Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
670/11.4TTBRG.G1
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
INDEMNIZAÇÃO
OBJECTO SEGURO
VALOR DA RETRIBUIÇÃO
RETRIBUIÇÃO REAL
RETRIBUIÇÃO DECLARADA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
Sumário (elaborado pela relatora):

I. Estando determinado facto assente por acordo no despacho saneador, nos termos do art. 131.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo do Trabalho, o tribunal não pode admitir e valorar a produção de prova sobre factos de sentido contrário, e muito menos sem que nada tenha sido requerido ou determinado oficiosamente, com observância do indispensável contraditório, sobre tal questão, antes devendo manter e relevar aquele facto admitido por acordo na sentença, nos termos do art. 135.º do Código de Processo do Trabalho e do art. 607.º do Código de Processo Civil.

II. Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais através dos quais se visa reapreciar e modificar decisões já proferidas que incidam sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, e não criá-las sobre matéria nova, não podendo confrontar-se o Tribunal ad quem com questões novas, salvo aquelas que são de conhecimento oficioso.

III. Não tendo a ré seguradora invocado, logo em sede de tentativa de conciliação presidida pelo Ministério Público e de contestação, a limitação da sua responsabilidade em função da retribuição efectivamente auferida pelo sinistrado e não da garantida pela apólice de seguro, questão invocada somente na apelação, o tribunal não pode conhecer da mesma, por incumprimento dos ónus legais relativos aos princípios da concentração da defesa e da preclusão estabelecidos na primeira parte do art. 573.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

IV. Se a responsabilidade pelo risco decorrente de acidente de trabalho estiver transferida para seguradora com base em retribuição superior à auferida pelo sinistrado, àquela, e não a esta, se deverá atender para o cálculo da indemnização por incapacidade temporária e da pensão.
Decisão Texto Integral:
1. Relatório

Na presente acção declarativa de condenação, com processo especial para efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, em que são autores JOÃO, E. M., J. M. e N. M. – habilitados como sucessores do sinistrado ANTÓNIO, falecido na pendência da causa, para prosseguirem esta em sua representação –, e réus X COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. e J. C., realizou-se tentativa de conciliação presidida pelo Ministério Público.

Os autores declararam:

«No dia 01.10.2009, pelas 18:00 horas, ao serviço da entidade empregadora, na Póvoa de Lanhoso, o seu pai sofreu o acidente dos autos quando ao apanhar maçãs em cima de uma escada, se desequilibrou e caiu, de que resultou traumatismo da coluna dorsal, coluna lombar e do tórax, com enfisema subcutâneo traumático e hemopneumotórax.

À data do acidente trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização da entidade empregadora supra referenciada, com a categoria profissional de trabalhador agrícola eventual, já que só era chamado para trabalhar quando era necessário e em determinadas épocas, não sabendo ao certo quanto é que o seu pai recebia por dia ou por hora e a média dos dias de trabalho que prestou para a entidade patronal. Apenas tem conhecimento, através deste processo, que estava transferida para o seguro a retribuição de € 46,64 x 313 + 52, o que perfaz a retribuição anual de € 14.650,32.

O acidente acima descrito provocou ao sinistrado as lesões descritas nos relatórios do do G.M.L. antecedente, as quais lhe determinaram as ITS a fls. 222, tendo sido considerado pelo perito médico afectado de uma IPP de 31,5%, a partir de 27.08.2010, data da cura clínica, o que aceitam.
O sinistrado faleceu a 29.11.2012.
Recebeu da seguradora € 4.203,88, de indemnização pelas ITS.
Reclama o pagamento de € 80,00 de despesas de deslocação de sua casa em Lisboa ao tribunal.»

