Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7567/15.7T8VNF-A.G1
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PROIBIÇÃO DE INSTAURAÇÃO DE ACÇÕES PARA COBRANÇA DE DÍVIDAS
CONDEVEDORES E TERCEIROS GARANTES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDÊNCIA DA APELAÇÃO
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Por força do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 408/2015 (DR, 1ª Série, n.º 201, de 14/10/2015), que declarou, «com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, constante dos artigos 703.º do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, por violação do princípio da proteção da confiança (artigo 2.º da Constituição)», atualmente não oferece dúvidas que continuam a ser dotados de força executiva os documentos particulares produzidos antes de 1 de setembro de 2013, que reúnam os requisitos enunciados no art. 46º, n.º 1, al. c) do anterior Código de Processo Civil.

II- A proteção que decorre do art. 17º-E do CIRE, consistente na proibição de instauração de «acções para cobrança de dívidas», declarativas ou executivas, a suspensão de tais ações e a sua eventual extinção, tem como destinatário e beneficiário exclusivo a pessoa do devedor, requerente do processo especial de revitalização, mantendo-se incólumes os direitos dos credores sobre os condevedores (fiadores) e terceiros garantes.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório.

A. M. e mulher, M. L., executados nos autos principais de execução, deduziram oposição à execução, mediante embargos de executado, contra a exequente Quinta ..., Sociedade Agrícola, Lda, pedindo que se declare que falta o título executivo que legitime a presente execução, com o consequente arquivamento dos autos.
Para tanto alegam, em síntese, a falta de título, por o documento junto não constituir qualquer título executivo.
Mais alegam não deverem à exequente as quantias reclamadas, sendo que a Exequente reclamou o seu crédito em processo de recuperação da empresa “X – Empresa de Turismo ..., Lda.”.
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Recebidos liminarmente os embargos de executado, a exequente/embargada, apresentou contestação, na qual, alegando que não existe qualquer fundamento para a oposição, concluiu pela improcedência dos embargos (cfr. fls. 26 e 27 a 29).
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Datado de 27/02/2019, foi proferido despacho saneador, que decidiu julgar a oposição à execução improcedente e, consequentemente, determinou o normal prosseguimento da execução (cfr. fls. 33 a 35).
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Inconformados com esta decisão, dela interpuseram recurso os embargantes/executados (cfr. fls. 36 a 41) e, a terminar as respetivas alegações, formularam as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1.º - Por execução contra si movida, deduziram os Recorrentes embargos de executado que foram julgados improcedentes.
2.º - A execução movida contra os ora recorrentes teve por base um documento particular, um contrato de fornecimento de bens entre o exequente, primeiro outorgante, a empresa X – Empresa de Turismo ..., Lda. e os Recorrentes A. M. E M. L., e J. M. e esposa M. C., terceiros outorgantes na qualidade de fiadores.
3.º - Todavia e conforme invocado nos embargos de executado deduzidos, inexiste título executivo que sustente a pretensão do exequente.
4.º - O documento apresentado não consta do elenco de títulos executivos do artigo 703.º do CPC, não tendo sido, designadamente “exarado ou autenticado” como exige a alínea b) do n.º 1 deste preceito e nos termos do artigo 707.º do mesmo código.
5.º - Do elenco dos títulos executivos foram eliminados os “documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas deles constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou prestação de facto”.
6.º - Assim, o “título” apresentado pelo exequente carece de exequibilidade e sendo o título a condição geral, necessária e suficiente de qualquer execução, não há execução sem título.
7.º - Desta forma, deveria o requerimento de execução ter sido indeferido liminarmente o requerimento executivo em aplicação do disposto no artigo 726.º, n.º 2, a) do CPC.
8.º - Não obstante o teor do Acórdão n.º 408/2015 do Tribunal Constitucional, no caso sub judice, não pode esta salvaguarda operar pois o exequente juntou um documento no qual não estão liquidadas quaisquer quantias.
9.º - Neste aresto, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16-03- 2017, “I – O título executivo que seja materializado num documento particular assinado, para efectivamente o ser, terá de constituir ou reconhecer obrigações pecuniárias. II – O documento particular, para valer como título executivo, tem que nos indicar a quantia que é devida, e deverá fazê-lo em termos auto-subsistentes, ou seja, que dispensem demonstração complementar não coincidente com meras operações de liquidação. III –Sendo convencionadas prestações futuras, para que o documento pudesse constituir título executivo, necessário se mostra que seja demonstrado que alguma prestação foi realizada para a conclusão do negócio. IV – Na situação de constituição de obrigações futuras, necessário se revela que se demonstre que a obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes, sendo tal prova realizada nos termos do art.º 50.º do CPC, cuja aplicação se mostra restrita a documentos exarados ou autenticados por notário, ou por entidades ou profissionais com competência para tal, afastada ficando assim dos documentos particulares.”.
10.º - Nesta medida, e salvo melhor opinião, não assiste razão ao exequente nem à sentença de que se recorre.
11.º - Ao exposto acresce que os Recorrentes não devem ao Exequente qualquer quantia,
12.º - Os terceiros outorgantes, entre os quais se encontram os Recorrentes constituíram-se fiadores da segunda outorgante, a sociedade X no referido contrato.
13.º - Neste, os terceiros outorgantes obrigaram-se pessoal e solidariamente nos termos da cláusula nona do referido contrato e artigo 512.º do Código Civil (doravante, CC), renunciando ao benefício de excussão prévia.
14.º - Todavia, o exequente conhece e aprovou o PER da empresa X, segunda outorgante,
15.º - pelo que não é lícito ao exequente, que reclamou créditos no PER, executar também os Recorrentes, sob pena de se verificar uma situação de enriquecimento sem causa previsto no artigo 473.º do CC.
16.º - A tentativa do exequente em executar o património da segunda outorgante bem como dos terceiros constitui uma desvirtuação das regras do processo.
17.º - Sendo a finalidade de ambas idêntica, deverá a execução extinguir-se.
18.º - O PER contém um conjunto de medidas que se aplicam à segunda outorgante, a sociedade a revitalizar e que a vinculam a ela e aos respetivos credores, razão pela qual a pretensão do exequente enferma de nulidade e deverá ser julgada improcedente.

