Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2122/21.5T8VCT.G1
Relator: FRANCISCO SOUSA PEREIRA
Descritores: SUCESSÃO DE EMPRESAS
TRANSMISSÃO DE ESTABELECIMENTO
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I – Passando uma sociedade comercial a explorar um estabelecimento de óptica que antes era explorado por outra entidade, continuando – por mais de dois meses - a trabalhadora que aí prestava trabalho a exercer as mesmas funções, com os mesmos horários, utilizando os mesmos instrumentos de trabalho, nas mesmas condições, ocorreu transmissão do estabelecimento nos termos a para os efeitos previstos no art. 285.º do CT, ainda que entretanto o negócio que foi encetado entre aquelas duas entidades, e que esteve na base da tomada de exploração do estabelecimento pela nova entidade, se tenha gorado.
II - Não é inconstitucional a norma constante do n.º 1 do art. 285.º do CT, quando interpretada no sentido de ao adquirente/trespassário de um estabelecimento ser imposta a transmissão da posição do empregador nos contratos de trabalho dos respectivos trabalhadores, sem possibilidade de oposição daquele.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

AA, com os demais sinais nos autos, intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Óptica ..., Lda e contra ...1 - Ópticas, Lda, ambas nos autos também melhor identificadas, pedindo que seja declarada a ilicitude do despedimento e sejam as rés condenadas:

A 2ª R. no pagamento:
- da quantia de €17.040,63 a título de indemnização em substituição da reintegração;
- da quantia a determinar a título de retribuições, incluindo proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal que a A. deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da presente sentença;
- da quantia de €134,68 a título de retribuição do mês de Março de 2021;
- da quantia de €394,51 a título da retribuição do mês de Abril de 2021;
- da quantia de €1.330,00 a título de férias e respectivo subsídio vencidos a 1/1/2021;
- da quantia de €665,00 a título de proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal pelo trabalho prestado no ano de 2021;
A 1ª R. no pagamento solidário da supra referida quantia de €1330,00 a título de férias e subsídio de férias;
- todas estas quantias acrescidas de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa de 4%.

Para tanto e em síntese, alega:
A 1.ª ré “Óptica ..., Lda” explorava um estabelecimento de óptica, situado no ..., loja nº ...9, em ....
Em 14/06/2004, admitiu a autora ao seu serviço, por contrato escrito, sem termo, para, sob a sua direcção, autoridade e integrada na sua organização, exercer funções de caixeira ajudante de primeiro ano naquele estabelecimento, com um período de trabalho semanal de 40 horas, distribuídas de segunda a sábado, e mediante o pagamento da retribuição mensal que indica.
Em 08/02/2021 passou a exercer as mesmas funções, no mesmo estabelecimento, com os mesmos horários, utilizando os mesmos instrumentos de trabalho, nas mesmas condições, ao serviço da 2.ª ré.
Foi o legal representante da 2.ª ré, BB, quem pagou à autora a retribuição do mês de Fevereiro, no montante de €750,00, sendo que a 2.ª ré proporcionou formação à autora na área de lentes para óculos, a qual ocorreu no dia 01/03/2021.
Em 05/03/2021 entrou de baixa médica até 16/04/2021, data em que retomou o trabalho.
Em .../.../2021 faleceu a mãe da autora e, apesar de estar a faltar justificadamente devido ao falecimento da mãe, em .../.../2021 foi convocada pela 2.ª ré para uma reunião, na qual o Sr. BB, em representação da ré, lhe disse que não voltasse mais ao trabalho e que o estabelecimento ia encerrar, pedindo-lhe ainda a chave do estabelecimento.
Apesar disso, após o período de cinco dias de ausência pelo falecimento da mãe, no dia .../.../2021 a autora dirigiu-se ao estabelecimento para trabalhar, mas o estabelecimento estava encerrado.

Tendo-se realizado audiência de partes, malogrou-se, nessa sede, a conciliação entre elas.

Regularmente notificadas para o efeito, as rés contestaram as pretensões contra si formuladas.
Alega/sustenta a 1.ª ré, em síntese, que na sequência de um ajustado contrato de “trespasse”, foram os trespassários, BB e CC e mulher – os quais, e nomeadamente o BB, se apresentaram em nome pessoal e não como representantes de qualquer sociedade comercial - que, a partir do início (dia 8) de Fevereiro de 2021, passaram a explorar o estabelecimento comercial onde trabalhava a aqui autora.

Por sua vez a 2.ª ré, em resumo, alega que nunca admitiu ao seu serviço, mediante contrato de trabalho, a aqui autora, pelo que é parte ilegítima na presente acção, e que não corresponde minimamente à verdade o que consta dos artigos 6º e seguintes da petitção inicial, pois nunca a A. trabalhou por conta da Ré ...1 - Ópticas, Lda, também não corresponde à verdade que esta tenha alguma vez pago à A. qualquer quantia a título de retribuição, como é também falso que esta ré tenha proporcionado à A. qualquer formação e também é evidente que esta ré jamais poderia ter procedido ao despedimento da autora.
Concluiu pugnando pela respectiva absolvição.

Prosseguiu a acção, tendo sido proferido despacho saneador no âmbito do qual se julgou improcedente a deduzida expecção da ilegitimidade passiva e, a final, sido proferida sentença com o seguinte dispositivo (para o que aqui importa considerar):

“Condenar a R. “”...1 - Ópticas, Lda” a reconhecer a ilicitude do despedimento da A. e a pagar-lhe:
- a quantia a determinar a título de retribuições, incluindo proporcionais de ferias, subsídio de férias e de Natal, que a A. deixou de auferir desde 14/6/2021 até ao trânsito em julgado desta sentença;
- a quantia de €15.359,55 a título de indemnização pelo despedimento ilícito;
- a quantia de €134,68 por cinco dias de trabalho no mês de Março;
- a quantia de €394,51 de retribuição do mês de Abril;
- a quantia de €665,00 de proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal correspondentes ao tempo de trabalho do ano da cessação do contrato.
Condenar solidariamente ambas as RR. no pagamento à A.:
- da quantia €1.330,00 pelas férias e subsídio de férias vencidos no dia 1/1/2021;
- juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, sobre os montantes de que são responsáveis.”

