Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
96/15.0GACRZ.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: ARMAS DETIDAS E APREENDIDAS A ARGUIDO
FALECIMENTO DO ARGUIDO
REGIME DE AQUISIÇÃO MORTIS CAUSA
ARTºS 37º DO RJAM E 109º DO CP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/25/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) As armas que tenham sido apreendidas ao arguido mas que eram legalmente detidas pelo mesmo, por se encontrarem registadas ou manifestadas em seu nome e ele ser titular de licença de uso e porte de arma, só poderão ser declaradas perdidas a favor do Estado se tiverem servido ou estivessem destinadas a servir para a prática de factos ilícitos típicos e, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas ou que, em alternativa, ofereçam sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos (art. 109º, n.º 1, do Código Penal).

II) Não se verificando esses pressupostos, inexiste fundamento para a declaração de perdimento de tais armas.

III) Em caso de falecimento do arguido, nada obsta à transmissão dessas armas para os seus herdeiros, no âmbito do procedimento de aquisição mortis causa regulado no art. 37º do Regime Jurídico das Armas e Munições, desde que observados os requisitos aí estipulados e os demais legalmente exigidos para a detenção das armas.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo comum singular com o NUIPC 96/15.0GACRZ, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, no Juízo de Competência Genérica de Vila Flor, foi proferido despacho, em 02-05-2018, a julgar extinto o procedimento criminal, por óbito do arguido, H. A., a dar sem efeito a data da audiência de julgamento designada e a declarar perdidos a favor do Estado os objetos apreendidos à ordem dos autos, designadamente os discriminados a fls. 79 a 82, nos termos do art. 109º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.
2. Inconformadas com esse despacho, vieram R. B., A. L. e M. A., na qualidade de herdeiras do falecido arguido, de que eram, respetivamente, filhas e mulher, interpor o presente recurso, concluindo a respetiva motivação nos seguintes termos (transcrição [1]):

«CONCLUSÕES

I. A decisão recorrida viola as normas dos artigos 62.º da Constituição da República Portuguesa, 109.º do Código Penal, e 37.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.
II. Interpretou o artigo 109.º do Código Penal como se a aplicação deste não exigisse a perigosidade do objeto cumulativamente com a utilização dele na prática do crime, não cuidando de que a prognose dessa perigosidade deveria basear-se em factos e juízos concretamente apurados e formulados pelo tribunal.
III. As Recorrentes não podem conformar-se com a decisão que declarou perdidos a favor do Estado os objetos apreendidos à ordem dos autos, designadamente os dis­criminados em fls. 79 a 82, por não ter tido em conta que parte das armas apreendidas estavam manifestadas e registadas a favor do seu proprietário, H. A..
IV. Este tinha evidente gosto pelo colecionismo de armas e munições, que mantinha na sua posse pelo puro prazer que a observação, o manuseamento e a conservação desses bens lhe proporcionavam, sendo que a sua idoneidade para a posse daquele género de objetos nunca foi posta em causa, gozando de autorização para o efeito, já que era titular de licença de uso e porte de arma com o n.º …, emitida em 29-11-2012 (fls. 166 dos autos), verificando-se que era primário enquanto arguido, o que, associado aos seus 81 anos (à data do óbito), mostra sobejamente tratar-se de pessoa dotada de personalidade bem formada, pacífica e socialmente integrada, levando uma vida fiel ao Direito.
V. Não se verificou que, em concreto, a posse das armas e munições por parte do finado H. A., ao longo de muitas dezenas de anos, alguma vez tivesse posto em perigo ou risco a segurança das pessoas, nunca tendo sido acusado de qualquer ilícito penal (anteriormente à factualidade dos autos), tornando-se, por isso, duvidosa a justeza da aplicação ao caso sub judice do disposto no artigo 109.º do Código Penal, por inverificação de que os objetos apreendidos tivessem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de crime.
VI. Por outro lado, verifica-se que, entre as apreendidas, existem várias armas manifestadas / registadas em nome do defunto H. A., de acordo com o teor do documento de fls. 166 dos autos, segundo o qual este tinha em seu nome 24 (vinte e quatro) armas, inteligivelmente identificadas nos documentos de fls. 167 a 190, o que é confirmado pela "Informação" de fls. 36 e seguintes provinda do Comando Territorial da GNR de Bragança - especialmente no segundo parágrafo desse documento (a fls. 37 dos autos) - apreendidas aquando da busca realizada em 18-09-2015 à casa que foi de morada do H. A. (cfr. fls. 79 e seguintes dos autos).
VII. Armas essas melhor identificadas:

