Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
564/16.7PABCL.G1
Relator: TERESA COIMBRA
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL
RECETAÇÃO
ARTº 358º
NºS 1 E 3 CPP
OMISSÃO CUMPRIMENTO
NULIDADE SENTENÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: DECLARADA NULA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
Se durante o julgamento de um arguido acusado pela prática de um crime de recetação, previsto pelo art. 231 nº 1 do Código Penal (CP), ocorrer uma alteração não substancial de factos determinante da condenação pela prática do crime de recetação, mas subsumível ao disposto no nº 2 do mesmo art. 231º, o tribunal não poderá omitir o cumprimento do disposto no art. 358 nº 1 e 3 do Código de Processo Penal (CPP), sob pena de elaborar uma sentença nula (art. 379 nº 1 b) do CPP).
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I.
No processo comum com intervenção do tribunal singular que, com o nº 564/16.7PABCL, corre termos pelo juízo local criminal de Barcelos foi proferida a seguinte decisão ( transcrição):

1.Por convolação fáctico-jurídica do imputado crime p. e p. pelo art. 231.º, n.º 1, do Cód. Penal, condenar a arguida S. M., pela prática de um crime de receptação, p. e p. pelo art. 231.º, n.º 2, do mesmo diploma legal, na pena de 95 (noventa e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), no montante global de € 475,00.
2.Condenar a arguida no pagamento das custas do processo, fixando a taxa de justiça devida em 2 UC.
(…)
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Inconformada com a condenação, recorreu a arguida para este tribunal concluindo o recurso nos seguintes termos ( transcrição):

a)A Recorrente/Arguida foi condenada pela prática do crime de recetação p. e p. pelo art.º 231, n.º 2 do Código Penal, por convolação fáctico-jurídica do imputado crime p. e p. pelo art. 231º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 95 (noventa e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), no montante global de € 475,00 (quatrocentos e setenta e cinco euros).
b)A Recorrente/Arguida nega a prática dos factos posto que, diferentemente do que se fez constar em sentença, a Arguida não “agiu sabendo que a conduta era proibida e punida por Lei” e não atuou “com o fito de assim obter um benefício patrimonial a que sabia não ter direito”.
c)Houve alteração não substancial dos factos descritos na acusação (art.º 358, n.º 1 e 3 do CPP) sem que a realização de comunicação prévia à Recorrente/Arguida, com a condenação pela prática do crime previsto no artigo 231º, n. 2, quando vinha a ser acusada pela prática do crime previsto no artigo 231º, n. 1, do qual seria certamente ABSOLVIDA já que que restou como NÃO PROVADO que a arguida soubesse que o objeto fora obtido pela prática de um crime contra o património, devendo ser decretada a NULIDADE DA SENTENÇA, prevista no art. 379.º, n.º 1, al. b), do CPP.
d)Da prova produzida e que se entende por pertinente, resulta depoimento da testemunha A. P. que não conhece e nunca viu a Recorrente/Arguida; que não sabe quem realizou o assalto à residência (facto ilícito típico contra o património) mas teve conhecimento através de um vizinho que fora um homem (sexo masculino) quem realizou um assalto à casa vizinha pouco tempo depois; que não sabe dizer qual o valor das peças de ouro que lhe foram subtraídas; que atribui o valor de 600€ aos pares de brinco “um bocadinho a sorte” porque “não faz ideia” quanto possam valer.
e)Da prova produzida e que se entende por pertinente, resulta depoimento da testemunha V. C. que não conhece e nunca viu a Recorrente/Arguida; que trabalhou na loja “X” em 2017/2018, portanto, muito depois dos factos; que os procedimentos adotados pela empresa quando da aquisição de ouro usado eram: 1) a verificação se as peças eram verdadeiras, 2) quais eram os quilates das peças, 3) qual era a pesagem 4) orçamento, 5) perguntas quanto a procedência do ouro.
f)O tribunal a quo não pondera correctamente as informações prestadas nos depoimentos, a começar pelo facto de que ambas as testemunhas não conhecem e nunca viram a Recorrente/Arguida; assim como a incerteza e imprecisão transmitida pela testemunha A. P. relativamente ao valor atribuído aos objetos de ouro que lhe foram subtraídos; E a desconsideração do Meritíssimo Juiz acerca dos procedimentos adotados pela empresa “X” para avaliação e venda de ouro usado, relatados pela testemunha V. C..
g) Nenhuma das testemunhas inquiridas elucidou o tribunal a quo que a Recorrente/Arguida tivesse conhecimento ou soubesse que a peça de ouro fora obtida mediante facto ilícito típico contra o património, pois não presenciaram nada e NÃO CONHECEM a Recorrente/Arguida.
h)Não merece prosperar o entendimento na decisão de que “o suposto preço pelo qual foi transacionado (não sendo curial admitir-se que a arguida adquiriu por um preço inferior àquele pelo qual vendeu à sociedade V. V., Lda, posto que se não elucubra qualquer justificação para a decisão de um negócio irracional e ruinoso), logo se alcança que, ainda que a arguida pudesse desconhecer da proveniência ilícita dos brincos, considerando o valor pelo qual se dispôs aliená-los e pela forma como procedeu à sua alienação, logo se conclui (pelo menos) pela necessidade de suspeitar sobre a proveniência ilícita dos ditos brincos” eis que completamente sem fundamento e contrário aos depoimentos prestados pelas testemunhas).
i)Da prova produzida e que se entende por pertinente crível afirmar que o estabelecimento “X”, no qual foi vendido o par de brincos, seguiu todos os protocolos, inclusivamente as análises quanto à peça, sua origem e composição, embasada na cotação do ouro para aquele dia, atrelada a quantidade e qualidade do metal transacionado.
j)A Recorrente/Arguida foi condenada pela prática do crime previsto no art.º 231, n.º 2 do Código Penal, por convolação fáctico-jurídica do imputado crime p. e p. pelo art. 231º, n.º 1, do Código Penal, sem qualquer comunicação prévia acerca da alteração substancial dos factos trazidos na acusação, o que constitui uma NULIDADE DE SENTENÇA.
k)A Recorrente/Arguida depende de cuidados e apoio social do Centro Assistencial NORTE VIDA/CASA DE … onde realiza acompanhamento da Equipa Multidisciplinar no sentido de dar resolução à questões de cariz social, sem receber qualquer remuneração, nem benefício financeiro, a depender da ajuda de terceiros para sobreviver, o que resta por completo impossibilitado o cumprimento da pena a qual lhe fora atribuída, qual seja, o pagamento da quantia de €475,00€(quatrocentos e setenta e cinco euros), reiterando o pedido de modificação da sentença, pela ABSOLVIÇÃO da Recorrente/Arguida.

