Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2341/19.4T8GMR.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
TESTAMENTO
FORMA
ENCARGOS
RESOLUÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – A um testamento outorgado em 1991, aplicam-se as formalidades previstas no Código do Notariado aprovado pelo DL 47619 de 31/03/1967, com as suas sucessivas alterações e não o atual Código do Notariado, aprovado pelo DL 207/95 de 14 de agosto, que entrou em vigor posteriormente.
2 – A resolução do testamento por incumprimento dos encargos pode ocorrer se o testador assim o tiver determinado ou se for lícito concluir, através da interpretação ou da integração do testamento, que o testador não teria mantido a disposição sem o cumprimento do encargo.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

J. M. deduziu ação declarativa contra T. J. e marido, A. P., pedindo que:

a) Seja declarado e sejam condenados os Réus a reconhecer que o Autor é herdeiro e interessado na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de A. M.;
b) Sejam condenados os Réus a restituir à herança, na pessoa do Autor, todos os bens que compõem a mesma, identificados, designadamente, nos artigos 126, 130, 140 e 147, da petição inicial;
- Para a hipótese de se considerar que a Ré é herdeira do falecido A. M.:
c) Seja declarado e sejam condenados os Réus a reconhecer que é nulo ou seja anulado o testamento outorgado em 10.05.1991 no Cartório Notarial de ..., extraído da escritura exarada de fls. 48 a folhas 50, do livro de notas 63.
d) Seja declarado resolvido o testamento em causa, pelo não cumprimento dos encargos nele impostos;
- Em qualquer caso:
e) Sejam condenados os Réus a restituir à herança, na pessoa do Autor, todos os bens que compõem a mesma, identificados, designadamente, nos artigos 126, 130, 140 e 147, da petição inicial;
f) Seja ordenado o cancelamento de quaisquer registos efetuados em contrário ou que se mostrem desconformes com o aqui peticionado.

Para tanto, alegou, em síntese, que é irmão do falecido A. M., cujo óbito ocorreu a 14.01.2018. Que o seu irmão outorgou testamento em 10.05.1991 no Cartório Notarial de ..., mas que esse testamento é inválido, porque, por um lado, o testador não tinha o domínio da sua vontade, a qual não declarou e, por outro lado, não foram cumpridas as formalidades aplicáveis na realização desses autos, designadamente, não foi verificada a identidade do testador através de bilhete de identidade, nem se tendo certeza se foi ele quem compareceu no Cartório Notarial, pois que nunca o Autor, nem os seus familiares ouviram falar das testemunhas que ali foram abonadoras, e, para além disso, as testemunhas não foram devidamente identificadas, estando o sobrenome ilegível e a morada incompleta. No que respeita ao conteúdo do testamento, ele encontra-se viciado, uma vez que o testador sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) em 1987 e, desde essa data, ficou dependente de M. L., que era sua empregada, passando a ser uma pessoa sem vontade própria e submissa à sua empregada M. L., a qual, aproveitando-se das limitações de que aquele padecia, passou a controlar-lhe a atividade profissional e a administração dos bens, o que fazia em conjunto e com o auxílio da sua família. Finalmente, alega que, tendo sido onerada no testamento com a realização de encargos, a Ré não cumpriu um único deles, tendo sido o Autor quem suportou as despesas com o funeral do falecido padre, não tendo sequer comparecido ao mesmo. O acervo hereditário do inventariado era composto por dinheiro em contas bancárias, bens imóveis e veículos automóveis, os quais devem ser restituídos ao Autor e demais herdeiros daquele.
Os réus contestaram, excecionando a ilegitimidade do réu marido e alegando que, à luz da lei notarial aplicável à data que o testamento foi celebrado, foram observadas as formalidades legais exigidas para a identificação do testador, das testemunhas e dos peritos médicos. Contestaram, também, por impugnação, alegando que o AVC sofrido pelo testador foi de ligeiríssima expressão, não tendo provocado quaisquer debilidades cognitivas, nem tendo restado com qualquer estado de dependência em relação a M. L., sua empregada e com quem residia, desde o mês de outubro de 1967; por fim, que todos os encargos impostos no testamento foram objeto de cumprimento, com exceção da realização do funeral e do local da sepultura, conforme declaração do testamenteiro nele instituído, sendo que, no que se refere às cerimónias fúnebres e ao cemitério onde foi sepultado, não pôde observá-lo, já que desconhecia a existência do testamento à data do óbito do testador. Mais alegou que, não tendo podido a fiduciária aceitar a herança (por ter pré-falecido ao testador), devolveu-se a mesma a favor da fideicomissária.
O autor respondeu.
Foi dispensada a realização da audiência prévia, tendo-se proferido despacho saneador, no qual se desatendeu a invocada exceção de ilegitimidade. Foi definido o objeto do litígio e estabeleceram-se os temas da prova.
Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu os réus dos pedidos.