Termos em que, e nos demais de Direito, Vªs. Exªs deverão julgar o presente RECURSO procedente e, por conseguinte, revogar a sentença proferida pelo Tribunal a quo, que deverá ser substituída por um que extingue a execução movida contra os Recorrentes.
Assim se fazendo inteira JUSTIÇA!».
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Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo (cfr. fls. 43).
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Foram colhidos os vistos legais.
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II. Delimitação do objecto do recurso

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber:

1ª - Da inexistência ou falta de título executivo.
2.ª – Efeitos da pendência do processo especial de revitalização (PER) e da (eventual) homologação do plano de recuperação relativamente aos condevedores e garantes do devedor.
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III. Fundamentos

IV. Fundamentação de facto

A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos:

1. A exequente é uma pessoa colectiva que se dedica á produção, comércio e fornecimento dos bens produzidos por si, sobretudo, queijos e vinhos.
2. A 20 de Agosto de 2010, foi celebrado um contrato de fornecimento de bens entre:
i) a aqui embargada/exequente, na qualidade de vendedora (Primeira Outorgante);
ii) a empresa X - Empresa de Turismo ..., Lda, na qualidade de compradora (Segunda Outorgante)
iii) A. M. e sua esposa, M. L.; J. M. e sua esposa, M. C., na qualidade de fiadores (Terceiros Outorgantes)
Cfr. cópia se encontra junta a fls. 5 e 6 dos autos principais e cujo teor se dá aqui por reproduzido.
3. Consta do referido contrato, além do mais, a seguinte cláusula:
“Cláusula Quinta
A título excepcional e com o propósito de auxiliar a segunda outorgante desde 2009 dada a existência de um período económico difícil, a primeira outorgante concedeu àquela um “plafond”/crédito de € 25.000,00, valor esse que à presente data já se encontra preenchido com o montante de € 24.919,07, conforme melhor se pode verificar do extracto de conta-corrente da segunda outorgante e que fica a fazer parte integrante do presente contrato.
4. Segundo a Cláusula Sexta:
O “plafond” concedido pela primeira outorgante será liquidado da seguinte forma:
- € 6.250,00 (seis mil duzentos e cinquenta euros) até 31 de Agosto de 2013;
- € 6.250,00 (seis mil duzentos e cinquenta euros) até 31 de Agosto de 2014;
- € 6.250,00 (seis mil duzentos e cinquenta euros) até 31 de Agosto de 2015;
- € 6.250,00 (seis mil duzentos e cinquenta euros) até 31 de Agosto de 2016.
5. Na Cláusula Nona refere que “Os terceiros outorgantes obrigam-se pessoal e solidariamente para com o pagamento à primeira outorgante de todas as dívidas vencidas e vincendas mencionadas neste contrato, nomeadamente resultantes do “plafond” concedido e da facturação, renunciando desde já e expressamente ao benefício de excussão prévia previsto na Lei.”
6. Nos termos da cláusula oitava, “O valor “plafond” concedido à segunda outorgante, bem assim como todos os valores em dívida da mesma para com a primeira outorgante terão vencimento imediato se:
a) A segunda outorgante suspender, interromper ou por qualquer forma deixar de cumprir a regularidade da aquisição de produtos à primeira outorgante;
b) A segunda outorgante não cumprir os termos dos pagamentos acordados nas cláusulas sexta e sétima.”
7. A empresa X - Empresa de Turismo ..., Lda tem um PER (processo especial de revitalização) em curso, sendo que a exequente reclamou o seu crédito no referido processo.
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V. Fundamentação de direito

1. - Da inexistência de título executivo.

Pugnam os embargantes pela inexistência de título executivo que sustente a pretensão da exequente, argumentando que o documento apresentado não consta do elenco de títulos executivos do art. 703.º do CPC, não tendo sido, designadamente “exarado ou autenticado” como exige a alínea b) do n.º 1 deste preceito e nos termos do art. 707.º do mesmo código.
Mais defendem que, não obstante o teor do Acórdão n.º 408/2015 do Tribunal Constitucional, no caso sub judice, não pode esta salvaguarda operar, pois o exequente juntou um documento no qual não estão liquidadas quaisquer quantias.
Delineados os enunciados argumentos vejamos como decidir.
Nos termos do n.º 5 do art. 10º do CPC, “toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva”.
Define-se título executivo como “(...) o instrumento que é considerado condição necessária e suficiente da acção executiva”(1). Títulos executivos «são documentos de actos constitutivos ou certificativos de obrigações, a que a lei reconhece a eficácia de servirem de base ao processo executivo» (2).
Considera-se que o título executivo é condição necessária da execução na medida em que os actos executivos em que se desenvolve a acção apenas podem ser praticados na presença dele (nulla executio sine titulo). Sem o demandante se apresentar munido de um título executivo a execução não pode ser intentada ou, se intentada, prosseguir. Por outro lado, diz-se que o título executivo é condição suficiente da acção executiva, na medida em que na sua presença segue-se imediatamente a execução, sem ser necessário indagar previamente sobre a real existência do direito a que se refere. Presume-se a sua existência, cabendo ao executado excepcionar ou impugnar a sua formação, subsistência, validade ou eficácia, através da competente oposição à execução ou mediante embargos de executado
Mas o título, além de ser a condição necessária e suficiente da execução, define-lhe também os fins e os limites.
O objecto da execução tem de corresponder, por conseguinte, ao objeto da situação jurídica acertada no título.
O título executivo é o documento «do qual consta a exequibilidade de uma pretensão» e, consequentemente, a possibilidade de realização coactiva da correspondente prestação através de uma acção executiva.
Ele cumpre uma função constitutiva, atribuindo a exequibilidade a uma pretensão e «possibilitando que a correspondente prestação seja realizada através de medidas coactivas impostas ao executado pelo tribunal».
A exequibilidade extrínseca da pretensão é conferida pela incorporação da pretensão num título executivo, ou seja, num documento que formaliza, por via legal, «a facul­dade da realização coactiva da prestação não cumprida» (3).
O art. 703º, n.º 1, do CPC – à semelhança do art. 46º, n.º 1, do anterior CPC – enuncia as várias espécies de títulos executivos admitidos na lei, que podem servir de base a uma execução.
Títulos executivos são tão só e apenas os indicados na lei – trata-se de enumeração taxativa, sujeita à regra da tipicidade, como se constata da letra do preceito em análise “À execução apenas podem servir de base (...)”. Daí não serem válidas as convenções negociais pelas quais as partes conferem força executiva a outros documentos (4).