Termos em que:
Deverá o presente recurso ser julgado PROCEDENTE por provado e, em consequência, ser considerada a NULIDADE DA SENTENÇA, bem como seja a Recorrente/Arguida ABSOLVIDA relativamente à prática do crime de recetação, assim se fazendo Inteira e SÃ JUSTIÇA!
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Respondeu ao recurso, em 1ª instância, o ministério público, pugnando pela sua improcedência.
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Remetidos os autos a este tribunal, de novo o ministério público emitiu parecer no sentido de improcedência do recurso.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417.º nº 2 do Código de Processo Penal (CPP).
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Após os vistos, realizou-se conferência.
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II.
Cumpre apreciar e decidir, tendo em conta que são as conclusões do recurso que delimitam a apreciação a fazer pelo tribunal superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Analisando a síntese conclusiva constata-se serem as seguintes as questões a solver:

-nulidade da sentença por falta de cumprimento do disposto no artigo 358.º nºs 1 e 3 do CPP;
- errada apreciação da prova, determinante da absolvição da arguida.
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É a seguinte a matéria de facto fixada em 1ª instância:
1.1 Factos provados

a) No dia 1 de Outubro de 2016, após as 15h00 horas, por modo não concretamente apurado, a arguida entrou na posse de um par de brincos em ouro, no valor de, pelo menos, € 600,00, pertença de A. P..
b) Os referidos brincos haviam sido retirados contra a vontade da pessoa a quem os mesmos pertenciam, do interior da casa de habitação sita na Rua …, n.º .., …, Barcelos, por pessoa cuja identidade não se tornou possível apurar, a qual, para o efeito, se introduziu por uma janela de um anexo daquela habitação, no dia 1 de Outubro de 2016, entre as 10h30 e as 15h00.
c) Na posse desses brincos, a arguida passou a agir como se coisas suas fossem e decidiu vendê-los em loja que comercializa ouro usado, tendo-se deslocado nesse mesmo dia 1 de Outubro de 2016, depois das 15h00, à loja denominada “X”, sita na Av.ª …, Edifício …, loja .., em Barcelos, pertencente à sociedade V. V., Lda, e vendido o referido par de brincos em ouro, pelo valor de €250,00.
d) A arguida agiu de vontade livre e consciente e, apesar de não poder deixar de saber das condições em que recebeu os brincos referidos em a), fê-lo sem previamente indagar sobre o modo pelo qual haviam sido obtidos pela pessoa que lhos entregou e, por isso, teve necessariamente de admitir a possibilidade de os mesmos terem sido furtados, actuando conformada com essa possibilidade, com o fito de assim obter um benefício patrimonial a que sabia não ter direito.
e) Agiu, sabendo que a conduta era proibida e punida por Lei.