Inconformada com esta decisão, dela veio a 2.ª ré, ...1 - Ópticas, Lda, interpor o presente recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam mediante a formulação das seguintes conclusões (transcrição):

“I. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal a quo, a qual decidiu pela procedência da acção proposta pela A., assim condenando a Ré e ora Recorrente.
II. salvo o devido respeito, não pode a decisão proferida pelo Tribunal a quo merecer o acolhimento do Tribunal ad quem, pois a mesma enferma de notório erro no julgamento da matéria de facto,
III. bem assim como de um manifesto erro na aplicação do direito vigente ao caso vertente, uma vez que leva imanente uma imperfeita compreensão do regime substantivo disposto no art. 285.º do Código do Trabalho e do conceito de transmissão de empresa ou estabelecimento aí consagrado.
IV. Ademais, o Tribunal a quo não leva em linha de conta a fricção considerável e pertinente que resulta do cotejo entre a norma constante do art. 285.º/1 do CT e o direito fundamental à livre iniciativa privada, consagrado no art. 61.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
V. Impõe-se, assim, a revogação da sentença proferida pelo Tribunal a quo, substituindo-se a mesma, integralmente, por decisão que determine a absolvição da Ré e ora Recorrente da instância.
VI. O fundamento específico de recorribilidade encontra-se previsto no art. 79.º, a), sendo que resultaria, igualmente, do art. 79.º-A, n.º 1, al. a).
VII. A A. intenta a presente acção tendo como causa de pedir um seu alegado despedimento levado a cabo pela 2.ª Ré e ora Recorrente, despedimento esse configurado como sendo ilícito, o qual teria ocorrido em Maio de 2021.
VIII. Dos factos alegados pela A. depreende-se, ainda, conforme identificou a Sentença ora recorrida, que aquela se encontrava vinculada à 2.ª Ré, através de um contrato de trabalho,
IX. porquanto a empresa ou estabelecimento perante o qual a A. se havia originalmente vinculado, em 2004, pertencente à 1.ª Ré, teria, entretanto, no primeiro quadrimestre de 2021, sido transmitido à 2.ª Ré, assim despoletando o prescrito no art. 285.º, n.º 1 do CT.
X. A Recorrente impugna, nos termos do disposto no arts. 80.º, n.º 3 do CPT e 640.º do C.P.C., a decisão proferida sobre a matéria de facto,
XI. por entender que o Tribunal a quo deveria ter dado como não provada a tese da existência de uma transmissão da empresa ou estabelecimento da 1.ª para a 2.ª Ré e, assim, consequentemente, como não provado, ainda, o alegado despedimento ilícito da A. levado a cabo pela ora Recorrente.
XII. Resulta dos presentes autos, compulsando as provas testemunhal e documental produzidas, ou, por outro prisma, compulsando a insuficiência e vaguidade das mesmas,
XIII. que, em certo momento do ano de 2021, no primeiro quadrimestre, a 1.ª e a 2.ª Rés terão encetado negociações no sentido de 1.ª transmitir à 2.ª o estabelecimento comercial por aquela explorada e em crise nos presentes autos – uma óptica -, negociações essas, contudo, que notoriamente não terão chegado a bom porto,
XIV. ao invés do que julgou o Tribunal a quo. Para que não reste dúvidas, reafirmamos, aqui, o já alegado noutra sede – entre a 1.º e a 2.ª Ré não se operou a transmissão de qualquer estabelecimento, não se verificando a previsão ínsita no art. 285.º, n.º 1 do CT.
XV. Não se tendo transmitido a titularidade do dito estabelecimento, dúvidas não podem restar, caso a lógica ainda presida à dilucidação das questões sub judice, de que não se transmitiu, também, a posição contratual da 1.ª Ré, como empregadora da A., para a esfera jurídica da 2.ª Ré.
XVI. Se assim é, e que o é não se pode questionar, como se verá adiante, lógico é, também e ainda, que a 2.ª não podia, nem pode, ter procedido ao despedimento, ainda para mais ilícito, da Autora.
XVII. Cremos que não será preciso explicitar este particular, mas, de qualquer forma, sempre se deixará expresso, para qualquer eventualidade, que não despede quem não é empregador.
XVIII. Nestes termos, e salvo o devido respeito, deve a solução dada à matéria de facto controvertida ser radicalmente alterada, expressamente se impugnando a mesma, devendo ser julgados como não provados os segmentos ora expostos.
XIX. Expressamente se impugna a decisão sobre a matéria de facto constante do ponto 4) dos factos dados como provados pela Sentença recorrida, impondo-se, alternativamente, a sua consideração como não provado.
XX. Os concretos meios probatórios que impõem tal alteração da decisão sobre a matéria de facto são os seguintes:
• o depoimento da testemunha DD, registado no sistema de gravação digital (com as referências: data - 30.05.2022 - início 15:47:33 e término 15:53:20; cfr. ficheiro áudio “20220530154732_1595605_2871832.wma” – 0:02:05 – 0:02:20; 0:05:01 – 0:05:15);
• os documentos juntos pela 1.ª Ré, na sua Contestação, nomeadamente os Docs. N.º ..., ..., ... e ...;
• o depoimento da testemunha EE, registado no sistema de gravação digital (com as referências: data - 30.05.2022 - início 14:22:33 e término 14:36:20; cfr. ficheiro áudio “20220530142231_1595605_2871832.wma” – 0:05:08 – 0:10:10);
• o depoimento da testemunha FF, registado no sistema de gravação digital (com as referências: data - 30.05.2022 - início 14:36:54 e término 14:46:52; cfr. ficheiro áudio “20220530143653_1595605_2871832.wma” – 0:01:03 – 0:01:24; 0:05:06 – 0:07:24);
• o depoimento da testemunha GG, registado no sistema de gravação digital (com as referências: data - 30.05.2022 - início 14:47:37 e término 14:55:17; cfr. ficheiro áudio “20220530144735_1595605_2871832.wma” – 0:00:18 – 0:00:56; 0:04:33 – 0:05:38);
• o depoimento da testemunha HH, registado no sistema de gravação digital (com as referências: data - 30.05.2022 - início 14:47:37 e término 14:55:17; cfr. ficheiro áudio “20220530145549_1595605_2871832.wma” – 0:04:58 – 0:05:12; 0:04:33 – 0:05:38).
XXI. Expressamente se impugna, igualmente, a decisão sobre a matéria de facto constante do ponto 5) dos factos dados como provados pela Sentença recorrida, impondo-se, alternativamente, a sua consideração como não provado.
XXII. O concreto meio probatório que impõe tal alteração da decisão sobre a matéria de facto é, por muito paradoxalmente que possa parecer, a ausência de qualquer tipo de prova, não tendo a A. cumprido o ónus da prova que sobre si impendia.
XXIII. Expressamente se impugna, por fim, a decisão sobre a matéria de facto constante do ponto 7) dos factos dados como provados pela Sentença recorrida, impondo-se, alternativamente, a sua consideração como não provado.
XXIV. Os concretos meios probatórios que impõem tal alteração da decisão sobre a matéria de facto são os seguintes:
• o depoimento da testemunha FF, registado no sistema de gravação digital (com as referências: data - 30.05.2022 - início 14:36:54 e término 14:46:52; cfr. ficheiro áudio “20220530143653_1595605_2871832.wma” – 0:00:01 – 0:09:51);
