Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
258/14.8GDGMR-A.G1
Relator: ARMANDO AZEVEDO
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
INCUMPRIMENTO
REALIZAÇÃO DE INSTRUÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
- 258/14:

É admissível a realização de instrução, a requerimento do arguido, com o único propósito de apurar se o arguido, na fase de inquérito, incumpriu culposamente as condições a que tinha ficado subordinada a suspensão provisória do processo.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

1. No processo comum nº 258/14.8GDGMR do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Instrução Criminal de Guimarães – J2, em que é arguido M. R., com os demais sinais nos autos, o Exmo Sr Juiz de Instrução, proferiu despacho de indeferimento do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo referido arguido em virtude de ter considerado ser legalmente inadmissível a instrução.
2. Não se conformando com a mencionada decisão, dele interpôs recurso o arguido, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
“1- Diz o n.º 1 do artigo 286.° C.P.P :
" A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento".
2- Deixar de reconhecer-se ao Arguido a possibilidade de pôr em causa o juízo feito pelo Ministério Público sobre o alegado incumprimento da injunção aplicada e a posterior decisão de acusar implicaria introduzir uma restrição ao âmbito de aplicação do art. 286º/1 do Código de Processo Penal que a norma não contém.
3- A este propósito, há ainda um problema prévio que pode levantar-se, que é o de saber se pode ou não a instrução servir, ou servir também, para sindicar a decisão tomada pelo Ministério Público de dar seguimento aos autos, fazendo cessar a suspensão provisória do processo.
4- A essa problemática tem respondido a mais recente jurisprudência no sentido afirmativo, isto é, nada obsta a que o arguido requeira a abertura de instrução com o objectivo de desafiar a decisão tomada pelo Ministério Público de fazer prosseguir os autos para julgamento (cfr. Ac. da RL de 18/05/2010, relatado por José Adriano, disponível in www.dgsi.pt).
5- A comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, que é a finalidade da instrução, passa não só pela possibilidade de discutir-se o facto naturalístico em si mesmo, mas também pela possibilidade de discutir-se todo o enquadramento normativo daquela decisão (Ac. da RC de 28/03/2012, relatado por Luís Ramos, disponível in www.dgsi.pt).
6- Assim sendo, como é, já se vê que as vicissitudes de uma eventual suspensão provisória decretada no processo e depois revogada pelo Ministério Público por considerar incumprida a injunção imposta, facultando, assim, a dedução de acusação que vem a ser questionada pelo arguido através do requerimento de abertura de instrução, têm que poder ser sindicadas pelo JIC, pois que inexoravelmente ligadas à questão da dedução de acusação ou arquivamento do processo que o mesmo tem que comprovar.
7- Na medida em que a acusação só pode ser deduzida se, havendo suspensão provisória do processo, esta tiver sido revogada, pode o arguido questionar as circunstâncias relativas ao cumprimento da injunção e finalidades da suspensão provisória, como meio indirecto de invalidar a acusação de que foi alvo e, por essa via, lograr a sua não comprovação judicial e o arquivamento dos autos.
8 - Confrontado com a dedução de acusação, após revogação de suspensão provisória do processo que lhe fora concedida, com fundamento no incumprimento da injunção, pode o arguido requerer a abertura de instrução e alegar factos no sentido de demonstrar que a injunção foi cumprida ou que o incumprimento não foi culposo, com vista a fazer decair a acusação por existir questão prévia determinante do arquivamento dos autos.
9 - Por sua vez, o JIC respectivo pode averiguar e apreciar tal pretensão, limitado pelo objecto do thema decidendum vertido no RAI, e extrair as necessárias consequências da factualidade que considerar indiciariamente provada, que poderão ou não coincidir com a posição assumida pelo ­Ministério Público durante o inquérito a propósito da revogação da suspensão provisória.
10 - O tribunal a quo ao fazer fez uma incorrecta interpretação da lei violou o artigo 286.° do Código de Processo Penal e o artigo 20.° n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Por tudo isto, concedendo provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, far-se-á Justiça.”