O autor interpôs recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

A. Nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 640º CPC, consigna-se desde já que a matéria de facto dada como não provada nas alíneas kk) e mm), deveria ter sido dada como provada
B. Na sucessão testamentária, diferentemente do que acontece nos atos inter vivos, onde rege o princípio da liberdade de forma, predomina o princípio da solenidade, por cujo enunciado, um ato só produz efeitos quando é realizado em cumprimento às formalidades impostas por lei, para a garantia e validade da declaração de vontade do testador.
C. A exigência e observância de formalidades (taxativas) decorre, entre outras, da definição contida no art. 1.729º do Código Civil, ao referir que o testamento é um o acto unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles e que está sujeito às formas previstas no art.º2205 e 2206º CC, sem prejuízo dos requisitos previstos no Código do Notariado.
D. Decorre da sentença (art.º 15º) e do próprio testamento que: “Foram testemunhas e simultaneamente abonadoras M. G., casada, residente no Parque Residencial “P.”, nesta vila e M. L., casada, residente na Estrada Nacional número …, nesta vila. Intervieram, como peritos médicos, a pedido do testador, Dra. M. F., residente na freguesia de ..., concelho de Barcelos e Dr. V. J., residente na freguesia de ..., dito concelho de Barcelos, ambos solteiros, maiores, portadores das cédulas profissionais nº .../... e .../..., respetivamente, os quais, sob juramento legal prestado perante mim, abonaram a sanidade mental do testador.”
E. Ou seja, temos que a identificação do testador foi efetuada por dois abonadores.
F. Ora, a esse respeito, o artigo 48º e 64º do Código do Notariado que o legislador considerou imperioso identificar os abonadores, ou por seu conhecimento pessoal ou por exibição do bilhete de identidade, documento equivalente ou carta de condução ou exibição do passaporte, pelo que a simples menção “dignos de crédito” não era suficiente para a solenidade do ato em causa.
G. Sucede que, as pessoas indicadas como testemunhas e simultaneamente abonadoras nem sequer conheciam o testador, sendo apenas, ao que parece, duas funcionárias da Conservatória do Registo Civil de … (cujas instalações ficavam perto do Cartório notarial) a quem costumava ser solicitado que interviessem em determinados atos – neste sentido vide depoimento da testemunha M. L., cujo depoimento foi prestado na sessão de julgamento de 15/4/2021 entre as 15: 41:55 e as 15:58:17 e minuto 2.08 a minuto 3.45
H. O recorrente não pode concordar com as ilações do tribunal para justificar esta omissão, pois apesar de vigorar no nosso regime legal o princípio da livre apreciação da prova, o certo é que, essa apreciação livre da prova não pode ser confundida com a apreciação arbitrária da prova nem com a mera dúvida gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; tem como valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio.
I. Por essa razão, e por muito respeito que a testemunha mereça, não pode o tribunal retirar a ilação que retirou, apenas porque se apercebeu que a testemunha estava fragilizada, pois como é sabido, em direito a testemunha “ou sabe ou não sabe”, não se podendo relevar outras respostas senão estas, sob pena de se “abrir a porta” a que a todas as testemunhas usem um argumento igual ou idêntico, para obterem credibilidade junto do tribunal.
J. Na verdade, apesar da testemunha ter sido abonadora noutros atos daquele cartório notarial, é normal que não se lembra da notária apenas porque a mesma exerceu funções naquele cartório durante pouco tempo (uma vez que era notária interina) e não a fragilidade da testemunha, conforme conclui, erradamente, o tribunal a quo. – cfr. depoimento da testemunha ao minuto 11:06 a 15:38.
