Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2476/16.5T8BRG.G1
Relator: MARIA JOÃO MATOS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
INDEMNIZAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
DANO PATRIMONIAL FUTURO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
JUROS DE MORA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
SUMÁRIO (da Relatora):

I. O uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, nomeadamente por os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, imporem uma conclusão diferente (prevalecendo, em caso contrário, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova).

II. Por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(eis) de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter(em) relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil (arts. 2º, n.º 1 e 130º, ambos do C.P.C.).

III. O dano biológico (toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com tradução médico-legal) é indemnizável, quer autonomamente, quer no âmbito dos danos patrimoniais ou dos danos não patrimoniais (consoante determine, ou não, perda ou diminuição dos proventos profissionais), sendo porém impedida a sua dupla valoração.

IV. No apuramento do rendimento mensal do lesado, o Tribunal deve atender ao resultado de toda a prova produzida, ainda que não coincida com o fiscalmente comprovado, recusando a aplicação do art. 64º, nº 7 do Dec-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, por violar o princípio constitucional da igualdade (art. 13º da C.R.P.), e o princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (art. 20º da C.R.P.).

V. Na indemnização pela perda da capacidade de ganho, a indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendimento que a vítima não auferirá e que se extinguirá no final do período provável de vida, sendo o mesmo calculado de acordo com a equidade (pelo que as tabelas financeiras disponíveis para apurar a indemnização têm um mero carácter auxiliar ou indicativo), ponderando-se para o efeito o facto de a indemnização ser paga de uma só vez (o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros), e privilegiando-se a esperança média de vida da vítima (e não a sua esperança média de vida activa).

VI. Para se atingir um resultado materialmente justo, importa ainda considerar dois aspectos: em primeiro lugar, o rendimento a reintegrar deverá ser anualmente corrigido pelo valor da variação do Índice de Preços ao Consumidor, uma vez que só assim se manterá o respectivo poder aquisitivo; em segundo lugar, os rendimentos futuros deverão ser actualizados para o momento presente através da aplicação de factores de correcção que reflictam as perspectivas de rentabilização das verbas entregues para cada horizonte temporal.

VII. Na indemnização de danos não patrimoniais, deverá privilegiar-se a gravidade dos mesmos e o recurso à equidade, ponderando-se ainda o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado, e as demais circunstâncias do caso, sem esquecer os critérios jurisprudenciais vigentes, bem como a nossa inserção no espaço da União Europeia.

VIII. O termo inicial da contagem de juros de mora devidos pelo não pagamento oportuno da indemnização pela perda da capacidade de ganho, e por danos não patrimoniais, deverá coincidir com a data da decisão condenatória que a arbitre - e não com a data de citação do réu -, uma vez que na determinação do seu montante são desde logos actualizados os respectivos factores de cálculo (v.g. esperança média nacional de vida, remuneração praticada pelo sistema bancário para determinadas operações, evolução dos montantes arbitrados em prévias decisões jurisprudenciais).
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência (após corridos os vistos legais) os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, sendo

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;
2º Adjunto - António José Saúde Barroca Penha.
*
I - RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada

1.1.1. Maria, residente na Rua …, concelho de Braga, (aqui Recorrida independente e Recorrente subordinada), propôs a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra X - Companhia de Seguros, S.A., com sede no Largo …, em Lisboa, (aqui Recorrente independente e Recorrida subordinada), requerendo a intervenção principal provocada de Seguradora Y, P.L.C. - Sucursal em Portugal, com sede na Rua …, em Lisboa, pedindo que

· a Ré fosse condenada a pagar-lhe quantia de € 918.562,00, a título de indemnização de danos patrimoniais e não patrimoniais, sofridos em virtude de um acidente de viação;

· a Ré fosse condenada pagar-lhe uma indemnização cuja total quantificação relegou para liquidação de sentença, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais futuros, resultantes do mesmo acidente de viação (nomeadamente, os resultantes de perdas de remuneração laboral, e de custos a suportar com exames e acompanhamento médico, intervenções cirúrgicas e internamentos hospitalares, sessões de hidroterapia e fisioterapia, e aquisição de medicamentos);

· a Ré fosse condenada a pagar juros de mora, vencidos e vincendos, calculados ao dobro da taxa supletiva legal, sobre o montante das indemnizações a arbitrar pelo Tribunal, contados desde o termo do prazo previsto no art. 36º, nºs 1, als. a) e e), e nº 5, do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, e até à prolação da sentença, ou à data que para este efeito nela fosse estabelecida, ou desde a data da sua citação até efectivo e integral pagamento;

· (subsidiariamente com este último pedido) a Ré fosse condenada a pagar juros de mora, vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, sobre o montante das indemnizações a arbitrar pelo Tribunal, contados desde a respectiva citação até efectivo e integral pagamento.

Alegou para o efeito, em síntese, que, no dia 12 de Setembro de 2013, cerca das 18.20 horas, na Estada Nacional nº 103, na freguesia de Gamil, concelho de Braga, era transportada gratuitamente no seu próprio veículo automóvel, conduzido então por António; e, encontrando-se o mesmo parado para dar passagem a peões que cruzavam uma passadeira existente no local, ter sido embatido na respectiva traseira pela parte frontal de outro veículo automóvel, conduzido por M. C., por esta o fazer distraída e em excesso de velocidade.

Mais alegou que, em consequência do embate de veículos referido, sofreu diversas lesões físicas (que discriminou), que lhe determinaram: múltiplos períodos de distintas incapacidades; um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 30 pontos, e uma incapacidade permanente parcial fixável em 40%, que se tenderão a agravar com o decurso dos anos, e que a afectam nas suas actividades de vida diária; uma incapacidade permanente absoluta para o exercício da sua profissão habitual de educadora de infância; e a necessidade de recurso periódico a tratamentos médicos e de fisioterapia, de consumo periódico de medicamentos, e de realização de diversas intervenções cirúrgicas e de internamentos hospitalares.