3. O Ministério Público, na primeira instância, respondeu ao recurso interposto pelo arguido, tendo concluído no sentido de que [transcrição]:
1. O arguido quando requereu a abertura de instrução não alegou factos demonstrativos da não subsistência da acusação deduzida, limitando-se a requerer que fosse decretada a suspensão provisória do processo.
2. Assim, não pode o arguido nesta fase – recurso – alegar factos demonstrativos da não subsistência da acusação deduzida, quando não os alegou no requerimento de abertura de instrução, conforme resulta do disposto no art. 410º-1 do CPP.
3. O arguido referiu ainda que cumpriu a injunção, ou seja, efectuou o pagamento da quantia de €300,00 à “Associação de Apoio à Criança” a quantia de €300,00.
4. Sucede que o arguido não efectuou o pagamento da quantia em dívida dentro do prazo de 6 meses decretado para a suspensão provisória do processo, mas passado cerca de 9 meses após o terminus desse prazo, e como tal não cumpriu dentro do prazo legal a injunção que lhe foi aplicada, pelo que o processo prosseguiu contra ele, tendo sido deduzida acusação, em conformidade com o disposto no art. 282º-4-a) do CPP.
5. Por último o arguido não demonstrou em parte alguma que o incumprimento da injunção não foi culposo, tendo-se limitado a informar que não estava em Portugal, não tendo junto aos autos qualquer documento comprovativo do local onde esteve emigrado, nem das datas em que se deslocou para esse país (ex: bilhetes de avião, visto, contrato de trabalho…).
6. Além do mais o arguido quando prestou TIR foi notificado que não podia mudar de residência nem dela se ausentar por mais de 5 dias sem comunicar a nova residência ou o local onde poder ser encontrado e que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada por si indicada (cfr. fls. 19).
7. E apesar de ter sido notificado nos termos atrás referidos não veio comunicar ao processo a nova residência ou o local onde podia ser encontrado, sendo certo que na fase de instrução não referiu em parte alguma o país onde alegadamente esteve emigrado.
8. Face ao exposto, deverá o presente recurso ser rejeitado por ser manifestamente improcedente, nos termos do disposto no art. 420.º-1-a) do CPP.

Nestes termos, e com o douto suprimento desse Venerando Tribunal, rejeitando o recurso e, em consequência, mantendo, na íntegra, a douta decisão recorrida V.ªs Exc.ªs farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA

4. Nesta instância, a Exma Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que deve ser mantida a decisão recorrida, negando-se provimento ao recurso.
5. Cumprido que foi o disposto no artigo 417º nº2 do CPP não foi apresentada resposta.
6. Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. A decisão recorrida
1.1- O Exmo Sr Juiz de Instrução proferiu o seguinte despacho [transcrição]:
“Requerimento de abertura da instrução de fls. 84.
Apresentou o arguido M. R. o requerimento de abertura da instrução ora em apreço tendo em vista o recurso ao instituto da suspensão provisória do processo.
Sucede porém que compulsados os autos, e tal como é reconhecido pelo próprio, constata-se que no decurso do inquérito foi decretada a suspensão provisória do processo (cfr. fls. 59), posteriormente revogada por incumprimento (cfr. fls. 74).
De referir ainda que o arguido conformou-se com o despacho de revogação da suspensão provisória do processo proferido pelo Ministério Público, nada tendo dito.
Ora, tendo sido decretada a suspensão provisória do processo e posteriormente revogada por incumprimento, não pode agora o arguido vir requerer a abertura da instrução apenas com o objectivo de ver novamente decretada a suspensão provisória do processo.
Incumprida a suspensão provisória do processo o processo terá de seguir o seu curso normal, conforme dispõe a alínea a) do n.º 4 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, sendo certo que se torna inviável novo recurso ao referido instituto.
Tendo o arguido requerido a abertura da instrução apenas com este objectivo, mostra-se legalmente inadmissível a instrução (cfr. artigo 287.º, n.º 3 do Código de Processo Penal).
*
Decisão.

Nestes termos, tendo em consideração tudo quanto ficou dito supra e ao abrigo do disposto no artigo 287.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, decido indeferir o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido M. R., atenta a inadmissibilidade legal da instrução.
*
Responsabilidade tributária.
Sem custas, por não serem devidas.