• o depoimento da testemunha GG, registado no sistema de gravação digital (com as referências: data - 30.05.2022 - início 14:47:37 e término 14:55:17; cfr. ficheiro áudio “20220530144735_1595605_2871832.wma” – 0:00:14 – 0:07:33);
• o depoimento da testemunha II, registado no sistema de gravação digital (com as referências: data - 30.05.2022 - início 15:03:24 e término 15:20:23; cfr. ficheiro áudio “20220530150323_1595605_2871832.wma” – 0:00:14 – 0:16:55).
XXV. Uma vez mais, logo se extrai pela inexistência patente de prova no sentido da decisão proferida pelo Tribunal a quo, pelo que só se poderá concluir pelo não cumprimento, pela A., do ónus da prova que lhe incumbia.
XXVI. Cumpre, por fim, concluir que, ao contrário do considerado pelo Tribunal a quo, não existiu qualquer transmissão da titularidade do estabelecimento ora em crise da esfera da 1.ª Ré para a 2.ª Ré,
XXVII. sendo que nunca a Autora prestou qualquer trabalho a favor desta última,
XXVIII. razão pela qual é de todo em todo irrelevante que a Autora, que não foi nunca contratada pela 2.ª Ré, se tenha apresentado ao trabalho junto desta, ou que, factos a que a 2.ª Ré é absolutamente alheia, e desconhece, e que só dizem respeito à 1.ª Ré e à Autora,
XXIX. esta não tenha auferido a retribuição devida pelo seu trabalho, ou que não tenha gozado férias no ano de 2021.
XXX. Assim compulsada a factualidade juridicamente relevante, cumpre (re)enquadrar a mesma normativamente, reapreciando a matéria de direito pertinente.
XXXI. Atentos os factos ora provados e não provados, dúvidas não restam de que, não tendo ocorrido qualquer transmissão da titularidade do estabelecimento para a 2.ª Ré,
XXXII. não se encontra preenchida a previsão normativa constante do art. 285.º, n.º 1 do CT, pelo que não pode operar a estatuição prevista naquela mesma norma.
XXXIII. A posição do empregador no contrato de trabalho da Autora não se transmitiu para a 2.ª Ré, sendo que é a 1.ª Ré a parte a chamar à responsabilidade, caso algum incumprimento contratual se verifique na sua relação com a Autora, o que a 2.ª Ré, naturalmente, desconhece.
XXXIV. Ainda que assim não fosse, o que se não concede e só por mera cautela de patrocínio se equaciona – ou seja, ainda que improcedesse a alteração da decisão sobre a matéria de facto proposta pela aqui Recorrente e a consequente reapreciação jurídica da mesma -,
XXXV. sempre seria, não obstante, de considerar a Recorrente desobrigada de qualquer prestação perante a Autora.
XXXVI. Afirmamos isto, pois a norma constante do art. 285.º, n.º 1 do CT, quando interpretada no sentido de ao adquirente/trespassário de um estabelecimento ser imposta a transmissão da posição do empregador nos contratos de trabalho dos respectivos trabalhadores, sem possibilidade de oposição daquele, é flagrantemente inconstitucional.
XXXVII. A Constituição da República Portuguesa consagra, no seu art. 61.º, n.º 1, o direito à livre iniciativa privada, direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias.
XXXVIII. Ademais, no art. 80.º, al. c) da Lei Fundamental, pode ler-se o seguinte que a organização económico-social assenta princípio da liberdade de iniciativa e de organização empresarial no âmbito de uma economia mista.
XXXIX. Além de direito fundamental constitucionalmente reconhecido, a liberdade de iniciativa económica particular, nas suas três vertentes, constitui também uma componente objectiva essencial da «constituição económica» da CRP,
XL. consubstanciando a «garantia institucional» do sector privado e do sector social da actividade económica, junto com o sector público (cfr. art. 82°) bem como de uma ordem económica baseada no mercado e na concorrência, sem prejuízo do planeamento público.
XLI. O direito à livre iniciativa privada, como direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, está, como já afirmado supra, coberto pela protecção estendida pelo disposto no art. 18.º, n.º 2 da CRP.
XLII. Dir-se-á que a norma em apreço – o art. 285.º do CT –, como norma restritiva de um direito fundamental análogo aos direitos, liberdades e garantias, falha clamorosamente o teste imposto pelo princípio da proporcionalidade, em sentido amplo.
XLIII. De facto, ao impor ao adquirente de um estabelecimento comercial a transmissão, para a sua esfera jurídica, da posição do empregador no âmbito dos contratos de trabalho dos trabalhadores respectivos, a norma em apreço restringe para lá do suportável o direito fundamental à livre iniciativa privada (art. 61.º, n.º 1 da CRP).
XLIV. Desde logo, o normativo em crise não se mostra adequado ou idóneo àquilo que pretende – a protecção dos trabalhadores do estabelecimento transmitido.
XLV. Isto, pois, ao impor tal transmissão, a norma em causa “amarra” quem não se queria ver vinculado, desrespeitando a relação intuitu personae que caracterização a relação laboral, assim potenciando drasticamente a existência de conflitos entre trabalhador e empregador, muito contribuindo para a litigiosidade que se vai verificando nesta área.
XLVI. Ademais, a imposição legalmente estabelecida não se mostra necessária, porquanto os trabalhadores abrangidos têm ao seu dispor outras formas e fontes de protecção,
XLVII. nomeadamente a liberdade de circulação de trabalhadores, nacional e comunitariamente consagrada, bem assim como sistemas de segurança social capazes de dar plena resposta a situações de desemprego temporário, as quais incluem, aliás, apoios à reintegração do trabalhador.
XLVIII. Por fim, a norma ora em crise não é, de todo em todo, proporcional, em sentido estrito, porquanto, a custas de uma alegada protecção do trabalhador,
XLIX. sacrifica exageradamente a posição e os direitos do adquirente, não só em benefício do trabalhador, mas do próprio trespassário/alienante,
L. o qual, a coberto de um negócio que é para si geralmente lucrativo, se vê ainda livre, sem mais, dos encargos associados ao cumprimento dos contratos de trabalho e deveres prestacionais correlativos.
LI. Dúvidas não subsistem, assim, quanto à inconstitucionalidade da norma constante do art. 285.º, n.º 1 do CT,
LII. quando interpretada no sentido de ao adquirente/trespassário de um estabelecimento ser imposta a transmissão da posição do empregador nos contratos de trabalho dos respectivos trabalhadores, sem possibilidade de oposição daquele,
LIII. por violação do disposto nos arts. 61.º, n.º 1 e 18º, n.º 2 da CRP, inconstitucionalidade que ora expressamente se invoca, requerendo-se a desaplicação ao caso concreto da norma referida, tudo para os efeitos previstos nos arts. 277.º, n.º 1 e 204.º da CRP.
LIV. Aqui chegados, nada resta senão pugnar pela revogação da decisão proferida pelo Tribunal a quo, impondo-se a sua substituição por outra que absolva a 2.ª Ré integralmente do pedido.”