No caso dos autos, importa ter presente que o art. 703.º do actual Código de Processo Civil eliminou os documentos particulares do elenco dos títulos executivos, sendo tal norma aplicável às execuções instauradas a partir da entrada em vigor do novo diploma – art. 6.º, n.º 3, do diploma preambular.
De facto, enquanto o anterior Código previa como título executivo os «documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto» (art. 46º, n.º 1, al. c), do CPC), tal previsão deixou de constar, naqueles termos, do atual CPC. Este, no art. 703, n.º 1, al. c), refere tão só – no que a simples documentos particulares respeita – «os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que neste caso os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo».
Como resulta da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII – que deu origem ao novo Código – com a restrição dos títulos executivos constituídos por documentos particulares o legislador visou proteger os executados do risco de execuções injustas, “risco esse potenciado pela circunstância de as últimas alterações legislativas terem permitido cada vez mais hipóteses de a execução se iniciar pela penhora de bens do executado, postergando-se o contraditório”.
Deste modo, relativamente ao regime que então vigorava”, optou o legislador “por retirar exequibilidade aos documentos particulares, qualquer que seja a obrigação” que titulem. Ressalvam-se “os títulos de crédito, dotados de segurança e fiabilidade no comércio jurídico em termos de justificar a possibilidade de o respetivo credor poder aceder logo à via executiva” e, “ainda dentro dos títulos de crédito, consagrou a sua exequibilidade como meros quirógrafos, desde que sejam alegados no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente” (art. 703º, n.º 1, al. c) do CC).
Na sequência daquela sucessão temporal, e tendo sido controvertida a questão de saber se o indicado art. 703, n.º 1, al. c) do CPC se aplicava aos documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de uma obrigação, celebrados anteriormente à entrada em vigor do novo Código de Processo Civil (ou seja, até ao dia 31/08/2013) - o mesmo é dizer se os mesmos mantinham a força de título executivo que à data da sua celebração a lei lhes conferia -, a discussão desta questão mostra-se entretanto prejudicada, porquanto o Tribunal Constitucional, chamado a pronunciar-se sobre a mesma, no Acórdão n.º 408/2015, proferido no processo n.º 340/2015, publicado no DR, 1ª Série, n.º 201, de 14/10/2015, declarou, «com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, constante dos artigos 703.º do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, por violação do princípio da proteção da confiança (artigo 2.º da Constituição)».

Logo, atualmente não oferece dúvidas que continuam a ser dotados de força executiva os documentos particulares produzidos antes de 1 de setembro de 2013, contanto que reúnam os requisitos enunciados no art. 46º, n.º 1, al. c) do anterior CPC, quais sejam:

a) conterem a assinatura do devedor (dispensando-se a assinatura do credor);
b) importarem a constituição ou reconhecimento (5) de:
i) obrigações pecuniárias cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes (6);
ii) obrigações de entrega de coisa, móvel ou imóvel, ou de prestação de facto.

Por contraposição, os documentos particulares não autenticados não possuem eficácia executiva quanto a uma obrigação pecuniária ilíquida, se a sua liquidação exigir mais do que um simples cálculo aritmético.