*
Registe e notifique. “

2- Apreciação do recurso

2.1- O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso(1) do tribunal.
O nº 1 do artigo 412º do C.P.P. estabelece que “A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
Como salienta Germano Marques da Silva (2) a propósito da referida norma, “As conclusões devem ser concisas, precisas e clara, porque são as questões nelas sumariadas que hão-de ser objeto de decisão.”
Nas conclusões do recurso, o recorrente deverá fazer uma síntese das razões da sua discordância relativamente à decisão recorrida, tal como se encontram delineadas na respetiva motivação.
Assim sendo, a questão essencial a decidir no presente recurso consiste em saber se é ou não admissível a realização de instrução, a requerimento do arguido, com único propósito de apurar se o arguido, na fase de inquérito, incumpriu culposamente as condições a que tinha ficado subordinada a suspensão provisória de processo.
2.2- Com relevância para a decisão a proferir, importa descrever os seguintes elementos do processo:
a) Por despacho exarado nos autos, obtida que foi a concordância do JIC, o M.P. decidiu suspender provisoriamente o processo pelo período de seis meses, mediante a imposição ao arguido das seguintes injunções:
- Pagar €300,00, à Associação de Apoio à Criança;
- Demonstrar o pagamento através de recibo no qual conste como motivo de pagamento o cumprimento de injunção criminal (cfr. fls. 50, 51 e 58);
b) Passado que foi prazo de seis meses da suspensão provisória do processo, porque não se encontrava demonstrado nos autos o pagamento da referida quantia, o M.P. ordenou a notificação do arguido para, em cinco dias, demonstrar o pagamento, sob pena de revogação da suspensão e dedução de acusação. A notificação ao arguido foi efetuada por via postal simples, com prova de depósito (cfr. fls. 70 e 71);
c) O arguido não respondeu à mencionada notificação.
d) Em face disso, o M.P. proferiu despacho, considerando incumprida a obrigação a que havia ficado condicionada a suspensão provisória do processo e deduziu acusação contra o arguido (cfr. fls. 73 e 74);
e) O arguido veio então requerer instrução, pretendendo unicamente justificar o motivo de não ter efectuado o cumprimento da injunção no tempo próprio e comprovar documentalmente o pagamento posteriormente por si efetuado, pretendendo a sua audição e a suspensão provisória do processo (cfr. fls. 83);
f) O requerimento de abertura de instrução foi indeferido pelo Exmo Juiz de Instrução nos termos acima mencionados, sendo esta a decisão posta em crise com o presente recurso.
2.3- A questão colocada no presente recurso tem que ver com a finalidade e o âmbito da instrução. Segundo dispõe o nº 1 do artigo 286º do C. P. Penal “A instrução visa a comprovação judicial de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.”
A instrução consiste numa fase facultativa do processo destinada essencialmente a discutir, perante um juiz, no final do inquérito, a decisão do M.P. de arquivar ou de deduzir acusação, ou do assistente de deduzir acusação particular. No fundo, o que se pretende com a instrução é que um juiz seja chamado a pronunciar-se sobre a suficiência de indícios da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, cfr., nº 1 do artigo 308º do C. P. Penal.
Por isso, nos casos em que o arguido, pretenda requerer instrução, poderá fazê-lo relativamente a factos pelos quais o Ministério Público tiver deduzido acusação, cfr. nº 1 al a) do artigo 287º do C. P.Penal. A instrução destina-se, nesses caos, a apreciar, perante juiz, a prova produzida em inquérito, em termos indiciários, em ordem a submeter ou não o arguido a julgamento.
Trata-se de uma fase em que, como nota Souto Moura (3), “…se opera um controle de judicial da posição assumida pelo M.P., ou pelo assistente que deduziu acusação particular, no final do inquérito. Além disso, a instrução surge como um controle que é solicitado ao juiz, e só por quem se sinta agastado pela decisão proferida uma vez encerrado o inquérito”.
Todavia, salvo melhor opinião, a instrução deverá poder ser requerida exclusivamente para discutir questões de direito, designadamente quando requerida pelo arguido com vista a não ser submetido a julgamento em virtude de essas questões serem suscetíveis de atingir a acusação, impedindo-a de chegar a julgamento (4).