A autora/recorrida apresentou contra-alegação, concluindo pela improcedência do recurso.
“A) A decisão da matéria de facto não padece de erro de valoração da prova;
B) O enquadramento jurídico-laboral revela-se acertado;
C) A norma constante do art. 285.º, n.º 1, do Código do Trabalho, não enferma de inconformidade jurídico-constitucional, na interpretação que lhe foi dada no caso sub juditio.”

Foi o recurso admitido na espécie própria e com o adequado regime de subida.

Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II OBJECTO DO RECURSO

Delimitado que é o âmbito do recurso pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso (artigos 608.º n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87.º n.º 1 do CPT), enunciam-se então as questões que cumpre apreciar:

a) Impugnação da matéria de facto;
b) Saber se ocorreu transmissão do estabelecimento versado nos autos da 1.ª para a 2.ª ré, o que contende (também) com a apreciação da invocada inconstitucionalidade;
c) Saber se a 2.ª ré despediu a autora.

III - FUNDAMENTAÇÃO

Da impugnação da matéria de facto:

(…)
Concluindo, também neste ponto não há qualquer prova que imponha decisão diversa da que tomou o Tribunal recorrido.

- Da transmissão, da 1.ª para a 2.ª ré, do estabelecimento versado nos autos (o que, a não ser que fique de algum modo prejudicado, implica que se aprecie da invocada inconstitucionalidade do art. 285.º do CT, quando interpretado no sentido assinalado pela apelante):

Os factos provados, relevantes para a decisão da causa, são os seguintes:

1 - A Ré “Óptica ..., Lda” explorava um estabelecimento de óptica, situado no ..., loja nº ...9, em ....
2 – Esta R. admitiu, em 14/06/2004, a A. ao seu serviço, por contrato escrito, sem termo, para, sob a sua direcção, autoridade e integrada na sua organização, exercer funções de caixeira ajudante de primeiro ano naquele estabelecimento, com um período de trabalho semanal de 40 horas, distribuídas de Segunda a Sábado.
3 - Em 2020, a A. auferia a retribuição base mensal ilíquida de €635,00 e em 2021, por efeito da actualização da retribuição mínima mensal garantida, passou a auferir a retribuição base mensal ilíquida de €665,00 acrescida de subsídio de alimentação de €4,77 por cada dia de trabalho.
4 - Em 08/02/2021, a R. “...1 - Ópticas, Lda” passou a explorar aquele estabelecimento, continuando a A. a exercer as mesmas funções, com os mesmos horários, utilizando os mesmos instrumentos de trabalho, nas mesmas condições.
5 – No dia .../.../2021 foi convocada pela Ré “...1 - Ópticas, Lda” para uma reunião, na qual o Sr. BB, em representação desta R., lhe disse que não voltasse mais ao trabalho e que o estabelecimento ia encerrar, pedindo-lhe ainda a chave do estabelecimento.
6 - Apesar disso, no dia .../.../2021, a A. dirigiu-se ao estabelecimento para trabalhar, mas o estabelecimento estava encerrado.
7 - No dia 10/05/2021 apresentou-se de novo ao serviço e ao iniciar o trabalho, quando já se encontrava com a bata vestida, a funcionária que lá se encontrava disse-lhe que despisse a bata e ficasse sentada.
8 - Perante isso, a A. pediu a comparência da GNR, mas quando os agentes de autoridade chegaram ao local, já o estabelecimento estava encerrado.
9 - Nos dias seguintes compareceu no local para trabalhar mas o estabelecimento estava encerrado, e nunca mais foi contactada para trabalhar.
10 – Não foi pago à A. 5 dias de retribuição do mês de Março, a retribuição do mês de Abril; não gozou férias em 2021, nem lhe foi pago o respectivo subsídio.

A propósito da questão da transmissão do estabelecimento, discorreu-se na decisão recorrida:

Não subsistem quaisquer dúvidas que, desde 14/6/2004, a A. estava vinculada à R. “Óptica” por um contrato de trabalho, desempenhando as suas funções profissionais no estabelecimento desta sito em ....
Acontece, porém, que a R. “...1 - Ópticas, Lda” passou a explorar aquele mesmo estabelecimento. Ora, de acordo com o disposto no artº. 285, do C. Trabalho: “1 – Em caso de transmissão, por qualquer título, da titularidade da empresa ou estabelecimento(…), transmitem-se para o adquirente a posição de empregador nos contractos de trabalho dos respectivos trabalhadores (…). … 3 – Com a transmissão (…), os trabalhadores transmitidos ao adquirente mantêm todos os direitos contratuais e adquiridos,, nomeadamente retribuição, antiguidade, categoria profissional e conteúdo funcional e benefícios sociais adquiridos.”
O que significa que, a partir daquela data em que passou a explorar o referido estabelecimento, e independentemente do título a que o fazia, a R. “...1 - Ópticas, Lda” passou a ser a entidade empregadora da A., com todas as obrigações e direitos daí decorrentes.”
           