- a fls. 80 (linha 13 - manifestada a favor do H. A. - cfr. fls. 412);
- a fls. 81 (linhas 10 a 13 - manifestadas a favor do H. A. - cfr. fls. 177, 179, 171 e 169);
- " (linhas 40 a 58 - manifestadas a favor do H. A. - cfr. fls. 188, 174, 176, 187, 175, 185, 412, 172, 178, 182, 181, 190, 186, 173, 183, 189, 184, 170 e 168).
VIII. Mais lhe foram apreendidas duas armas de ar comprimido, de calibre 4.5 mm, das marcas FAST DEER e SEAL LION, mencionadas no "Auto de Busca e Apreensão", a fls. 80 (linha 22) e 81 (linha 33), de aquisição livre (cfr. fls. 412).
IX. Tais armas não podem deixar de fazer parte do acervo dos bens deixados pelo H. A. e integrar a herança aberta na sequência do seu óbito, dada a inexistência de motivo válido e consentâneo com a lei para que, sem mais, revertessem a favor do Estado - pelo que a decisão recorrida viola também o disposto no artigo 62.º da nossa Lei Fundamental, que estabelece o direito de propriedade privada, além de que a própria Lei das Armas (Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro) admite a sua aquisição por sucessão mortis causa, mediante o procedimento traçado no seu artigo 37.º, prevendo até a alínea c) do artigo 18.º licença apropriada, visando a sobredita aquisição.

NESTES TERMOS, DEVE SER JULGADO PROCEDENTE O PRESENTE RECURSO E REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA, COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS, ASSIM SE FAZENDO A MAIS SÃ JUSTIÇA!»

3. O Exmo. Procurador Ajunto respondeu à motivação das recorrentes, pugnando pela manutenção do despacho recorrido, por entender que, relativamente às armas detidas ilegalmente pelo arguido, entretanto falecido, por não se encontrarem registadas e manifestadas, o que o faria incorrer na prática do crime de detenção de arma proibida pelo qual foi acusado, não restam dúvidas de que constituem instrumentos do facto ilícito típico, que oferecem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos típicos (nomeadamente o crime de detenção de arma proibida), pelo que reúnem condições para ser declaradas perdidas a favor do Estado, ainda que o agente do crime não tenha podido ser punido pelo facto, atenta a sua morte, não assistindo, pois, razão às recorrentes quando entendem que deveriam ser-lhes entregues. Diferentemente daquilo que sucede com as armas que eram detidas de forma legal pelo arguido, as quais, todavia, não lhes poderão ser entregues antes de cumpridas as formalidades enunciadas pela PSP a fls. 732, ou seja, caso não possuam licença de uso e porte de arma, mediante a concessão de licença de detenção no domicílio, desde que possuam cofre para guarda das armas, dado que são mais do que duas da mesma classe, não podendo, ao abrigo dessa autorização, deter munições.
4. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no sentido de que «(…) por total falta de verificação dos exigíveis pressupostos - art. 109º do Código Penal - não é o caso de poderem ser declaradas perdidas a favor do Estado as armas que o arguido detinha regularmente, "lato sensu", quer porque se encontravam manifestadas e registadas, quer porque ele dispunha da necessária licença de uso e porte de arma, quer ainda porque não foram, por qualquer forma, utilizadas na prática de qualquer crime, especialmente no dos autos, nem é possível formular, em concreto, algum juízo de prognose de perigosidade; isto sem esquecer que as herdeiras do falecido podem conservar as armas no domicílio, nos termos previstos na Lei das Armas, tudo já suficientemente escalpelizado nos autos - art. 37º da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro - e com o respetivo procedimento administrativo desencadeado.»

