Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
324/17.8GAMCD-A.G1
Relator: ARMANDO AZEVEDO
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
CONCEITO LEGAL
CRIME DE AMEAÇA
ARTº 311
ALS.A)
B)
C) E D) DO Nº 3 DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/29/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Atualmente, o conceito legal de “acusação manifestamente infundada” faz-se por referência aos casos previstos nas alíneas a), b), c) e d) do nº 3 do artigo 311º do CPP, os quais correspondem a vícios extremamente graves da acusação que a inquinam por forma irremediável, de tal modo que a tornam imprestável para o fim a que se destina

II) A realização de julgamento, em tais hipóteses, constituiria uma mera inutilidade, pois que a acusação, por defeito da sua confeção, está ab initio votada ao insucesso. Por isso, em tais casos, entendeu o legislador não permitir a sujeição do arguido a julgamento, pelos incómodos que isso representaria, mas também por razões de economia processual.

III) No caso dos autos, inexistem fundamentos que imponham a rejeição da acusação por manifestamente infundada, visto que a factualidade nela descrita é susceptível de integrar os elementos do acusado delito de ameaça, devendo, por isso, ser revogado o despacho recorrido, substituindo-se por outro que recebendo a acusação deduzida pelo M.P., designe data para realização de audiência de discussão e julgamento.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, Juízo de Competência Genérica de Macedo de Cavaleiros, no processo comum com intervenção de tribunal singular nº 324/17.8GAMCD, em que é arguido A. R. e assistente A. M., ambos com os demais sinais nos autos, com data de 18.12.2018, foi proferido despacho judicial pelo qual a acusação deduzida pelo M.P. foi rejeitada, por manifestamente infundada, nos termos do disposto no artigo 311º, n° 2, al. a) e n°3, al. d) do Código de Processo Penal, por se ter considerado que os factos objetivos nela descritos não integram o tipo legal de crime de ameaça.
2. Não se conformando com tal despacho, o M.P. dele interpôs recurso, tendo concluído nos seguintes termos [transcrição]:

1. A factualidade vertida na acusação pública (que por brevidade de exposição e economia de texto se dá por reproduzida) contém factos com relevância criminal constitutivos, em abstrato, do crime de ameaça, p, e p, no art. 153°, n° 1, do Cód. Penal, anunciando um mal futuro e reclamando a intervenção do direito penal.
2. As expressões imputadas ao arguido, descritas na acusação, integram, pelo menos, uma ameaça com a prática de crime contra a integridade física, prenunciando um mal futuro.
3. Porquanto, o arguido disse ao assistente, por telemóvel, “que sabia onde parava à noite, para tomar café, e que não era por ser grande que lhe tinha medo e que fosse ter onde quisesse que levava uns amigos” ... “Perante o exposto, o assistente disse ao arguido que fosse ter ao posto da GNR, em Macedo de Cavaleiros, e que aí conversariam recebendo como resposta, do arguido, que não ia e que sabia onde o encontrar” ... o arguido enviou ao assistente um sms com o seguinte teor “eu t vergo”.
4. Tais expressões, sob o ponto de vista da homem médio e segundo as regras da experiência, são aptas e idóneas a provocar medo ou inquietação, projectando-se para o futuro, não se esgotando naquele momento, prejudicando a liberdade de determinação.
5. Inequivocamente o arguido deu a entender ao assistente que estava disposto a atingi-lo na integridade física.
6 Depreende-se do teor daquelas expressões que o arguido quis transmitir ao assistente que iria procurá-lo e que, sendo este grande (fisicamente forte) se faria acompanhar de amigos que, em conjunto, iriam surpreender e agredir o assistente.
7. Por outro lado, perante o convite do assistente para que conversassem no posto da GNR o arguido de imediato recusou a conversação, nesse local, e disse que sabia onde o encontrar indicando-lhe, mais uma vez, o seu intuito de o agredir de surpresa em local não seguro para o assistente,
8. Com aquele procedimento o arguido quis amedrontar o assistente, causando-lhe um sentimento de insegurança, levando-o a temer, dali em diante, pelo menos, pela integridade física, sendo o seu comportamento idóneo a atingir essas finalidades.
9. Tendo o arguido o arguido actuado voluntária e conscientemente, com o propósito de causar temor no assistente, fazendo com que este receasse que, dali em diante, o propósito anunciado fosse concretizado, pois fez-lhe crer que, pelo menos, estava disposto a atentar contra a sua integridade física, o que foi levado a cabo com o intuito de causar medo e de criar um sentimento de insegurança, o que tudo quis, sabendo que a sua conduta era proibida por lei, daí resulta de forma inequívoca a prática do crime de ameaça p. e p. no art. 153°, nº 1 do Cód. Penal.
10. Concluindo-se, assim, que os factos descritas e imputados na acusação pública contêm todos os elementos necessários, sob o ponto de vista objetivo e subjetivo, que enquadram o tipo de crime em apreço.
11. Pelo que, existem indícios suficientes de que o arguido praticou o crime de ameaça de que se encontra acusado.
12. É entendimento pacífico da jurisprudência que a rejeição da acusação, por ser “manifestamente infundada por inexistência de crime”, só deve ocorrer em casos limite e claramente inequívocos e incontroversos (o que, como supra referido, não é o caso dos autos).
13. Por outro lado, a opção de sanear o processo considerando a acusação pública “manifestamente infundada por inexistência de crime” infringe o princípio do acusatório, pois não é inequívoco que os factos narrados não são subsumíveis ao tipo de crime de ameaça, p. e p. no art. 153°, nº 1 do Código Penal.
14. Devendo, assim, o douto despacho ser substituído por outro que receba a acusação pública e que designe julgamento.
15. Pois mostra-se efetuada uma incorreta interpretação dos normativos vertidos nos arts. 153°, n°1, do Código Penal e 311°. n° 2, al. a) e n°3 al. d) do Código de Processo Penal.