K. Logo, o testador foi identificado pessoalmente através de pessoas que não o conheciam. - cfr. depoimento a testemunha ao m 11:06 ao 15.38, pelo que o testamento é nulo.
L. Pelos mesmos motivos, tais testemunhas também nunca poderiam ser consideradas como instrumentais, pois essa testemunha é a pessoa que tem capacidade para assegurar a veracidade do ato que se quer provar, subscrevendo-o, é a testemunha das solenidades do ato testamentário.
M. Como se disse, as testemunhas nem sequer foram devidamente identificadas, não conheciam o testador e nem oportunidade tiveram de “trocar uma palavra” com o mesmo, pelo que não poderiam atestar que a vontade deste era aquela e não outra – art. 46ºº n.º 1, al. d), 48º n.º 1 al. a), b) e c) e 62º, nº 1 CN.
N. Não pode também, com o devido respeito, o tribunal a quo, colmatar essa omissão, com o argumento de que que não restam dúvidas (caso existam pelo facto de não terem sido cumpridas as formalidades legais) de que foi o testador que compareceu no ato do testamento, porque os médicos V. J. e M. F. confirmaram que foi o falecido que declarou a sua vontade perante a notária, pois os mesmos encontravam-se lá na qualidade de peritos e não de testemunhas – art.º 67º n.º 4 CN.
O. Aliás, o perito vista a perceção ou apreciação, da notária, de factos de que a mesma não dispõe dos necessários conhecimentos técnico-científicos, sendo os peritos médicos quem dispõem desse conhecimento especializado, cabendo-lhes a eles emitirem” o juízo de valor que a sua cultura especial e a sua experiência qualificada lhe ditarem”, refletido na formulação de conclusões fundamentadas.
P. Neste caso concreto, seria necessário a presença de dois, conforme resulta do artigo 81.º CN.
Q. Acontece que o tribunal, não podia ter considerado como perita a Dra. M. F., pois a mesma referiu, em sede de depoimento, que se limitou a relatar aquilo que lhe foi dito pelo seu colega, tendo-se bastado com tal transmissão de informação, não tendo visto qualquer exame médico do testador ou conversado com ele antes do ato; apenas assistia ás suas missas - min 1:06 a 3:30
R. Não é necessário ser médico para referir o que a Drª M. F. referiu e por outro, como bem se sabe, as missas são “lenga lengas”, em que os padres e os próprios frequentadores acabam por agir como uma espécie de autómato, pelo que não é, de todo, por esse meio, mas por exame médico concreto que um perito pode atestar a saúde mental de alguém.
S. Por outro lado, a ré não cumpriu os encargos a que estava adstrita como resulta das declarações do testamenteiro que se bastou com as coisas que lhe foram transmitidas pelo filho da beneficiária do testamento, aqui Ré. Não se deu ao trabalho de confirmar se tais informações eram ou não verdadeiras, se correspondiam ou não à verdade. E no que diz respeito às missas seria da responsabilidade da Diocese –depoimento da testemunha minuto 23:38 a 25:30 e 26:33 a 27:43.
T. Neste sentido, e, pelo teor do testamento e complexidade dos encargos, só se pode concluir que sem o seu cumprimento não teria havido qualquer disposição testamentária, pelo que também por esta razão consequência não poderia ter sido outra senão considerar-se nulo ou resolvido e de nenhum efeito o referido testamento, pelo que ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou as normas supra citadas.

TERMOS em que deve ser concedido provimento ao presente recurso e, por via dele, revogar-se a sentença recorrida, substituindo-a por outra que julgue a ação provada e procedente, tudo com as consequências legais, assim se fazendo a devida JUSTIÇA.