Alegou ainda a Autora corresponder a indemnização a arbitrar: pela perda da sua futura capacidade de ganho, a € 475.000,00 (considerando a sua retribuição anual ilíquida de € 23.715,20, os remanescentes 26 anos de vida activa, o desconto de um quarto ao montante assim apurado - pelo benefício resultante do seu auferir imediato e de uma só vez -, e a correcção a realizar a esse valor pela equidade); pelo dano biológico, a € 200.000,00 (considerando a sua retribuição anual ilíquida de € 23.715,20, os 30 pontos de défice funcional, os remanescentes 26 anos de vida activa, o desconto de um quarto ao montante assim apurado - pelo benefício resultante do seu auferir imediato e de uma só vez -, e a correcção a realizar a esse valor pela equidade); pelo custo inerente ao apoio permanente de uma terceira pessoa, a € 75.000,00 (considerando o actual salário mínimo para o serviço doméstico, as três horas por dia de trabalho a prestar por esse terceiro, os remanescentes 36 anos da sua esperança de vida, o desconto de um quarto ao montante assim apurado - pelo benefício resultante do seu auferir imediato e de uma só vez -, e a correcção a realizar a esse valor pela equidade); pelas perdas salarias já registadas, a € 54.886,62 (relegando o computo das futuras, até à sua alta clínica ou à data de consolidação médico-legal das lesões sofridas, para liquidação de sentença); pelas despesas médicas, hospitalares, de fisioterapia e medicamentosas, a € 11.175,43 (relegando o computo das futuras para liquidação de sentença); pelas despesas de transportes, a € 2.500,00 (relegando o computo das futuras para liquidação de sentença); e pelos danos não patrimoniais registados (nomeadamente, dores, angústia pelo receio de morte própria, alterações de humor, do sono e afectivas, alterações de personalidade, desgosto e inibição com as marcas físicas das suas lesões, diminuição da libido, e frustração do seu projecto de nova maternidade), a € 100.000,00.

Por fim, a Autora alegou ser a Ré responsável pela indemnização de todos estes danos, por ter sido transferida para ela a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo automóvel que os causou; e dever-lhe a mesma juros de mora, à taxa legal agravada, pelo facto de não lhe ter apresentado ainda qualquer proposta razoável de indemnização.

Relativamente ao incidente de intervenção principal provocada de Seguradora Y P.L.C. - Sucursal em Portugal, a Autora alegou ter sido o acidente descrito nos autos simultaneamente de viação e de trabalho, tendo por isso sido indemnizada nesta última vertente com a quantia de € 3.366,25 (a título de I.T.A. e de I.T.P.); e ter a Interveniente Principal direito ao reembolso da quantia já paga, e de outras que, pelo mesmo título, lhe viesse a pagar.

1.1.2. Regularmente citada, a (X - Companhia de Seguros, S.A.) contestou, pedindo que a acção fosse julgada conforme a prova produzida em juízo.

Alegou para o efeito, em síntese, aceitar a responsabilidade pela indemnização devida à Autora, defendendo porém serem exagerados e até duplicados os montantes por ela reclamados (devendo ser considerados aplicáveis aos autos os critérios constantes da Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, ou ser tidos os mesmos como ponto de partida da aplicação de outros).
A Ré impugnou, por os desconhecer, os danos, ou a sua extensão, invocados pela Autora.

1.1.3. Deferido o incidente de intervenção principal provocada, e regularmente citada, a Interveniente Principal (Seguradora Y - Sucursal em Portugal) apresentou articulado próprio, pedindo que

· a Ré fosse condenada a pagar-lhe os montantes despendidos por ela própria no âmbito do sinistro em causa (liquidando os entretanto já pagos em € 6.103,86), acrescidos de juros de mora.

Alegou para o efeito, em síntese, que tendo o dito sinistro sido qualificado como acidente de trabalho, e tendo a Entidade Patronal da Autora transferido para si própria a responsabilidade civil emergente de sinistros laborais ocorridos com os seus empregados, pagou a este título, até 14 de Novembro de 2016, a quantia global de € 6.103,86.
Mais alegou ter direito a ser reembolsada pela Ré desse montante, e de todos os demais que viesse a suportar, nos termos do art. 17º, nºs 4 e 5, da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro.

1.1.4. Foi proferido despacho: dispensando a realização de uma audiência prévia; saneador (certificando tabelarmente a validade e a regularidade da instância); definindo o objecto do litígio («Valor da indemnização decorrente de acidente de viação») e enunciando os temas da prova («As lesões corporais da Autora», «A sua repercussão e termos de défice da integridade físico-psíquica», «Perda de ganho da Autora», «Necessidade de ajuda perante de terceira pessoa», «Despesas médicas e medicamentosas e de transportes», e «Montantes pagos pela Seguradora Y, Plc»); e apreciando os requerimentos probatórios das partes (nomeadamente, deferindo a realização de uma perícia médico-legal à pessoa da Autora).

1.1.5. Realizada a audiência final, foi proferida sentença, na qual se julgou a acção parcialmente procedente, lendo-se nomeadamente na mesma:

«(…)
Pelo exposto, julga-se a presente ação parcialmente procedente por provada, e, em consequência, decide-se:
- Condenar a ré X - Companhia de Seguros, S.A. a pagar à autora a quantia global de 597.169,39 € (quinhentos e noventa e sete mil cento e sessenta e nove euros e trinta e nove cêntimos), acrescido de juros de mora calculados no dobro da taxa legal, desde a data da citação e até integral pagamento;
- Condenar a ré X - Companhia de Seguros, S.A. a pagar à autora a quantia que se vier a liquidar pelos tratamentos de hidroterapia e fisiatria e despesas com medicamentos relacionados com as lesões do acidente;
- Condenar a ré X - Companhia de Seguros, S.A. a reembolsar a interveniente Seguradora Y Plc na quantia 6.103,86 € (seis mil cento e três euros e oitenta e seis cêntimos).
Custas a cargo de autora e ré na proporção do decaimento.
Registe e notifique.
(…)»
*
1.2. Recursos