Concordamos inteiramente com estes considerandos.

Com efeito, dispõe artigo 285.º do CT, sob a epígrafe Efeitos de transmissão de empresa ou estabelecimento:

“1 - Em caso de transmissão, por qualquer título, da titularidade de empresa, ou estabelecimento ou ainda de parte de empresa ou estabelecimento que constitua uma unidade económica, transmitem-se para o adquirente a posição do empregador nos contratos de trabalho dos respectivos trabalhadores, bem como a responsabilidade pelo pagamento de coima aplicada pela prática de contra-ordenação laboral.
2 - O disposto no número anterior é igualmente aplicável à transmissão, cessão ou reversão da exploração de empresa, estabelecimento ou unidade económica, sendo solidariamente responsável, em caso de cessão ou reversão, quem imediatamente antes tenha exercido a exploração.
3 - Com a transmissão constante dos n.os 1 ou 2, os trabalhadores transmitidos ao adquirente mantêm todos os direitos contratuais e adquiridos, nomeadamente retribuição, antiguidade, categoria profissional e conteúdo funcional e benefícios sociais adquiridos.
(…)” (sublinhado nosso)

Como é sabido, o CT/2003 transpôs no seu art. 318.º a Directiva 2001/23/CE, do Conselho, de 12.3.2001, regime que transitou para o art. 285.º do actual Código de Trabalho. 

Acerca do conceito de transmissão previsto neste artigo, e citando Maria do Rosário Palma Ramalho, a apelada trouxe à colação que “… é qualificada como transmissão para efeitos da sujeição a este regime legal, não apenas a mudança da titularidade da empresa ou do estabelecimento, por qualquer título (i.e., uma transmissão definitiva, por efeito de trespasse, fusão, cisão ou venda judicial), mas também a transmissão, a cessão ou a reversão da exploração da empresa ou do estabelecimento sem alteração da respetiva titularidade (i.e., uma transmissão das responsabilidades de gestão a título temporário, embora estável) - art.º 285.º n. os 1 e 3.”.

Pode também dizer-se pacífico o entendimento de que “Ainda que não fique provada a existência de nenhum negócio jurídico de transmissão da unidade económica, a mesma ocorre se a adquirente começa a exercer de imediato a mesma atividade da transmitente, na mesma zona geográfica, e no essencial mantem a organização de meios que antes pertencera aquela última, nomeadamente vários trabalhadores e as ferramentas/equipamentos considerados elementos essenciais da atividade em causa.”[1]

Acrescente-se que, como também refere António Monteiro Fernandes[2] – a propósito do entendimento que o TJUE tem feito da Directiva 2001/23 -, «a jurisprudência europeia não é particularmente exigente quanto à natureza do fenómeno translativo. Parece bastar que haja “mudança de mãos”, que um negócio antes explorado por A passe a sê-lo por B. É o que o Tribunal de Justiça tem insistentemente afirmado.»

Ora, em 08/02/2021, a R. “...1 - Ópticas, Lda” passou a explorar o estabelecimento de óptica em causa nos autos, continuando a A. a exercer as mesmas funções, com os mesmos horários, utilizando os mesmos instrumentos de trabalho, nas mesmas condições.
Continuando a autor a exercer funções, por conta da empresa aqui 2.ª ré que então era quem explorava o estabelecimento, diga-se, desde aquele dia de Fevereiro até ao início do mês de Maio do mesmo ano de 2021 (sem prejuízo, naturalmente, das ausências ao trabalho por motivos de baixa médica ou do falecimento da mãe).

Sucede, ainda, que como advertem David Falcão e Sérgio Tenreiro Tomás[3], é “doutrinariamente consensual que as consequências da violação dos deveres de informação e consulta não afetam a validade da transmissão, já que tais deveres não constituem requisitos de validade.”, pelo que a eventual violação destes deveres, mormente por parte da transmitente, não impedem a transmissão.

Dúvidas não temos, pois, que à luz e para os efeitos previstos no art. 285.º do CT ocorreu uma transmissão do estabelecimento da 1.ª para a 2.ª rés.
           
Pretende porém a recorrente, e em síntese, que é inconstitucional a norma constante do n.º 1 do art. 285.º do CT:
“LII. quando interpretada no sentido de ao adquirente/trespassário de um estabelecimento ser imposta a transmissão da posição do empregador nos contratos de trabalho dos respectivos trabalhadores, sem possibilidade de oposição daquele,
LIII. por violação do disposto nos arts. 61.º, n.º 1 e 18º, n.º 2 da CRP, inconstitucionalidade que ora expressamente se invoca, requerendo-se a desaplicação ao caso concreto da norma referida, tudo para os efeitos previstos nos arts. 277.º, n.º 1 e 204.º da CRP.”
Discorrendo abundantemente sobre a liberdade da iniciativa económica privada e citando em seu abono a CRP Anotada de Gomes Canotilho e Vital Moreira, condensa a recorrente a propósito que:
Dir-se-á que a norma em apreço – o art. 285.º do CT –, como norma restritiva de um direito fundamental análogo aos direitos, liberdades e garantias, falha clamorosamente o teste imposto pelo princípio da proporcionalidade, em sentido amplo.
De facto, ao impor ao adquirente de um estabelecimento comercial a transmissão, para a sua esfera jurídica, da posição do empregador no âmbito dos contratos de trabalho dos trabalhadores respectivos, a norma em apreço restringe para lá do suportável o direito fundamental à livre iniciativa privada (art. 61.º, n.º 1 da CRP).
Desde logo, o normativo em crise não se mostra adequado ou idóneo àquilo que pretende – a protecção dos trabalhadores do estabelecimento transmitido.
Isto, pois, ao impor tal transmissão, a norma em causa “amarra” quem não se queria ver vinculado, desrespeitando a relação intuitu personae que caracterização a relação laboral, assim potenciando drasticamente a existência de conflitos entre trabalhador e empregador, muito contribuindo para a litigiosidade que se vai verificando nesta área.
Ademais, a imposição legalmente estabelecida não se mostra necessária, porquanto os trabalhadores abrangidos têm ao seu dispor outras formas e fontes de protecção, nomeadamente a liberdade de circulação de trabalhadores, nacional e comunitariamente consagrada, bem assim como sistema de segurança social capazes de dar plena resposta a situações de desemprego temporário, as quais incluem, aliás, apoios à reintegração do trabalhador.
Por fim, a norma ora em crise não é, de todo em todo, proporcional, em sentido estrito, porquanto, a custas de uma alegada protecção do trabalhador, sacrifica exageradamente a posição e os direitos do adquirente, não só em benefício do trabalhador, mas do próprio trespassário/alienante, o qual, a coberto de um negócio que é para si geralmente lucrativo, se vê ainda livre, sem mais, dos encargos associados ao cumprimento dos contratos de trabalho e deveres prestacionais correlativos.