No caso objeto de apreciação o título executivo, intitulado contrato de fornecimento de bens e celebrado em 20/08/2010, é um documento particular assinado, entre outros, pelos embargantes, como terceiros outorgantes, dele contando, entre o mais, que a “título excepcional e com o propósito de auxiliar a segunda outorgante desde 2009 dada a existência de um período económico difícil, a primeira outorgante concedeu àquela um “plafond”/crédito de € 25.000,00, valor esse que à presente data já se encontra preenchido com o montante de € 24.919,07, conforme melhor se pode verificar do extracto de conta-corrente da segunda outorgante e que fica a fazer parte integrante do presente contrato”, cujo “plafond” concedido será liquidado, nos montantes e prazos especificados na cláusula 6ª, e que se vencerão imediatamente se a segunda outorgante suspender, interromper ou por qualquer forma deixar de cumprir a regularidade da aquisição de produtos à primeira outorgante ou não cumprir os termos dos pagamentos acordados nas cláusulas sexta e sétima.
Por sua vez, os embargantes, na qualidade de fiadores, obrigaram-se pessoal e solidariamente com o pagamento à primeira outorgante de todas as dívidas vencidas e vincendas mencionadas no dito contrato, nomeadamente resultantes do “plafond” concedido e da facturação, tendo desde logo expressamente renunciado ao benefício de excussão prévia previsto na lei.
E, contrariamente ao alegado pelos recorrentes, as prestações tendo por objecto o reembolso do plafond concedido – sendo de resto as únicas reclamadas na execução –, mostram-se perfeitamente liquidadas (quantificadas) e delas consta as datas dos respetivos vencimentos, pelo que carece de total fundamento a imputação da falta de liquidação de tais quantias.
Diverso seria se, além das prestações referentes ao plafond já concedido, a exequente peticionasse o pagamento coercivo de outras quantias não liquidadas no título, nomeadamente o da facturação referente à aquisição de outros produtos à exequente entretanto verificada.
Acresce que, face ao disposto no art. 781º do Cód. Civil, ainda que se deva considerar que o imediato vencimento de todas as prestações e a constituição em mora relativamente às mesmas, pressupõe a prévia interpelação do devedor para cumprir a prestação nesses termos (na sua totalidade), nada obsta a que as partes, ao abrigo da liberdade contratual que a lei lhes faculta, regulem a situação em termos diversos, dispensando a realização de tal interpelação.
Assim determinando-se no aludido contrato que o incumprimento do pagamento nos termos acordados nas cláusulas sexta e sétima determina, de imediato, o vencimento de todas prestações acordadas do plafond concedido, mais se determinando que, com esse incumprimento, se considera em mora a globalidade do crédito, parece seguro afirmar que as partes outorgantes dispensaram a realização de qualquer interpelação como condição do vencimento da totalidade do crédito e da respetiva constituição em mora (que também não foi questionada em sede de oposição à execução).
Assim, mostrando-se o referido documento assinado pelos devedores/embargantes e comportando o mesmo o reconhecimento de uma obrigação pecuniária já pré-existente e determinada – no caso, o preenchimento do plafond com o montante de € 24.919,07 –, que corresponde à obrigação exequenda, forçoso será concluir pela força executiva do título dado à execução, por reunir as condições previstas no pretérito art. 46.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil.
Improcede, por isso, este fundamento da apelação.
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2.ª – Efeitos da pendência do processo especial de revitalização (PER) e da (eventual) homologação do plano de recuperação relativamente aos condevedores e garantes do devedor, designadamente se deverá operar a extinção da instância executiva por o exequente ter reclamado créditos no processo especial de revitalização (PER) da empresa X.
Na sentença impugnada foi decidido que o plano de revitalização não tem a virtualidade de alterar a obrigação do fiador da sociedade a revitalizar, pelo que não estava vedado à exequente instaurar a execução contra os obrigados solidários.
Malgrado reconhecerem que se constituíram fiadores da segunda outorgante no contrato de fornecimento, no qual se obrigaram pessoal e solidariamente nos termos da cláusula nona do referido contrato e do disposto no art. 512.º do Código Civil, renunciando ao benefício de excussão prévia, sustentam os recorrentes que a exequente aprovou o PER da empresa X, segunda outorgante, pelo que, tendo reclamado créditos no aludido PER, não lhe é lícito executar também os fiadores, sob pena de se verificar uma situação de enriquecimento sem causa previsto no art. 473.º do CC.
Vejamos como decidir.
A fiança é o vínculo jurídico pelo qual um terceiro (fiador) se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito deste sobre o devedor.
É o contrato pelo qual uma pessoa se obriga para com o credor a cumprir a obrigação de outra pessoa, no caso de esta o não fazer.
Prescreve o art. 627º, n.º 1, do Cód. Civil que o fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor.

