Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
49183/20.0YIPRT.G1
Relator: CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: INTERPRETAÇÃO DO CONTRATO
CLÁUSULA DE RESGATE OU MULTA PENITENCIAL
CUMPRIMENTO DO CONTRATO
DETERMINAÇÃO DO MONTANTE DA INDEMNIZAÇÃO
CLÁUSULA PENAL
REDUÇÃO PELO TRIBUNAL
EQUIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A interpretação de um contrato convoca, para lá da fixação do sentido linguístico muitas vezes incerto no seu significado, o efeito útil e a coerência das proposições acordadas.
II – Podem as partes reservar a faculdade de se desvincularem livremente do contrato mediante o pagamento de uma determinada soma (denominada cláusula de resgate ou multa penitencial) e, quando tal ocorra, deixará de poder exigir-se o cumprimento do contrato, dada a faculdade de arrependimento, que nele se convenciona.
III – Ao invés a cláusula penal, vale para os casos em que se dispõe sobre os efeitos do não cumprimento ilícito.
IV - A cláusula penal resulta de um acordo das partes, no âmbito do princípio da liberdade contratual, e tem como finalidade a fixação antecipada de uma indemnização que o devedor deverá satisfazer ao credor em situações de inadimplemento, cumprimento a destempo ou cumprimento defeituoso da obrigação, com intuito de se evitarem futuras dúvidas quanto à determinação do montante da indemnização.
V - A cláusula penal desempenha uma dupla função: uma função ressarcidora, estipulando-se antecipadamente o ressarcimento do dano resultante de eventual não cumprimento; uma função coercitiva, constituindo um meio de pressão de que o credor se serve para determinar o devedor a cumprir a obrigação a que se vinculou.
VI – Tendo em vista a sua natureza e finalidades, a cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, devendo o controlo judicial do montante da pena ser excecional e em condições e limites apertados de modo a não arruinar o legítimo e salutar valor coercitivo da cláusula penal e nunca perdendo de vista o seu carácter a forfait.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - RELATÓRIO

X Consultoria, Lda., pessoa coletiva n.º ………, com sede em Braga, intentou contra L. e G., Lda., pessoa coletiva n.º ………, com sede em Guimarães, injunção que seguiu os termos da ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, destinada a obter a condenação desta no pagamento da quantia de € 9.225,00, referente a prestação de serviço de consultoria, impossibilitado por desistência da Ré e não pago.
A Ré deduziu oposição, concluindo pela improcedência, alegando, em síntese, que aceitou o serviço por o preço do mesmo só ser devido se a candidatura fosse aprovada, tendo a Autora assumido a resolução da situação junto do Balcão 2020. A Ré não aceitou a proposta apresentada, que tem cláusulas gerais que não foram negociadas e que contém uma cláusula penal excessiva.
Foi proferida sentença que julgou a ação procedente e, em consequência, condenou a Ré L. e G., Lda. a pagar à Autora X Consultoria, Lda., a quantia de 9.225,00€ (nove mil duzentos e vinte e cinco euros), acrescida de juros moratórios desde a data de vencimento da fatura até efetivo e integral pagamento, às taxas legalmente e supletivamente estabelecidas.

Inconformada com a sentença, a Ré interpôs recurso, finalizando com as seguintes conclusões:

Primeira: Na sentença recorrida, a responsabilidade da ré pagar à autora uma indemnização, por incumprimento, é alicerçada num único facto:
«3. Encontrando-se a candidatura elaborada pela Autora, foi insistido junto da Ré pelo envio da senha de acesso ao Balcão 2020, o que não veio a acontecer, tornando impossível a submissão da candidatura.»
Segunda: No entanto, a matéria de (facto provada e não provada) ignora por completo as mensagens de correio eletrónico trocadas entre recorrida e recorrente e por estas transcritas nos art.ºs, 16.º, 17.º, 21.º 22.º , 24.º, 27.º, 30.º 31.º e 34.º da oposição.
Terceira: Do teor desta troca de mensagens de correio eletrónico resulta que a autora se prontificou a ajudar na questão de acesso à senha de balcão 2020 e sobretudo que, desde o início do relacionamento comercial, sabia que a ré não tinha acesso a essa senha por não conseguir fazer o respetivo registo.
Quarta: Assim, da troca de mensagens de correio eletrónico omitidas na matéria de facto na sentença recorrida, resulta:
a) Ao elaborar a candidatura, a autora sabia que a ré não tinha acesso à senha e, mesmo assim, decidiu avançar com a elaboração da candidatura;
b) Apesar de saber, desde 21.04.2020, que a ré não conseguia fazer o registo no portal para ter acesso à senha, apenas em 02.05.2020, após, alegadamente, ter concluído a candidatura, voltou a pedir a senha;
c) A autora nunca comunicou à ré que, caso esta não lhe enviasse a senha de acesso ao portal 2020, considerava que existia desistência da candidatura e que, assim, teria de pagar o valor acordado para a hipótese de a candidatura ser aprovada;
d) A autora nunca interpelou a ré com qualquer prazo admonitório para entregar a senha;
e) Nunca a recorrida informou da data limite de encerramento das candidaturas;
f) Os contactos entre recorrente e recorrida aconteceram entre 20.04.2020 e 6.05.2020, sendo certo que apenas em 28.04.2020 é enviada a proposta e no da 02.05.2020, a recorrida afirma que a candidatura estava concluída.
g) A recorrente nunca desistiu da candidatura. Pelo contrário, foi sempre fornecendo os elementos e documentos que a recorrida lhe solicitou.

