentemente de justa indemnização.
O que o tribunal deu também como provado foi que a A. Não logrou fazer prova, como pretendia, de que o terreno em causa era de sua propriedade, privada.

Por isso a aludida declaração de inconstitucionalidade não contende com a improcedibilidade do pedido cujos pressupostos são de outra natureza, a saber:

De acordo com a citada Lei, o domínio público marítimo pertence ao Estado e define-se de acordo com os parâmetros fixados na mesma.
Quem pretender reivindicar, como é o caso da A. terreno que em princípio esteja dentro dos limites dessa territorialidade pública poderá fazê-lo, seguindo as regras fixadas em tal legislação: provar que tal terreno já lhe pertencia legitimamente antes de 31.12.1864; ou então provar que nesse terreno existia construção anterior a 1951 e que tenha sido implantada em zona urbana consolidada e definida como tal por Regulamento Jurídico da Urbanização e Edificação, grosso modo.
Como a A. não logrou provar tal factualidade a sentença determinou a improcedibilidade do pedido.
Também não se verifica qualquer ambiguidade que torne a sentença ininteligível.
Improcede a invocada nulidade.
***
Reponderação da Prova

Impugna a autora o ponto 3 dos F.P. que tem a seguinte redacção:

Tal prédio localiza-se na faixa do Domínio Público Marítimo.
O art.º 640.º do C.P.C. impõe ao recorrente o cumprimento, que se quer integral, sob pena de rejeição, de quatro ónus:

1) a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados – alínea a) do n.º 1;
2) a especificação dos concretos meios probatórios que impunham uma decisão diversa sobre os concretos pontos da matéria de facto impugnados – alínea b) do n.º 1;
3) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas – alínea c) do n.º 1; e
4) quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, a indicação, com exactidão, das passagens da gravação em que se funda – alínea a) do n.º 2.
Numa graduação de importância dos sobreditos ónus, poder-se-á afirmar que o primeiro – a indicação concreta dos pontos de facto impugnados – é o que assume a primazia, porque ele delimita o poder de cognição do tribunal ad quem, mormente quando estejam em discussão direitos de natureza disponível, porque é exclusivo do seu titular fazer o enquadramento fáctico do direito que pretende fazer valer.
A indicação dos concretos meios probatórios constantes do processo que impunham decisão diversa da recorrida, assim como o projecto de decisão, assentam a sua ratio na auto-responsabilização do recorrente e no cumprimento efectivo do dever de cooperação, que, inequivocamente, os justificam, impondo- se o cumprimento de tais ónus, ainda que se possa admitir uma menor concisão da que é exigida para o primeiro.
Mostram-se cumpridos os pressupostos da impugnação da decisão em matéria de facto previstos no art.º 640º, nºs 1 e 2 do C.PC.
A fundamentar este pedido alega a recorrente que O Tribunal a quo formou a sua convicção para determinar a matéria de facto dada como provada estribando-se na alegada declaração confessória discorrida pela Autora no articulado (p.i.) e objecto de prova nos presentes autos.

Salvo o devido respeito por entendimento contrário, a matéria de facto vazada neste item, o Tribunal a quo devê-la-ia ter dado “por não provada”.

Para tanto, será necessário reapreciar a prova documental e o discorrido no articulado (p.i.) da Recorrente, passando-se de seguida à indicação com exactidão do documento n.º 2, sob epígrafe “CERTIDÃO” junto aos autos com a p.i., na parte em que é relevante para a alteração da decisão sobre a matéria de facto.

Confronte-se com o teor do art.º 3.º vertido na p.i., em que a ora Recorrente refere que o prédio urbano se localiza na faixa do Domínio Público Marítimo, conforme a carta de condicionantes, tendo apenas citado e tido por referência o conteúdo da certidão emitida pela CMC, sendo certo que, não é da competência desta entidade administrativa (CMC) a delimitação dos leitos e margens dominiais confinantes com terrenos de outra natureza, ao abrigo disposto nos art.°s 11.º n.º 2 e 17.º n.º 2 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro (Cf. doc. n.º 2, sob epígrafe “CERTIDÃO” junto aos autos com a p.i.).