Em conformidade, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto é de parecer que o recurso deve ser julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido, determinando-se que, na primeira instância, seja proferido novo despacho a apreciar o requerimento das recorrentes, com a pressuposta concretização das armas e demais objetos sobre que incide efetivamente a declaração de perda a favor do Estado.
5. No âmbito do disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, as recorrentes não responderam a esse parecer.
6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c), do citado código.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. A decisão recorrida tem o teor que a seguir se transcreve:

«fls 687
Atento o comprovado óbito do arguido em 30/03/2018 (cfr fls 684), julgo extinta a responsabilidade criminal do arguido, bem como o procedimento criminal (arts. 127, n.º 1º e 128º, n.º 1 do Cód de Proc Penal).
Dou sem efeito a data da audiência de julgamento designada.

Por concordar com as considerações vertidas na promoção que antecede, declaro perdidos a favor do Estado os objetos apreendidos à ordem dos presentes autos, designadamente os discriminados em fls 79 a 82 (art. 109º, n.º 1 e n.º 2 do Cód Penal).»

Por seu turno, a promoção sobre que incidiu o despacho recorrido, na parte relevante, é do seguinte teor (transcrição):

«(…)
Por fim e quanto à requerida entrega dos bens que foram apreendidos ao arguido, cremos que não assiste razão ao requerente.

Na verdade, encontram-se apreendidas diversas armas e munições, sem que o arguido tivesse qualquer licença para deter tais objetos. Do mesmo modo, não se encontrando tais armas registadas e manifestadas, a sua entrega aos herdeiros do arguido faria com que os mesmos viessem a incorrer igualmente na prática do crime de detenção de arma proibida.

Ademais, dispõe o artigo 109.º do CP que "1 - São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, o oferecerem sérios risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática." Acrescenta o n.º 2 do mesmo normativo que "2 - O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.".

In casu, o motivo que impediu a punição do agente foi a sua morte, facto que não prejudica a necessidade de que os objetos apreendidos (armas e munições) sejam declarados perdidos a favor do Estado, o que se promove.»

2. Atentas as conclusões formuladas pelas recorrentes, as quais, face ao disposto no art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, delimitam o objeto do recurso, não podendo o tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso [2], a única questão decidenda é a de saber se estão verificados os pressupostos para declarar perdidas a favor do Estado, conforme decidiu o tribunal a quo, as armas apreendidas ao arguido, entretanto falecido, apontadas pelas recorrentes na conclusão VII., ou seja, as 24 armas identificadas na linha 13 de fls. 80 e nas linhas 10 a 13 e 40 a 58 de fls. 81, bem como na conclusão VIII., isto é, as 2 armas de ar comprimido identificadas na linha 22 de fls. 80 e na linha 33 de fls. 81, folhas estas todas do auto de busca e apreensão lavrado nos autos.

3. Para a apreciação dessa questão, importa ter presentes os seguintes elementos factuais que se colhem dos autos:

3.1 - Nestes foi denunciada a prática pelo arguido, H. A., de factos suscetíveis de integrarem o crime de violência doméstica, previsto e punido (p. e p.) pelo art. 152º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pessoa da sua mulher, M. A., os crimes de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º, n.º 1, do Código Penal, e de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153º, n.º 1, e 155º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, na pessoa de J. V., e ainda o crime de ameaça agravada, p. e p. pelos citados artigos, na pessoa de M. L. (autos de denúncia e de notícia de fls. 3 a 6, 14 a 16 e 27 a 32).

3.2 - Nessa sequência, foi efetuada uma busca à residência do arguido, com vista à apreensão de todas as armas de fogo e munições que o mesmo detivesse na sua posse, tendo-lhe sido apreendidas as armas de fogo, munições e armas brancas identificadas no auto de busca e apreensão junto a fls. 79 a 82.
3.3
3.4 - Entre as múltiplas armas apreendidas, encontram-se as seguintes:

a. Uma arma de fogo, da marca M. Jamin Liege, com o n.º …, de calibre 12 e classe D (identificada na linha 13 de fls. 80 e examinada a fls. 110);
b. Uma arma de fogo, da marca JSP, com o n.º …, de calibre 16 e classe D (identificada na linha 10 de fls. 81 e examinada a fls. 115);
c. Uma arma de fogo, da marca JPSauer, com o n.º …, de calibre 12 e classe D (identificada na linha 11 de fls. 81 e examinada a fls. 115);
d. Uma arma de fogo, da marca Merkel, com o n.º …, de calibre 12 e classe D (identificada na linha 12 de fls. 81 e examinada a fls. 115);
e. Uma arma de fogo, da marca August Francotte, com o n.º …, de calibre 12 e classe D (identificada na linha 13 de fls. 81 e examinada a fls. 116);
f. Uma arma de fogo, da marca Huglu, com o n.º …, de calibre 12 e classe D (identificada na linha 40 de fls. 81 e examinada a fls. 119);
g. Uma arma de fogo, da marca Tecni-Mec-Marcheno, com o n.º …, de calibre 12 e classe D (identificada na linha 41 de fls. 81 e examinada a fls. 120);
h. Uma arma de fogo, da marca Zabala, com o n.º …, de calibre 12 e classe D (identificada na linha 42 de fls. 81 e examinada a fls. 120);
i. Uma arma de fogo, da marca Angelo Zoli, com o n.º …, de calibre 12 e classe D (identificada na linha 43 de fls. 81 e examinada a fls. 120);
j. Uma arma de fogo, da marca Fabarm, com o n.º …, de calibre 12 e classe D (identificada na linha 44 de fls. 81 e examinada a fls. 121);
k. Uma arma de fogo, da marca Bennelli Rafaello, com o n.º …, de calibre 12 e classe D (identificada na linha 45 de fls. 81 e examinada a fls. 121);
l. Uma arma de fogo, da marca Pietro Beretta, com o n.º …, de calibre 12 e classe D (identificada na linha 46 de fls. 81 e examinada a fls. 121);
m. Uma arma de fogo, da marca Zabala, com o n.º …, de calibre 12 e classe D (identificada na linha 47 de fls. 81 e examinada a fls. 121-122);
n. Uma arma de fogo, da marca Robust, com o n.º …, de calibre 12 e classe D (identificada na linha 48 de fls. 81 e examinada a fls. 122);
o. Uma arma de fogo, da marca Fair Marcheno, com o n.º …, de calibre 12 e classe D (identificada na linha 49 de fls. 81 e examinada a fls. 122);
p. Uma arma de fogo, da marca Fabarm, com o n.º …, de calibre 12 e classe D (identificada na linha 50 de fls. 81 e examinada a fls. 122-123);
q. Uma arma de fogo, da marca Antonio Zoli, com o n.º …, de calibre 12 e classe D (identificada na linha 51 de fls. 81 e examinada a fls. 123);
r. Uma arma de fogo, da marca Pietro Beretta, com o n.º …, de calibre 12 e classe D (identificada na linha 52 de fls. 81 e examinada a fls. 123);
s. Uma arma de fogo, da marca Zabala, com o n.º …, de calibre 12 e classe D (identificada na linha 53 de fls. 81 e examinada a fls. 123-124);
t. Uma arma de fogo, da marca Browning, com o n.º …, de calibre 12 e classe D (identificada na linha 54 de fls. 81 e examinada a fls. 124);
u. Uma arma de fogo, da marca Verney Carron, com o n.º …, de calibre 12 e classe D (identificada na linha 55 de fls. 81 e examinada a fls. 124);
v. Uma arma de fogo, de marca desconhecida, com o n.º …, de calibre 12 e classe D (identificada na linha 56 de fls. 81 e examinada a fls. 124-125);
w. Uma arma de fogo, da marca Tikka, com o n.º …, de calibre 300 Magnun e classe C (identificada na linha 57 de fls. 81 e examinada a fls. 125);
x. Uma arma de fogo, da marca Unifrance, com o n.º …, de calibre 12 e classe D (identificada na linha 58 de fls. 81 e examinada a fls. 125);
y. Uma carabina de pressão de ar, de marca Fast Deer, de calibre 4,5 mm e classe G (identificada na linha 22 de fls. 80 e examinada a fls. 111);
z. Uma carabina de ar comprimido, de Seal Lion, de calibre 4,5 mm e classe G (identificada na linha 33 de fls. 81 e examinada a fls. 119).
3.5 - Todas as armas de fogo referidas supra, sob as als. a) a x), se encontram registadas ou manifestadas em nome do arguido (informações prestadas pela PSP a fls. 166, 168 (para a arma da al. x.), 169 (da al. e.), 170 (da al. w.), 171 (da al. d.), 172 (da al. m.), 173 (da al. s.), 174 (da al. g.), 175 (da al. j.), 176 (da al. h.), 177 (da al. b.), 178 (da al. n.), 179 (da al. c.), 181 (da al. p.), 182 (da al. o.), 183 (da al. t.), 184 (da al. v.), 185 (da al. k.), 186 (da al. r.), 187 (da al. i.), 188 (da al. f.), 189 (da al. u.), 190 (da al. q.) e 412 (das als. a., k. e l.).
3.6 - As demais armas de fogo descritas no auto de busca e apreensão de fls. 79 a 81 não se encontram registadas ou manifestadas (informação de fls. 412).
3.7 - Com fundamento na detenção das armas referidas em 3.5, não registadas ou manifestadas, descritas no art. 13º da acusação, foi o arguido acusado da prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 86º, n.ºs, 1, al. c), e 2, 93º, n.º 1, al. a), com referência ao art. 3º, n.º 6, al. a), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, tendo-lhe ainda sido imputada a prática de um crime de violência doméstica, na pessoa da mulher, e de um crime de ameaça agravada, na pessoa de M. L., tendo havido lugar a desistência de queixa quanto ao crime de ofensa à integridade física simples, na pessoa de J. V. (despacho final do inquérito de fls. 419 a 432).
3.8 - Na acusação, o Ministério Público promoveu a declaração de perdimento a favor do Estado das armas descritas na acusação e constantes do auto de apreensão de fls. 79 a 82, por as mesmas terem servido para a prática do crime de detenção de arma proibida imputado ao arguido.
3.9 - O arguido era titular de licença de uso e porte de arma de classe D desde 29-11-2012 (informação de fls. 166).
3.10 - O arguido faleceu antes da realização da audiência de julgamento, tendo, nessa sequência, sido proferido o despacho recorrido.