Não foram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver prendem-se com a impugnação da decisão de facto, com o cumprimento das formalidades durante o ato notarial e com o cumprimento dos encargos.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença foram considerados os seguintes factos:
Factos provados

1- Em -.01.2018, na freguesia de ..., concelho de Guimarães, faleceu A. M., filho de L. F. e J. M., natural da dita freguesia de ..., concelho de Guimarães, onde teve a sua última residência habitual na rua de …, …, ....
2- Faleceu no estado de solteiro, sem descendentes, nem ascendentes sobrevivos.
3- Em 10.05.1991, foi outorgado o documento denominado “Testamento”, o qual se encontra exarado a fls. 48 a 50, do Livro de Notas para Testamentos e Escrituras de Revogação …, do Cartório Notarial de ....
4- Consta no texto desse testamento que A. M. instituiu herdeira de todos os seus bens, sua empregada, M. L., a qual ficou com o encargo de conservar a herança, para que ela revertesse, por sua morte, para a sua irmã T. J..
5- M. L. faleceu em dezembro de 2017.
6- Em -.12.1987, o A. M. sofreu um acidente vascular cerebral (AVC).
7- A. M. foi colocado na paróquia de ….
8- M. L. criou uma relação de proximidade com A. M..
9- M. L. acompanhava A. M. em eventos, festividades e reuniões familiares.
10- À data da sua morte, A. M. era titular, em co-titularidade com M. L., das contas bancárias domiciliadas na Caixa … com os n.ºs ……600, ………910 e ……….320, ………..100 e …………..700, com os saldos de € 23.015,01, € 3.168,29, € 200.000,00, € 2.060,93 e € 3.096,16.
11- À data da sua morte, A. M. era titular das contas bancárias domiciliadas no Banco … com os n.ºs ……-8, com o saldo de € 978,64, e …..-7, com o saldo de € 25.000,00.
12- À data da sua morte, a aquisição dos prédios a seguir identificados encontravam-se inscritos a favor de A. M.:
- Prédio urbano composto por casa de rés-do-chão e logradouro, situado na rua de …, nº …, da freguesia de …, …. e ..., concelho de Guimarães, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número …/19881109 e inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo …;
- Prédio urbano composto por edifício de rés-do-chão, situado na freguesia de …., Oleiros e ..., concelho de Guimarães, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número …./20180517 e inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo ….
13- Os intervenientes no ato notarial em causa não rubricaram as folhas que não estavam assinadas.
14- Foi o Autor que tratou e suportou as despesas com o funeral do falecido.
15- Consta do testamento referido em 3- que:
“Foram testemunhas e simultaneamente abonadoras M. G., casada, residente no Parque Residencial “P.”, nesta vila e M. L., casada, residente na Estrada Nacional número 13, nesta vila. Intervieram, como peritos médicos, a pedido do testador, Dra. M. F., residente na freguesia de ..., concelho de Barcelos e Dr. V. J., residente na freguesia de ..., dito concelho de Barcelos, ambos solteiros, maiores, portadores das cédulas profissionais nº .../... e .../..., respectivamente, os quais, sob juramento legal prestado perante mim, abonaram a sanidade mental do testador.”