Na verdade, a prova da delimitação do domínio público hídrico, ao abrigo disposto nos artº 11.º n.º 2 e 17.º n.º 2 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, apenas pode ser efectuada através de documento escrito autêntico (delimitação efectuada pela Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., homologada por resolução do Conselho de Ministros e publicada no Diário da República).
Da matéria de facto alegada na p.i. não se pode retirar da mesma que exista confissão judicial espontânea feita pela Recorrente através do articulado, sendo que, a que, eventualmente, se considere que existe, é inadmissível ao abrigo do disposto no art.º 354.º CC.

A confissão judicial espontânea pode ser feita no articulado, no entanto, não faz prova contra o confitente se for declarada insuficiente por lei ou se recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis. (Art.°s 354.º als. a) e b) 356.ºCC)

A livre apreciação da prova não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes. (Art.º 607.º n.º 5 CPC, segunda parte)
Pronuncia-se o Magistrado do Ministério Público nas contra-alegações da seguinte forma:

A questão da delimitação do domínio público marítimo, no caso concreto, merece alguma atenção na medida em que o tribunal julgou despicienda tal delimitação a realizar pelas entidades oficiais, uma vez que tal não se encontra realizado.

Nesse sentido o MºPº requereu a realização de diligências oportunas para a referida delimitação, no que foi desatendido pelo tribunal.

Porém é preciso não olvidar que nos termos do artº 17º nº 7 da Lei 54/2005, com as revisões operadas em 2013,2014 e 2016, tal delimitação administrativa “não preclude a competência dos tribunais comuns para decidir a propriedade ou posse dos leitos e margens ou suas parcelas”.

O que aliás se compreende, uma vez que se a A. lograsse efectivamente a prova da propriedade, seria relativamente inútil a determinação da natureza pública ou privada de tal terreno apenas com base na delimitação administrativa que o pudesse determinar, mas não em caso contrário, como efectivamente acontece.

Assim, revela-se útil e adequada tal delimitação, tanto mais que poderá determinar uma eventual pertença a domínio privado daquilo que afinal se entende como sendo público, empiricamente.

Apreciando

Abandonado o sistema da prova legal, mostra-se consagrado entre nós o princípio da livre apreciação da prova (art. 607º nº 5 CPC).
Significa isso que, à partida e como regra, todos os meios de prova têm idêntico valor, cometendo-se ao julgador a liberdade da sua valoração.

Só assim não será, e daí a ressalva da 2ª parte do nº 5 do art. 607º do CPC, nos casos da dita prova vinculada, em que a lei vincula (passe o pleonasmo) o julgador a determinados aspectos ou resultados dos meios de prova.

A livre apreciação da prova não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes. (Art.º 607.º n.º 5 CPC, segunda parte).

No caso em apreço como bem diz a recorrente a delimitação dos leitos e margens dominiais confinantes com terrenos de outra natureza compete ao Estado, que a ela procede oficiosamente, quando necessário, ou a requerimento dos interessados. (Art.º 17.º n.º 2 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro).
A partir de tal determinação fica estabelecido até onde se estende o domínio público marítimo, i.e., até onde vai fisicamente a largura de 50 metros da margem das águas do mar. (Art.º 11.º n.º 2 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro).

Conforme se deixou predito, tal delimitação é da incumbência de serviços oficiais do Estado, na dependência do Ministério do Ambiente, e, em particular, da Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., e, uma vez homologada por resolução do Conselho de Ministros, é publicada no Diário da República. (Art.º 17.º n.º 6 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro.

Por sua vez da leitura da petição inicial não resulta confessado pela autora que o prédio cuja propriedade reivindica se localiza na faixa do Domínio Público Marítimo. Na delimitação que a autora faz do seu prédio trata-se de prédio atravessado por caminho público, a confrontar do Norte com João, do Sul e Poente com domínio público hídrico e de Nascente com Maria- ver artº 1 da p.i.
Na Conservatória do Registo Predial tal prédio encontra-se descrito como barracão de rés do chão e terreno de rossio ou logradouro-norte, João; sul e poente caminho público, nascente Maria.

Mais alega no artº 3 da p.i que tal prédio se localiza na faixa de domínio público segundo a carta de condicionantes , tendo apenas citado e tido por referência o conteúdo da certidão emitida pela CMC, sendo certo que, não é da competência desta entidade administrativa (CMC) a delimitação dos leitos e margens dominiais confinantes com terrenos de outra natureza, ao abrigo disposto nos art.°s 11.º n.º 2 e 17.º n.º 2 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro.

Mas mesmo que assim se não entenda considerando-se que a questão se prende com bens do domínio público não existe dúvida que não é permitida confissão, desistência ou transacção que importe a afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis. (Art.º 289.º CPC).