Assim, em conclusão, pelos motivos expostos, julgando procedente o recurso V. Exas. farão a costumada e habitual, Justiça.

3. O recurso foi admitido.
4. O assistente e o arguido não responderam ao recurso.
5. Neste Tribunal da Relação, o Exº Senhor Procurador-Geral Adjunto foi de parecer que o recurso deverá ser julgado procedente.
6. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do C.P.Penal, mas não foi apresentada qualquer resposta.
7. Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência

II- FUNDAMENTAÇÃO

1- Objeto do recurso

O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso (1) do tribunal.

Assim, e tendo presente o disposto no nº 1 do artigo 412º do C.P.P., face às razões de discordância do recorrente relativamente à decisão recorrida, temos que a questão a decidir no caso sub judice reconduz-se a saber se a acusação deduzida pelo M.P. é manifestamente infundada para efeitos do disposto no artigo 311º, nº 2 al. a) e nº 3 al. d) do CPP.

2. A decisão recorrida

2.1- O despacho recorrido tem o seguinte teor [transcrição]:

O Digno Magistrado do Ministério Público deduziu acusação contra A. R. pela prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153° do CP.

Para tanto imputa ao arguido a seguinte conduta:

1. No dia 29.Nov.2017, pelas 18h22mn, o assistente A. M. encontrava-se na residência, sita na Rua …, Macedo de Cavaleiros, quando, no seu telemóvel n° …, recebeu uma chamada do arguido, que utilizou o n° ..., que, entre o mais, lhe disse: que sabia onde parava à noite, para tomar café, e que não era por ser grande que lhe tinha medo e que fosse ter onde quisesse que levava uns amigos.
2. Perante o exposto, o assistente disse ao arguido que fosse ter ao posto da GNR, em Macedo de Cavaleiros, e que aí conversariam recebendo como resposta, do arguido, que não ia e que sabia onde o encontrar.
3. No dia 25.2.2018, às llhO8mn, o assistente recebeu no seu telemóvel, acima referido, uma mensagem proveniente do arguido, que usou o n° ..., dizendo: “eu t vergo”.”

Cumpre apreciar se os factos descritos constituem crime, salientando-se que o artigo 311°, n° 2, al. a) do CPP dispõe que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada, acrescentando o no 3, al. d) do mesmo artigo que a acusação considera-se manifestamente infundada quando os factos não constituírem crime.

Vejamos.

Sobre o crime de ameaça, dispõe o referido artigo 153º do Código Penal que “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.”