1.2.1. Recurso principal (da Ré)
1.2.1.1. Fundamentos (do recurso principal)

Inconformada com esta decisão, a (X - Companhia de Seguros, S.A.) interpôs o presente recurso de apelação independente, pedindo que fosse julgado procedente, e se revogasse a sentença recorrida, por forma a que: a) se julgasse como não provada a factualidade vertida nos pontos 42, 45 e 26 (sendo manifesto lapso de escrita, pois os factos por ela impugnados são os 42, 46 e 55); b) se aditasse à factualidade provada o seguinte facto:

«A Autora mantem, actualmente, o contrato de trabalho, sem termo, com a firma denominada ‘Obra de SZ, a aguardar o desfecho do processo de acidente de trabalho»; c) se absolvesse ela própria dos pedidos referentes às despesas de transporte/deslocações e ao auxílio de terceira pessoa; d) se reduzisse a indemnização devida pelas perdas salariais à quantia de € 15.147,32; e) se reduzisse a quantia destinada a indemnizar os danos patrimoniais futuros/perda da capacidade de ganho a valor nunca superior a € 165.000,00; f) se reduzisse a compensação devida pelos danos não patrimoniais a valor nunca superior a € 75.000,00; e, por fim, g) se determinasse a aplicação da taxa de juro legal supletiva, sendo que quanto aos danos não patrimoniais, os juros só seriam devidos desde a data da decisão final.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (reproduzindo-se aqui ipsis verbis as respectivas conclusões):

1 - O presente recurso tem como objecto a alteração/impugnação da matéria de facto, bem como a reapreciação dos quantuns indemnizatórios atribuídos.

2 - Para o presente recurso, é relevante a factualidades assente nos pontos 4, e 19 a 58, inclusive, da matéria de facto provada.

3 - Quanto à factualidade julgada não provada, tem interesse para o objecto deste recurso aquela vertida nos pontos 1 a 6 dos factos não provados.

IMPUGNAÇÃO DE MATÉRIA DE FACTO:

4 - A factualidade que se impugna é a vertida nos pontos 42, 45 e 26 (sendo manifesto lapso de escrita, pois os factos por ela impugnados são os 42, 46 e 55) que, pelos motivos supra aduzidos e explanados, deverá ser julgada não provada.

5 - Visa-se, ainda, o aditamento de um novo facto à factualidade provada.

6 - O ponto «42 - A Autora necessita da ajuda de uma terceira pessoa, por um período de 2-3 (duas a três) horas por dia até ao fim da sua vida, para a realização das tarefas de limpeza da casa, cuidar da sua filha, pegar em objectos pesados, e preparar as suas refeições» deveria ter sido julgado não provado porquanto está, desde logo, em manifesta contradição com a resposta ao quesito 38 do relatório pericial junto aos autos.

7 - Ademais, a própria Recorrida, em sede de declarações de parte (depoimento prestado em 27/11/2017, com duração de 00:55:08 minutos; concretamente aos minutos 10-15’, 15-20’) referiu que é autónoma quanto ao seu dia-a-dia e quanto à sua higiene pessoal, mencionando ainda que a sua sogra ajuda - e já ajudava - em casa e que é o marido quem cozinha – vd. transcrições supra efectuadas.

8 - Destas declarações da parte extrai-se, em síntese:

- No primeiro ano (a seguir ao acidente) não conseguiu dar banho à filha;
- o marido faz as refeições;
- é ajudada, gratuitamente, por terceiras pessoas nas tarefas domésticas, duas horas por dia.

9 - Ora, ainda que vigore o princípio da livre apreciação da prova, e mesmo que se admita que o Sr. Juiz seja o perito dos peritos, um perito é um terceiro, alguém que vem actuar ao processo como um agente probatório (tal como a testemunha), mas tem conhecimentos especializados.

10 - Com o devido respeito, não pode o Tribunal, valorando as declarações de parte e o depoimento do marido da Autora, afastar o relatório pericial, sem mais! (sendo certo que é manifesto que o marido tem interesse no desfecho da acção…).

11 - Mesmo a Recorrida admite que só necessita de ajuda 2 horas diárias.

12 - Todavia, o Tribunal deu como provado a necessidade de 2/3 horas.

13 - Uma análise crítica à prova (aqui se incluindo o relatório pericial), permite-nos que o facto dado como provado nº 42 deveria ter sido dado como não provado e, consequentemente, integrar os factos não provados e ser eliminado do leque dos factos provados.

14 - Também o ponto «55. A Autora, à data da ocorrência do acidente, desejava e já tinha planeado e decidido conjuntamente com o seu marido, ter um segundo filho, desejo esse que atenta a natureza e extensão das lesões sofridas e das sequelas atuais de que padece, decidiu não concretizar, por não se sentir em condições de criar uma criança» está em manifesta contradição com a resposta ao quesito 60 dada pelo relatório pericial.

15 - São relevantes, para a apreciação deste facto, as declarações de parte da Recorrida (depoimento prestado em 27/11/2017, com duração de 00:55:08 minutos – vd., concretamente, os trechos dos minutos 40-45’ e 45-50) e o depoimento do seu marido (depoimento prestado na sessão de 27/11/2017, com a duração de 00:23:25, concretamente as passagens dos minutos 15-20’ e 20-23.24’).

16 - Em suma, alegadamente, a Recorrida queria ser mãe novamente e não pôde sê-lo em virtude do sinistro dos autos. Desde logo, o relatório pericial diz o contrário e, por outro lado, a Recorrida já havia passado por uma gravidez de risco e contava já com 44 anos.

17 - Ademais, para além dos depoimentos - quer da parte, quer do seu marido -, não há qualquer elemento documental nos autos, mesmo que fossem as análises, as ditas e propaladas análises, que permitissem extrair com segurança essa mesma intenção.
Aliás, nada como o médico (ginecologista) depor nos autos, para efeitos de prova deste facto.