Factos não provados:
a) Para além de A. M., do casamento de L. F. e J. M. nasceram:
- O Autor;
- M. R.; e
- J. F..
b) J. F. faleceu no estado de casado com E. J., tendo deixado como filhos:
- M. J.;
- J. C.;
- A. J.;
- A. R.;
- M. C.;
- M. B.;
- L. M.;
- M. E.;
- M. M.; e
- A. F..
c) A M. C. faleceu no estado de casada com M. S., tendo deixado como filhos:
- L. G.; e
- D. A..
d) Como consequência do AVC aludido em 6-, as capacidades intelectuais e a fala de A. M. ficaram afetadas, bem como as suas competências linguísticas ficaram diminuídas.
e) Do que não veio a recuperar, não obstante os cuidados médicos prestados, designadamente da fisioterapia efetuada.
f) Ficou incapaz até de assegurar a sua higiene e alimentação, bem como o transporte para a fisioterapia e consultas médicas.
g) Face à gravidade da situação, A. M. deixou de dar aulas e foi forçado a abandonar a sua paróquia, pois já não conseguia assegurar as suas responsabilidades paroquiais.
h) Após o que se refugiou em casa do Autor, onde permaneceu durante alguns meses e recebeu o cuidado deste e dos sobrinhos.
i) Não obstante não estar recuperado, e levando em conta a sua vocação e a falta de párocos para as paróquias, os seus superiores acederam em colocá-lo na paróquia de …, em Barcelos.
j) Porém, face às suas debilidades físicas e psicológicas, ficou totalmente dependente da sua empregada M. L..
k) M. L., aproveitando-se das limitações, da dependência e da boa vontade do A. M., começou a adotar uma atitude autoritária, manipuladora e controladora para com o mesmo, tomando para si a gestão das tarefas daquele, designadamente a desenvolver um papel ativo na paróquia.
l) Tanto assim é que era aquela quem dava a comunhão, tocava órgão, marcava os funerais e as missas, deixando transparecer para os paroquianos que era ela quem mandava no padre e dirigia a paróquia.
m) Era ela quem marcava as leituras que o padre A. M. fazia, pois este nem sequer conseguia saber onde começar a ler.
n) Era ela também a pessoa que recebia os paroquianos, recebia as ofertas, geria a agenda e todos os eventos.
o) Até para celebrar a missa, A. M. dependia da sua empregada, M. L., tendo de ser esta a indicar-lhe os textos litúrgicos a ler.
p) A. M. não tinha sequer capacidade para fazer a homília.
q) Nem para fazer confissões.
r) Assim, desde que sofreu o AVC, o A. M. passou a ser uma pessoa sem vontade própria e completamente submissa à sua empregada, M. L., que, aproveitando-se da sua condição, passou a controlar ainda mais todos os movimentos daquele.
s) Aliás, a mesma tratou de o afastar da família, incluindo do Autor e dos sobrinhos.
t) Tanto assim é que forçava a sua presença, tudo para evitar que aquele ficasse sozinho e colocasse em risco o controlo que vinha exercendo sobre o mesmo.
u) Aproveitando-se da vulnerabilidade e debilidade do A. M., a M. L. passou a administrar, em conjunto com os seus irmãos/cunhados, os bens pessoais daquele, designadamente passando a ser co-titulares nas suas contas bancárias, gerindo o dinheiro, movimentando-o, requisitando e emitindo cheques, tudo como bem entendiam.
v) A verdade é que bem sabiam aqueles que controlavam o A. M., e aproveitando-se dessa supremacia, o faziam assinar tudo o que quisessem.
w) Tal controlo era do conhecimento do povo da freguesia onde habitavam.
x) A atuação do A. M., na missa e nos seus atos privados, passou a ser uma representação ou coreografia criada pela sua empregada M. L..
y) E foi exatamente o mesmo que sucedeu na outorga do testamento supra identificado.
z) A. M. não declarou a sua vontade.
aa) Agiu como um autómato, dizendo o que lhe foi dito para dizer.
bb) Tal como fazia ao rezar uma missa, A. M. limitou-se a transmitir como suas as instruções da sua empregada.
cc) O que declarou não correspondia ao seu querer, nem a uma vontade livre e esclarecida.
dd) Em momento algum, A. M. deu sinais de pretender beneficiar a irmã da sua empregada, M. L..
ee) A verdade é que sequer convivia com aquela.
ff) Era voz corrente na paróquia que quer a empegada M. L., quer os seus irmãos/cunhados, designadamente o AL., conseguiam “dar-lhe a volta” para aquele assinar o que quisessem.
gg) E, conscientes dos seus intentos, cuidavam sempre que a empregada acompanhasse o A. M. nas suas reuniões familiares, de modo a que nunca perdesse o controlo sobre ele exercido.
hh) Foi nessas circunstâncias que o padre teve intervenção no testamento em questão, deixando todos os bens à irmã da sua empregada.
ii) Era vontade do Padre que o património da família permanecesse em família.
jj) Tal vontade era do conhecimento da sua empregada, M. L., quer da Ré T. J..
kk) Não pode haver garantias de que foi mesmo A. M. que compareceu no ato do testamento.
ll) Sequer se pode ter a certeza que as testemunhas ali identificadas foram as que efetivamente intervieram no ato notarial.
mm) A Ré não cumpriu um único dos encargos.
nn) Os Réus nunca se preocuparam em colocar uma única flor ou vela que fosse, na campa do cemitério onde aquele se encontra sepultado em jazigo da família.
oo) Todo o dinheiro depositado era do A. M., e que este só tinha cedido na co-titularidade devido à sua fragilidade e porque o tinham convencido que assim era mais cómodo.
pp) A. M., à data da sua morte, era dono de um apartamento em … e de uma carrinha da marca Renault.