Quinta: Em consequência, os factos que resultam da troca de correspondência eletrónica citada, cujo teor e autenticidade nunca foi colocado em causa e a autora também junta cópia, estão relacionados com o objeto do litígio e são suscetíveis de influir no mérito da pretensão, pelo que, por estarmos na presença de factos essenciais para a boa decisão da causa, a ausência de pronuncia sobre os mesmos configura nulidade, nos termos do disposto al. d), do n.º 1, do art.º 615.º do C.P.C., que aqui se invoca expressamente e que, salvo melhor opinião, poderá ser suprida pelo Tribunal da Relação dando como provado o seguinte:
Autora e ré trocaram a correspondência eletrónica que consta de fls 14 a fls. 38 e de fls. 51 verso a fls. 58.
Sexta: Por cautela e subsidiariamente em relação à nulidade, a ré opta por invocar o erro de julgamento e impugna a matéria de facto.
Sétima: Deveria ter sido julgada como provada a troca de correspondência eletrónica e o respetivo teor, alegada, na oposição, no art.º 16.º (email de 20.04.2020), art.º 17.º (email de 21.04.2020) art.º 21.º (email de 27 de abril de 2020 – doc. n.º 4), art.º 22.º (email de 28 de abril de 2020 – doc. n.º 6), art.º 24.º (email de 29 de Abril de 2020 – doc. n.º 7), art.º 27.º (email de 29.04.2020 – doc. n.º 11), art.º 30.º (email de 2 de maio de 2020 – doc. n.º 12), art.º 31.º (email de 02 de maio de 2020 – doc. n.º 13), art.º 34.º (email de 06 de maio de 2020 - doc. n.º 14).
Oitava: Em consequência, na sentença recorrida deveria dar-se como provado o seguinte facto:
Autora e ré trocaram a correspondência eletrónica que consta de fls 14 a fls. 38 e de fls. 51 verso a fls. 58.
Nona: Impõe que estes factos sejam considerados como provados o facto de existir acordo entre recorrida e recorrente quando à respetiva verificação, uma vez que os documentos que comprovam a troca de correspondência eletrónica em causa nunca foram impugnados pela recorrida que, aliás, até junta impressão desses mesmos documentos (cfr. fls. 51 a 58 verso).
Décima: Não resulta da matéria de facto provada que, por parte do autor existisse, sequer, mora na entrega da senha porque:
− A ré nunca desistiu da apresentação da candidatura (e nenhuma razão teria para o fazer);
− A insistência pelo envio da senha ocorreu apenas após a candidatura estar elaborada (02.05.2020), quando a autora sabia, desde 21.04.2020, que existiam problemas na obtenção dessa senha e, mesmo assim, optou por elaborar a candidatura.
− A autora nunca fixou qualquer prazo admonitório à ré para esta enviar a senha e, sequer, apresentou interpelação a afirmar que caso a senha não lhe fosse enviada até ao encerramento das candidaturas considerava que existia desistência e que a ré teria de pagar o valor acordado para a hipótese de a candidatura ser aprovada.
Décima primeira: Nos presentes autos não é exigido o pagamento do preço de um serviço que, nos termos acordados, apenas era devido com a aprovação da candidatura, mas o pagamento de uma indemnização, fundada na clausula penal que consta do ponto 7.ª da proposta apresentada pela recorrida, nos termos da qual, a recorrente ficava obrigada a pagar uma quantia equivalente ao preço acordado caso a «não disponibilizasse informação/documentação necessária à elaboração da candidatura».
Décima segunda: Da matéria de facto considerada como provada na sentença recorrida não resulta, sequer, que exista incumprimento por parte da recorrente e, muito menos, imputável a título de culpa. Muito pelo contrário, da troca de correspondência eletrónica já citada decorre que a recorrente nenhuma culpa teve no facto de a recorrida ter elaborado o projeto sem que existisse senha para acesso ao Portal 2020 e, muito menos, que não a tivesse conseguido entregar após esse momento.
Décima Terceira: O valor da cláusula penal deve ser reduzido por excessivo porque:
− A recorrida contribuiu para o problema ao elaborar a candidatura a saber do problema, ao apenas solicitar a senha após 02.05.2020 e ao nunca ter comunicado que, caso não enviasse a senha, considerava desistência da candidatura e a recorrente estava obrigada a pagar o preço;
− O preço acordado não era apenas uma remuneração pelo serviço prestado, mas incluía uma parte muito grande que partia do pressuposto que, ao ser devida, era porque a candidatura tinha sido aprovada e a recorrente tinha uma grande vantagem patrimonial;
− Os serviços prestados pela recorrida, que ocorreram entre 28.04.2020 e 02.05.2020 e que estão materializados nos documentos juntos pelo recorrida no requerimento que apresentou em 20.01.2021 (ref. CITIUS 11020895), não justificam um valor de EUR 7’500,00 (sete mil e quinhentos euros), já que grande parte não corresponde a trabalho intelectual, mas à reprodução de dados e documentos fornecidos pela recorrente.
Décima quarta: Na cláusula 9 da proposta apresentada pela recorrida, a responsabilidade desta é limitada «a metade do valor dos montantes recebidos a título de preço pelos serviços prestados até essa data», pelo que, daqui resulta também o excesso e a desproporcionalidade da clausula penal em causa.
Décima quinta: A douta sentença recorrida violou ou não fez uma correta interpretação do disposto na al. d), do n.º 1, do art.º 615.º do C.P.C., e nos art.ºs 798.º, 805.º, 810.º e 812.º do Código Civil.
Pugna a Recorrente pela integral procedência do recurso com a consequente declaração de nulidade da sentença recorrida, subsidiariamente, caso assim não se entenda, deve ser revogada a sentença recorrida, alterando a matéria de facto nos termos expostos, sendo a ação julgada improcedente.
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Foram apresentadas contra-alegações defendendo a Recorrida a improcedência do recurso e a manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

São as seguintes as questões jurídicas a apreciar:
- A nulidade da sentença;
- A impugnação da matéria de facto;
- Incumprimento do contrato e sua imputação subjetiva;
- Valor da cláusula penal.
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III- FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
3.1.1. Factos Provados

