Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
644/14.3TBVVD.G2
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSAÇÃO ANTECIPADA DO PROCEDIMENTO
DESEMPREGO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
São requisitos da cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, a violação dolosa ou com negligência grave dos deveres do devedor, por um lado, e o consequente prejuízo para os credores, por outro.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

J. M. requereu a sua declaração de insolvência e a exoneração do passivo restante.
Por sentença de 22/07/2014 foi declarada a insolvência do requerente.
A administradora da insolvência deu parecer no sentido de que deveria ser concedida a exoneração do passivo restante.
A 19/08/2014, foi proferido despacho a determinar o encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente.
Na mesma data, foi proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante, determinando-se que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que exceda os € 500,00, se considere cedido à massa falida, a favor dos credores.
Efetuadas sucessivas notificações ao insolvente, desde 28/10/2015, para que este comprovasse nos autos a sua situação profissional, veio, após alguns esclarecimentos intercalares, dizer, a 12/10/2017, que não apresentou declarações de IRS referentes a 2014 e 2015, não tem recibos de vencimento, não está inscrito no IEFP e não recebeu quaisquer subsídios, tendo, entretanto, esclarecido que sobreviveu com a ajuda económico-financeira da sua avó, entretanto falecida e, atualmente, da sua mãe, que se encontra reformada.
Informou, posteriormente, a fiduciária, que a situação se manteve no ano de 2016, conforme comunicação do insolvente, entendendo que o mesmo não se encontra a cumprir na íntegra todos os pressupostos inerentes à exoneração do passivo restante.
Notificados os credores, o insolvente e a fiduciária para se pronunciarem quanto à cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, veio o insolvente dizer que não existe fundamento para tal e um dos credores e a fiduciária pugnar pela cessação antecipada.
A 12/04/2018 foi proferido despacho que determinou a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, baseando-se no facto de o insolvente ter violado as obrigações decorrentes da concessão da exoneração do passivo restante, nomeadamente, as contidas na alínea b) do artigo 239.º, n.º 4 do CIRE “pois não comprovou procurar diligentemente profissão, encontrando-se desempregado”.
O insolvente interpôs recurso deste despacho, tendo sido proferido Acórdão, por este Tribunal da Relação, que julgou procedente a apelação, revogando o despacho recorrido.
Nos termos de tal Acórdão considerou-se que “A factologia apurada nos autos, não permite concluir que o devedor tenha incumprido de forma dolosa ou gravemente negligente aquela obrigação. Veja-se que o devedor já se encontrava desempregado à data em que foi proferido o despacho liminar de exoneração do passivo restante e tal facto não obstou à prolação desse despacho. Por outro lado, a requerente da cessação antecipada não faz qualquer prova da atuação dolosa ou gravemente negligente e, muito menos, do prejuízo para os credores, considerando que o devedor se encontra exactamente nas mesmas circunstâncias que conduziram à exoneração, sendo certo que a Sra. Administradora (actual fiduciária) deu parecer positivo à exoneração. Por outro lado, não decorre da simples falta de inscrição no IEFP, que o devedor não tenha procurado emprego ou que tenha recusado desrazoavelmente algum emprego para que seja apto. Nenhum destes factos foi alegado, quando é certo que é ao requerente da cessação antecipada que cabe alegar e oferecer a prova correspondente – artigo 243.º, n.º 2 do CIRE. Assim, entendemos não estarem preenchidos os requisitos para a cessação antecipada da exoneração do passivo restante, pelo que, na procedência da apelação, o despacho recorrido terá de ser revogado”.

Regressado o processo à 1.ª instância, veio a fiduciária apresentar relatório relativo ao ano de cessão de rendimentos que terminou em 2018, em que renovou o que já anteriormente havia dito sobre os anteriores anos, ou seja, que o insolvente não apresentou declaração de IRS referente aos anos de 2016 e 2017, não tem recibos de vencimento, não está inscrito no IEFP, não recebeu quaisquer subsídios e não sofreu alterações na sua situação social, económica e financeira, concluindo que, em face de tais elementos, entende que o insolvente não se encontra a cumprir todos os pressupostos inerentes à exoneração do passivo restante, porquanto não demonstra uma procura ativa de emprego, devendo haver lugar à cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 243.º do CIRE.
Notificado o insolvente, veio o mesmo dizer que não concorda com o entendimento da fiduciária quanto à cessação antecipada de exoneração do passivo restante.
Notificados os credores, nada disseram.
O Sr. Juiz proferiu, então, decisão, em tudo semelhante à que já anteriormente havia proferido e que foi revogada por este Tribunal da Relação, apenas acrescentando que o insolvente não explica como sobrevive sem rendimentos e não demonstra a procura diligente de uma profissão, pelo que se “verifica, de forma manifesta, o preenchimento do artigo 234.º, n.º 4, alíneas a) e b) do CIRE”, determinando a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante do insolvente J. M. (a referência ao artigo contem, certamente, lapso, devendo entender-se como sendo para o artigo 239.º, n.º 4, a) e b) do CIRE).