18 - Deste modo, uma análise crítica à prova, permite-nos que o facto dado como provado nº 55 deveria ter sido dado como não provado e, consequentemente, integrar os factos não provados e ser eliminado do leque dos factos provados.

19 - Por fim, no que respeita à impugnação da decisão de facto, o ponto «46. Em deslocações despendeu a quantia de €2.500,00 (Dois Mil e Quinhentos Euros)», deve dizer-se, em primeiro lugar, que as mesmas nunca foram, sequer, indicadas, enunciadas ou liquidadas. Nenhuma prova, além de vagas declarações do marido, foi feita quanto a este valor ou estas deslocações.

20 - A Recorrida, em sede de declarações de parte referiu (depoimento prestado em 27/11/2017, com duração de 00:55:08 minutos, concretamente as passagens 34-40’) mencionou apenas que gastou «muito dinheiro» e que era o marido que a levava.

21 - O seu marido, a testemunha António (depoimento prestado na sessão de 27/11/2017, com a duração de 00:23:25) referiu apenas que «quilómetros?... para cima de dez mil…». – vd. depoimento supra transcrito.

22 - A Demandante, em lado algum, fez prova este valor, nem tão pouco o discrimina, limitando-se a afirmar, na petição inicial, apenas que fez «várias deslocações em transporte público e transporte próprio». Não diz quantas, não discrimina as distâncias nem diz quantas fez em transporte público e quantas fez em transporte próprio, sendo que o valor despendido será bem diferente conforme faça o trajecto em transporte público ou o faça em transporte próprio.

23 - Ora a demandante nem alegou, nem provou quantas deslocações fez, onde e qual o meio de transporte - e muito menos que quantias monetárias despendeu.

24 - Face a esta carência de alegação e prova, o facto provado nº 46 deveria ter sido dado como não provado e, consequentemente, integrar os factos não provados e ser eliminado do leque dos factos provados.

25 - AINDA NA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO: UM FACTO A ADITAR:

foi expressamente reconhecido pela Demandante, no âmbito das declarações de parte prestadas, que, na pendência da decisão relativa ao acidente de trabalho, o respectivo contrato de trabalho com a “Obra SZ” ainda se encontra em vigor – vd. depoimento prestado em 27/11/2017, com duração de 00:55:08 minutos, concretamente a passagem dos minutos 48,25’ – 55’
«- Portanto, o contrato está em vigor?
- Autor: Está em vigor.
- Muito bem. A pergunta que lhe faço é esta: há outro tipo de funções para a senhora?
- Autor: É assim... Lá, funções só se fosse coordenadora, mas eles já têm lá uma coordenadora, que é tipo uma técnica, é directora técnica que orienta as educadoras, ora faz a parte mais de escritório.
- Muito bem. Mas o contrato está ainda em vigor à espera de uma decisão do acidente de trabalho, no fundo? Muito bem.
- Autor: Até que eu tenha alguma coisa em concreto e diga “olhe, eu não posso (não audível)..»

26 - Significa isto que da instrução da causa resultaram factos que complementam ou que concretizam aqueles que foram alegados pelas partes – os quais, porém, não foram atendidos pela Meritíssima Juíza do processo, na medida em que não foram mencionados na elaboração da sua respectiva Conclusão, datada de 06-12-2017, nem considerados para a decisão de mérito, o que implica que esta seja, portanto, desfavorável àquele a quem tais factos aproveitam.

27 - Assim, deve ser aditado à factualidade provada o seguinte facto: “A Autora mantem, actualmente, o contrato de trabalho, sem termo, com a firma denominada ‘Obra de SZ, a aguardar o desfecho do processo de acidente de trabalho.”

DO DIREITO - QUANTO AOS QUANTUNS INDEMNIZATÓRIOS ATRIBUÍDOS:
QUANTO AOS DANOS PATRIMONIAIS:

1- Quanto às perdas salariais (danos emergentes):

28 - Antes de mais, refira-se que os critérios constantes da Portaria nº 377/2008, de 26/05, deverão ser tidos em conta no cômputo dos quantuns indemnizatórios a atribuir, até porque em vigor à data dos factos – cfr. artº 39º do RSSORCA.

29 - Caso assim se não entenda, e embora teoricamente se possa admitir que aquela portaria não possa fixar os valores a atribuir, sempre se dirá que os montantes ali referidos são um ponto de partida no cálculo a apresentação da proposta razoável, devendo ser também levados em conta, fornecendo indicações sobre os valores a atribuir, evitando-se assim grandes disparidades, ou seja, o excesso de subjectivismo na fixação dos valores – cfr. Ac. do STJ de 05/11/2009, relator Juiz Conselheiro Manuel Braz, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.

30 - Nos termos do disposto no artº 6º, nº 2 daquela Portaria, «Para efeitos de apuramento do rendimento mensal da vítima, são considerados os rendimentos líquidos auferidos à data do acidente, fiscalmente comprovados».

31 - Isto para referir que ao valor do salário, deverão ser deduzidos os encargos: 11% para a Segurança Social e o IRS, na ordem dos 30%. Ademais, o valor do subsídio de alimentação não pode ser tido em conta na remuneração.

32 - O valor da remuneração líquida ascendia a € 1.173,81.

33 - Assim, o valor das perdas salariais ascendeu a € 18.780,96, a que deverá ser deduzida a quantia de € 3.633,64 já paga pela Seguradora Y Plc - Sucursal em Portugal e a quantia de € 267,39 da Segurança Social – vd. facto provado nº 44 -, o que perfaz a quantia de € 15.147,32, valor que é devido à Recorrida.

34 - Deste modo, deve aquele quantum indemnizatório ser alterado neste sentido.