Seguidamente, pelo Ministério Público foi feita a seguinte proposta:

«De acordo com os elementos constantes dos autos, reclamo para a viúva e filhos do sinistrado as seguintes prestações:

a) – Indemnização pelas ITS de fls. 222, no valor global de € 9.273,00, dos quais já se encontram pagos € 4.203,88 (€ 2.318,25 a cada um dos 4 filhos) da responsabilidade da seguradora, acrescidas de juros de mora, a calcular à taxa legal supletiva desde o dia seguinte ao da alta.
b) - A pensão anual e vitalícia de € 3.230,40, com início em 28.08.2010 até à data do óbito a 29.11.2012, no total de 2 anos, 3 meses e 2 dias, calculada com base na retribuição supra referenciada e na IPP atribuída de 31,5%, sendo € 7.168,40 a dividir pelos 4 filhos (€ 1.792,10 – a cada um dos 4 filhos) da responsabilidade da seguradora, acrescidas de juros de mora, a calcular à taxa legal supletiva desde o dia seguinte ao da alta.
c) - O pagamento da quantia de € 80,00 de despesas de deslocação de sua casa em Lisboa ao tribunal, da responsabilidade da seguradora, acrescidas de juros de mora, a calcular à taxa legal supletiva desde o dia da Tentativa de Conciliação.»

Pela seguradora foi declarado:

«A sua representada aceita a existência do acidente e a sua caracterização como acidente de trabalho.
Não aceita o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente.
Aceita a existência de uma apólice de acidente de trabalho sendo a retribuição de € 46,64 x 313 + 52, ou seja, retribuição anual de € 14.650,32.
Não aceita o resultado do exame médico atribuído pelo G.M.L..
Não aceita pagar qualquer pensão e indemnização e eventuais despesas relativas a este processo, uma vez que de acordo com os elementos apurados, concluimos que o acidente em causa não se enquadra no âmbito das coberturas do contrato de seguro subscrito pelo tomador do seguro, em virtude do mesmo, apenas, garantir trabalhadores eventuais eo sinistrado em causa ser trabalhador permanente, ou seja, não aceita pagar pensão de € 3.230,40, com início em 28.08.2010 até à data do óbito a 29.11.2012, no total de 2 anos, 3 meses e 2 dias, calculada com base na retribuição supra referenciada e na IPP atribuída de 31,5%, sendo € 7.168,40 a dividir pelos 4 filhos (€ 1.792,10 – a cada um dos 4 filhos), proposta pelo Mº. Pº. nos seus precisos termos.

Não aceita pagar a quantia de € 9.273,00, dos quais já se encontram pagos € 4.203,88 (€ 2.318,25 a cada um dos 4 filhos), proposta pelo Mº. Pº. nos seus precisos termos.
Não aceita pagar a quantia de € 80,00 de despesas de deslocação de sua casa em Lisboa ao tribunal, proposta pelo Mº. Pº. nos seus precisos termos.»

Pelo empregador foi declarado:

«Aceita a existência e caracterização do acidente como de trabalho, o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente e que o sinistrado auferia à data do acidente, o valor declarado para a seguradora, como trabalhador ocasional Não aceita pagar qualquer pensão ou indemnização pelas ITS, ou qualquer outra quantia, uma vez que se encontra tudo transferido para a seguradora.

Não aceita o resultado do exame médico atribuído pelo G.M.L.»
Tendo a conciliação se frustrado, pelas razões enunciadas, os autores apresentaram petição inicial em que mantiveram o declarado na tentativa de conciliação e alegaram ainda que o sinistrado como trabalhador rural ocasional auferia a retribuição diária de 46,64 €, a que corresponde a retribuição anual de 14.574,00 €.

Terminam, pedindo a condenação dos réus a pagarem as seguintes prestações, na medida das suas responsabilidades:

«a) Indemnização pelo período de incapacidade temporária absoluta, calculada com base na retribuição anual de € 14.650,32 o disposto nos art.19º a 21º e 48 º da Lei 98/2009, de 04.09, no total de € 9.273,00, a dividir pelos quatro filhos, levando-se em conta a quantia já entregue ao sinistrado pela seguradora, mas sem prejuízo de se vir a apurar qual das Rés é responsável pelo seu pagamento e assim ser exercido o direito de regresso;
b) pensão anual e vitalícia de € 3.230,40, calculada nos termos do disposto nos arts.19º a 21º e 48 º da Lei 98/2009, de 04.09, com base na retribuição anual ilíquida e na I.P.P. de 31,5%, com inicio em 28.8.2010 e até ao óbito do sinistrado, em 29.11.2012, no total de 2 anos, 3 meses e dois dias, que totaliza € 7.168,40, a dividir pelos quatro filhos;
c) Juros de mora sobre todas as quantias em que vierem a ser condenadas desde os respectivos vencimentos até integral pagamento – art. 72º da Lei 98/2009, de 04.03.»