Com efeito, pese embora o artigo 287º, nº 1 al. a) do C.P.P. se refira a factos, estes não podem ser compreendidos apenas em sentido naturalístico, porquanto os mesmos só relevam para efeitos de instrução na medida em que lhe seja atribuído um determinado enquadramento jurídico ou sentido normativo. Aliás, apenas nesta dimensão se compreende que o JIC se tenha de pronunciar sobre a verificação da suficiência dos indícios dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de um pena ou uma medida de segurança, cfr. artigo 308º, nº 1 do C.P.P..
O artigo 287º, nº 2 do C.P.P. refere-se a “razões de facto e de direito de discordância” relativamente à acusação ou não acusação”, pois que, como salienta Souto Moura (5), “…a questão controversa não será exclusivamente fáctica nem exclusivamente jurídica.
A questão será prevalente fáctica se se reportar ao que se considera ou não considera provado, mas mesmo então se não poderá prescindir de critérios normativos, como seja o próprio conceito de indícios suficiente do artigo 283º, nº 1 do N.C.P.P.. Falar-se-á a seu termo duma questão prevalentemente jurídica sempre que estiver em causa a repercussão jurídico-penal duma factualidade tida por incontroversa. Só que aí também o jurídico está ancorado numa factualidade concreta, não se tratando de discutir uma questão puramente teórica”.
Neste sentido, estando em causa uma questão prevalentemente jurídica, é para nós claro que o arguido poderá requerer instrução com esse fundamento. E no caso de o JIC discordar das razões de direito invocadas, isso naturalmente não o deverá impedir de fazer uma apreciação da suficiência dos indícios em ordem a submeter ou não o arguido a julgamento, proferindo despacho de pronúncia ou não pronúncia.
A suspensão provisória do processo constitui uma manifestação dos princípios da diversão, informalidade, cooperação, celeridade processual, os quais assumem uma importância crescente no processo penal, com o objetivo de, sempre que possível, evitar-se o julgamento e seus eventuais efeitos socialmente estigmatizantes e penas potencialmente criminógenas. Noutros termos, a suspensão provisória do processo é uma medida de “diversão com intervenção”, cfr. Pedro Caeiro, «Legalidade e oportunidade: a perseguição penal entre o mito da “justiça absoluta” e o fetiche da “gestão eficiente” do sistema», in RMP nº 84, Out/Dez. 2000.
Acresce que a suspensão provisória do processo pode ter lugar não apenas na fase de inquérito, mas também na fase de instrução, designadamente a requerimento do arguido, competindo ao juiz de instrução desempenhar, nesta fase - que é por ele dirigida - o papel desempenhado pelo M.P.na fase de inquérito, quanto aquela, cfr. artigo 307º, nº 2 do C.P.Penal.
Nesta conformidade, dada a natureza e a finalidade do referido instituto, julgamos que o arguido poderá requerer instrução somente para obter a suspensão provisória do processo, uma vez que esta é claramente consentida pela lei nesta fase, o que está de acordo com a finalidade da instrução a requerimento do arguido, que é a não sujeição a julgamento (6).
Com efeito, como se refere no acórdão STJ anteriormente citado em nota de rodapé, a suspensão provisória do processo “constitui uma “sanção penal” que conduz à não submissão (eventual) da causa a julgamento, ou seja a um dos fins visados exatamente pela instrução, através da comprovação judicial.” E mais adiante acrescenta-se “Enquanto no decurso do inquérito, aqueles sujeitos processuais (o arguido e o assistente) se podem dirigir ao Ministério Público, dominus dessa fase processual, por mero requerimento, já ao seu direito a pedir, ao juiz de instrução, a suspensão provisória do processo, tem de corresponder uma adequada “ação”, destinada a efetivar esse direito e que ocorre já depois de findo o inquérito e tomada posição final pelo Ministério Público”. E essa ação, concluiu o STJ no citado aresto, é o requerimento de abertura de instrução.