No crime de ameaça, o bem jurídico protegido é a liberdade de decisão e de ação, a liberdade pessoal.

Como salienta Taipa de Carvalho, “As ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afetam, naturalmente, a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade.” in Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 342.

Ao nível do tipo objetivo de ilícito exige-se que o agente profira determinadas expressões, orais, escritas ou mesmo gestuais, que ameacem o destinatário com um mal, concretamente, com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.

Exige-se ainda que esse mal seja futuro, que seja adequado a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação da vítima e, finalmente que a ocorrência do mal futuro dependa da vontade do agente.

Aprofundando estes requisitos, evidencia-se que característica fundamental da ameaça é o anúncio de um mal futuro. Isto significa que o mal ameaçado não pode estar em execução ou na iminência de execução, sob pena de a ameaça se consumir no âmbito da incriminação em execução.

A ameaça como mal futuro surge, então, por oposição às expressões que se inserem na tentativa de execução do respetivo ato violento, do respetivo mal.

Neste sentido, Taipa de Carvalho, in op. cit. pág. 343, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-06-2006, proferido no processo n° 0612040, e de 14-07-2004, proferido no processo n° 0346292 e acórdão do Tribuna da Relação de Guimarães de 18-05-2009, proferido no processo n° 349/07.1PBVCT, todos consultados em www.dgsi.pt.

Exige-se ainda que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação da vítima.

Sinteticamente são necessários os seguintes elementos para que se possa configurar a prática do crime em análise:

- que haja uma ameaça,
- com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor,
- que essa ameaça seja de forma adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação da vítima.

Transpondo estes princípios para o caso concreto, salvo o devido respeito, entendemos que a conduta objetiva imputada ao arguido não preenche o tipo de crime em análise.

Veja-se, a conduta imputada ao arguido é a de:

- No dia 29.Nov.2017, pelas 18h22mn, ter disso ao assistente “que sabia onde parava à noite, para tomar café, e que não era por ser grande que lhe tinha medo e que fosse ter onde quisesse que levava uns amigos.”

Ora, quanto a este trecho, salvo o devido respeito, e ainda que se considere que dado o contexto de conflito latente as expressões possam ser consideradas ameaçadoras, as mesmas não inculcam uma ameaça com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, requisito indispensável, como vimos, para que se considere integrado a prática do crime de ameaça.

São em si mesmas expressões vazias de relevância criminal.

Já quanto ao segundo trecho, imputa-se a seguinte conduta: “Perante o exposto, o assistente disse ao arguido que fosse ter ao posto da GNR, em Macedo de Cavaleiros, e que aí conversariam recebendo como resposta, do arguido, que não ia e que sabia onde o encontrar.”

Mais uma vez, trata-se de uma conduta despida de relevância criminal. finalmente, imputa-se ao arguido a seguinte conduta:

“No dia 25.2.2018, às 11h08mn, o assistente recebeu no seu telemóvel, acima referido, uma mensagem proveniente do arguido, que usou o n° ..., dizendo: “eu t vergo”.”
Ora, a expressão em causa salvo o devido respeito por opinião contrária, não contém o anúncio de qualquer mal futuro que seja apto a causar medo ou inquietação.
Assim sendo, concluímos que a matéria objetiva imputada ao arguido não é suscetível de integrar a prática do crime em causa.
Pelo exposto, nos termos do disposto no artigo 311º, n° 2, al. a) e n°3, al. d) do Código de Processo Penal, rejeito a acusação pública deduzida contra A. R., por manifestamente infundada.
Sem custas.
Notifique.

3. Apreciação do recurso

3.1- No caso em apreço está em causa a decisão de rejeição da acusação deduzida pelo M.P. por juiz de julgamento, que a qualificou como manifestamente infundada, em conformidade com o disposto no artigo 311º, n° 2, al. a) e n°3, al. d) do Código de Processo Penal.

A questão dos poderes do juiz do julgamento relativamente à apreciação da acusação que lhe seja remetida para julgamento sem que tenha havido instrução relaciona-se com o modelo perfilhado pelo legislador quanto à estrutura do processo.

Como é sabido, o sistema processual português não é acusatório puro, mas obedece a uma estrutura basicamente acusatória, integrada por um princípio de investigação da verdade material.