A seguradora contestou, invocando que celebrou com o empregador um contrato de seguro de agricultura por área, completo, a prémio fixo, sendo o salário máximo diário a segurar de 25,00 € para homens e 22,50 € para mulheres, o qual apenas cobria trabalhadores eventuais indeterminados, na medida em que não foram indicados pelo tomador do seguro quaisquer trabalhadores permanentes, como era o caso do sinistrado, que, por conseguinte, não estava coberto.

Caso assim não se entenda, o capital seguro anual (salários) era de 2.207,68 €, correspondente ao valor declarado pelo tomador do seguro, indicando a remuneração máxima diária para trabalhador (homem e/ou mulher), pelo que quaisquer prestações eventualmente devidas pela contestante têm de ser calculadas de acordo com tal valor, assumindo o empregador a responsabilidade em função da parte do valor da retribuição que excede aquele.

O empregador contestou, declinando a sua responsabilidade na medida em que a mesma estava integralmente transferida para a seguradora, tendo em conta que, ao contrário do sustentado por esta, o sinistrado não era trabalhador permanente.

Proferiu-se despacho saneador e seleccionaram-se os factos assentes e controvertidos, constando entre os primeiros, além do mais:

J) A responsabilidade por acidentes de trabalho com trabalhadores eventuais ao serviço do segundo réu estava transferida para a primeira ré por contrato de seguro titulado pela apólice n.º 2789040/6, o qual era válido e eficaz no dia do acidente.
L) Este contrato de seguro cobria a retribuição anual de € 14.650,32.
M) A primeira ré entregou ao sinistrado a quantia de € 4.203,88 pelos períodos em que esteve com incapacidade temporária absoluta e parcial para o trabalho.

Realizou-se a audiência de julgamento, no decurso do qual o 2.º réu requereu a junção aos autos de seis cheques constantes de fls. 442 a 447, tendo a seguradora sido notificada, a pedido do Ministério Público, para esclarecer se o sinistrado chegara a receber as quantias deles constantes, antes de falecer, tendo aquela juntado documentos comprovativos do respectivo envio ao sinistrado.

Seguidamente, foi proferida sentença, que terminou com o seguinte dispositivo:

«Pelo exposto, decido julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:

1. Condeno a primeira ré a pagar a pensão anual e vitalícia de € 3.230,40 (três mil duzentos e trinta euros e quarenta cêntimos), devida pela incapacidade permanente parcial para o trabalho de que o sinistrado ficou a padecer, desde o dia seguinte ao da alta até ao seu falecimento, no total de € 7.168,40 (sete mil cento e sessenta e oito euros e quarenta cêntimos);
2. A pensão anual e vitalícia é devida desde o dia seguinte ao da alta;
3. A cada uma das pensões acrescem juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde o respectivo vencimento até integral pagamento;
4. Condeno a primeira ré a pagar a quantia de € 4.203,88 (quatro mil duzentos e três euros e oitenta e oito cêntimos), a título de indemnização pelo período em que o sinistrado esteve com incapacidade temporária absoluta para o trabalho;
5. Condeno a primeira ré a pagar a quantia de € 5.069,12 (cinco mil e sessenta e nove euros e doze cêntimos), a título de indemnização pelo período em que o sinistrado esteve com incapacidade temporária absoluta para o trabalho, acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a data da tentativa de conciliação até integral pagamento;
6. Absolvo o segundo réu dos pedidos contra si formulados.
*
Nos termos do art. 120º nº1 do Cód. de Processo do Trabalho, fixo à causa o valor de € 16.441,40 (dezasseis mil quatrocentos e quarenta e um euros e quarenta cêntimos).
*
Custas a cargo dos autores e da primeira ré na proporção do decaimento.»

A ré seguradora veio interpor recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:

«1. Em primeiro lugar, de facto, discute-se da (im)possibilidade de se considerar controvertida, admitindo a produção de prova sobre a mesma, matéria de facto já confessada – admitida pelas partes em sede de tentativa de conciliação.
Concretamente, deve ser aditada à factualidade provada o seguinte facto: “O sinistrado recebeu da seguradora € 4.203,88, de indemnização pelas ITS.”, devendo, ainda ser excluído daquela mesma factualidade o facto nº 14.
2. De direito, discorda-se do montante fixado para indemnização do sinistrado, designadamente, do valor da retribuição a considerar para o cálculo da mesma. Pretende aferir-se, em concreto, se o cálculo da indemnização por incapacidades temporárias e da pensão anual e vitalícia dever ser efectuado com base no vencimento real e efectivo de 35,00 €/dia ou no vencimento máximo coberto /transferido de/até € 46,64/dia.