Como se explicita no Ac. do STJ de 4/12/2003 (relator Salvador da Costa), in www.dgsi.pt., a obrigação do fiador derivada do contrato de fiança é de natureza pessoal ou fidejussória, no sentido de que consiste na assunção pessoal por um terceiro, com todo o seu património, da obrigação de satisfação, a título subsidiário, do direito de crédito do credor.
Trata-se, pois, de uma garantia pessoal das obrigações, por via da qual o fiador vincula todo o seu património à satisfação do direito do credor.
Ao contrário do que sucede com o terceiro que constitui uma hipoteca ou um penhor sobre os seus bens a favor do credor, o fiador é verdadeiro devedor do credor. A obrigação que ele assume é a obrigação do devedor. Após a constituição da fiança passa assim a haver uma obrigação principal, a que vincula o (principal) devedor, por cima dela, a cobri-la, tutelando o seu cumprimento, uma obrigação acessória, a que o fiador fica adstrito (7).
Deste modo, à garantia patrimonial que incide sobre os bens do devedor acresce uma outra garantia patrimonial sobre os bens do fiador; o credor passa a ter como garantia de cumprimento dois patrimónios: o do devedor e o do fiador.
A fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor (art. 634º do CC). Assim, salvo estipulação em contrário, a responsabilidade do fiador molda-se pela do devedor principal (art.º 631º, n.º 1 do CC) e abrange tudo aquilo a que ele está obrigado, não só a prestação devida, mas também a reparação dos danos resultantes do incumprimento culposo (art.º 798º do CC) ou a pena convencional que porventura se haja estabelecido (art.º 810º do CC).
São duas as características fundamentais deste instituto: a acessoriedade e a subsidiariedade.
Relativamente à primeira, sendo imprescindível pois faz parte da sua própria natureza, diz-nos o n.º 2 do art. 627º do CC que a “obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor”.
Esta especificidade, em termos gerais, quer significar que a obrigação do fiador se molda sobre a obrigação do devedor principal, assim como a sua subsistência, desde o nascimento à extinção, dependendo igualmente da subsistência desta (8).
O terceiro assume uma obrigação perante o credor, obrigação (de garantia) esta que se encontra numa relação de dependência ou de subordinação em relação à obrigação (garantida) do devedor, pois depende dela geneticamente – a invalidade do negócio principal acarreta a invalidade da fiança (art. 632º, n.º 1 do CC) –, bem como depende dela funcionalmente – o fiador pode opor ao credor os meios de defesa que competem ao devedor (art. 637º, n.º 1 do CC) – e por último revela também uma dependência extintiva, já que extinta a obrigação principal, extinta fica a fiança (art. 651º do CC) (9).
A característica da acessoriedade da fiança reflete-se no respetivo regime legal, designadamente no facto de não poder exceder o da obrigação principal ou afiançada nem o ser em condições mais onerosas, de a sua validade depender da validade da obrigação principal, de o fiador poder opor ao credor os meios de defesa que competem ao devedor, salvo se forem incompatíveis com a sua obrigação do fiador e no facto de a extinção desta implicar a extinção da fiança (arts. 631º, n.º 1, 632º, n.º 2, 637º, n.º 1, e 651º, todos do Código Civil).
A subsidiariedade da fiança concretiza-se no benefício da excussão (art. 638º do CC), com tradução processual, relativa à ação executiva, no art. 745º do CPC, que permite ao fiador/garante opor-se à penhora dos seus bens, enquanto não estiverem excutidos – esgotados em sede de execução – todos os bens do devedor com vista à satisfação do interesse do credor.
Porém, o fiador poderá renunciar ao benefício da excussão (art. 640º do CC), e, nesse caso, retirar à fiança a característica subsidiária (pelo que esta não se trata duma característica essencial do instituto). Sempre que assim suceda, a obrigação assumida pelo fiador não é subsidiária da dívida principal, equiparando-se, do ponto de vista do credor, a um verdadeiro devedor solidário. Deste modo, o credor pode exigir a totalidade da dívida ao fiador ou ao devedor (art. 519º do CC). E uma vez cumprida a obrigação fica o fiador sub-rogado nos direitos do credor, na medida em que estes foram por ele satisfeitos (art. 644º do CC). Operando a sub-rogação, fica o fiador investido nos direitos do credor, já que a sub-rogação consiste numa transmissão singular do crédito, ao contrário do direito de regresso.
No caso, tendo-se a devedora principal, a sociedade X - Empresa de Turismo ..., Lda, apresentado a PER (processo especial de revitalização), no qual a exequente reclamou o seu crédito, haverá que apurar se a pendência desse processo e a eventual aprovação do plano de recuperação terão alguma influência (suspensiva, impeditiva ou extintiva) no prosseguimento dos autos de execução contra os executados/embargantes, na qualidade de fiadores.
Muito resumidamente, dir-se-á que o processo especial de revitalização traduz-se num instrumento processual, sobretudo de cariz negocial, criado, e a desenvolver-se, num contexto económico difícil, passível de suportar a viabilização da empresa, assentando a estabelecida eficácia do acordo, para além da esfera dos que nele intervieram, na aprovação por uma maioria que seja apta a vincular a generalidade dos credores (10).
Esse tipo de processo, segundo o disposto no art. 17º-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante, abreviadamente, designado CIRE), destina-se a permitir à empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes um acordo conducente à sua revitalização (11).
Iniciado o procedimento a requerimento da empresa e de, pelo menos, um dos credores, o juiz do tribunal competente para declarar a insolvência do devedor nomeia um administrador judicial provisório [art. 17º-C, n.ºs 1 e 3, al. a) do CIRE] (12), seguindo-se a reclamação de créditos (17º-D, nº 2 do CIRE), as negociações destinadas à elaboração do plano de recuperação participadas, orientadas e fiscalizadas pelo administrador provisório (art. 17º-D, n.º 9 do CIRE) e, concluídas estas com a aprovação do plano, este é submetido ao juiz que o homologa ou recusa a sua homologação, por aplicação, com as necessárias adaptações, das regras aplicáveis ao plano de insolvência (art. 17º-F do CIRE).
Logo que seja feita a comunicação, pelo requerente, ao juiz do tribunal competente para declarar a sua insolvência de que é sua intenção iniciar as negociações conducentes à sua recuperação, impõe-se, ao juiz, de imediato, prolatar despacho a nomear administrador judicial provisório, sendo que neste mesmo momento fica impedida a instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, ficam suspensas, quanto à empresa devedora, as ações em curso com idêntica finalidade (efeitos impeditivo e suspensivo) - art. 17º-E, n.º 1 do CIRE.
No conceito de “ações para cobrança de dívidas contra a empresa” estão, quanto a nós, abrangidas não apenas as ações executivas para pagamento de quantia certa, mas também as ações declarativas em que se pretenda obter a condenação do devedor no pagamento de um crédito que se pretende ver reconhecido (13), ou seja, todas as ações que possam atingir o património do devedor.
Se o plano de recuperação vier a ser aprovado e homologado, aquelas mesmas ações, cuja suspensão foi imperativamente determinada, extinguem-se (efeito extintivo), salvo quando o plano preveja a sua continuação (art. 17º-E, n.º 1, parte final, do CIRE).
Assim, diferentemente da suspensão das ações em curso, a extinção não se apresenta como imperativo para aquelas mesmas ações em que se pretendia cobrar uma dívida de qualquer ordem ao devedor, podendo dar-se a possibilidade de uma ação prosseguir os seus termos depois de findas as negociações e depois de aprovado e homologado o plano de revitalização (14).
Nada é dito na lei, porém, relativamente aos condevedores e garantes dos credores da empresa sujeita a PER.
Com efeito, dos arts. 17º-A a 17º-I do CIRE, que regulam o processo especial de revitalização, não consta norma equivalente à que o n.º 4 do art. 217º do CIRE contém para a homologação do plano de insolvência, no qual se estabelece: “As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas poderão agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos”.
Importa, por isso, que tenhamos presente os efeitos processuais associados à pendência do PER, o âmbito subjetivo dos efeitos produzidos, bem como os efeitos da homologação do plano de recuperação relativamente aos condevedores e garantes do devedor.
Na verdade, um dos pontos que não tem merecido convergência (na doutrina e jurisprudência) é precisamente o dos efeitos do PER quanto às acções propostas contra os condevedores e garantes.
Podemos desde já adiantar que o entendimento maioritário nessa matéria aponta no sentido de o despacho de nomeação do administrador judicial provisório não afetar o prosseguimento da ação quanto aos demandados, designadamente os terceiros condevedores e garantes de devedor (15).