Relativamente à questão específica que constitui o objeto do presente recurso, importa deixar claro que, como é óbvio, não está em causa saber se o arguido incumpriu culposamente a injunção a que havia ficado condicionada a suspensão provisória do processo na fase de inquérito. De igual modo, não está aqui em causa indagar da viabilidade efetiva da suspensão provisória neste caso concreto. Esse será o trabalho do Senhor Juiz de Instrução no caso de ser autorizada a abertura da instrução.
A questão que nos ocupa antecede aquela e, consiste em saber, como se referiu supra, se é admissível a instrução com o âmbito e a finalidade visada pelo arguido ou, dito por outro modo, de que forma poderá o arguido reagir perante uma decisão do M.P. que considera incumprida uma injunção no âmbito de uma suspensão provisória do processo e decide deduzir acusação.
A resposta a esta questão, como logo se intui, relaciona-se com as questões anteriormente colocadas. Com efeito, não está aqui em causa o apuramento de indícios de factos em ordem a submeter ou não o arguido a julgamento. Aliás, de um modo geral, na perspetiva do arguido, quando se coloca a hipótese da suspensão provisória do processo, a questão é analisada à luz de critérios de conveniência e de tática processual, como seja não querer ser submetido a julgamento pelos custos ou pelo vexame público que isso possa representar, ser mais vantajoso aceitar a suspensão provisória do processo do que uma previsível condenação, não correr o risco de ser condenado, etc..
Na decisão recorrida é referido, em síntese, que o ora recorrente conformou-se com o despacho do M.P. de revogação da suspensão provisória do processo, porquanto nada disse. E, por isso, incumprida a suspensão provisória do processo, o processo terá de prosseguir, conforme dispõe a alínea a) do nº 4 do artigo 282 do C.P.Penal, sendo inviável novo recurso ao referido instituto. Neste sentido, concluiu-se ser inadmissível a instrução.
A Exma Senhora Procuradora - Geral Adjunta, no seu parecer, sustentou, nomeadamente que “…se o arguido considerava que a decisão do Ministério Público de prosseguir o processo era ilegal, tinha de ter arguido a irregularidade desse despacho, no prazo de três dias a contar da notificação da acusação, nos termos dos artigos 118º, nº 2 e 123º, nº 1 do C.P.Penal.
Não o tendo feito, naquele prazo, tal irregularidade, mesmo que tivesse sido praticada ficou sanada.
Nesta conformidade, salvo melhor opinião, sendo o objecto da instrução a acusação pública e não manifestando o arguido, no requerimento de abertura de instrução, qualquer discordância da mesma, apenas invocando uma irregularidade que, a ter sido cometida, já estava sanada, por não ter sido, atempadamente, arguida, a instrução não tinha qualquer conteúdo, sendo legalmente inadmissível, conforme se considerou no despacho recorrido”.
No caso, a via escolhida pelo arguido para se insurgir contra a decisão do M.P. - que considerou incumprida a injunção a que havia ficado subordinada a suspensão provisória do processo e deduziu a acusação - foi o requerimento de abertura de instrução.
Ora, julgamos que o arguido não tinha outra forma de processualmente ver apreciada judicialmente pelo JIC o alegado incumprimento não culposo da injunção a que ficou subordinada a suspensão provisória do processo e a consequente dedução de acusação, com vista a não ser submetido a julgamento.
Na verdade, a suspensão provisória do processo constituiu uma forma de arquivamento do processo, funcionando o cumprimento das injunções a que ficar condicionada a suspensão provisória como causa de extinção do procedimento criminal, cfr. artigo 282º, nº 3 do C.P.Penal.
Como se refere no Ac. RL de 18.05.2010, processo 107/08.6GACCC.L1-5, relator José Adriano, acessível em www.dgsi.pt “optando o MP pelo prosseguimento do processo, deduzindo acusação, com base no invocado incumprimento, ainda que parcial, do arguido, esse juízo cabe exclusivamente ao MP. O juiz de julgamento, ao receber a acusação, não pode sindicar as razões da opção do MP, quando no final do prazo da suspensão este decide pelo prosseguimento do processo.