DE FACTO:
DA MATÉRIA FIXADA EM SEDE DE TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO E SUAS CONSEQUÊNCIAS:

3. No âmbito da tentativa de conciliação celebrada nos presente autos a 02/09/2016, foi dito pelos demandantes, ora recorrentes (herdeiros do sinistrado) que o mesmo: “recebeu da seguradora € 4.203,88, de indemnização pelas ITS.
4. Em processo acidente de trabalho, como resulta do disposto no art. 131º/1 al. c) do CPT, devem considerar-se assentes os factos admitidos por acordo em tentativa de conciliação. Ou seja, declaração feita na tentativa de conciliação, no âmbito de um processo emergente de acidente de trabalho equivale a uma confissão judicial espontânea, com todas as consequências que decorrem do art. 284º do CPC e dos arts. 355° nº 2, 356°, 357º e 358° todos do CC.
5. Em suma, deve ser aditada à factualidade provada o seguinte facto: “O sinistrado recebeu da seguradora € 4.203,88, de indemnização pelas ITS.”, devendo, ainda ser excluída daquela mesma factualidade o facto nº 14.

B - DE DIREITO:

DO VALOR DA RETRIBUIÇÃO A CONSIDERAR PARA O CÁLCULO DA INDMENIZAÇÃO A ATRIBUIR AO SINISTRADO:

6. O contrato de seguro dos autos prevê a cobertura de um salário diário máximo, para homens, no valor de € 46,64 (quarenta e seis euros e sessenta e quatro cêntimos) – vd. fls. 35.
7. Pretende aferir-se, em concreto, se o cálculo da indemnização por incapacidades temporárias e da pensão anual e vitalícia dever ser efectuado com base no vencimento real e efectivo de 35,00 €/dia ou no vencimento máximo coberto /transferido de/até € 46,64/dia.
8. Desde já se refira, salvo o devido respeito, que a sentença em crise parece “confundir” “retribuição diária transferida de € 46,64/dia”, com “retribuição diária transferida até € 46,64/dia”, pois que in casu o “até” faz toda a diferença, como se verá, face ao facto provado nº 10: “O sinistrado auferia a quantia de € 35,00 por cada dia de trabalho.”
9. Os contratos desta natureza preveem o valor máximo do salário diário por trabalhador, sendo que a responsabilidade da seguradora se restringe ao valor efectivamente auferido pelo trabalhador/sinistrado, balizado pelo referido valor máximo garantida.
10. Analisando, especificamente, um contrato de seguro semelhante ao dos autos, definindo a interpretação que deve ser feita do mesmo, pronunciou-se o TR de Guimarães (proc. nº 630/14.3T8VRL.G1, de 06/10/2016, interpretando, e bem, as suas cláusulas, à luz dos arts. 236.º, n.º 1, 237.º e 238.º, n.º 1 do Código Civil, ou seja, desterminando “que as partes quiseram que a responsabilidade por acidente de trabalho ficasse transferida do empregador para a seguradora em função da retribuição real das pessoas seguras, a qual seria no máximo nos valores indicados.”
11. Em suma, considerando o valor efectivamente auferido, os valores fixados a título de incapacidades temporárias e de pensão anual estão acima dos efectivamente devidos.
12. O valor da pensão anual ascenderá, portanto a € 2.812,48, assim calculado:

€ 35,00 x 365 dias = € 12.775,00
€ 12.775,00 x 70% x 31,5% = € 2.812,48
13. Por seu lado, o valor das IT’s, calculadas desde 02/10/2009 até 27/08/2010, ascendem a € 11.550,00, assim calculados: € 35,00 x 330 dias (de 02/10/2009 a 27/08/2010).
14. Daqueles € 11.550,00, já foram pagos ao sinistrado € 4.203,88, ou seja, estão em dívida, apenas, nesta data, € 7.346,12.