Com efeito, o nº 5 do artigo 32º da CRP diz que “O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”.

O princípio da acusação significa que o julgador não pode acumular as funções de acusação e investigação, mas pode apenas julgar dentro dos limites que lhe são postos por uma acusação fundamentada e deduzida por um órgão diferente (entre nós, MP ou juiz de instrução).

A intencionalidade do princípio é a garantia de imparcialidade do julgador e a igualdade de armas. Por isso mesmo, o MP não pode ser dono do processo nas fases de instrução e julgamento.

O princípio da acusação impõe a vinculação temática e a limitação dos poderes de cognição do juiz de instrução (artigo 309º, nº 1 ) e do juiz de julgamento (artigo 284º, nº1, 359º, nº 1,e, nos crimes particulares, artigo 285º, nº 1, 359º, nº 1), cfr. Paulo Sousa Mendes, Lições de Direito Processual Penal, Almedina 2014, pág. 203-204.

O princípio do acusatório na sua essência significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Rigorosamente considerada, a estrutura acusatória do processo penal implica: a) proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também um órgão de acusação; b) proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador; c) proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento” cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Edição, pág. 205-206.

O processo penal de tipo acusatório opõe-se ao processo penal de tipo inquisitório, em que o juiz investiga livremente e sem limitação alguma, independentemente de qualquer acusação e, mesmo que tal acusação exista, ela apenas determina o se da investigação judicial, não o seu como nem o seu quanto, cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1984, reimpressão, pag. 136 e segs.

Como decorrência da opção tomada pelo legislador sobre o modelo escolhido relativamente à estrutura do processo, no momento do recebimento do processo para julgamento, os poderes do juiz de julgamento são muito limitados.

Não obstante, a lei processual penal conferiu alguns poderes ao juiz de julgamento no sentido de descoberta da verdade e na agilização do processo, em termos de se poder considerar o sistema processual português como acusatório mitigado. É neste contexto que se compreende o poder do juiz de julgamento de rejeitar a acusação por ser manifestamente infundada, em conformidade com o disposto no artigo 311º, nº 2 a) e nº 3 do CPP.

De forma pacífica tem-se entendido que o aditamento do nº 3 do artigo 311º do CPP, operado pelo DL nº 59/98, de 25.08, fez caducar a jurisprudência do assento nº 4/93, de 17.02.1993, in DR I-A, nº 72/93, de 06.03.1993, segundo o qual “A alínea a) do nº 2 do artigo 311º do Código de Processo Penal inclui a rejeição da acusação por manifesta insuficiência da prova indiciária”.

Atualmente, o conceito legal de “acusação manifestamente infundada” faz-se por referência aos casos previstos nas alíneas a), b), c) e d) do nº 3 do artigo 311º do CPP, os quais correspondem a vícios extremamente graves da acusação que a inquinam por forma irremediável, de tal modo que a tornam imprestável para o fim a que se destina. A realização de julgamento, em tais hipóteses, constituiria uma mera inutilidade, pois que a acusação, por defeito da sua confeção, está ab initio votada ao insucesso. Por isso, em tais casos, entendeu o legislador não permitir a sujeição do arguido a julgamento, pelos incómodos que isso representaria, mas também por razões de economia processual.

Por outro lado, os referidos vícios, como decorre do advérbio “manifestamente”, terão de resultar como algo de claro, inequívoco, evidente no sentido de que a sua verificação em concreto não oferece qualquer discussão, pois que só assim se entendendo se poderá afirmar que a acusação é infundada por forma manifesta (2).
No caso vertente, o pomo da discórdia reside na circunstância de a acusação deduzida pelo M.P. ter sido considerada manifestamente infundada em virtude de os factos nela descritos não serem suscetíveis de integrar o elemento objetivo do acusado crime de ameaça ou de qualquer outro tipo legal de crime, não tendo, por via disso, relevância penal, cfr. al. d) do nº 3 do artigo 311º do CPP.

Ora, a atipicidade da conduta imputada terá de resultar claramente do texto da acusação (3). E, sendo assim, importará indagar se efetivamente do seu texto não constam factos que permitam o preenchimento dos elementos típicos do crime imputado.

3.2. O crime de ameaça encontra-se previsto no artigo 153º, nº 1 do CP, segundo o qual “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.”