No que respeita aos efeitos processuais da abertura do PER e do âmbito subjetivo da sua aplicação, como resulta do artº 17º-E, n.º 1, do CIRE, o despacho de nomeação do administrador judicial provisório obsta à instauração ou à prossecução de acções para cobrança “contra o devedor” (efeitos impeditivo e suspensivo). Trata-se, portanto de uma norma restritiva do direito de ação e, por conseguinte, de uma exceção ao princípio geral do direito a exigir judicialmente o cumprimento da obrigação, estabelecido no art. 817º do CC, que o legislador, no PER, dirigiu apenas a favor do devedor, protegendo-o (16).
Por isso, estão fora da eficácia do PER todos os demais devedores ou garantes das obrigações objeto do PER, à semelhança do que sucede com o art. 88º, n.º 1, do CIRE, como sejam, nas obrigações plurais, os condevedores solidários ou parciários; nas obrigações com garantia, os terceiros garantes [tanto garantes principais (o avalista ou o obrigado por garantia autónoma), como garantes subsidiários (o fiador) e os garantes reais]. Isto porque se trata de terceiros em relação ao âmbito de eficácia do PER, pois não são eles quem está em situação económica difícil ou em situação de insolvência para efeitos daquele procedimento.
Nesta tarefa interpretativa, que não se pode dissociar da letra da lei, tal como impõe o art. 9º, n.º 2, do Código Civil, as hipóteses regulamentadas e as alocuções referidas no texto legal reportam-se exclusivamente à pessoa do devedor e não a terceiros, os quais não podem ser beneficiários – diretos ou não – relativamente a providências tomadas num plano especial de revitalização por não serem partes ou sujeitos processuais interessados (17).
Deste modo, ao abrigo daquele princípio geral do art. 817º do CC, a obrigação pode ser fundamento de exigência judicial de cumprimento e continua a ser exigível para efeitos do art. 713º do CPC, perante os terceiros devedores e garantes.
Este entendimento mostra-se reforçado pelo disposto no Dec. Lei n.º 26/2015, de 6/02, que alterou o SIREVE, o CIRE e o CSC. Este diploma veio alterar o conteúdo do art. 11º, n.º 2, do SIREVE, tornando extensíveis aos garantes alguns dos benefícios que antes eram privativos do devedor, sendo que a alteração substancial prendeu-se com a extensão da suspensão das ações executivas para pagamento de quantia certa ou outras ações destinadas a exigir o cumprimento das obrigações aos “respetivos garantes relativamente às operações garantidas”.
Todavia, essa alteração firmada no art. 11º, n.º 2, do SIREVE, não se refletiu no art. 17º-E, n.º 1, do CIRE, que se manteve inalterado. Daqui se retira o argumento de que o legislador pretendeu conferir diferentes âmbitos às normas, reforçando que, no PER, o regime do art. 17º-E, n.º 1, se aplica apenas à relação material com o devedor, não se estendendo às relações com os condevedores e terceiros garantes (18).

Portanto, no plano processual não existem obstáculos a que os terceiros devedores sejam demandados ou continuem a ser demandados em ação de cobrança, declarativa ou executiva. Por isso as acções e as execuções suspensas contra o devedor submetido a PER podem prosseguir contra outros executados. De igual modo, pode o credor deduzir reclamação de créditos no PER e, simultaneamente, intentar execução contra outros devedores, como condevedores (fiadores), avalistas e terceiros garantes, em geral (19).
Poder-se-ia, porém, objetar à conclusão antecedente invocando para o efeito que a acessoriedade da fiança (art. 627º, nº 2, do CC) e do aval (artº 32º §1º da LULL) impediriam o acionamento dos respetivos devedores e garantes: estando a obrigação do devedor provisoriamente despida de acionabilidade judicial, ou seja, suspensa (art. 17º-E, n.º 1, do CIRE) também a obrigação do condevedor e do garante não poderia ser judicialmente exigida, já que os condevedores e garantes respondem da mesma maneira que o devedor principal.
Salvo o devido respeito, não é assim. A suspensão da acionabilidade apenas é dirigida ao próprio devedor e não à obrigação. Não se compreenderia que o condevedor (solidário ou parciário) do requerente do PER pudesse ser acionado pela própria obrigação e o fiador ou o avalista, que têm uma obrigação acessória daquela, não o pudessem ser.
Assim, tal como as acções executivas contra o insolvente podem prosseguir contra o fiador (20), de igual modo as acções de cobrança, declarativa ou executiva, contra o devedor requerente de plano de revitalização podem prosseguir contra o fiador.

Por fim, a questão relativa à execução de terceiros condevedores e garantes de devedor que se submeteu a um PER que foi homologado judicialmente levanta identicamente divergências na doutrina e na jurisprudência.

Resumidamente, podemos sintetizar duas teses: uma que defende que as medidas adotadas no PER se estendem aos condevedores e garantes do devedor (21); outra, que sustenta que as medidas adotadas no PER não se estendem àqueles terceiros (22).
Propendemos a considerar que, uma vez aprovado o plano de revitalização, essa decisão judicial não tem efeitos sobre os não credores (23) – condevedores e garantes. É ineficaz relativamente a eles.
Esta solução é conforme aos princípios sobre os limites do caso julgado que envolva parte de uma pluralidade de credores: o caso julgado formado entre o credor e um dos devedores não é oponível aos restantes devedores ou ao fiador, como resulta dos arts. 522º, 635º e 717º, n.º 2, do CC.
Portanto, a decisão judicial apenas tem efeitos materiais na parte respeitante ao devedor do PER, sendo relativamente ineficaz quanto aos terceiros.
Deste modo, as vicissitudes impostas à dívida pelo plano de recuperação (moratórias, períodos de carência, contagem de juros de mora, extinção parcial da dívida), apenas vinculam os credores e o devedor.
Em consequência, a dívida, inalterada, pode ser feita valer perante condevedores e garantes, nas condições reguladas nas normas substantivas. Se a obrigação garantida (e objeto de revitalização) estava incumprida, incumprida continua, pelo mesmo montante, condições e garantias.
Assim, e apesar da acessoriedade, a responsabilidade do fiador mantém-se quanto ao montante e quanto às condições da dívida, não sendo aplicável o art. 651º do CC, porquanto não houve extinção, ainda que parcial, da obrigação principal. A dívida é exequível perante o fiador, nos termos seguintes: se houver renúncia ao benefício da excussão prévia pode ser executada a sua totalidade; se não houver renúncia, pode ser executada na parte reduzida pelo plano (24).
E mesmo para quem defenda que a norma do n.º 4 do art. 217º do CIRE é aplicável, com as necessárias adaptações, por interpretação extensiva, ao plano de recuperação (25) (26), sempre se diria que o plano de recuperação aprovado e homologado no processo de revitalização só diz respeito e só vincula os credores e o devedor que se apresentou à revitalização (ao respetivo processo) e que o aí acordado (ou venha a ser acordado) quanto à dívida deste não é extensível às obrigações dos condevedores nem dos garantes, nem por estes invocável, permanecendo as obrigações destes inalteradas (27).
De facto, os condevedores e garantes não estão sob tutela do plano de recuperação e, por isso, este só vincula os credores relativamente ao devedor requerente, não sendo suscetível de regular nem de afetar a relação entre os credores e os condevedores e garantes. Se assim não fosse, no caso das garantias, frustrar-se-ia o seu escopo, pois a sua constituição tem como função cobrir riscos deste género. Ademais, só esta solução estará de acordo com o espírito do PER, tendo em conta que a aplicação do regime imposto no art. 17º-E, n.º 1, do CIRE aos condevedores e terceiros garantes consubstanciaria uma restrição injustificada dos direitos dos credores, pois aqueles sujeitos não reúnem as condições que legitima o recurso ao PER para gozarem de tais benefícios.