DAS NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS

15. A sentença recorrida viola, entre outras, as normas previstas nos arts. 131º1 c) do CPT, 284º, 607º/5 do CPC, 355º/2, 356º, 357º, 358º, 236º/1, 237º e 238º do CC e 50º e 71º da LAT.»
Os autores responderam ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
O recurso foi admitido como apelação, com efeito meramente devolutivo.
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, e colhidos os vistos dos Exmos. Desembargadores Adjuntos, cumpre decidir.

2. Objecto do recurso

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, as questões que se colocam a este tribunal são as seguintes:

- modificação da decisão sobre a matéria de facto, no sentido de ser mantido o facto já assente relativo ao recebimento pelo sinistrado da quantia de 4.203,88 € a título de indemnização por incapacidades temporárias;
- se o valor de base de cálculo das prestações devidas aos autores deve ser o da retribuição que o sinistrado efectivamente auferia.

3. Fundamentação de facto

Os factos provados são os decorrentes do Relatório supra e ainda os seguintes:

1. O sinistrado ANTÓNIO exercia a actividade profissional de trabalhador agrícola;
2. No dia 1 de Outubro de 2009, enquanto exercia a sua actividade profissional, o sinistrado desequilibrou-se e caiu quando estava em cima de uma escada a apanhar maçãs;
3. Como consequência directa e necessária do acidente, o sinistrado esteve com incapacidade temporária absoluta para o trabalho pelo período de trezentos e trinta dias;
4. Como consequência directa e necessária do acidente, o sinistrado ficou a padecer de uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 31,50%;
5. O sinistrado teve alta clínica no dia 27 de Agosto de 2010;
6. Na altura do acidente, o sinistrado estava a exercer a sua actividade profissional ao serviço do segundo réu;
7. O segundo réu dedicava-se à actividade de produção de flores em estufas;
8. Esta actividade era exercida numa propriedade que pertencia à mãe do segundo réu;
9. Nesta propriedade, além da produção de flores em estufas, o segundo réu produzia produtos agrícolas no âmbito de uma exploração agrícola;
10. O sinistrado auferia a quantia de € 35,00 por cada dia de trabalho;
11. A responsabilidade por acidentes de trabalho com trabalhadores eventuais ao serviço do segundo réu estava transferida para a primeira ré por contrato de seguro titulado pela apólice n.º 2789040/6, o qual era válido e eficaz no dia do acidente;
12. Este contrato de seguro cobria a retribuição anual de € 14.650,32;
13. (eliminado nos termos do ponto 4.1. infra)
14. (eliminado nos termos do ponto 4.1. infra)
15. O sinistrado nasceu no dia 13 de Março de 1945;
16. O sinistrado faleceu no dia 29 de Novembro de 2012, por razões não relacionadas com o acidente;
17. Os autores são os únicos herdeiros do sinistrado.
18. A primeira ré entregou ao sinistrado a quantia de € 4.203,88 pelos períodos em que esteve com incapacidade temporária absoluta e parcial para o trabalho.

4. Apreciação do recurso

4.1. Cumpre conhecer em 1.º lugar da impugnação que a Apelante faz da decisão sobre a matéria de facto, no sentido de ser mantido o facto já assente, relativo ao recebimento pelo sinistrado da quantia de 4.203,88 € a título de indemnização por incapacidades temporárias, eliminando-se o facto 14).

Com efeito, conforme resulta do Relatório, quando se proferiu despacho saneador e se seleccionaram os factos assentes e controvertidos, ficou a constar entre os primeiros, além do mais, que:

M) A primeira ré entregou ao sinistrado a quantia de € 4.203,88 pelos períodos em que esteve com incapacidade temporária absoluta e parcial para o trabalho.

Tal sucedeu porque – como igualmente resulta do Relatório – tal facto foi alegado pelos autores e pela ré seguradora, não só aquando da tentativa de conciliação presidida pelo Ministério Público, como também nos respectivos articulados da fase contenciosa, tendo os autores, inclusive, formulado pedido que teve em conta a dedução de tal quantia.

Em conformidade, como tal facto constava da factualidade assente, não constava, por outro lado, dos factos controvertidos enunciados como base da subsequente produção de prova.