São elementos constitutivos do crime de ameaça p. e p. pelo artigo 153º, nº 1 do C. Penal o anúncio de que o agente pretende infligir a outrem um mal que constitua crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, que esse anúncio seja forma adequada a provocar receio, medo ou inquietação ou lhe prejudique a sua liberdade de determinação e que o agente tenha atuado com dolo.

Neste tipo legal de crime está em causa um ataque ou afetação ilícita da liberdade individual, em que o bem jurídico protegido é a liberdade de decisão e de ação. Trata-se de um crime de mera ação e de perigo, de perigo concreto, porquanto exige-se apenas que a ameaça seja idónea, no sentido de que seja suscetível de afetar ou de lesar a paz individual ou a liberdade de determinação. Porém, não é necessário que, em concreto, tenha provocado medo ou inquietação, estando, pois, afastada a natureza de crime de dano ou de resultado.

No que concerne à adequação da ameaça para provocar medo ou inquietação, ou para prejudicar a liberdade de determinação, é de salientar, como bem refere Taipa de Carvalho (4), que é “objetivo-individual: objetivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é suscetível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das sub – capacidades do ameaçado”).”

3.3. In casu, como decorre do texto da acusação deduzida pelo M.P., estão em causa mensagens escritas enviadas pelo arguido ao assistente através de telemóvel em que, além do mais, lhe disse que sabia onde parava à noite para tomar café e que não era por ser grande que lhe tinha medo e que fosse ter onde quisesse que levava uns amigos. Perante o exposto, o assistente disse ao arguido que fosse ter ao posto da GNR, em Macedo de Cavaleiros, e que aí conversariam, recebendo como resposta do arguido que não ia e que sabia onde o encontrar. Noutra ocasião, o arguido enviou uma mensagem para o telemóvel do assistente com o seguinte teor “eu t vergo”.

Acresce que da acusação consta que “com aquelas expressões o arguido fez com que o assistente receasse que, dali em diante, o propósito anunciado fosse concretizado, pois fez-lhe crer que, pelo menos, estava disposto a tentar contra a sua integridade física, o que foi levado a cabo com intuito de causar medo e de criar um sentimento de insegurança, o que tudo quis. Agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a descrita conduta era contrária ao direito e punível por lei.”

Segundo o despacho recorrido as sobreditas expressões imputadas ao arguido não inculcam uma ameaça com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, requisito indispensável. Segundo este entendimento são expressões sem relevância criminal.

Pelo contrário, o recorrente defende que:

-Tais expressões, sob o ponto de vista do homem médio e segundo as regras da experiência, são aptas e idóneas a provocar medo ou inquietação, projetando-se para o futuro, não se esgotando naquele momento, prejudicando a liberdade de determinação.
- Inequivocamente o arguido deu a entender ao assistente que estava disposto a atingi-lo na integridade física.
- Depreende-se do teor daquelas expressões que o arguido quis transmitir ao assistente que iria procurá-lo e que, sendo este grande (fisicamente forte) se faria acompanhar de amigos que, em conjunto, iriam surpreender e agredir o assistente.
- Por outro lado, perante o convite do assistente para que conversassem no posto da GNR o arguido de imediato recusou a conversação, nesse local, e disse que sabia onde o encontrar indicando-lhe, mais uma vez, o seu intuito de o agredir de surpresa em local não seguro para o assistente.
- Com aquele procedimento o arguido quis amedrontar o assistente, causando-lhe um sentimento de insegurança, levando-o a temer, dali em diante, pelo menos, pela integridade física, sendo o seu comportamento idóneo a atingir essas finalidades (conclusões 4 a 8).

As mensagens imputadas ao arguido e por este dirigidas ao assistente através de telemóvel, de que sabe onde o assistente para à noite para tomar café e que não era por ser grande que lhe tinha medo e que fosse ter onde quisesse que levava uns amigos, recusando o “convite” do assistente para irem conversar ao posto da GNR, com fundamento em que sabia onde o encontrar, e a expressão “eu t vergo”, em abstrato, são idóneas ou adequadas a provocar receio, medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação do visado.
Na verdade, a ameaça jurídico penalmente relevante não necessita sequer de ser proferida por palavras, podendo sê-lo através de comunicação não verbal, designadamente, através de gestos.