Foram dados como assentes na primeira instância os seguintes factos:
1.º A Ré contratou com a Autora a prestação, por esta, dos serviços de consultoria tendo em vista a elaboração de candidatura ao sistema de PORTUGAL 2020: SI Inovação Produtiva no Contexto da COVID-19, Aviso n.º 14/SI/2020.
2.º Para o efeito, a Autora elaborou uma proposta que foi aceite pela ré, nos termos que aqui se dão como reproduzidos, prevendo, em especial:
“ A L. E G. tem que assegurar as condições de acesso previstas no ponto 3 e facultar, atempadamente, todos os elementos necessários para a instrução do processo de candidatura.
A responsabilidade da X Consulting, Lda será a obtenção a elegibilidade da candidatura.
A X Consulting assume o risco da candidatura, caso a mesma não seja considerada elegível, não será cobrado qualquer valor à L. E G..
O valor a cobrar pelos nossos serviços é de 7.500€. Acresce IVA.
Condições de Pagamento:
Com a informação da aprovação da candidatura por parte do organismo gestor a verificar pela comunicação formal do organismo ou publicada no respetivo portal/consola do cliente, serão faturados e deverão ser pagos a pronto pagamento os 7.500€ + IVA.
Depois da proposta estar adjudicada não poderá haver lugar a desistência por parte da v/ Entidade. Caso se verifique essa desistência, e como salvaguarda do trabalho por nós desenvolvido a essa data, temos que:
7.1 - A desistência depois da aceitação da proposta comercial e, antes da submissão da candidatura, implica as seguintes penalizações:
- Até um mês antes da data limite para a submissão da candidatura implica o pagamento de 40% do valor previsto para a elaboração da candidatura.
- No período compreendido entre um mês e os 12 dias úteis que antecedem a data limite para a submissão da candidatura implica o pagamento de 50% do valor previsto para a elaboração da candidatura.
- No período compreendido entre os 11 e os 4 dias úteis que antecedem a data limite para a submissão da candidatura implica o pagamento de 70% do valor previsto para a elaboração da candidatura.
7.2 - Caso a desistência ocorra depois da candidatura estar elaborada, antes ainda da sua submissão ou durante o período de análise, cobraremos o valor definido para a elaboração da candidatura. O mesmo valor será cobrado nos casos em que, apesar de ainda não estar completa a elaboração da candidatura, a desistência ocorra nos 3 dias úteis anteriores ao prazo limite de submissão da mesma, uma vez que grande parte do trabalho já terá sido desenvolvido e já haverá capacidade reservada para a vossa Organização;
7.3 - A desistência após a aprovação do projeto ou o não cumprimento das condições de elegibilidade previstas no ponto 3, as quais são da responsabilidade do cliente e por este consideradas cumpridas com a adjudicação da candidatura, obriga ao pagamento integral do valor do contrato.
7.4 - Entendemos, também, como desistência sempre que o cliente não disponibilize a informação/documentação necessária à elaboração da candidatura e exigida como obrigatória pelo Aviso no momento da submissão.
Neste caso, relativamente à informação referida acima, o cliente deverá enviar os elementos que ainda possam estar em falta até ao décimo dia útil antes da data limite para a submissão das candidaturas, uma vez que a não receção de todos os elementos poderá colocar em causa a submissão atempada da candidatura.
3.º Encontrando-se a candidatura elaborada pela Autora, foi insistido junto da Ré pelo envio da senha de acesso ao Balcão 2020, o que não veio a acontecer, tornando impossível a submissão da candidatura.
4.º A Autora emitiu fatura n.º 2020/32, datada de 08.06.2020, no valor total de 9.225,00€.
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3.1.2. Factos Não Provados

1º A Ré apenas aceitou avançar com a candidatura com a condição de que só existiria a obrigação de pagamento de preço pelos serviços prestados caso a candidatura fosse aprovada.
2º A Ré nunca se vinculou à proposta, que não foi previamente negociada, foi apresentada já de forma pré elaborada e é feita para destinatários indeterminados.
3º A Autora disse que iria resolver, ela própria, a situação da senha do Balcão 2020, não tendo dado outra indicação em contrário.
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3.2. O Direito