Sucede que, como se descreve no Relatório, no decurso da audiência de julgamento o 2.º réu requereu a junção aos autos de seis cheques constantes de fls. 442 a 447, tendo a seguradora sido notificada, a pedido do Ministério Público, para esclarecer se o sinistrado chegara a receber as quantias deles constantes, antes de falecer, tendo aquela juntado documentos comprovativos do envio dos cheques ao sinistrado.

Ora, sem que algo mais tivesse sido requerido pelas partes ou determinado oficiosamente, o tribunal recorrido, na sentença que proferiu, invocando para o efeito os aludidos cheques entretanto juntos aos autos, mas sem invocação de quaisquer fundamentos legais, fez desaparecer a sobredita alínea M) e deu como assentes os seguintes factos, que não estavam seleccionados como factos controvertidos:

13. A primeira ré enviou ao sinistrado os cheques relativos à quantia de € 4.203,88 pelo período em que esteve com incapacidade temporária absoluta para o trabalho;
14. O sinistrado não procedeu ao levantamento destes cheques, os quais foram encontrados juntamente com os seus bens após o seu falecimento.

Ora, estabelecendo o art. 131.º, n.º 1, als. c) e d) do Código de Processo do Trabalho, que, findos os articulados, o juiz profere, no prazo de 15 dias, despacho saneador destinado a, além do mais, considerar assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação e nos articulados e seleccionar a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, que deva considerar-se controvertida, conclui-se, em face do que resulta do Relatório, que foi acertadamente que o tribunal recorrido, por um lado, fez consignar como assente sob a alínea M) que a primeira ré entregou ao sinistrado a quantia de € 4.203,88 pelos períodos em que esteve com incapacidade temporária absoluta e parcial para o trabalho, e, por outro lado, não enunciou como controvertida qualquer factualidade atinente a tal tema, designadamente os factos que na sentença introduziu sob os n.ºs 13. e 14..

O art. 135.º, por sua vez, dispõe que, na sentença final, o juiz considera definitivamente assentes as questões que não tenham sido discutidas na fase contenciosa, integra as decisões proferidas no processo principal e no apenso, cuja parte decisória deve reproduzir, e fixa também, se forem devidos, juros de mora pelas prestações pecuniárias em atraso.
No que respeita à elaboração da sentença, há ainda que ter em conta o art. 607.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art. 1.º do Código de Processo do Trabalho, a saber (sublinhados nossos):

(…)
4- Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
5 - O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.

(…)
Em face do exposto, uma vez que a factualidade da alínea M) estava assente por acordo, conforme o próprio tribunal recorrido consignara, este não podia ignorá-la, nem, por outro lado, podia admitir e valorar a produção de prova sobre os factos dos n.ºs 13. e 14., tanto mais que nada fora requerido ou determinado oficiosamente, com observância do indispensável contraditório, sobre tal questão.
Tenha-se ainda em conta que o art. 74.º do Código de Processo do Trabalho, sob a epígrafe «Condenação extra vel ultra petitum», nos termos do qual o juiz deve condenar em quantidade superior ao pedido ou em objecto diverso dele quando isso resulte da aplicação à matéria provada, ou aos factos de que possa servir-se, nos termos do artigo 514.º do Código de Processo Civil, de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho, evidencia igualmente que para os efeitos indicados o tribunal só pode servir-se, para além de factos notórios e dos que sejam do seu conhecimento por virtude do exercício das suas funções, de factos provados nos termos acima explicitados.

Nos termos do n.º 1 do art. 662.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe «Modificabilidade da decisão de facto», a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (sublinhado nosso).

Atendendo a todo o exposto, e sem necessidade de mais considerações, impõe-se a reposição da factualidade assente atinente a este tema no status quo anterior à alteração ilegalmente introduzida pelo tribunal recorrido aquando da elaboração da sentença (modificação introduzida no local próprio).

Consequentemente, o recurso procede nesta parte, e, assim, há que deduzir a quantia em questão no valor da indemnização por incapacidade temporária em que a ré seguradora foi condenada.

4.2. Passando à segunda questão suscitada pela Apelante, importa apreciar e decidir se o valor de base de cálculo das prestações devidas aos autores deve ser o da retribuição que o sinistrado efectivamente auferia.