Com a presente ação, o autor pretendia que os réus fossem condenados a restituir à herança todos os bens que compõem a mesma e que identificou na petição inicial. Para o efeito, questionou a validade do testamento, alegando que o testador não declarou a sua vontade, tendo agido como um autómato, dizendo o que lhe foi dito para dizer pela sua empregada que dominava todos os atos da sua vida pessoal e profissional. Alegou, também, que não foram cumpridas as formalidades aplicáveis na realização de um testamento e peticionou, ainda, a resolução do testamento pelo não cumprimento dos encargos.
Neste recurso, o autor deixa cair as questões relativas ao estado de saúde do testador à data da outorga do testamento e à relação existente entre as beneficiárias do mesmo e aquele. A prova produzida foi clara no sentido de que “o AVC sofrido pelo testador não lhe provocou diminuição das capacidades cognitivas até à data da outorga do testamento, altura em que tinha o domínio da sua vontade e autonomia para os atos da sua vida diária e profissional (…) A prova foi límpida de que o testador beneficiou quem pretendia e de acordo com a sua vontade (formada livre de manipulação de terceiros e num período em que não evidenciava quaisquer falhas linguísticas ou cognitivas)”.
Para o recurso o autor acaba por trazer, apenas, as questões do cumprimento dos encargos e da omissão de formalidades no ato notarial.
Para o efeito, considera que foi mal decidida a matéria de facto.
Entende o apelante que a matéria constante das alíneas kk) “Não pode haver garantias de que foi mesmo A. M. que compareceu no ato do testamento” e mm) “A Ré não cumpriu um único dos encargos” dos factos não provados, deveria transitar para os factos provados.

Vejamos.
Quanto à questão das formalidades do ato notarial, está provado que os intervenientes não rubricaram as folhas, para além do conteúdo do testamento que se encontra junto aos autos, e deu-se como não provado que “não pode haver garantias de que foi mesmo A. M. que compareceu no ato do testamento”.
O apelante questiona este facto não provado, tendo em conta a forma como foi efetuada a identificação dos intervenientes – testador, testemunhas e médicos – e o depoimento de uma dessas testemunhas – M. L. – que não se lembrava da pessoa do testador, nem sequer se o conhecia e o depoimento da médica M. F. que compareceu a pedido do seu colega e apenas porque conhecia o padre como pároco da freguesia, assistindo às suas celebrações e tendo aceite a informação sobre o estado clínico do mesmo que o colega lhe disponibilizou, uma vez que este era o seu médico de família.
Conforme resulta do ato notarial em causa, a Sra. Notária declarou que verificou a identidade do outorgante por declaração das testemunhas e, quanto a estas, identificou-as pelo nome, estado civil e residência. Mais identificou os peritos médicos, da mesma forma e ainda pelos números das suas cédulas profissionais, acrescentando “os quais, sob juramento legal, prestado perante mim, abonaram a sanidade mental do testador”. Finalmente exarou que o testamento foi lido e feita a explicação do seu conteúdo, em voz alta, na presença simultânea dos intervenientes que assinaram, de forma sucessiva, antes da Notária.
Este testamento foi outorgado em 10 de maio de 1991, pelo que se lhe aplicavam as disposições do Código do Notariado aprovado pelo Decreto-lei n.º 47619, de 31 de março de 1971, com as sucessivas alterações que foi sofrendo e não o atual Código, aprovado pelo DL n.º 207/95, de 14 de agosto, que é posterior àquela data em que foi celebrado o testamento.