3.2.1. Da nulidade da sentença

A Recorrente invoca a nulidade da sentença por omissão de pronúncia relativamente ao conteúdo da correspondência eletrónica que consta dos autos.
Prescreve o artigo 615°, nº1, al. d) do CPC, que «é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».
O vício em causa prende-se com os limites da atividade de conhecimento do tribunal, estabelecidos quer no artigo 608º, nº2 do CPC: «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Se o juiz deixa de conhecer questão submetida pelas partes à sua apreciação e que não se mostra prejudicada pela solução dada a outras, peca por omissão; ao invés, se conhece de questão que nenhuma das partes submeteu à sua apreciação nem constitui questão que deva conhecer ex officio, o vício reconduz-se ao excesso de pronúncia.
Todavia, importa definir o exato alcance do termo «questões» por constituir, in se, o punctum saliens da nulidade.
É pacífico o entendimento de que a nulidade consistente na omissão de pronúncia só se verifica quando o Tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões ou pretensões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada.
A expressão «questões» prende-se com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do Tribunal e as respetivas causas de pedir e não se confunde com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia.
Recorrendo aos ensinamentos de Alberto dos Reis, “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito (art.º 511º nº 1), as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art.º 664º) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas” (1)
Resulta desta interpretação que a não indicação do conteúdo das comunicações eletrónicas não afeta a sentença do vicio da nulidade por omissão de pronuncia. O Tribunal apreciou as questões que a causa colocava, fê-lo foi num sentido contrário ao pugnado pela Recorrente.
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3.2.2. Da impugnação da matéria de facto

Existem requisitos específicos para a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, os quais, se não observados conduzem à sua rejeição.

Assim, o artigo 640º, CPC impõe ao recorrente o ónus de:
a) especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Impõe-se que nas conclusões o recorrente indique concretamente os pontos da matéria de facto que impugna e o que entende que deve ser assente, apresentando a sua pretensão de forma inequívoca, de forma a que se possa, com clareza, separar a mera exposição da sua apreciação sobre a prova da reivindicação da alteração da matéria de facto, e saber claramente em que sentido pretende que a matéria de facto provada seja alterada.
No caso, considera a Recorrente que deveria dar-se como provado o seguinte facto: “Autora e ré trocaram a correspondência eletrónica que consta de fls 14 a fls. 38 e de fls. 51 verso a fls. 58”.
A Recorrente não se insurge quanto à matéria factual que na decisão o tribunal considerou provada e não provada, entende é que deveria dar-se como provado que a autora e ré trocaram correspondência eletrónica.
Ora, salvo o devido respeito, a adição de tal facto à decisão da matéria de facto provada e não provada, mantendo-se inalterada a demais que dela consta, não é de molde a obter um efeito juridicamente útil ou relevante.
É que daquela matéria não resulta que a Ré haja facultado atempadamente os elementos necessários para a instrução do processo de candidatura, obrigação a que estava adstrita no âmbito do acordo celebrado.
Porque assim, o facto que ora se pretende ver aditado apresenta-se, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, irrelevante para a decisão a proferir, tornando inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto. Dito de outro modo, mesmo que, em conformidade com a pretensão da recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto continua a ser juridicamente inócuo em face da globalidade da decisão sobre a matéria de facto (já provada e não provada).
Em face do exposto, não se atende à impugnação, mantendo-se inalterada a decisão da matéria de facto.
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3.2.3. Incumprimento do contrato e sua imputação subjetiva.

Valor da cláusula penal.