4. Como consta da decisão ora impugnada, o Mmº. Juiz declarou perdidos a favor do Estado "os objetos apreendidos à ordem dos presentes autos, designadamente os discriminados a fls. 79 a 82", ou seja, todos os bens descritos no auto de busca e apreensão que constitui essas folhas, uma vez que nessa decisão não foi feita qualquer destrinça ou especificação.

Em termos de fundamentação, o Mmº. Juiz limita-se a remeter para a promoção do Ministério Público que antecede esse despacho, afirmando concordar com as considerações nela vertidas.

Todavia, do teor dessa promoção, mormente do seu parágrafo 2º, parece resultar claro que o Ministério Público apenas promoveu o perdimento a favor do Estado das armas e munições para cuja detenção o arguido não possuía qualquer licença e das armas que não se encontravam registadas e manifestadas, em consonância, aliás, com o requerido na acusação oportunamente deduzida.

Não obstante ter aderido a essa promoção, o certo é que, como vimos, o Mmº. Juiz declarou perdidos todos os objetos apreendidos nos autos e discriminados no auto de busca e apreensão de fls. 79 a 82.

Sucede que neste auto, para além de quarenta e quatro armas de fogo não registadas ou manifestadas (identificadas no art. 13º da acusação), de múltiplas munições e de várias armas brancas, também constam as vinte e quatro armas de fogo supra identificadas no ponto 3.3, sob as als. a) a x), as quais se encontram registadas ou manifestadas em nome do arguido, bem como as duas armas de ar comprimido identificadas nas als. y) e z), que são de aquisição livre e não sujeitas a registo ou manifesto, nos termos do disposto nos arts. 2º, n.º 1, al. h), 3º, n.º 9, al. d), e 73º, n.º 1, a contrario, ambos do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.

É unicamente contra a declaração de perdimento a favor do Estado destas vinte e quatro armas de fogo e das duas armas de ar comprimido que se insurgem as recorrentes, na qualidade de herdeiras do arguido, entretanto falecido, defendendo que não podem deixar de fazer parte do acervo hereditário do mesmo, dada a inexistência de motivo válido e consentâneo com a lei para reverterem a favor do Estado.

A nosso ver, com razão, atento o essencial da argumentação expendida na motivação do recurso.

Com efeito, estando essas armas de fogo registadas ou manifestadas em nome do arguido e sendo ele titular de licença de uso e porte das mesmas (à exceção da única que é da classe C), e não estando as armas de ar comprimido sujeitas a manifesto, não se verifica o pressuposto de perdimento a favor do Estado de armas que não têm manifesto nem registo, ou seja, que não podem ser entregues ao seu proprietário por se tratarem de bens subtraídos do comércio jurídico e insuscetíveis de serem possuídas por quem quer que seja [3].