Em suma, a proibição de instauração de «acções para cobrança de dívidas», declarativas ou executivas, a suspensão de tais acções e a sua eventual extinção prende-se exclusivamente com o devedor, mantendo-se incólumes os direitos dos credores sobre os condevedores e terceiros garantes (28).

Daqui decorre que, tendo os executados/fiadores renunciado ao benefício de excussão prévia e obrigando-se pessoal e solidariamente para com o pagamento à primeira outorgante de todas as dívidas vencidas mencionadas no contrato de fornecimento, nomeadamente as resultantes do “plafond” já concedido, a eventual aprovação/homologação do PER, para pagamento da dívida, de que beneficia a devedora principal, não é invocável/oponível pelos condevedores (fiadores), aqui executados, nada impedindo o prosseguimento da execução contra os ora embargantes.
Donde seja de sufragar o juízo formulado na sentença recorrida de que “o plano de revitalização não tem a virtualidade de alterar a obrigação do fiador da sociedade a revitalizar”, pelo que não está vedado à exequente instaurar a execução contra os obrigados solidários.
É também inequívoco que o credor não pode receber de ambos (devedor e fiador), em dobro, o crédito. Todavia, esta condição – o pagamento da obrigação principal ou garantida –, indispensável à extinção da obrigação (de garantia) exequenda, não se mostra demonstrada, pelo que é destituído de total fundamento a invocação do instituto do enriquecimento sem causa previsto no art. 473º do CC.
Improcede, pelo exposto, o presente recurso na totalidade.
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As custas do recurso, mercê do princípio da causalidade, são integralmente da responsabilidade dos recorrentes, atento o seu integral decaimento (art. 527º do CPC).
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Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC):

I – Por força do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 408/2015 (DR, 1ª Série, n.º 201, de 14/10/2015), que declarou, «com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, constante dos artigos 703.º do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, por violação do princípio da proteção da confiança (artigo 2.º da Constituição)», atualmente não oferece dúvidas que continuam a ser dotados de força executiva os documentos particulares produzidos antes de 1 de setembro de 2013, que reúnam os requisitos enunciados no art. 46º, n.º 1, al. c) do anterior Código de Processo Civil.
II – A proteção que decorre do art. 17º-E do CIRE, consistente na proibição de instauração de «acções para cobrança de dívidas», declarativas ou executivas, a suspensão de tais ações e a sua eventual extinção, tem como destinatário e beneficiário exclusivo a pessoa do devedor, requerente do processo especial de revitalização, mantendo-se incólumes os direitos dos credores sobre os condevedores (fiadores) e terceiros garantes.
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VI. DECISÃO

Perante o exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas da apelação a cargo dos apelantes (art. 527º do CPC).
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Guimarães, 17 de outubro de 2019

Alcides Rodrigues (relator)
Joaquim Boavida (1º adjunto)
Paulo Reis (2º adjunto)