2- Quanto às despesas médicas/medicamentosas e de transporte:
35 - Sendo julgada procedente a impugnação da matéria de facto vertida no ponto 26 (manifesto lapso de escrita, por se reportar ao 46), atenta a manifesta falta de alegação e prova, não deve ser arbitrada qualquer indemnização por estas alegadas (mas nunca liquidadas ou enunciadas) despesas.

3- Quanto aos danos patrimoniais futuros (perda da capacidade de ganho futuro):
36 - Aqui são três os factores a ter em conta:
(i) o limite de idade activa, i. e, a idade até à qual se deverá calcular a indemnização;
(ii) o valor da remuneração e,
(iii) a incapacidade permanente.

37 - Não se está perante uma incapacidade permanente absoluta. Está-se, isso sim, perante uma incapacidade permanente absoluta para o trabalho/profissão habitual – ver factos provados nº 37 e 38 e ainda o facto cujo aditamento supra se requereu.

38 - A indemnização para este dano não deve ser calculada como de incapacidade permanente parcial, com uma incapacidade permanente de 26 pontos se tratasse, mas também não pode ser tratada como uma incapacidade permanente absoluta.

39 - A demandante mantém capacidade de ganho, capacidade laboral, que não para a de educadora de infância.

40 - Não se pode esquecer que a demandante/lesada tem capacidade para o exercício de actividades para «outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional».

41 - Assim, até porque a demandante tem uma formação média/alta, a idade assim o permite, e as limitações igualmente o permitem, o défice funcional da integridade físico-psíquica (IPP) a ter em conta não é de 100%, i. e, absoluta, mas parcial.

42 - A demandante não tem que mudar de área de actividade. Aliás, será por isso, que o contrato de trabalho ainda se mantém.

43 - Deste modo, atendendo ao caso em concreto, às suas especificidades, aceitar-se-ia que se calculasse esta indemnização com base numa incapacidade de sensivelmente o dobro, i.e., 50 pontos, até porque a sua capacidade residual/restante se cifra nos 74 pontos.

44 - Teremos agora que calcular a indemnização, o capital necessário à retirada anual pela demandante de um montante igual àquele que perdeu (1.173,81 x 14), durante 17 anos (desde os 48 anos aos 65 anos), de modo a que, durante esse período, o capital vá diminuindo e findo o mesmo deixe de existir.

45 - Para o cálculo deste capital, tem-se entendido que ele deve «começar por ser procurado com recurso a processos objectivos (através de fórmulas matemáticas, cálculos financeiros, aplicação de tabelas)» (acórdão do STJ de 04/12/2007, publicado sob o nº. 07A3836 da base de dados do IGFEJ), isto «[p]ara evitar um total subjectivismo – que, em última análise, poderia afectar a segurança do direito e o princípio da igualdade» (ac. do STJ de 05/11/2009 (381-2002.S1).

46 - Mas depois acrescenta-se (nos termos do acórdão do ST J de 04/12/2007): «embora depois seja preciso ter em conta que o valor resultante das fórmulas matemáticas ou tabelas financeiras dá um valor estático» não contando com todos aqueles factores supra referidos. «Daí que a utilização das fórmulas matemáticas, ou tabelas financeiras só possa servir para determinar o minus indemnizatório, o qual, terá posteriormente de ser corrigido com vários outros elementos, quer objectivos quer subjectivos, que possam conduzir a uma indemnização justa».

47 - Só que o lesado recebe de uma só vez, e sem impostos, o que iria receber ao longo de anos, da sua vida activa. E qual o valor da dedução? A resposta será esta: 25%, 1/4 do valor.

48 - Assim, se tivermos em conta a remuneração líquida de € 1.173,81 e o limite de idade activa nos 65 anos de idade, temos 17 anos (65 – 48), uma incapacidade de 50 pontos, teríamos uma indemnização de € 108.751, com o que, após a dedução, teremos uma indemnização de € 81.563,00, o que, com recurso à equidade, não nos escandalizaria que se encontrasse o valor de € 85.000,00.

49 - Se atendermos ao critério dos 70 anos de idade, então o valor seria de € 130.948,00 com o que, realizada a dedução, teríamos € 98.250,00 ou seja, com recurso à equidade, teremos o valor de € 100.000,00.

50 - Mas, se atendermos ao critério dos 75 anos, o que não se aceita, mas apenas se concebe por mera hipótese académica, então o valor seria de € 157.346, com o que, realizada a dedução, teríamos o valor de € 118.000,00, ou seja, com recurso à equidade, € 120.000,00.

51 - Se se tivesse em conta o valor da remuneração de € 1.706,20, o que se não aceita e apenas se concebe por mera hipótese académica, e a 22 anos de longevidade, o valor ascenderia a € 190.000,00 o que, após dedução, ficaria nos € 142.500,00.

52 - Em última análise, se se tivesse em conta o valor da remuneração de € 1.706,20, e a 27 anos de longevidade, o valor ascenderia a € 218.803,00 i. e, € 220.000,00 o que, após dedução, ficaria nos € 165.000,00.

53 - Dito isto e sem mais delongas, fácil é de ver que a quantia atribuída a este título é exageradíssima, com o que deverá ser reduzida.

4- Para auxílio da terceira pessoa:
54 - Conforme já referido no que versa sobre a impugnação da matéria de facto assente, e tendo em conta o aí defendido, não deverá ser arbitrada a este título, qualquer valor indemnizatório.

5- Quanto aos danos não patrimoniais:
55 - O valor arbitrado a título de danos não patrimoniais é manifestamente exagerado e desfasado quanto aos valores fixados na jurisprudência.

56 - A quantia a arbitrar nunca poderá ser superior a € 75.000,00.

6- Quanto aos juros:
57 - A Demandante não alega ter contactado a Seguradora, ora recorrente, para o que fosse, até porque estava a ser tratada e seguida no âmbito da componente laboral, do acidente de trabalho. Ademais, a Demandante não alega ter comunicado a data da alta.