Na sua resposta a recorrida discorda da aventada inconstitucionalidade, recorrendo para tanto aos ensinamentos da doutrina, designadamente:
“(…) Maria João Marques Pacheco Botelho Moreira, in op. cit.[4], p. 3:
«Atendendo a que os direitos, liberdades e garantias não são absolutos sendo que, de acordo com o regime constitucional e a unidade do sistema de direitos fundamentais, estes devem coexistir com outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, então em caso de conflito é necessário realizar uma ponderação entre os diferentes direitos fundamentais em presença.
Em relação à transmissão do estabelecimento podemos, desde já, avançar que atendendo ao regime laboral previsto nesta matéria, que prevê a manutenção dos contratos de trabalho, sendo os mesmos transferidos para o adquirente do estabelecimento, parece resultar que da ponderação realizada entre os diferentes direitos em presença, o legislador optou nesta figura por restringir o direito de iniciativa económica privada – direito, liberdade e garantia de natureza análoga – e tutelar o direito, liberdade e garantia de segurança no emprego.
Vide, outrossim, Rodrigo Serra Lourenço, in “O regime da transmissão da empresa no Código do Trabalho, CEJ, Colecção de formação inicial, Jurisdição do Trabalho e da Empresa: Transmissão de estabelecimento, Setembro de 2014, p. 270:
«Nesta situação não podem também desconsiderar-se os direitos dos titulares da empresa e estabelecimento a transmitir, temporária ou definitivamente, a sua posição jurídica sobre esta, que corresponde, não o esqueçamos, ao exercício do direito constitucional à iniciativa económica.
(…)
Estamos em crer que esta ponderação de interesses impõe antes uma solução que permita o exercício, na maior medida possível, de todos os direitos aqui presentes, quer os dos trabalhadores, quer os dos titulares do estabelecimento ou empresa, que se crê não estarem aqui numa relação de mútua exclusão. De resto, a nossa lei não é, nem podia ser, alheia às necessidades de previsão e planeamento das empresas e empregadores: própria lei impõe sanções ao trabalhador que não respeite o prazo de aviso prévio de denúncia, equilibrando liberdade com responsabilidade, e garantindo quer a liberdade do trabalhador se desvincular, quer a do empregador em ter condições para dirigir a sua empresa e cumprir as suas obrigações, tendo um período mínimo para tomar medidas visando suprir a falta do trabalhador denunciante.»
Bem como Cláudia Maria Monteiro Gomes de Sousa, in “A fraude à lei e o despedimento colectivo na transmissão da unidade económica”, CEJ, Colecção de formação inicial , op. cit., p. 103:
«A matéria da transmissão do estabelecimento vem prevista nos arts. 285.º e ss. CT32 cuja leitura e interpretação não podem ser feitas separadamente da Directiva 2001/23/CE, do Conselho, de 12-03-2001. O regime previsto naqueles preceitos tem como objectivo primordial, por um lado, proteger os direitos dos trabalhadores face a uma possível ruptura ao meio de trabalho a que pertencem, garantindo desta forma, a manutenção dos seus postos de trabalho, de acordo com a garantia constitucional prevista no art. 53.º CRP (estabilidade e segurança no emprego), nos casos de transmissão da empresa ou estabelecimento. Por outro lado, visa tutelar a continuidade do próprio estabelecimento que é objecto de transmissão.»

Na mesma esteira, vide Sónia de Carvalho, in “Algumas notas acerca das consequências juslaborais decorrentes da cisão e fusão das sociedades”, Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, vol. 83, nº. 4, Out/Dez 2017, p. 363:
«VI – CONCLUSÃO
O regime de transmissão de estabelecimento atende ao princípio de liberdade de negociação das empresas, acolhido pelo princípio constitucional da livre iniciativa económica, previsto no artigo 61º da CRP, enquanto ao mesmo tempo tutela os direitos dos trabalhadores.» (…)”

Vejamos.

Já no longínquo Ac. STJ de 27.05.2004[5] se entendia que “Com o regime do art. 37º da LCT teve-se em vista, por um lado, proteger os trabalhadores do risco de verem cortada a sua ligação à comunidade de trabalho a que pertencem, garantindo o direito à manutenção do posto de trabalho, que constitui uma das vertentes do direito constitucional consagrado no art. 53º da CRP, nos casos de transmissão do estabelecimento ou da sua exploração, e, por outro, tutelar o próprio estabelecimento (a continuidade do funcionamento da empresa que é objecto da transmissão).” (sublinhado nosso, sendo que para dilucidação da questão que ora nos ocupa o aresto citado mantém pertinência, apesar das alterações legislativas que incidiram sobre o instituto da transmissão de estabelecimento).