1. Cfr. Anselmo de Castro, A acção Executiva Singular, Comum e Especial, Coimbra Editora, 1977, pág. 14.
2. Cfr. Prof. Manuel de Andrade, Noções Elementares da Processo Civil, Reimpressão, Coimbra Editora, 1993, pp. 58-59.
3. Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in Acção Executiva Singular, 1998, pp. 13, 14, 29 e 63/64.
4. Cfr. Eurico Lopes Cardos, Manual da Acção executiva, 3ª ed. (Reimpressão) Almedina, 1992, p., 22 e Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de execução, Almedina, 1999, p. 20.
5. No referido regime, e tal como acontecia com os documentos autênticos ou autenticados, o documento particular era título executivo tanto quanto formalizava a constituição duma obrigação, como quando o devedor nele reconhecia uma dívida preexistente. O mesmo é dizer que o citado normativo conferia exequibilidade aos documentos particulares, assinados pelo devedor, constitutivos ou recognitivos de obrigações (cfr. José Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da Reforma, 4ª ed., Coimbra Editora, 2004, pp. 57/59).
6. Segundo Remédio Marques, compreendem-se aqui as obrigações pecuniárias cujo valor já esteja quantitativamente fixado – rectius, seja líquido –, ou seja suscetível de o vir a ser. - cfr. Curso de Processo Executivo Comum À Face do Código Revisto, Almedina, p. 70.
7. Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 4ª ed., Almedina, p 467.
8. Cfr. L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito Das Garantias, 2017, 2ª Ed., Almedina, P. 87.
9. Cfr. Calvão da Silva, Garantias acessórias e garantias autónomas, Estudos de Direito Comercial (Pareceres), Almedina, 1996, p 334.
10. Cfr. Ac. do STJ de 17/11/2017 (Relatora Ana Luísa Geraldes), in www.dgsi.pt.
11. Entende-se como situação económica difícil a empresa que enfrenta dificuldades sérias para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito (art. 17º-B do CIRE).
12. Por referência ao regime anterior à entrada em vigor do Dec. Lei n.º 79/2017, de 30/06, que era o aplicável à data da prática dos factos em apreço.
13. Cfr., no sentido deste entendimento mais amplo, que corresponde à posição maioritária da jurisprudência e da doutrina, entre outros, Acs. do STJ de 26/11/2015 (relatora Ana Luísa Geraldes), in www.dgsi.pt.; Ac. RL de 25/06/2015 (relator Ilídio Sacarrão Martins), disponíveis in www.dgsi.pt.; na doutrina, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2018, Almedina, pp. 388/393, Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, reimpressão, 3ª ed., Quid Iuris, Lisboa, 2015, pp. 164 e segts., Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2013, Almedina, p. 64, Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2017, 2ª ed, Almedina, pp. 521/522; Fátima Reis Silva, Processo Especial de Revitalização Notas práticas, p. 53; em sentido diverso, propugnando por um entendimento restritivo, L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Recuperação de Empresas, O Processo Especial de Revitalização, 2017, Almedina, pp. 63/65 e Maria do Rosário Epifânio, O Processo Especial de Revitalização, 2016, Almedina, pp. 32/34.
14. Cfr. Ac. da RP de 3/03/2016 (relator Ataíde das Neves), in www.dgsi.pt..
15. Cfr. Catarina Serra, Processo Especial de Revitalização na Jurisprudência, 2017, 2ª ed., 54.
16. Cfr. Rui Pinto, A Eficácia do Processo Especial de Revitalização sobre os terceiros devedores e garantes, in Novos Estudos de Processo Civil, 2017, pp. 49/80, cuja fundamentação seguiremos de perto na exposição que segue.
17. Cfr. Ac. da RE de 15/11/2016 (relator José Tomé de Carvalho), in www.dgsi.pt..
18. Cfr. Soraia Filipa Pereira Cardoso, Processo Especial De Revitalização - O Efeito de Stand Still, Almedina, p. 114.
19. Cfr., neste sentido, Ac. da RG de 17/12/2013 (relator Edgar Gouveia Valente), Ac. da RC de 03/06/2014 (relatora Catarina Gonçalves), Ac da RE de 23/10/2014 (relator Paulo Amaral), Ac. da RE de 25/09/2014 (relator Mata Ribeiro) e Ac. da RL de 06/06/2019 (relator Adeodato Brotas), todos disponíveis in www.dgsi.pt
20. Cfr. Ac. da RC de 6/03/2007 (relator Ferreira de Barros), in www.dgsi.pt.
21. Cfr., neste sentido, Luís M. Martins, Processo de Insolvência, 3ª edição, pp. 466 a 468; Bertha Parente, Da aplicação das normas relativas ao processo de insolvência ao plano de recuperação conducente à Revitalização, II Congresso de Direito da Insolvência, 2014, p. 275; Catarina Peixoto, A Responsabilidade do Avalista Pelas Dívidas do Insolvente Por ele Afiançadas no Âmbito da Reestruturação dos Créditos, Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito de Universidade de Coimbra, 2017, https://eg.uc.pt/bitstream/10316/83853/1/Catarina%20Peixoto%20Disserta%C3%A7%C3%A3o%20de%20Mestrado.pdf; Cristiana Gonçalves Pereira (Efeitos Sobre os Avalistas da Reestruturação de Créditos Operada por Meio de Recuperação Judicial, Dissertação de Mestrado apresentada na Universidade Católica Portuguesa, Junho de 2015, https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/18679/1/tese%20-%20vers%C3%A3o%20final.pdf.
22. Cfr., neste sentido, Carvalho Fernandes/João Labareda Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, reimpressão, 3ª ed., Quid Iuris, Lisboa, 2015, p. 161; Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6ª ed., Almedina, p. 285, (manifesta dúvidas que a oponibilidade das modificações operadas no PER possa aproveitar aos garantes da dívida modificada); Rui Pinto, Eficácia do Processo Especial de Revitalização Sobre os Terceiros Devedores e Garantes, Novos Estudos de Processo Civil, Petrony, 2017, p. 66; Cinthia Souza Camargos, O Processo Especial de Revitalização e a Execução de Terceiros Garantes, Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito de Lisboa, abril de 2017, https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/31905/1/ulfd133647_tese.pdf.; Ac. do STJ de 04/05/2017 (relator Olindo Geraldes), in www.dgsi.pt.
23. Já quanto as credores vale a regra prescrita no n.º 10 do art. 17º-F do CIRE, nos termos da qual a “decisão de homologação vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no n.º 4 do artigo 17.º-C (…)”.
24. Cfr., Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, PER - O Processo Especial de Revitalização, Comentários aos artigos 17.º -A a 17.º -I do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Coimbra Editora, 2014, pp. 60/62.
25. Cfr. Ac. da RL de 2/5/2019 (relator António Manuel Fernandes dos Santos), in www.dgsi.pt., que contém uma enunciação exaustiva das posições delineadas na doutrina sobre o tema.
26. Como explicita Isabel Menéres Campos, “o preceituado no nº 4 do art. 217º do CIRE, por contraposição à anterior norma do art. 63º do CPEREF, tem a clara intenção de estimular os credores a aprovarem um plano, não lhes tolhendo os direitos contra os co-obrigados” e que “aplicando a mesma lógica de raciocínio, pensamos que a intenção do legislador, ao consagrar o processo de revitalização, não foi a de impedir, diminuir ou extinguir as garantias pessoais de que os seus créditos beneficiavam”. - cfr. Isabel Menéres Campos, em anotação constante dos Cadernos de Direito Privado, nº 46, Abril/Junho de 2014, a pgs. 61 e segs., e o Ac. da RP de 23/10/2018 (relatora Alexandra Pelayo), in www.dgsi-pt.
27. Cfr. Ac. RG de 24.9.2015 (relator Jorge Teixeira), disponível in www.dgsi-pt.
28. Cfr. Soraia Filipa Pereira Cardoso, obra citada, p. 115/116.