Mais se provou que:

f) A arguida está desempregada.
g) Já foi condenada por sentença proferida aos 11/01/2018 (transitada em julgado a 11/02/2020), pela prática, aos 18/03/2016, de um crime de roubo, na pena de 1 ano e 1 mês de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

1.2 Factos não provados.

Com eventual interesse para a decisão da causa, nenhum outro facto se demonstrou.
Designadamente, não se apurou que a arguida soubesse que os brincos que vendeu à sociedade V. V., Lda eram produto da prática de um crime contra o património.

1.3 Motivação

A convicção do Tribunal, no que aos factos provados respeita, formou-se essencialmente com base nos depoimentos das testemunhas inquiridas, em conjugação com a prova documental constante dos autos, posto que a arguida optou por não prestar declarações.
Mas vejamos.
A testemunha A. P. explicou como, numa tarde de dia que não conseguiu localizar – mas que se fixou em 01/10/2016, atendendo-se à data que se deixou fixada no auto de fls. 3 e ss., de onde se constata que o episódio em causa ocorreu nessas circunstâncias temporais –, lhe foi assaltada a casa (referida na acusação e cuja localização confirmou), de onde lhe subtraíram, entre o mais, uns valiosos brincos de ouro, que identificou como sendo aqueles fotografados a fls. 36, a que atribuiu um valor de, pelo menos, € 600,00. Referiu, por outro lado, que não conseguiu recuperar os ditos objectos.
Por sua vez, a testemunha V. C., funcionária, à data, da loja “X”, da sociedade V. V., Lda (cfr. identificação da pessoa colectiva que consta da factura de fls. 35), explicou quais os procedimentos que eram realizados aquando da aquisição do ouro – designadamente, identificação do vendedor através de documento de identificação, recolha da cópia do dito documento (com fotografia) com a recolha da imagem do artigo vendido/comprado e emissão de factura ao vendedor – e, a despeito de não ter sido ela a pessoa que comprou os brincos à arguida (identificada no expediente de fls. 35/36, não restando, assim dúvidas quanto à pessoa do vendedor), referiu que os documentos em apreço correspondem ao processamento normal da aquisição. Uma nota apenas para referir que a colega da depoente que procedeu à concretização do negócio, M. V., não pôde ser ouvida por entretanto ter falecido, como decorre da certidão de óbito junto aos autos.
Ora, conjugando os elementos de prova coligidos, não se apurando de que forma a arguida S. M. entrou na posse dos brincos acima identificados e pertencentes à queixosa A. P., certo é que, pelo menos, ficou o Tribunal sem qualquer dúvida de que, considerando a proximidade temporal havida entre o momento do furto e a data da concretização do negócio (de venda pela arguida dos brincos), o valor diminuto pelo qual a arguida decidiu vendê-los e o facto de a mesma não ter prestado quaisquer justificação para a sua detenção (certo sendo que, a despeito de o silencia não poder prejudicar a arguida, também não pode dar aso a que se elucubre um sem número de explicações remotas que possam justificar a predita actuação, ademais porque todas sempre se mostrariam pouco críveis), deveria ter desconfiado da proveniência ilícita dos mesmos (i.e., que eles tinham sido subtraídos), posto que não teve tempo de os foi adquirir numa ourivesaria ou afim e, sobretudo, porque logo no dia em que os brincos foram adquiridos logo foram vendidos pela aqui acusada a preço muito inferior (mais de metade) ao do respectivo valor real.
Afigura-se-nos, assim, que, pelo menos (e dando o benefício da dúvida à arguida relativamente ao seu efectivo conhecimento da proveniência ilícita dos objectos, aqui se actualizando o princípio do in dubio pro reo), a arguida S. M. deveria, pelo menos, ter desconfiado da proveniência dos brincos que vendeu à V. V., Lda.
Valorou-se, finalmente, o teor do certificado do registo criminal junto a fls. 195 e vº.
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Apreciação o recurso.