Aliás, as armas em questão não foram sequer incluídas no rol das quarenta e quatro armas de fogo descritas no art. 13º da acusação, com base em cuja detenção ilegal foi imputada ao arguido a prática do crime de detenção de arma proibida.

Assim sendo, a declaração de perdimento de tais armas apenas poderia encontrar apoio legal na verificação dos requisitos previstos no art. 109º, n.º 1, do Código Penal, que regula a perda de instrumentos do crime.

Resulta desse preceito que para a perda de objetos a favor do Estado é necessária a verificação dos seguintes elementos:

- Que exista um facto ilícito típico;
- Que os objetos sejam instrumentos desse facto ilícito típico, ou seja, que tenham servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática;
- E que, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas ou que, em alternativa, ofereçam sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.

Exige-se, pois, a demonstração da perigosidade do objeto, cumulativamente com a sua utilização na prática do crime, quer aquela perigosidade se traduza na colocação em risco da segurança das pessoas, da moral ou da ordem públicas ou em sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos ilícitos típicos, quer derive da própria natureza do objeto ou das circunstâncias do caso. Perigosidade que tem de assentar em factos e juízos concretamente apurados e formulados pelo tribunal, não se presumindo.

A perda dos instrumentos do crime tem, assim, caráter preventivo, pois o que está em causa é a prevenção dos riscos decorrentes da disponibilidade de objetos que, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, são perigosos, e não a aplicação de uma qualquer sanção em resposta à prática de crime, o que explica que a medida deva ser tomada mesmo que o agente não seja condenado nem possa vir a sê-lo.

Com efeito, de acordo com o previsto no n.º 2 do citado art. 109º, verificados os apontados requisitos, não obsta à declaração de perda dos objetos a favor do Estado a circunstância de nenhuma pessoa determinada poder ser punida pelo facto, incluindo o caso de morte do agente, como sucedeu na situação dos autos, ou quando o mesmo tenha sido declarado contumaz.

Significa isto que, em relação às armas em causa no recurso, legalmente detidas pelo arguido e apenas apreendidas ao mesmo no quadro da investigação de um crime de violência doméstica e/ou ameaça agravada, impõe-se averiguar se estão verificados os apontados requisitos de ordem material exigidos pelo art. 109º, n.º 1, do Código Penal para serem declaradas perdidas a favor do Estado, sendo certo que a tal não obsta o falecimento do arguido.

A circunstância de o despacho recorrido não se ter pronunciado sobre a necessidade de verificação desses requisitos traduz-se em erro de direito, que não impede que o tribunal de recurso decida em substituição do tribunal a quo.

Posto isto, analisando a acusação deduzida contra o arguido, entretanto falecido, constata-se que, não obstante lhe ter sido aí imputada a prática de um crime de violência doméstica e de um crime de ameaça, na descrição dos respetivos factos não é mencionada a utilização, efetiva ou sequer potencial, de qualquer arma, mormente aquelas que se encontram manifestadas em nome do arguido e contra cujo perdimento a favor do Estado se insurgem as recorrentes.

Assim, não só as armas em questão não serviram para a prática dos factos ilícitos típicos descritos na acusação, como nada nos permite inferir que estivessem destinadas a servir para esse fim, pelo que não se pode afirmar que sejam instrumentos dos crimes pelos quais o arguido foi acusado.

Mas, ainda que o fossem, atentas as circunstâncias que rodearam e motivaram a prática dos factos imputados ao arguido na acusação, concretamente um contexto de violência doméstica em relação à mulher e de um conflito de vizinhança em relação à ofendida M. L., o facto de o agente ter, entretanto, falecido, afasta qualquer risco de tais objetos serem utilizados no cometimento de novos factos ilícitos típicos, seja por ele, seja por terceiros. E a mera natureza de armas de fogo, só por si, desacompanhada de outros elementos, também não permite afirmar que as mesmas ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas ou que ofereçam sério risco de virem a ser utlizadas na prática de futuros crimes, para além do risco natural e imanente a qualquer arma com essas características.