58 - E não alega estes factos, por uma simples razão, porque nunca o deu a conhecer à ora Recorrente, porque estava a ser tratada e seguida pela Seguradora de acidentes de trabalho. A alta clínica foi, ao que se sabe, e consta do articulado inicial da Interveniente, dada por esta Seguradora, ou melhor pelos seus serviços clínicos.

59 - Assim, não tendo a Demandante alegado que formulou o indispensável pedido de indemnização, não estava a Demandada, ora recorrente, sequer, constituída na obrigação de apresentar uma proposta de indemnização, não sendo devidos juros no dobro da taxa legal.

60 - Não foi a Demandada, mas antes a Y, quem prestou à Demandante os tratamentos de que esta carecia e quem procedeu à avaliação do dano corporal e, em suma, quem regularizou o sinistro.

61 - Não está provado que a Demandante em qualquer momento, tenha solicitado à Demandada que lhe prestasse assistência médica ou tratamentos, que a indemnizasse de algum dano ou, sequer, que a examinasse para avaliação do seu dano corporal, não tão pouco tal foi alegado.

62 - Ora, as regras do Capítulo III do DL 291/2007 não podem ser aplicáveis se essa regularização não for solicitada a Seguradora automóvel, como é o caso dos acidentes simultaneamente de viação e de trabalho nos quais a Seguradora da vertente laboral (a pedido, inclusive, do lesado), se encarregam dessa gestão.

63 - Como tal, porque a letra e o espírito das nomas do Capítulo III do DL 291/2007 não se aplicam ao caso vertente, não pode a Demandada ser condenada a pagar à demandante juros penalizadores de comportamentos que não poderia adoptar, por não lhe serem exigíveis.

64 - Enfim, o pedido em mérito carece de absoluta falta de causa de pedir, atenta a teoria da substanciação.

65 - Chegados a este ponto, deverá aferir-se do momento a partir do qual são devidos juros (à taxa legal supletiva) que, como é consabido, quanto aos danos não patrimoniais é sempre o da sentença.

66 - Por um lado, a taxa de juro a aplicar será sempre a legal supletiva e, por outro, quanto aos danos não patrimoniais, os juros são devidos apenas e só a partir da sentença.

(iii) – QUANTO ÀS NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS:
67 - A presente sentença sob censura violou entre outras diversas disposições legais, de entre as quais aquelas constantes dos artºs. 483º, 496º, 562º, 564º, 566º, 805º, nº 3, entre outros do Código Civil, 5º do Código de Processo Civil, 5º, 37º do DL 291/2007, de 21/08.
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1.2.1.2. Contra-alegações (ao recurso principal)

A Autora (Maria) contra-alegou, pedindo que fosse negado provimento ao recurso de apelação principal da Ré (X - Companhia de Seguros, S.A.).

Concluiu as suas contra-alegações da seguinte forma (reproduzindo-se aqui ipsis verbis as respectivas conclusões):

1 - A Autora/Recorrida, dá por integralmente reproduzidas para todos os devidos efeitos legais as suas ALEGAÇÕES e CONCLUSÕES aduzidas no seu Recurso Subordinado de Apelação apresentado em 09/03/2018 com a referência citius 28453115:

1. Quanto à condenação da Ré, em pagar à Autora uma quantia indemnizatória, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, que se vier a liquidar em incidente póstumo relativamente aos futuros dispêndios com a necessidade, no futuro, de acompanhamento regular em consultas na Especialidade de Psiquiatria, Consulta da Dor crónica, Fisiatria, tratamentos Fisiátricos e de Hidroterapia e de ajuda medicamentosa (antidepressivos, ansiolíticos, anti-inflamatórios e analgésicos).
2. Quanto ao valor indemnizatório que deve ser atribuído à Autora a título de danos futuros pela «perda da capacidade de ganho», na medida em que em termos de repercussão permanente da atividade profissional, as sequelas são impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual (IPATH) de «Educadora de Infância».
3. Quanto ao valor indemnizatório que deve ser atribuído à Autora a título de «dano biológico» em consequência da perda ou diminuição de capacidades funcionais decorrente do Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 26 pontos que lhe foi fixado.

2 - A Douta Sentença ora recorrida - com excepção das três questões objecto do Recurso Subordinado de Apelação apresentado pela Autora 09/03/2018 com a referência citius 28453115 - não merece qualquer tipo de reparo ou censura.

3 - Relativamente à matéria de facto dada como provada e constante do pontos n.sº 42 e 55, 46 da matéria de facto dada como provada na Douta Sentença, a mesma deve manter-se na integra.

4 - A decisão da matéria de facto dada como provada e constante dos pontos n.º 42, 55, 46 da matéria de facto dada como provada na Douta Sentença está de acordo com o que resultou de toda a prova produzida e, nomeadamente, de acordo com o que resultou da conjugação das declarações prestadas pela Autora em julgamento que se revelaram coerentes e convincentes, e que foram secundadas pelo depoimento da testemunha António, seu marido, tudo conjugado com as regras da normalidade e experiência comum.

5 - Conjugando a perícia médica com as declarações prestadas pela Autora, que se revelaram coerentes e convincentes, e que foram secundadas pelo depoimento da testemunha António, marido, resultou que desde o dia do acidente e até à presente data a Autora não mais conseguiu trabalhar.

6 - A Autora de forma sincera e impressiva, relatou as limitações sentidas no seu quotidiano que lhe advém das sequelas decorrentes do acidente, descrevendo as dificuldades em tarefas tão simples como vestir determinadas peças de vestuário, cuidar da filha (à data com três anos de idade), o não conseguir conduzir com segurança, e que por essa razão deixou fazer, a lide doméstica que é realizada pelo marido e por familiares.

7 - A este propósito, esclareceu que tarefas como engomar, que exige uma posição de pé por muito tempo, aspirar que contende com movimentos dos braços e coluna, entre muitas outras cuja execução exige o contributo dos dois membros, são penosas de realizar, tendo-se socorrido do auxílio da sua sogra, por não dispor de condições financeiras para contratar uma pessoa para esse serviço.