A primeira questão invocada pela recorrente respeita ao facto de ter o tribunal de 1ª instância alterado não substancialmente os factos (e consequentemente a qualificação jurídica) sem prévia comunicação à arguida e subsequente concessão de possibilidade de se defender da nova realidade pela qual foi condenada.
Enquadremos brevemente a questão.
A arguida chegou a julgamento acusada da prática de um crime de recetação p.p. artigo 231.º nº 1 do Código Penal (CP). Na acusação constava que por modo não concretamente apurado, a arguida entrou na posse de um par brincos de ouro no valor de 600,00€, que haviam sido retirados do interior de uma casa de habitação sem autorização da sua dona; na posse dos brincos que sabia serem produto da prática de crime contra o património (…) a arguida decidiu vendê-los, o que fez pelo valor de 250,00€, tendo conhecimento da proveniência daquele par de brincos e do modo como o mesmo saiu da posse da sua dona (…) sabendo que desta forma obtinha para si um benefício patrimonial ilegítimo e ao qual bem sabia não ter direito, agindo sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabedora da proibição que a lei fazia impender sobre as suas condutas.
Na sentença proferida ficou a constar que a arguida agiu de vontade livre e consciente, e apesar de não poder deixar de saber das condições em que recebeu os brincos (…) fê-lo sem previamente indagar sobre o modo pelo qual haviam sido obtidos pela pessoa que lhos entregou, e por isso, teve necessariamente de admitir a possibilidade de os mesmos terem sido furtados, atuando conformada com essa possibilidade com o fito de assim obter um beneficio patrimonial a que sabia não ter direito. Agiu sabendo que a conduta era proibida e punida por lei.
Com base nesta factualidade veio a arguida recorrente a ser condenada pela prática de um crime de recetação p.p. artigo 231.º nº 2 CP.
Alguma doutrina (a título de exemplo Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 3ª edição, Universidade Católica Editora, anotações 15 e 16 ao artigo 231º, pág. 890, referindo no mesmo sentido Maia Gonçalves in Código Penal Português, 841, e ainda Leal Henriques e Simas Santos in Código Penal anot, 1996, 2º vol, 629), e jurisprudência (Ac. RG de 17/10/2005 in www.dgsi.pt) ao tomar posição quanto ao elemento subjetivo do ilícito em apreço defendem que o artigo 231.º não é um tipo de crime exclusivamente doloso, antes integrando no nº 2 a punição a título de negligente.
Contudo, considerando a lição de Pedro Caeiro in Comentário Conimbricense ao Código Penal, parte especial, II, 1999, 496, a jurisprudência, sobretudo a mais recente, vem entendendo, agora quase sem divergência, que o nº 2 do artigo 231.º do CP exige para preenchimento do tipo subjetivo o dolo eventual (cfr. Ac. RG de 14/09/2009; RE de 21/01/2020; RL 13/04/2010 e RP 03/04/2013 todos in www.dgsi.pt).
De facto, como se diz no referido acórdão do tribunal da relação de Évora de 21/01/2020 enquanto no nº 1 se exige que o agente tenha conhecimento de que a coisa provém de facto ilícito contra o património (dolo direto ou necessário) e que atue com a intenção de obter uma vantagem patrimonial para si ou para terceiros (dolo específico); no nº 2 basta que o agente admita a possibilidade de que a coisa provém de facto ilícito típico contra o património conformando-se essa possibilidade, não se assegurando da sua proveniência legítima (dolo eventual).
O tribunal a quo manifestou o entendimento de que o tipo de crime se estrutura de forma dolosa, deixando perceber que não considerou que a degradação da intensidade do dolo justificasse a necessidade de comunicação da nova factualidade integrante do elemento subjetivo, e bem assim, da nova qualificação jurídica, isto é, abordou a questão como se de uma infração representando um minus em relação à acusação se tratasse, ou ainda como se se tratasse de desaparecimento de uma circunstância qualificativa, tratamento que mereceu a concordância do ministério público.
A recorrente, por seu lado, defende que a inobservância do artigo 358.º nºs 1 e 3 do CPP determina a nulidade da sentença.
Tem razão a recorrente. É que sem que lhe tivesse sido dada a possibilidade de se pronunciar viu ser alterada a matéria de facto e a qualificação jurídica aplicável à nova factualidade. Ora, a defesa de qualquer arguido deve contemplar todas as expectativas admissíveis tanto relativamente aos factos a apreciar, quanto à qualificação jurídica, cujo direito de a discutir e dela discordar, tem de lhe ser assegurado através do exercício pleno do contraditório (cfr. Ac. RL de 22/02/2017 Processo nº 19/16.0GAFIG.G1).
Ou, como é dito no acórdão da Relação do Porto de 26/05/2015 “perante as diversas cambiantes que pode assumir a alteração jurídico penal dos factos, o critério para determinar se se impõe ou não a comunicação da alteração é o de salvaguarda das garantias de defesa do arguido, no sentido de dever ser feita se o direito de defesa sai afetado com a alteração da qualificação jurídica”. E aí se acrescenta que “ocorre alteração não substancial dos factos quando aos factos da acusação ou pronúncia se aditam outros, se excluem ou se substituem factos”.
Observando nestes autos as alterações ocorridas entre o teor da acusação e o da sentença, forçoso é concluir ter ocorrido uma alteração não substancial dos factos ao nível do elemento subjetivo do tipo, alteração esta que veio a provocar uma alteração da qualificação jurídica.
E não é pelo facto de a alteração não se situar ao nível de um acontecimento do mundo objetivo que se pode afirmar que não ocorreu uma alteração no pedaço de vida levado a julgamento. Ocorreu pelo menos uma alteração de factos no âmbito do pedaço de vontade colocado na prática do crime.