Discorrendo sobre as consequências que podem advir sobre o direito de oposição do trabalhador recentemente consagrado no art. 286.º-A do CT, Rui Fernando Peres do Carmo de Oliveira sustenta que “À luz deste novo processo a posição do adquirente fica deveras fragilizada pois, por mais conhecimento prévio que se tenha de todos os dados atinentes à empresa a ser transmitida, nada impede que a maioria dos trabalhadores não transitem para a nova empresa, podendo colocar em causa quer a atividade, quer o objetivo do adquirente.
Verifica-se, assim, uma compressão do Princípio Constitucional da Liberdade de iniciativa económica, de dimensão ainda não definida.”[6]
Maria do Rosário Palma Ramalho sublinha por sua vez que a figura da transmissão da empresa prossegue um duplo objetivo: por um lado, a plena liberdade do empresário nos negócios que celebra com respeito à sua empresa ou a parte dela, o que decorre do princípio constitucional da livre iniciativa económica e justifica a dispensa da anuência dos trabalhadores do estabelecimento ou empresa transmitidos; por outro, assegurar que os trabalhadores não sejam afetados na sua posição contratual por efeito da transmissão da posição contratual do empregador, o que justifica que os respetivos contratos acompanhem o estabelecimento ou a empresa transmitida sem dependência da vontade do adquirente.[7]

De facto, parece evidente que em termos de normalidade das coisas, senão por via de regra pelo menos em muitos dos casos, importará ao adquirente do estabelecimento que os trabalhadores acompanhem essa transmissão, transitando para o novo empregador, o que a não acontecer poderá até inviabilizar a própria manutenção da actividade do estabelecimento.

Por outro lado, que segurança no emprego poderia haver se a manutenção das relações laborais, no caso de transmissão de estabelecimento, ficasse dependente da vontade do adquirente (o mesmo podendo dizer-se em relação ao transmitente)?
Se é certo que nem o transmitente nem o adquirente podem obstar a que a posição de empregador nos contratos de trabalho existentes no momento da “transmissão” transite do primeiro para o segundo, como bem diz Monteiro Fernandes[8], que seguimos de perto, “Essa orientação fundamental resulta da ideia de que a manutenção do emprego se caracteriza por uma premência não comparável à da garantia de livre escolha das pessoas que serão ocupadas num empreendimento – corolário da liberdade de iniciativa económica -, quando se trata de contratos de pessoas já anteriormente adstritas ao trabalho na mesma organização.”

Visto nesta última vertente, o legislador acolheu a chamada “teoria da empresa”, segundo a qual, mais do que à pessoa do empresário, o trabalhador encontra-se ligado à empresa onde exerce actividade.

A apelante esgrime que a norma em apreço – o art. 285.º do CT –, como norma restritiva de um direito fundamental análogo aos direitos, liberdades e garantias - o direito à livre iniciativa privada, consagrado no art. 61.º, n.º 1, da CRP (“A iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral”), prevendo a al. c) do n.º 1 do art. 80.º da mesma lei fundamental que “A organização económico-social assenta nos seguintes princípios: c) Liberdade de iniciativa e de organização empresarial no âmbito de uma economia mista;” chamando também à colação o art. 82.º da CRP -, falha clamorosamente o teste imposto pelo princípio da proporcionalidade, em sentido amplo.

Um dos argumentos que expende em favor da sua tese, é que, desde logo, o normativo em crise não se mostra adequado ou idóneo àquilo que pretende – a protecção dos trabalhadores do estabelecimento transmitido -, pois, ao impor tal transmissão, a norma em causa “amarra” quem não se queria ver vinculado, desrespeitando a relação intuitu personae que caracteriza a relação laboral.
Reforce-se, em primeiro lugar e como supra já se mencionou, que o escopo do art. 285.º/1 do CT não é apenas a protecção dos trabalhadores, mas também da própria integralidade e viabilidade do estabelecimento, com isso se protegendo – diríamos que na «normalidade dos casos» - interesses dos transmitente e adquirente.
Depois, os trabalhadores (como, aliás, o novo empregador/adquirente) continuam a poder recorrer aos meios de desvinculação «normais».
O que sucede é que esse problema não se põe com a mesma acuidade para as empresas/empregadoras e para os trabalhadores; enquanto para estes a desvinculação é (em princípio) livre, podendo faze-lo a todo o tempo e sem necessidade de qualquer justificação, e sem que com isso incorram em qualquer sanção (posto que cumpram o prazo de aviso prévio que no caso seja devido), “o empregador está sujeito a um conjunto de exigências, para que possa promover a ruptura do contrato, que não encontram, de modo algum, paralelo no estatuto do trabalhador”[9] – o que é explicado pelo facto de a cessação do contrato de trabalho ter consequências bem mais gravosas para o trabalhador do que para o empregador e a que também não é alheio o princípio constitucional da segurança no emprego, consagrado no art. 53.º da CRP.

Adianta também a recorrente que a imposição legalmente estabelecida não se mostra necessária, porquanto os trabalhadores abrangidos têm ao seu dispor outras formas e fontes de protecção, nomeadamente a liberdade de circulação de trabalhadores, nacional e comunitariamente consagrada, bem assim como sistemas de segurança social capazes de dar plena resposta a situações de desemprego temporário.

Não nos parece que nesta sede assuma qualquer particular relevância o princípio da liberdade de circulação de trabalhadores, e quanto à protecção que os trabalhadores desempregados podem buscar nos sistemas de segurança social são – e quando realmente os trabalhadores a ela têm direito e lhes é prestada -, como se sabe, meros paliativos, que por regra não asseguram a totalidade da retribuição e têm um prazo máximo de atribuição, mesmo que o trabalhador persista na situação de desempregado, e isto para restringir o prejuízo do trabalhador à dimensão retributiva, que pode nem ser a mais importante.

Diz ainda a apelante que a obrigatória transferência dos trabalhadores sacrifica exageradamente a posição e os direitos do adquirente, não só em benefício do trabalhador, mas do próprio trespassário/alienante, o qual, a coberto de um negócio que é para si geralmente lucrativo, se vê ainda livre, sem mais, dos encargos associados ao cumprimento dos contratos de trabalho e deveres prestacionais correlativos.

Esta afirmação da apelante carece desde logo de demonstração.
Tudo dependerá dos termos do negócio entre alienante e adquirente, e certamente casos haverá em que o negócio não seja bom para o transmissário, mesmo vendo-se livre dos trabalhadores, e o seja para o adquirente, mesmo passando a ter encargos com os trabalhadores, aliás, e repete-se de novo, serão os trabalhadores «transmitidos» que em muitos casos assegurarão a viabilidade do estabelecimento transmitido.