8 - Com comoção referiu a intenção de engravidar e os exames de preparação que já tinha realizado, desejo que afastou por sentir não ter condições físicas e psíquicas bastantes para criar um filho.

9 - A circunstância de não conseguir mais desempenhar a sua profissão de educadora de infância, a qual exige uma entrega total, e à qual se dedicou mais de vinte anos, deixa-a profundamente desolada.

10 - Também não perspectiva conseguir outro emprego, dada a sua idade (48 anos), as suas limitações e a saturação do mercado de trabalho nesta área.

11 - Frequenta a consulta da dor, por não suportar as dores que sente, e consultas de psiquiatria, por se sentir de rastos, por nesta fase da sua vida ter visto tudo desmoronar, a sua profissão, a assistência à sua filha, o empenho no casamento e o merecimento pessoal.

12 - As declarações prestadas pela Autora foram corroboradas pela testemunha António, seu marido, que concretizou a forma como as atuais limitações da Autora interferem no seu dia-a-dia, pessoal e familiar, bem como o desgosto e tristeza sentidos pela autora pela sua condição actual.

13 - O depoimento de parte do Autora Maria ficou gravado através de gravação efectuada através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, conforme consta da própria acta de audiência de discussão e julgamento datada de 27/11/2017, encontrando-se o seu depoimento gravado através da aplicação “H@bilus Média Studio (Início: das 10:34:00 horas. Termo: às 11:30:00 horas.

14 - O depoimento de parte do Autora Maria, a mesma foi peremptória em afirmar o seguinte:

1. antes do acidente em discussão nos autos fazia tudo em casa, mesmo quando vinha do trabalho, fazia o jantar, dava banho à sua filha, arrumava a cozinha, brincava com a minha filha, arrumava a casa, passava a roupa a ferro e lavava a roupa;
2. após o acidente em apreço e em consequência das sequelas de que ficou a padecer em consequência do mesmo, é seu marido que faz as refeições, é a sua sogra que lava e passa a roupa;
3. após o acidente em apreço e em consequência das sequelas de que ficou a padecer e consequência do mesmo, necessita da ajuda de uma terceira pessoa, por um período de 2-3 (duas a três) horas por dia até ao fim da sua vida, para a realização das tarefas de limpeza da casa, cuidar da sua filha, pegar em objectos pesados, e preparar as suas refeições;
4. actualmente precisa de ajuda diária de uma terceira pessoa em cerda de 2-3 horas diárias para arrumar a casa, fazer o jantar, dar banho à sua filha, arrumar a cozinha, passar a roupa a ferro, lavar a roupa;
5. antes do acidente em apreço pensava ter mais filhos, tendo para o efeito em Abril do ano em que ocorreu o acidente consultado ao seu médico, que já sua primeira gravidez foi de risco;
6. devido as às lesões, queixas e sequelas causadas pelo acidente em apreço, à sua idade, ao longo período de recuperação após o acidente em apreço em consequência das sequelas de que ficou a padecer em consequência do mesmo, à medicação que toma e continuará a tomar, ao seu debilitado estado emocional, às suas grandes limitações físicas que a impedem de cuidar e pegar em crianças/filho a ponto de a pôr em risco a ela e ao seu futuro filho, tomou consciência e a decisão de que não se sente capaz para criar um outro filho.

15 - O depoimento da testemunha António ficou gravado através de gravação efectuada através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, conforme consta da própria acta de audiência de discussão e julgamento datada de 27/11/2017, encontrando-se o seu depoimento gravado através da aplicação “H@bilus Média Studio (Início: das 11:34:00 horas. Termo: às 11:57:00 horas).

16 - Quanto ao depoimento da testemunha António, o mesmo foi peremptório em afirmar o seguinte:

1. a sua esposa/Autora antes do acidente em discussão nos autos fazia tudo em casa, fazia o jantar, dava banho à sua filha, arrumava a cozinha, brincava com a minha filha, arrumava a casa, passava a roupa a ferro, lavar a roupa;
2. após o acidente em apreço e em consequência das sequelas de que ficou a padecer e consequência do mesmo, a sua esposa necessita da ajuda de uma terceira pessoa, por um período de 2-3 (duas a três) horas por dia até ao fim da sua vida, para a realização das tarefas de limpeza da casa, cuidar da sua filha, pegar em objectos pesados, e preparar as suas refeições;
3. após o acidente em apreço e em consequência das sequelas de que a sua esposa ficou a padecer em consequência do mesmo, é ele marido que faz as refeições, é a sua mãe (sogra da autora) e uma tia que lavam e passam a roupa;
4. após o acidente em apreço e em consequência das sequelas de que ficou a padecer e consequência do mesmo a sua esposa actualmente precisa de ajuda diária de uma terceira pessoa em cerda de 3-4- horas diárias para arrumar a casa, fazer o jantar, dar banho à sua filha, arrumar a cozinha, passar a roupa a ferro, lavar a roupa.
5. antes do acidente em apreço pensava ter mais filhos, tendo a sua esposa para o efeito em Abril do ano em que ocorreu o acidente consultado ao seu médico, qua já sua primeira gravidez foi de risco;
6. devido as às lesões, queixas e sequelas causadas pelo acidente em apreço, à sua idade, ao longo período de recuperação após o acidente em apreço em consequência das sequelas de que ficou a padecer em consequência do mesmo, à medicação que toma e continuará a tomar, ao seu debilitado seu estado emocional, às suas grandes limitações físicas que a impedem de cuidar e pegar em crianças/filho a ponto de a pôr em risco a ela e ao seu futuro filho, a sua esposa tomou consciência e a decisão de que não se sente capaz para criar um outro filho.

17 - No que respeita à valoração da força probatória dos depoimentos das testemunhas e das declarações das partes e à decisão de facto, a regra é a da livre apreciação pelo tribunal, conforme dispõem os arts. 396º do C. Civil e art. 607º do N.C.Proc.Civil, devendo o julgador fazer essa apreciação segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei (Alberto dos Reis, C. Civil Anotado, Vol VI, pág. 569).