De efeito, para além do titular dos bens do Domínio Público ter de ser uma pessoa de direito público estes bens enquanto pertencentes a um regime de proteção especial e afetos à utilidade pública tais bens são inalienáveis (cf. n.º 2 do artigo 202.º do CC), impenhoráveis (cf. alínea b) do artigo 736.º al b) do CPC) e imprescritíveis (uma vez que não podem ser adquiridos por usucapião), segundo o Direito Civil.

Estes princípios são essenciais para que a Administração prossiga as suas atribuições de conservação e defesa dos bens dominiais, afetos ao uso de todos- neste sentido MARCELLO CAETANO, Princípios Fundamentais do Direito Administrativo, Reimpressão da edição Brasileira de 1977, 1.ª Reimpressão Portuguesa, Coimbra, 1996, p. 331.

Logo a considerar como considerou o Tribunal recorrido que existiu confissão ela é inadmissível ao abrigo do disposto no art.º 354.º CC- neste sentido acórdão da Relação do Porto datado de 04.12.2017 proferido no processo nº 1626/16.6T8AVR.P1.
Do que resulta que a Recorrente não confessou, como não poderia confessar, que o prédio urbano se encontra na faixa do Domínio Público Marítimo.
E outra prova também não existe sendo certo que para prova de tal factualidade o Tribunal recorrido apenas se referiu à confissão da autora.

Verifica-se assim, ao contrário do afirmado pela Srº Juiz no despacho datado de 13 de Maio de 2016 (no qual indefere requerimento do Magistrado do MP no sentido de ser accionado o processo de delimitação do domínio Público hídrico pedido que a autora não se opôs) uma questão de facto que se prende com a circunstância de se saber se o prédio reivindicado se situa no domínio publico ou não.
Questão que importa dilucidar e que como referem as partes (autora e réu) assume natureza prévia e até prejudicial.

Com efeito, ao abrigo do disposto no art.º 17.º n.º 7 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, o Tribunal a quo apenas se poderia pronunciar sobre a integração do prédio urbano no Domínio Público Marítimo (DPM), após estarem concretamente estabelecidos os limites de tal domínio.

Esclarece o artigo 10.º, n.º 2, que a delimitação administrativa realizada nos termos do presente decreto-lei não preclude a competência dos tribunais comuns para decidir da demarcação das propriedades ou da propriedade ou posse dos leitos e margens ou suas parcelas, nos termos da lei processual civil. Assim, não restam dúvidas que o tribunal recorrido é competente para decidir do pedido de reconhecimento do direito de propriedade deduzido pelos Autores.

Porém, importa previamente saber quais os concretos limites do domínio público marítimo no local em causa e, nomeadamente a confrontação sul do prédio invocado pela Autora, para se apurar rigorosamente qual a parcela de terreno sujeita a estes limites sobre a qual os Autores vêm requerer o reconhecimento da propriedade.

No artigo 1º da petição inicial apenas é referido que o prédio confronta a sul e poente com domínio publico hídrico. Ora, esta descrição não localiza, em termos de limites e coordenadas geográficas, qual a parcela do prédio que entende pertencer ao domínio público marítimo, tanto mais que a linha que define a estrema da margem não é estável.

Pelos motivos expostos, no caso concreto existem dúvidas fundadas na aplicação dos critérios fixados no artigo 11.º da Lei n.º 54/2005 de 15 de Novembro.

Ora a abertura do procedimento administrativo de delimitação deve ocorrer quando haja dúvidas fundadas na aplicação dos critérios legais à definição no terreno dos limites do domínio público hídrico, conforme se constata, a contrario, do teor do artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 353/2007 de 26 de Outubro.
A presente acção não tem por objecto a demarcação da propriedade ou dos leitos e margens ou suas parcelas, pelo que não colide com o eventual procedimento administrativo supra referido nos termos fixados no artigo 9.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 353/2007 de 26 de Outubro.

O mecanismo administrativo de delimitação visa apenas delimitar, isto é, traçar os limites do domínio público hídrico, m conformidade com o que a lei determina: como a própria designação sugere a delimitação representa o ato adequado unicamente para esclarecer quais os limites de uma parcela do domínio publico, mas já não para determinar se certa parcela se encontra ou não sujeita ao estatuto da dominialidade- neste sentido Ana Raquel Gonçalves Moniz, Do reconhecimento da propriedade privada pp 070.