Se é certo que as regras sobre proteção do emprego têm de se conciliar, designadamente, com as que regem sobre a propriedade privada e a liberdade de iniciativa privada, não é menos certo que a lei “pode conformar com grande liberdade, por maioria de razão, a organização e a actividade empresarial, estabelecendo restrições mais ou menos profundas”[10]
Por isso que entendemos que o regime previsto no art. 285.º n.º 1 do CT não extravasa os limites, da necessidade e proporcionalidade da restrição, impostos pelo artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição.
Estamos face a restrição claramente ditada pela necessidade de salvaguardar «outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos», como é o caso da segurança no emprego, optando o legislador por proteger a parte mais fraca na relação laboral, de acordo com o espírito ínsito ao Direito Laboral português.

Em conclusão, entendemos que não é inconstitucional a norma constante do n.º 1 do art. 285.º do CT, quando interpretada no sentido de ao adquirente/trespassário de um estabelecimento ser imposta a transmissão da posição do empregador nos contratos de trabalho dos respectivos trabalhadores, sem possibilidade de oposição daquele.

- Saber se a 2.ª ré despediu a autora.

A propósito discorreu-se na decisão recorrida:
“E terá ocorrido um despedimento ilícito no dia 6/5/2021?
Como é sabido, a doutrina e a jurisprudência estabeleceram a figura do “despedimento de facto” para fazer face à necessidade de qualificar e dar solução a situações imprecisas e duvidosas que, em rigor, não cabem nas formas legalmente previstas para a cessação do contrato de trabalho.
São situações em que, apesar da ausência de declaração expressa da vontade de pôr termo ao contrato, esse objectivo resulta claro dos comportamentos, activos ou omissivos, que a entidade patronal adopta (v.g., encerramento do estabelecimento; expulsão do trabalhador das instalações, com proibição de regressar).
Com efeito, nos termos do artº. 217, nº. 1, do C. Civil, a declaração negocial pode ser expressa ou tácita, sendo tácita quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.
Necessário é que, da análise do comportamento da entidade patronal, resulte inequívoco para o trabalhador que aquela já não pretende mais a sua prestação laboral, desejando pôr fim ao contrato.
Dizemos que essa situação tem de ser inequívoca, do ponto de vista do trabalhador, pois que, traduzindo-se o despedimento numa declaração negocial unilateral e receptícia, extintiva da relação laboral, a eficácia desta depende da sua recepção pelo destinatário, nos termos do art. 224º, nº 1, do C.Civil – ou seja, o comportamento da entidade empregadora deverá ser de tal forma que, um homem médio (um declaratário normal, medianamente instruído e diligente) colocado na situação do trabalhador, não ficaria com dúvidas de que era essa a sua vontade.
E afigura-se-nos ser este um exemplo claro desta situação.
Com efeito, a R. “...1 - Ópticas, Lda” transmitiu à A. que o estabelecimento ia encerrar, que não voltasse mais ao trabalho e que lhe entregasse a chave do estabelecimento.
Nos dias seguintes, a A. foi impedida de regressar ao trabalho.
Trata-se, evidentemente, de uma manifestação de vontade por parte desta R. no sentido de pôr termo à relação laboral, o que consubstancia um despedimento ilícito, por não ter qualquer fundamento legal.”

Revemo-nos inteiramente nestes considerandos – que, de resto, seguem entendimento pacífico na jurisprudência[11] -, afigurando-se despiciendos quaisquer aditamentos.

IV - DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
Custas da apelação a cargo da recorrente.
Notifique.
Guimarães, 19 de Janeiro de 2023

Francisco Sousa Pereira (relator)
Antero Veiga
Vera Maria Sottomayor


[1] Ac. TRP de 30-05-2018, Proc. 3503/15.9T8AVR.P1, Teresa Sá Lopes, no mesmo sentido Ac. TRL de 07-11-2018, Proc. 223/14.5TTFUNC.L1-4, Albertina Pereira, in www.dgsi.pt, e também no sentido de que basta uma simples «transmissão de facto», Ac. RC de 22.4.1993, CJ, Ano XViii, T II, pág. 80, da mesma Relação, Ac. de 23-02-2017, Proc. 1335/13.8TTCBR.C1, Ramalho Pinto, Ac. STJ de 27-05-2004, Proc. 03S2467, Vítor Mesquita, Ac. STJ de 26-3-2008, Proc. 07S4386, Sousa Grandão, Ac. RP de 18-10-2010, Proc. 51/09.0TTVNF.P1, Ferreira da Costa, todos em www.dgsi.pt.
[2] Alguns aspectos do novo regime jurídico-laboral da transmissão de empresa ou estabelecimento, Questões Laborais, Ano XXV, N.º 53, Almedina, pág. 28; v. também pág. 22.
[3] Transmissão da unidade económica e suas implicações no contrato de trabalho: jurisprudência do TJUE e jurisprudência nacional, Questões Laborais, Ano XXIV, N.º 50, pág. 34; no mesmo sentido veja-se Marta de Oliveira Pinto Trindade, Transmissão da empresa ou estabelecimento, Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 90, Coimbra Editora, pág. 171.
[4] Dissertação de mestrado em Ciências Jurídico-Empresariais: “A Delimitação do Conceito de Transmissão de Estabelecimento no Direito Laboral e Notas de Regime, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2012, p. 3, acessível no sítio https://repositorio.ul.pt/handle/10451/11752
[5] Proc. 03S2467, Vítor Mesquita, www.dgsi.pt
[6] O direito de oposição e a noção de unidade económica à luz da Lei 14/2018, Dissertação de Mestrado, pág. 95, consultável em
https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/19940/1/master_rui_carmo_oliveira.pdf
[7] Cf. Tratado de Direito do Trabalho, Parte I – Situações Laborais Individuais, 6ª ed., Almedina, 2016, pág. 642/643.
[8] Ob. citada, pág. 11
[9] António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 14.ª Ed., Almedina, pág. 548.
[10] CRP Anotada de Gomes Canotilho/Vital Moreira, a pág. 790, citada pela própria recorrente.
[11] Cf., a título de exemplo, Ac. RG de 04-02-2021, Proc. 6108/19.1T8BRG.G1, Alda Martins, www.dgsi.pt