Dispõe o artigo 358.º do CPP que:

1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.

3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.

Assim, tendo ocorrido no julgamento simultaneamente uma alteração não substancial dos factos e da qualificação jurídica, não há dúvida que o tribunal teria de ter procedido à comunicação prevista no preceito e concedido prazo para defesa à arguida, por forma a cumprir o imperativo decorrente do princípio do contraditório com tradução constitucional no nº 5 do artigo 32.º da CRP. (Só assim não seria se os factos se mantivessem os mesmos, sobre eles a arguida se tivesse concretamente defendido e a qualificação jurídica dependesse tão só de uma degradação ocorrida, sem qualquer prejuízo para a defesa, por se manter inalterada toda a factualidade, como foi decidido no acórdão 921/20.4T9GMR.G1 que subscrevemos, onde a nova qualificação jurídica correspondia a um dos crimes integrantes do crime complexo, tendo este sido afastado após julgamento, emergindo os que o compunham).
Ora, o artigo 379.º do CPP comina com nulidade a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstas no artigo 358.º e 359.º (artigo 379.º nº 1 al. b) do CPP).
E assim é porque a aplicação de uma qualquer pena, mesmo que mais branda do que a que a acusação permitia antever, resultante de novos factos e de uma nova qualificação jurídica, não deixa de ser uma decisão surpresa, relativamente à qual a arguida não preparou a defesa, nem em relação aos novos factos, nem em relação ao novo direito aplicável, o que traduz violação do princípio do contraditório e compromete o processo equitativo imposto pelo artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, com projeção no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Tendo a arguida sido surpreendida com a nova realidade factual e jurídica, para a qual não contribuiu de modo algum, uma vez que se manteve em silêncio no julgamento, ter-se-à de concluir pela procedência do recurso neste concreto segmento e, consequentemente, pela nulidade da sentença, nos termos da al. b) do nº 1 do art. 379º do CPP, ficando, assim, prejudicado o conhecimento das demais questões invocadas.
*
III.
DECISÃO.

Em face do exposto acordam os juízes da secção penal do tribunal da Relação de Guimarães em declarar nula a sentença recorrida, nos termos do artigo 379 nº 1 al. b) do CPP e, consequentemente:
- determinam a sua substituição por outra a elaborar pelo mesmo tribunal e juiz, mediante o prévio cumprimento do disposto no artigo 358.º nºs 1 e 3 do CPP;
- julgam prejudicado o conhecimento das demais questões invocadas pela recorrente.
Sem custas.
Notifique.
Guimarães, 12 de abril de 2021

Maria Teresa Coimbra
Cândida Martinho