O insolvente interpôs recurso deste despacho, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

1 – O insolvente, através do seu mandatário, prestou as informações solicitadas quanto aos seus rendimentos.
2 – O facto de estar desempregado não é, por si só, indiciador da violação de qualquer obrigação.
3 – Do facto de o insolvente não estar inscrito no IEFP não decorre necessariamente que o mesmo não se encontra à procura de emprego.
4 – Quando foi proferido o despacho liminar de exoneração, o devedor já se encontrava desempregado e não estava inscrito no IEFP, sendo que este facto não obstou à prolação de tal despacho.
5 – A cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante depende da verificação de prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, não bastando a violação das obrigações previstas no artigo 239.º, n.º 4 do CIRE.
6 – O prejuízo para a satisfação dos créditos não decorre automaticamente da violação das obrigações previstas no artigo 239.º, n.º 4 do CIRE, tendo que ser demonstrado de modo próprio.
7 – Da decisão do tribunal a quo não resulta demonstrada a existência de prejuízo para a satisfação dos créditos, falecendo assim um dos requisitos essenciais para a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.
8 – A decisão do tribunal a quo violou o disposto nos artigos 239.º, n.º 4, alíneas a) e b) e 243.º, n.º 1, alínea a) do CIRE.

Nestes termos e nos demais que Vossas Excelências doutamente suprirão será feita JUSTIÇA.

Não foram oferecidas contra alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

A única questão a resolver traduz-se em saber se estão preenchidos os requisitos para a cessação antecipada da exoneração do passivo restante.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Os factos com interesse para a decisão constam do relatório supra.

O presente Acórdão vai reproduzir aquilo que já consta do anterior Acórdão proferido nestes autos a 27 de setembro de 2018 (sobre decisão em tudo semelhante à ora recorrida, mas relativa ao ano anterior) e que reflete o entendimento deste coletivo sobre a questão supra enunciada, pois a pequena diferença introduzida na decisão de 1.ª instância sobre a falta de informação ao tribunal, por parte do insolvente sobre os seus rendimentos e a não explicação de como sobrevive, salvo o devido respeito, não contraria nada do que por nós foi afirmado no anterior Acórdão.

“Vejamos, então, se estão reunidas as condições para a cessação antecipada da exoneração do passivo restante.

Antes de terminado o período de cessão, o juiz deve recusar a exoneração (a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do AI ou do fiduciário) quando:

- O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo art. 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
- Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas no art. 238.º/1/als. b), e) e f) CIRE, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
- A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação da insolvência.

No caso dos autos, entendeu-se que o devedor violou a obrigação contida na alínea b) do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE por não ter procurado diligentemente profissão, encontrando-se desempregado (na segunda decisão acrescentou-se, como vimos, a alínea a) deste mesmo artigo e número, por o insolvente não ter explicado como sobrevive sem rendimentos próprios, quando é certo que o devedor havia já alegado, anteriormente, que tem sobrevivido com a ajuda, primeiro da avó e, depois, da mãe, pese embora a irrelevância para o processo desta explicação, e considerando que o intuito desta alínea a) é que não se ocultem rendimentos auferidos e não que se explique como se sobrevive sem rendimentos próprios).

Ora, a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, nos termos do disposto no artigo 243.º, n.º 1, alínea a) do CIRE, só deve ter lugar quando o devedor violar dolosamente ou com grave negligência as obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º do CIRE, designadamente, no que aqui interessa, a imposta pela alínea b) do seu n.º 4, ou seja, “exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto”, a que acresce o consequente prejuízo para os credores.

Ou seja, são requisitos dessa recusa a violação dolosa ou com negligência grave dos deveres do devedor, por um lado, e o consequente prejuízo para os credores, por outro.
Porém, no caso presente, o despacho recorrido, além de se limitar genérica e vagamente, a fundamentar a cessação antecipada nas informações prestadas pela Srª Fiduciária relativas à não inscrição do devedor no IEFP e na previsão normativa da alínea b), do nº 4, do artº 239º, nada consubstancia quanto aos requisitos de actuação dolosa ou gravemente negligente impostos pelo apontado artº 243º, nº 1, al. a), do CIRE, nem quanto ao prejuízo para os credores que possa resultar da atuação do devedor.
Não basta a simples verificação de violação dos deveres impostos ao devedor no decurso do período de exoneração do passivo restante; antes tal incumprimento tem de ser doloso ou com grave negligência – neste sentido veja-se, entre outros, o Acórdão deste Tribunal da Relação de 04/05/2017, processo n.º 3931/10.6TBBCL.G1 (António Sobrinho), in www.dgsi.pt.
Ora, a factologia apurada nos autos, não permite concluir que o devedor tenha incumprido de forma dolosa ou gravemente negligente aquela obrigação. Veja-se que o devedor já se encontrava desempregado à data em que foi proferido o despacho liminar de exoneração do passivo restante e tal facto não obstou à prolação desse despacho. Por outro lado, a requerente da cessação antecipada não faz qualquer prova da atuação dolosa ou gravemente negligente e, muito menos, do prejuízo para os credores, considerando que o devedor se encontra exactamente nas mesmas circunstâncias que conduziram à exoneração, sendo certo que a Sra. Administradora (actual fiduciária) deu parecer positivo à exoneração. Por outro lado, não decorre da simples falta de inscrição no IEFP, que o devedor não tenha procurado emprego ou que tenha recusado desrazoavelmente algum emprego para que seja apto. Nenhum destes factos foi alegado, quando é certo que é ao requerente da cessação antecipada que cabe alegar e oferecer a prova correspondente – artigo 243.º, n.º 2 do CIRE.

Assim, entendemos não estarem preenchidos os requisitos para a cessação antecipada da exoneração do passivo restante, pelo que, na procedência da apelação, o despacho recorrido terá de ser revogado.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido.
Sem custas.
***
Guimarães, 30 de janeiro de 2020

Ana Cristina Duarte
Fernando Fernandes Freitas
Alexandra Rolim Mendes