Conforme resulta do Relatório, quando se proferiu despacho saneador e se seleccionaram os factos assentes e controvertidos, ficou a constar entre os primeiros, além do mais, que:

J) A responsabilidade por acidentes de trabalho com trabalhadores eventuais ao serviço do segundo réu estava transferida para a primeira ré por contrato de seguro titulado pela apólice n.º 2789040/6, o qual era válido e eficaz no dia do acidente.
L) Este contrato de seguro cobria a retribuição anual de € 14.650,32.

Tal sucedeu porque – como igualmente resulta do Relatório – tal facto foi alegado pelos autores e pela ré seguradora, não só aquando da tentativa de conciliação presidida pelo Ministério Público, como também nos respectivos articulados da fase contenciosa.

Na verdade, no que respeita à seguradora, naquele primeiro momento declarou que aceita a existência de uma apólice de acidente de trabalho, sendo a retribuição de € 46,64 x 313 + 52, ou seja, retribuição anual de € 14.650,32. E que não aceita pagar qualquer pensão e indemnização e eventuais despesas relativas a este processo, uma vez que o acidente em causa não se enquadra no âmbito das coberturas do contrato de seguro subscrito pelo tomador do seguro, em virtude de o mesmo apenas garantir trabalhadores eventuais e o sinistrado em causa ser trabalhador permanente.

Na contestação, a seguradora voltou a sustentar tal argumentação, em primeira linha, embora de modo ininteligível tenha alegado que o salário máximo diário a segurar era de 25,00 € para homens e 22,50 € para mulheres, sendo o capital seguro anual (salários) de 2.207,68 €, o que só pode entender-se como lapso manifesto e de todo o modo irrelevante em face do valor já aceite de € 46,64 x 313 + 52, ou seja, retribuição anual de € 14.650,32. A título subsidiário, para o caso de se entender que a seguradora é responsável, a contestante sustentou que quaisquer prestações eventualmente devidas pela mesma têm de ser calculadas de acordo com o valor garantido pela apólice, assumindo o empregador a responsabilidade em função da parte do valor da retribuição que excede aquele.

Isto é, nunca a seguradora invocou nos autos, excepto agora em sede de recurso, que a sua responsabilidade devia ser limitada em função do valor da retribuição realmente auferida pelo sinistrado, e não em função do valor que ela mesma declarou como sendo o da retribuição garantida, e isto apesar de na petição inicial os autores terem já alegado que o sinistrado auferia uma retribuição inferior à mesma (retribuição anual de 14.574,00 €), ainda que diferente da que se veio a dar como provada.

Nos termos do art. 573.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe «Oportunidade de dedução da defesa», toda a defesa deve ser deduzida na contestação, exceptuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado (n.º 1) e depois da contestação só podem ser deduzidas as excepções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente (n.º 2).

Assim, a ré seguradora deveria ter invocado a excepção em apreço, expressamente e com articulação dos factos pertinentes, logo na contestação, sob pena de ficar, como ficou, precludida tal possibilidade, uma vez que não se trata de questão de conhecimento oficioso.

Perante a posição assumida pela seguradora em sede de tentativa de conciliação e contestação, ficaram a constar da factualidade assente as mencionadas alíneas J) e L), e, por outro lado, não ficou a constar dos factos controvertidos enunciados como base da subsequente produção de prova qualquer factualidade tendente a infirmar ou obstar àquela.

O tribunal recorrido observou devidamente, nesta parte, o que decorre dos arts. 131.º, n.º 1, als. c) e d) e 135.º do Código de Processo do Trabalho, bem como do art. 607.º do Código de Processo Civil.

Acresce que a seguradora, para além de não ter deduzido reclamação contra a organização do despacho condensatório da matéria de facto assente e controvertida, nem mesmo em sede de recurso veio requerer, com observância dos requisitos legais, a alteração da decisão sobre a matéria de facto nesta parte.