O artigo 62.º deste DL 47619, sob a epígrafe “Formalidades comuns”, estabelece que:

1. O instrumento notarial deve conter:
a) A designação do dia, mês, ano e lugar em que for lavrado ou assinado;
b) O nome completo do funcionário que o lavrou, a menção da respectiva qualidade e a designação da repartição a que pertence;
c) O nome completo, estado, naturalidade e residência habitual dos outorgantes, bem como das pessoas singulares por estes representadas, as denominações das pessoas colectivas e as denominações ou firmas das sociedades que os outorgantes representem, com a indicação das suas sedes;
d) A referência à forma como foi verificada a identidade dos outorgantes;
e) A menção das procurações e dos documentos que justifiquem a qualidade de procuradores e de representantes, com expressa alusão à verificação dos poderes necessários para o acto, bem como a de todos os documentos relativos ao instrumento, com indicação da data da sua expedição e das demais circunstâncias indispensáveis para os identificar;
f) O nome completo, estado e residência habitual das pessoas que devam intervir como abonadores, intérpretes, peritos-médicos, testemunhas e leitores;
g) A referência ao juramento ou compromisso de honra dos intérpretes, peritos ou leitores, quando os houver, com a indicação dos motivos que determinaram a sua intervenção;
h) As declarações correspondentes ao cumprimento das demais formalidades exigidas pela verificação dos casos previstos nos artigos 79.º e 80.º;
i) A menção de haver sido feita aos outorgantes, em voz alta e na presença simultânea de todos os intervenientes, a leitura do instrumento lavrado e a explicação do seu conteúdo;
j) A indicação dos outorgantes que não assinem e a declaração, que cada um deles faça, de que não assina por não saber ou por não poder fazê-lo;
l) As assinaturas, em seguida ao contexto, dos outorgantes que possam e saibam assinar, bem como de todos os outros intervenientes, e a assinatura do funcionário, que será a última do instrumento.

Já o artigo 64.º, quanto à verificação da identidade, dispunha:

1. A verificação da identidade dos outorgantes pode ser feita por alguma das seguintes formas:
a) Pelo conhecimento pessoal do notário;
b) Pela exibição do bilhete de identidade ou do documento equivalente, ou, quanto aos estrangeiros e aos nacionais com residência habitual no estrangeiro, do respectivo passaporte;
c) Pela declaração de dois abonadores que o notário considere dignos de crédito.
acrescentando o seu n.º 5 que:
5. As testemunhas instrumentárias podem servir de abonadores.

Ainda com interesse para esta questão das formalidades, veja-se o que dispõem os artigos
Artigo 69.º
(Rubrica das folhas não assinadas)
As folhas dos instrumentos lavrados fora dos livros, com excepção das que contiverem as assinaturas, serão rubricadas pelos outorgantes que saibam e possam assinar, pelos demais intervenientes e pelo notário.

Artigo 83.º
(Juramento legal)
1. Os intérpretes, peritos e leitores devem prestar, perante o notário, o juramento ou compromisso de honra de bem desempenharem as suas funções.

Artigo 159.º
(Verificação da identidade)
1. A indicação, por parte do notário, da identidade do signatário ou firmante pode fazer-se por qualquer das formas previstas no artigo 64.º
2. Se o signatário ou firmante for conhecido do notário, far-se-á menção de que foi suprida a abonação.
3. Quando se trate de abonação documental, observar-se-á o disposto no n.º 4 do artigo 64.º
4. No caso de identificação por abonadores, é suficiente a assinatura destes.