Nesse caso, só o arguido se pode opor à opção do MP, requerendo, depois de notificado da acusação, a competente instrução, nela demonstrando que não houve incumprimento da sua parte ou, havendo-o, ele não ocorreu por culpa sua. Conseguindo, a final - comprovando-se a inexistência de incumprimento -, obter decisão de não pronúncia. Os seus direitos estarão sempre garantidos por essa via.”
Nessa medida, destinando-se a instrução a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, julgamos poder concluir no sentido de que ao arguido deverá ser concedida a possibilidade de requerer instrução, alegando factos tendentes a demonstrar que cumpriu a injunção a que ficou subordinada a suspensão provisória do processo na fase de inquérito ou que o incumprimento não foi culposo (7), como o fez o arguido no caso em apreço.
Aliás, seria uma incongruência do sistema processual penal permitir ao arguido requerer instrução com a única finalidade de requerer a suspensão provisória do processo, e depois negar-lhe a possibilidade de requer instrução com a finalidade de sindicar a decisão do M.P. que considerou incumprida a injunção a que havia ficado subordinada a suspensão provisória do processo e deduziu acusação.
Efetivamente, tanto num caso como no outro, a finalidade última da instrução é a mesma, ou seja, o arquivamento do processo por via da aplicação do instituto da suspensão provisória e a não sujeição do arguido a julgamento. Por isso, e porque a lei que permite o mais também permite o menos, quanto mais não fosse, por argumento a maiori ad minus a solução deverá ser a mesma.
Por conseguinte, a decisão recorrida não pode ser mantida, devendo, pois, ser ordenada, como vai, a sua revogação e a substituição por outra que declare aberta a instrução em ordem a ser realizada a instrução com o objeto definido pelo arguido no requerimento de abertura de instrução.

III- DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o presente recurso e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, devendo a mesma ser substituída por outra que declare aberta a instrução em ordem a ser realizada a instrução com o objeto definido pelo arguido no requerimento de abertura de instrução.
Sem custas por não serem devidas.
Guimarães (8), 06.11.2017

(Armando do Rocha Azevedo)
(Clarisse Machado S. Gonçalves)

1. Entre as questões de conhecimento oficioso do tribunal estão os vícios da sentença do nº 2 do artigo 410º do C.P.P., cfr. Ac. do STJ nº 7/95, de 19.10, in DR, I-A, de 28.12.1995 e as nulidades insanáveis do artigo 119º do C.P.P..
2. Direito Processual Penal Português, Do Procedimento (Marcha do Processo), 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335.
3. Vide Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Centro de Estudos Judiciários, Livraria Almedina, 1989, pág. 125
4. Neste sentido, vide Germano Marques da Silva, Ob. cit., 3, pág. 131, onde se pode ler “…a instrução pode ser requerida pelo arguido com o fim de ilidir ou enfraquecer a prova indiciária da acusação, mas também por razões exclusivamente de direito material ou adjetivo, que viciem a acusação”; Paulo Sousa Mendes, Lições de Direito Processual Penal, Almedina, 2014, pág. 85 e 86; e Fernando Torrão, A Relevância politico-criminal da suspensão provisória do processo, Almedina, pág. 261.
5. Ob. cit. pág. 123.
6. Neste sentido, vide, na jurisprudência, Ac. STJ de 13.02.2008, processo 07P4561, relator Simas Santos; Ac. RC de 02.03.2011, processo 8/07.5GBLRA-A.C1, relator Mouraz Lopes; Ac. RC de 28.03.2012, processo 53/10.3GAPMS.C1, relator Luís Ramos; Ac. RC de 30.01.2013, processo 68/10.1TATND-A.C1, relator Alberto Mira, todos acessíveis em www.dgsi.pt. E na doutrina Silva, Germano Marques, ob. cit., pág. 132.
7. Neste sentido, para além do citado Ac RL de 18.05.2010, processo 107/08.6GACCH.L1-5, relator José Adriano, vide Ac. RC de 27.09.2017, processo nº 361/11.6JFLSB.C1, relator Paulo Valério, e Ac. RP de 05.04.2017, processo 6629/11.4IDPRT.P1, relatora Maria Deolinda Dionísio, acessíveis em www.dgsi.pt.
8. Elaborado e revisto pelo primeiro signatário (artigo 94º, nº 2 do C.P.Penal).