No que concerne à comunicação verbal, as palavras ou afirmações proferidas podem ter vários sentidos. No caso, nas palavras ou afirmações imputadas ao arguido dirigidas ao assistente cabe o sentido que lhe é atribuído na acusação, ou seja, o anunciado propósito de, pelo menos, atingir o assistente na sua integridade física.

Efetivamente, quando alguém diz a outrem que sabe onde o encontrar à noite (sabe onde ele para à noite), que não tem medo dele por ser grande e que leva uns amigos, por um lado, está a escolher um momento do dia, ou seja a noite, que, por natureza, confere maior insegurança e intranquilidade ao visado. E, por outro, ao dizer que não tem medo dele por ser grande e que leva uns amigos, está a criar a ideia de um conflito físico necessariamente futuro e de que estará em vantagem por se se encontrar em superioridade numérica. Um dos possíveis sentidos da expressão “eu t vergo” é claramente o de agredir fisicamente, designadamente se referida com intuito de fazer crer ao visado que, pelo menos, estava disposto a atentar contra a sua integridade física, sendo seu propósito criar medo e sentimento de insegurança.

Ora, na acusação refere-se expressamente ter sido intuito do arguido ao dirigir ao assistente as referidas mensagens fazer crer ao assistente que, pelo menos, estava disposto a atentar contra a sua integridade física, sendo seu propósito criar medo e um sentimento de insegurança. E que agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a descrita conduta era contrária ao direito e punível por lei.

No despacho recorrido ao referir-se que a conduta objetiva imputada na acusação não integra o tipo legal de crime de ameaça formulou-se um juízo que é precipitado, uma vez que foi efetuado no momento do recebimento dos autos para julgamento, quando é certo que a provar-se em audiência de julgamento a imputada intenção do arguido, poderá estar preenchido o imputado crime de ameaça.

De qualquer forma, conforme acima salientamos, para efeitos da rejeição da acusação, a lei não se basta com a simples falta de fundamento da mesma, exigindo-se que a falta de fundamento seja manifesta, o que quer dizer que teria de ser inequívoco, claro, indiscutível que a factualidade descrita não constitui crime (5).

Porém, não é esse o caso, uma vez que a posição de quem acusou é defensável, sendo que, na hipótese de a factualidade descrita na acusação vier a ser considerada como provada, poderá conduzir a uma condenação.

Por conseguinte, a acusação deduzida pelo M.P., tal como se encontra redigida, não se poderá considerar «manifestamente infundada» nos termos previstos nos artigos 311º, nº 2, al. a) e nº 3, al. d), do CPP. Logo, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, revogada a decisão recorrida.

III- DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo M.P. e, em consequência, revogar o despacho recorrido, devendo o mesmo ser substituído por outro que recebendo a acusação deduzida pelo M.P., designe data para realização de audiência de discussão e julgamento.
Sem custas
Notifique
Guimarães, 29.04.2019
(Texto integralmente elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários (artigo 94º, nº 2 do C. P. Penal).

(Armando da Rocha Azevedo)
(Clarisse Machado S. Gonçalves)



1. Entre as questões de conhecimento oficioso do tribunal estão os vícios da sentença do nº 2 do artigo 410º do C.P.P., cfr. Ac. do STJ nº 7/95, de 19.10, in DR, I-A, de 28.12.1995, as nulidades da sentença do artigo 379º, nº 1 e nº 2 do CPP, irregularidades no caso no nº 2 do artigo 123º do CPP e as nulidades insanáveis do artigo 119º do C.P.P..
2. Assim, vide, entre outros, Ac RC de 10.07.2018, processo 282/16.6GAACB.C1, Rel. Isabel Valongo, e Ac RP de 18.01.2017, processo 984/15.4T9VFR.P1, Rel. Manuela Paupério.
3. Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2ª edição atualizada, pág. 791.
4. In Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, Tomo I, pág. 348.
5. Neste sentido, vide, v.g., Ac RL de 07.12.2010, processo 475/08.0TAAGH.L1-5, Rel. Vieira Lamim, e Ac RC de 25.03.2010, processo 127/09.3SAGRD.C1, Rel. Mouraz Lopes, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.