Na verdade, a delimitação realizada por via administrativa pode ser importante ou mesmo essencial para a decisão que venha a ser proferida no âmbito da acção de reconhecimento, na medida que pode ser não exacto onde começa e termina o terreno do autor ou onde começa e termina o domínio público hídrico. Parece, portanto, que, nessas hipóteses poderá o autor requer a delimitação do domínio publico hídrico, juntando ao processo o resultado do processo de delimitação, ou o próprio juiz solicitá-lo ao autor no caso de não ter sido apresentado.
(…)

Pode, por outro lado não ser essencial para a decisão, mas surgir a necessidade de uma vez reconhecida a propriedade e privada, delimitar os imóveis pertencentes ao domínio público que passaram a confinar com um terreno de natureza privada, após o reconhecimento judicial. - Neste sentido José Miguel Júdice e José Miguel Figueiredo i Acção de Reconhecimento da Propriedade Privada sobre Recursos Hídricos, 2015, 2ªedição, Almedina pp 139.

Também a jurisprudência nos diz que pode a delimitação justificar-se se estiver em causa, na acção de reconhecimento de direitos adquiridos, apenas uma parte da margem e se discutir a respectiva delimitação- acórdão da Relação do Porto datado de 03.11.2014 e proferido no processo nº 8445/13.0 TBVNG.P1.
E se é certo que são as próprias partes que consideram no caso em apreço útil a realização da diligência, cremos que cabe perfeitamente nos poderes inquisitórios do tribunal ordenar que a diligência seja levada a efeito como deve ser em ordem a dotar o tribunal de um meio de prova rigoroso e fiável.

Nesse contexto, conforme requerido pelo Digníssimo Magistrado do Ministério Público, deveria ter tido lugar previamente à sentença o procedimento administrativo a que alude o disposto no art.º 17.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, em articulação com o disposto no DL n.º 353/07, de 26 de Outubro, diploma que estabelece o regime a que fica sujeito o procedimento da delimitação do domínio público hídrico.

Importa, assim, anular o julgamento em relação à resposta ao mencionado facto e ordenar que se proceda à delimitação do domínio público marítimo onde ele confronta com o(s) prédio(s) da Autora, nos termos estabelecidos no Decreto-Lei 353/2007, com o seu resultado dessa diligência vindo depois a conjugar-se os demais meios de prova produzidos e a produzir se necessários conforme se determinou no acórdão deste tribunal proferido no processo nº 1849/14.2 TBVCT de 04.02.2016 que decidiu questão fáctico-jurídica similar e tem inteira pertinência para a nossa análise.
Fica, assim, prejudicada a apreciação das demais questões equacionadas.

Concluindo:

▪. Para além do titular dos bens do Domínio Público ter de ser uma pessoa de direito público estes bens enquanto pertencentes a um regime de proteção especial e afetos à utilidade pública tais bens são inalienáveis (cf. n.º 2 do artigo 202.º do CC), impenhoráveis (cf. alínea b) do artigo 736.º al b) do CPC) e imprescritíveis (uma vez que não podem ser adquiridos por usucapião), segundo o Direito Civil.
▪. Não é permitida confissão, desistência ou transacção que importe a afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis. (Art.º 289.º CPC).
▪. Ao abrigo do disposto no art.º 17.º n.º 7 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, o Tribunal a quo apenas se poderia pronunciar sobre a integração do prédio urbano no Domínio Público Marítimo (DPM), após estarem concretamente estabelecidos os limites de tal domínio.
▪. A abertura do procedimento administrativo de delimitação deve ocorrer quando haja dúvidas fundadas na aplicação dos critérios legais à definição no terreno dos limites do domínio público hídrico, conforme se constata, a contrario, do teor do artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 353/2007 de 26 de Outubro.

***
IV. DECISÃO

São estes os termos em que, julgando a apelação procedente, anula-se no referente ao facto supra elencado a decisão recorrida e os trâmites dela dependentes, para que, no tribunal recorrido, se proceda do modo acima exposto.
Custas a fixar a final.
Notifique

Guimarães, 22 de Fevereiro de 2018
(processado em computador e revisto)


(Maria Purificação Carvalho)
(Maria dos Anjos Melo Nogueira)
(José Cravo)


1. In Direito Processual Civil, 11ª Edição, Almedina, 2013, pág. 400.