Sobre esta temática, aplicada a questão distinta mas análoga quanto ao que interessa, veja-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Novembro de 2016, proferido no âmbito do processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S2, com o seguinte sumário(1):

“I – Nos termos dos artigos 303.º e 333.º, n.º 2, ambos do Código Civil, a caducidade do direito de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador não pode ser oficiosamente conhecida, necessitando de ser invocada por aquele a quem aproveita e no momento oportuno.
II – Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais através dos quais se visa reapreciar e modificar decisões já proferidas que incidam sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, e não criá-las sobre matéria nova, não podendo confrontar-se o Tribunal ad quem com questões novas, salvo aquelas que são de conhecimento oficioso.
III – Tendo o Autor resolvido o respectivo contrato de trabalho em 25 de Janeiro de 2013, com fundamento no não pagamento integral da respectiva retribuição e subsídios a partir de 2002, poderia a Ré ter invocado, logo em sede de contestação, a excepção de caducidade do direito de resolução do contrato de trabalho pelo decurso do prazo previsto no n.º 1, do art.º 395.º, do Código do Trabalho.
IV – A Relação não violou o direito de defesa e de acesso aos Tribunais consagrado no artigo 20° da Constituição da República Portuguesa ao não tomar conhecimento da excepção de caducidade do direito de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador, invocada somente na apelação, por incumprimento dos ónus legais relativos aos princípios da concentração da defesa e da preclusão estabelecidos na primeira parte do art.º 573.º, n.º 1, do CPC.”

Posto isto:

Resulta, entre outros, do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Janeiro de 2012, proferido no âmbito do processo n.º 421/06.5TTFIG.C1.S1, do Acórdão da Relação do Porto de 4 de Fevereiro de 2013, proferido no âmbito do processo n.º 225/10.0TTOAZ.P1, do Acórdão do presente colectivo de 6 de Outubro de 2016, proferido no âmbito do processo n.º 630/14.3T8VRL.G1, e do Acórdão desta Relação de 20 de Outubro de 2016, proferido no âmbito do processo n.º 282/14.0TTVRL.G1 (2):

- por um lado, que o regime jurídico de acidentes de trabalho apenas estabelece valores mínimos das prestações devidas aos sinistrados, os quais podem ser superiores por iniciativa do empregador que, designadamente, celebre contrato de seguro baseado em retribuição superior à efectivamente paga, devendo o mesmo ser respeitado pelos respectivos contraentes;
- por outro lado, que, nos casos concretos aí apreciados, se considerou que a responsabilidade por acidente de trabalho relativa aos aí sinistrados está, ou não, transferida para as aí seguradoras por retribuição superior à realmente auferida por aqueles, conforme as posições concretamente assumidas pelas partes e a factualidade concretamente provada.

Na verdade, a lei dos acidentes de trabalho estabelece apenas valores mínimos obrigatórios, não decorrendo dos seus termos que proíba o empregador de, querendo ir além dos valores das prestações resultantes da mesma, celebrar um contrato de seguro com uma seguradora por valores retributivos superiores à retribuição real, pagando o correspondente prémio.

Como refere Pedro Martinez (3), mencionando uma norma do anteprojecto do Código do Trabalho que expressamente previa o agravamento da responsabilidade por via contratual, “[a] norma não foi incluída na versão final do Código do Trabalho nem na versão da LAT de 2009, mas a solução nela proposta não se encontra proibida e continua a valer por via do princípio da liberdade contratual. Do disposto no art. 12.º da LAT parece poder deduzir-se que nada obsta quanto a ser acordado um agravamento de tal responsabilidade; será, pois, válido um regime convencional que exceda os limites legais, designadamente admitindo uma indemnização fixada por parâmetros mais elevados do que a retribuição ou abrangendo outros danos, como os lucros cessantes.”

No caso que nos ocupa, tendo em conta tudo quanto já se disse, é mister considerar que a responsabilidade por acidente de trabalho relativa ao sinistrado dos autos está efectivamente transferida para a seguradora ora Apelante por retribuição superior à realmente auferida por aquele, atendendo às posições concretamente assumidas pelas partes e à factualidade concretamente provada.
Improcede, pois, o recurso nesta parte.

5. Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, em absolver a ré seguradora da quantia de 4.203,88 € a título de indemnização por ITA, confirmando-se a sentença em tudo o mais.
Custas pela Apelante na proporção do seu decaimento.

Guimarães, 28 de Junho de 2018


(Alda Martins)
(Eduardo Azevedo)
(Vera Sottomayor)


1. Disponível em www.dgsi.pt.
2. Todos disponíveis em www.dgsi.pt.
3. Direito do Trabalho, Almedina, 2013, pp.788-789.