Aceita a Recorrente a qualificação jurídica do acordo celebrado entre as partes, efetuada pela sentença recorrida.
Assim, entre Autora e a Ré foi celebrado um contrato de prestação de serviço, de elaboração de um projeto de investimento, nos termos acordados pelas partes e ao qual se aplicam as regras do mandato (artigos 1154.º e 1156.º do Código Civil).
Tratando-se de um negócio jurídico bilateral, rectius, um contrato sinalagmático, oneroso, comutativo e consensual, dele emergem reciprocamente direitos e deveres, consubstanciados numa relação jurídica complexa. O principal direito traduz-se no direito de exigir da Autora a obtenção do resultado a que esta se obrigou e como contrapolo a sua obrigação principal consubstanciada no pagamento do preço acordado.
Concretizando, para a Autora emerge do contrato a obrigação de elaboração e instrução da candidatura, com vista ao resultado acordado de obtenção da elegibilidade da candidatura, para a Ré resulta a obrigação de assegurar as condições de acesso previstas e facultar, atempadamente, todos os elementos necessários para a instrução do processo de candidatura.
Do quadro factual resulta que à Ré foram solicitados os dados de acesso à plataforma Balcão 2020, e a Ré não os facultou em tempo útil, não sendo possível, por causa disso, a submissão da candidatura elaborada pela Autora.
Nos termos contratados, a desistência ou a não apresentação pela Ré dos elementos necessários que impeça a submissão da candidatura já elaborada, implicam o pagamento do preço definido para a sua apresentação.
Insurge-se a Recorrente quanto ao concluir-se pela desistência do contrato ou seu incumprimento, já que a contraparte se obrigou a auxiliar na resolução do problema do acesso à plataforma.
É certo que as declarações contratuais “não têm de ter um sentido único, definível para todo o sempre, sobretudo quando elas visam criar uma disciplina para uma ligação contratual prolongada que enfrentará necessariamente várias vicissitudes, não (plenamente) antecipáveis pelos sujeitos”. (2) Por essa razão, os factos posteriores ao comportamento interpretando, designadamente, o modo como o contrato foi sendo executado, relevam para concluir acerca do entendimento das partes quanto ao sentido do negócio e verificar se, durante o período de vigência, as partes ajustaram os termos inicialmente fixados à alteração das circunstâncias envolventes (3).
Pode até dar-se o caso de as partes poderem de comum acordo não observar o combinado desde que as circunstâncias do caso permitam concluir pela vontade de suprimir o antes acordado, num ou em vários dos seus termos.
Todavia, no caso, o factualismo presente não suporta esta conclusão, não sendo licito assentar que foi intenção das partes modificar o contrato.
Permanecendo o acordo nos termos em que inicialmente foi fixado, a sua interpretação convoca, para lá da fixação do sentido linguístico (muitas vezes incerto no seu significado), o efeito útil e a coerência das proposições contratuais.
Em ordem a esta interpretação, conclui-se que a cláusula 7.ª, n.º 1, 2 e 3 visa regular quer os efeitos da desistência quer do incumprimento da Recorrente.
A propósito da desistência pode ler-se no acórdão do STJ de 28.01.2021, que: «É, com efeito, possível, as partes (ou alguma das partes) reservarem para si a faculdade de se desvincularem livremente do contrato mediante o pagamento de uma determinada soma. Sempre que tal ocorra – explica António Pinto Monteiro – deixará de poder exigir-se o cumprimento do contrato, dada a faculdade de arrependimento, que nele se convenciona. Trata-se de uma cláusula de resgate ou multa penitencial, em que se dispõe sobre os efeitos da desistência (lícita), e não de uma cláusula penal, em que se dispõe sobre os efeitos do não cumprimento (ilícito).
A diferença entre a cláusula de resgate e a clausula penal é fácil de entender. Parafraseando Nuno Manuel Pinto Oliveira: enquanto a cláusula penal “não dá nunca aos contraentes a faculdade jurídica de se desvincularem do contrato e, por isso, de deixarem licitamente de cumprir”, a multa penitencial “dá-lhes sempre a faculdade jurídica de se desvincularem.» (4)
Esclarecida a função da cláusula 7.º, ela vem regular a situação em causa nos autos, dispondo, sem condicionamentos ou restrições, que, a desistência ou a não apresentação pela Ré dos elementos necessários à submissão da candidatura já elaborada, implicam o pagamento do preço definido para a sua apresentação.
Como bem se refere na decisão recorrida, sendo o contrato bilateral, o credor que, estando em mora, perca total ou parcialmente o seu crédito por impossibilidade superveniente da prestação não fica exonerado da contraprestação; mas, se o devedor tiver algum benefício com a extinção da sua obrigação, deve o valor do benefício ser descontado na contraprestação (n.º2).
Assim, a Ré, tornando impossível a submissão da candidatura pela Autora, que não pode ser apresentada no prazo disponível, não ficaria desonerada da contraprestação, o pagamento do serviço.