Verifica-se, assim, que foram cumpridas todas as formalidades que o Código do Notariado em vigor à data da outorga deste testamento, impunha, designadamente, quanto aos elementos que tinham que constar obrigatoriamente do ato, quanto à identificação do outorgante, das testemunhas e dos peritos-médicos e quanto à desnecessidade de rubricas, considerando que os testamentos são lavrados em livro próprio. O testador foi validamente identificado, assim como as testemunhas e os peritos.
Ora, de acordo com o artigo 84.º, n.º 1, alínea d), o testamento só é nulo por vício de forma quando falte a assinatura de qualquer abonador, perito ou testemunha, o mesmo não sucedendo quanto à forma de verificação da identidade dos mesmos.
Do que fica dito resulta que o testamento em causa não sofre de qualquer vício formal que conduzisse à sua nulidade.
Independentemente da questão formal, e ainda que se considerasse a existência de alguma irregularidade na identificação do testador, de modo nenhum se acompanha o apelante quanto às suas dúvidas sobre a presença deste no momento em que foi lavrado o ato notarial. Pese embora a testemunha (a única ainda viva), não tenha conseguido lembrar-se se conhecia ou não o testador, refugiando-se na passagem do tempo (mais de 30 anos) e no facto de, normalmente, ela e a colega, funcionárias da Conservatória do Registo Civil, serem chamadas para atos semelhantes, a verdade é que os peritos médicos não tiveram qualquer dúvida quanto ao facto de o testador ter estado presente, sendo certo que ambos o conheciam bem e um deles era mesmo o seu médico de família (o facto de a outra médica não acompanhar o processo individual do testador, não lhe retira credibilidade, uma vez que o conhecia da sua vida profissional e o colega apresentou-lhe os dados clínicos, que correspondiam à ideia que tinha do mesmo). Também nenhumas dúvidas teve a Sra. Notária, que declarou que teve uma conversa inicial com o testador, para se aperceber das suas intenções e que ficou perfeitamente esclarecida.
Daí que não haja qualquer razão para alterar a alínea kk) dos factos não provados.

E o mesmo se diga quanto à alínea mm).
Da prova produzida resulta que nunca esta alínea poderia passar para os factos provados, uma vez que não há dúvidas que a ré pagou as missas, não só as relativas ao Padre A. M., como as relativas à sua irmã M. L. (€ 20.100,00), bem como comprou a sepultura (€ 400,00) e a campa de granito e a realização dos muros (€ 885,60 + € 500,00) e entregou a quantia de € 1.000,00 para os seminários da arquidiocese de Braga, verificando-se pelas fotografias que juntou qua a campa se encontra ornamentada – cfr. documentos de fls. 63 a 82 dos autos. Ou seja, cumpriu, na generalidade, os encargos que para si resultavam do testamento. O facto de o funeral não ter sido organizado pela ré, resulta do facto de ela só ter tido conhecimento do testamento após a realização do mesmo. Contudo, quis pagar as despesas correspondentes – que haviam sido suportadas pelo autor – e este não respondeu à missiva que lhe enviou com esse intuito. Quanto ao cuidado com a sua irmã, na fase final da vida, releva o depoimento da testemunha I. S., enfermeira, que prestou cuidados de saúde ao Padre e a M. L. e que se apercebeu que era a ré quem cozinhava o almoço para levar a casa deles. Se as missas foram todas rezadas no prazo de um ano, já não dependia da vontade da ré, uma vez que, conforme deixou expresso o testamenteiro, logo que elas são pagas, cabe à arquidiocese fazer a sua distribuição. Tudo isto foi, aliás, assinalado pelo testamenteiro – Padre CT. – no seu depoimento onde, apesar de ter confessado que não foi ele que redigiu o documento onde declara que os encargos foram cumpridos, também revelou que o assinou porque, em face dos pagamentos efetuados e da prova oferecida, se afigurou o mesmo conforme com a realidade.
Verifica-se, assim, que os encargos foram, genericamente, cumpridos (e, na parte que o não foram, sem culpa da ré, por desconhecimento do testamento), pelo que, não sendo caso em que o testador tivesse determinado a resolução da disposição testamentária pelo não cumprimento do encargo, apenas poderia o autor pedir a resolução desta disposição testamentária se fosse lícito concluir do testamento que a disposição não teria sido mantida sem o cumprimento do encargo – artigo 2248.º, n.º 1 do Código Civil – o que não ocorre no caso dos autos, pois se verifica que a ré diligenciou pelo pagamento das missas, entregou a quantia destinada aos seminários e tratou da campa e de embelezar a sepultura, para além de ter cuidado da irmã nos últimos tempos de vida desta, o que, interpretado o testamento, corresponde ao essencial da vontade do testador (presumível ou conjecturável – Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol. VI, pág. 392).

Do que fica exposto, resulta a total improcedência da apelação, sendo de confirmar a sentença recorrida.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
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Guimarães, 16 de dezembro de 2021

Ana Cristina Duarte
Alexandra Rolim Mendes
Maria dos Anjos Melo Nogueira