Assim, em face da factualidade constante da acusação, conclui-se que, não só as armas em questão não serviram para a prática de um facto ilícito típico nem estavam destinadas a servir para esse fim, como também não resulta que se verifique sério risco de as mesmas virem a ser utilizadas para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, quer por serem intrinsecamente perigosas, quer em função das circunstâncias do caso, pressuposto material exigido pelo art. 109º do Código Penal para a perda de bens aí regulada.

Pelo exposto, inexiste fundamento legal para declarar perdidas a favor do Estado as armas registadas ou manifestadas em nome do arguido, bem como as duas armas de ar comprimido.

Consequentemente, tendo o seu proprietário falecido, podem tais armas ser transmitidas para todos ou para alguns ou algum dos seus herdeiros, através do procedimento regulado no art. 37º do Regime Jurídico das Armas e Munições, que terá de ser acionado por aqueles, sob pena de, decorridos 10 anos, serem declaradas perdidas a favor do Estado (n.º 7 do preceito).

De acordo com esse artigo, a aquisição por sucessão mortis causa de qualquer arma manifestada é permitida mediante autorização do diretor nacional da PSP (n.º 1), o qual pode autorizar que a arma fique averbada em nome do cabeça-de-casal até se proceder à partilha dos bens do autor da herança, sendo neste caso obrigatório o depósito da mesma à guarda da PSP (n.º 3).

Caso o cabeça-de-casal ou outro herdeiro reúna as condições legais para a detenção da arma, pode ser solicitado averbamento em seu nome, ficando a mesma à sua guarda (n.º 4).

A pedido do cabeça-de-casal, pode ainda a arma ser transmitida a quem reunir condições para a sua detenção, sendo o adquirente escolhido pelo interessado, ou pode ser vendida em leilão que a PSP promova, sendo o valor da adjudicação, deduzido dos encargos, entregue à herança (n.º 5).

Finda a partilha, a arma será entregue ao herdeiro beneficiário, desde que este reúna as condições legais para a sua detenção (n.º 6), incluindo, a guarda das mesmas em cofre ou armário de segurança, não portáteis, devidamente verificados pela PSP, por, no caso concreto, estarem em causa mais do que duas armas da mesma classe (D), conforme dispõe o art. 32º, n.º 3, do citado diploma.

Na hipótese de esse herdeiro não possuir licença de uso e porte de arma, ainda assim, poderá ser-lhe concedida licença de detenção no domicílio, nos termos previstos no art. 18º, n.º 1, al. c), do mesmo regime jurídico, estando igualmente obrigado a guardá-las em cofre ou armário de segurança não portáteis, devidamente verificados pela PSP, por serem mais de duas armas de fogo (n.º 4 do citado artigo).

Aliás, esse procedimento de transmissão mortis causa foi já desencadeado pela recorrente R. B., enquanto cabeça de casal da herança indivisa deixada pelo arguido, através do requerimento cuja cópia foi junta a fls. 721 a 724, obstando, porém, a que lhe fosse dado seguimento o facto de as armas em questão terem sido declaradas perdidas a favor do Estado pelo despacho recorrido, obstáculo esse que agora deixa de subsistir, com a revogação de tal despacho.

Procede, pois, o recurso.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, tão só na parte em que declarou perdidas a favor do Estado as armas de fogo registadas ou manifestadas em nome do arguido e as duas armas de ar comprimido, todas supra identificadas em II., 3.3 (com indicação das linhas do auto de busca e apreensão em que se encontram descritas), podendo as mesmas ser entregues às recorrentes, na qualidade de herdeiras do arguido, no âmbito do procedimento de aquisição por mortis causa regulado no art. 37º do Regime Jurídico das Armas e Munições, desde que observados os requisitos aí estipulados e os demais legalmente exigidos, nomeadamente os limites de detenção previstos no art. 32º do mesmo diploma, conforme acima explicitado.

Sem tributação em custas (art. 513º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal).
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
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Guimarães, 25 de fevereiro de 2019

(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)


[1]- Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo a correção de gralhas evidentes, a formatação do texto e a ortografia utilizada, que são da responsabilidade do ora relator.
[2]- Como resulta do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série-A, de 28-12-1995.
[3]- Cf. o acórdão do TRP de 24-05-2017 (processo n.º 342/15.0GAPVZ.P1), disponível em http://www.dgsi.pt.