Considera a Recorrente que o valor fixado, de pagamento total do serviço, e que configuraria uma cláusula penal pelo incumprimento, se afigura como excessivo.
Dispõe o artigo 812.º, nº1, do Código Civil que “a cláusula penal pode ser reduzida pelo Tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente”.
A cláusula penal resulta de um acordo das partes, no âmbito do princípio da liberdade contratual, e tem como finalidade a fixação antecipada de uma indemnização que o devedor deverá satisfazer ao credor em situações de inadimplemento, cumprimento a destempo ou cumprimento defeituoso da obrigação, com intuito de se evitarem futuras dúvidas e litígios entre as partes, quanto à determinação do montante da indemnização.
Assim, como bem se explicita no acórdão da Relação de Lisboa de 22-03-2018 (5), na prática, a cláusula penal desempenha uma dupla função: a função ressarcidora e a função coercitiva. Na primeira, a cláusula penal prevê antecipadamente o ressarcimento do dano resultante de eventual não cumprimento ou cumprimento inexacto; por sua vez, a segunda função (a coercitiva) constitui um poderoso meio de pressão de que o credor se serve para determinar o seu devedor a cumprir a obrigação a que se vinculou.
Por outro lado, a cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva. Ora, como se pode ler no acórdão da Relação de Lisboa de 17-02-2009 (6), como a lei não traça o critério de determinação da excessividade da cláusula penal, devem considerar-se a situação de incumprimento do devedor, incluindo a gravidade da sua culpa, e os efeitos patrimoniais negativos ou não na esfera do credor, tudo na envolvência de um juízo de proporcionalidade. O funcionamento da salvaguarda legal da redução da cláusula penal não depende apenas da sua excessividade, porque a lei exige que ela seja manifesta. Essa excessividade resulta normalmente de as partes avaliarem em excesso os interesses em confronto ou, por alguma circunstância que lhes não seja imputável, o montante fixado exorbite em grave desproporção do dano sofrido pelo credor em razão do incumprimento ou do atraso de cumprimento em causa.
Todavia, é pacifico o entendimento, como bem alerta a Recorrida trazendo à colação os ensinamentos de Calvão da Silva, citado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.06.2018 (7): “A intervenção judicial do controlo do montante da pena não pode ser sistemática, antes deve ser excecional e em condições e limites apertados de modo a não arruinar o legítimo e salutar valor coercitivo da cláusula penal e nunca perdendo de vista o seu carácter a forfait.
Daí que, por toda a parte, apenas se reconheça ao Juiz o poder moderador, de acordo com a equidade, quando a cláusula penal for extraordinária ou manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente. (…)
A decisiva condição legal da intervenção do tribunal é, por conseguinte, a presença, ao tempo da sentença, de uma cláusula manifestamente excessiva, - não basta uma cláusula excessiva, cuja pena seja superior ao dano -, de uma cláusula cujo montante desmesurado e desproporcional ao dano seja de excesso manifesto e evidente, numa palavra de excesso extraordinário, enorme, que salte aos olhos.
Tem de ser, portanto, uma desproporção evidente, patente, substancial e extraordinária, entre o dano causado e a pena estipulada, mas já não a ausência de dano em si.” (9)
Ora, considerando, no caso, que a preparação e instrução da candidatura foram integralmente executadas pela Autora, não tendo a candidatura sido submetida por causa imputável à Recorrente, não pode ter-se como “manifestamente excessiva” uma cláusula que fixou o valor da remuneração da prestação de serviços que, em circunstâncias normais, caberia à Autora receber.
Nestes termos, resultando que a impossibilidade de submissão da candidatura se deveu ao incumprimento da própria Ré, a Autora tem direito a ver pago o valor acordado, a título de indemnização, que corresponde à contraprestação, no montante de 9.225,00€ (nove mil duzentos e vinte e cinco euros) faltando, assim, ao cumprimento das obrigações decorrentes da celebração do contrato aludido (artigos 406º e 798º).
Pelo exposto, improcede a apelação.
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IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães, 4 de Novembro de 2021

Assinado digitalmente por:
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Elisabete Coelho de Moura Alves
2º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes



1. In CPC Anotado, Vol. V, pg. 143.
2. Neste sentido, Carneiro da Frada, In Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, pag. 14-15.
3. Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado – I – Parte Geral, Coimbra, Almedina, p. 694.
4. Disponível em www.dgsi.pt.
5. Disponível em www.dgsi.pt.
6. Disponível em www.dgsi.pt.
7. Disponível em www.dgsi.pt.
8. Ora, como bem ensina Calvão da Silva (sublinhados nossos), citado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 19/06/2018 (in www.dgsi.pt):