18 - E como vem sendo jurisprudência uniformemente seguida, a reapreciação da prova prevista no art. 662º, nº 1, do N.C. Proc. Civil não significa julgar de novo a matéria de facto, mas antes analisar pontos concretos dessa matéria para verificar se, em função dos concretos meios de prova produzidos, foram grosseiramente apreciados e se existe flagrante desconformidade entre os elementos de prova trazidos aos autos e a decisão desses concretos pontos.

19 - Ora, a decisão de facto dada como provada e constante dos pontos n.ºs n.º 42 e 55 e 46 da matéria de facto dada como provada na Douta Sentença está em conformidade com o que resultou de toda a prova produzida e, nomeadamente, de acordo com o que resultou de toda a prova produzida e, nomeadamente, de acordo com o que resultou da conjugação das declarações prestadas pela Autora em julgamento que se revelaram coerentes e convincentes, e que foram secundadas pelo depoimento da testemunha António, marido, tudo conjugado com as regras da normalidade e experiência comum e mostra-se devidamente fundamentada, tendo sido tomada tendo em conta todos os depoimentos ouvidos em audiência de julgamento, segundo a convicção formada pelo julgador.

20 - E, segundo essa convicção, formada na apreciação livre das provas produzidas, a decisão tomada foi a que pareceu ao julgador mais consentânea com a realidade judicialmente demonstrada.

21 - Na convicção do julgador intervêm elementos imateriais que não são sancionáveis pelo tribunal de recurso, como sejam, determinados gestos, reacções e expressões faciais das testemunhas e a própria envolvência da audiência de julgamento.

22 - Apesar da gravação ou registo das declarações prestadas na audiência de julgamento, não são apenas essas declarações que fundamentam a convicção do julgador.

23 - Além de não existir desconformidade da decisão de facto com a prova produzida e de, portanto, inexistir fundamento para a sua alteração, na convicção do julgador entram ou podem entrar outros elementos que não constam do registo ou da gravação da prova e que, portanto, impõem que apenas em casos excepcionais, de flagrante desconformidade, se altere a decisão de facto.

24 - No caso sub judice, a decisão de facto mostra-se devidamente fundamentada, é lógica, consentânea com a realidade trazida a tribunal e assenta não só nos depoimento da testemunha António seu marido e nas declarações de parte da Autora, mas também nas regras da normalidade e experiência comum.

25 - Quanto ao pretenso facto que a Ré pretende ver aditado a Douta Sentença ora recorrida também nesta parte não merece qualquer tipo de reparo ou censura.

26 - A questão, só agora em sede de recurso suscitada pela Ré, é uma falsa questão.

27 - Tal matéria de facto nunca fora alegada pela Ré em nenhum dos seus articulados.

28 - Tal matéria de facto de facto não consta dos temas de prova.

29 - Tal matéria de facto não é sequer é complementar ou instrumental.

30 - Atenta na matéria de facto dada como provada e constante dos pontos n.ºs 31, 32, 33, 38, 40 e 48 da Douta Sentença facilmente chegaria à conclusão de que o contrato de trabalho celebrado entre a Autora e a sua entidade patronal, pela qual a mesma exercia a categoria profissional de «Educadora de Infância» caducou nos termos do preceituado no artigo 343º, a alínea b) da Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro (Código do Trabalho).

31 - As lesões, queixas e sequelas atuais e permanentes que a Autora padece em consequência do acidente de viação descrito nos autos são impeditivas do exercício da atividade profissional habitual de «Educadora de infância».

32 - Qualquer pai minimamente responsável e zeloso pelo bem estar do seu filho, não se arriscaria a entregar o seu filho aos cuidados de uma «Educadora de infância» com as lesões, queixas e sequelas atuais de que a Autora ficou a padecer em consequência do acidente de viação descrito nos autos.

33 - Qualquer infantário que se preze e também minimamente responsável e zeloso pelo bem estar das crianças que lhe são confiadas, não se arriscaria a entregar as mesmas aos cuidados de uma «Educadora de infância» com as lesões, queixas e sequelas atuais de que a Autora ficou a padecer em consequência do acidente de viação descrito nos autos.

34 - Uma Educadora de Infância é, legalmente, uma profissional que tem a sob a sua responsabilidade e orientação de uma classe infantil (entre os quatro meses e os cinco anos de idade).

35 - É da sua competência organizar e aplicar os meios educativos adequados ao desenvolvimento integral da criança (psicomotor, afectivo, intelectual, social, moral, entre outros).

36 - No dia-a-dia, a educadora de infância, que tem sempre ao seu lado uma ou mais auxiliares para o desempenho da sua função, acompanha a evolução das crianças pelas quais é responsável e estabelece contactos com os pais no sentido de se obter uma acção educativa integrada.

37 - A intervenção profissional de um educador de infância passa por diferentes fases. Antes de mais cabe-lhe observar cada criança/grupo para conhecer as suas capacidades, interesses e dificuldades, recolher as informações sobre o contexto familiar e o meio em que as crianças vivem para compreender melhor as suas características.

38 - Em seguida, o educador deve proceder ao planeamento do processo educativo de acordo com as informações recolhidas junto do grupo e concretizá-lo na prática.

39 - Depois de cumpridas estas etapas (observação, planeamento e acção) o profissional de educação deve estar apto a avaliar todo o processo decorrido, incluindo todos os efeitos, adequando o processo educativo às necessidades das crianças e do grupo.

40 - Faz igualmente parte das suas funções trocar opiniões com os pais e comunicar-lhes todos os aspectos do desenvolvimento dos filhos.

41 - Por último, o educador deve proporcionar as condições necessárias para que cada criança tenha uma aprendizagem com sucesso.

42 - Funções essas manifestamente incompatíveis com as lesões, queixas e sequelas atuais e permanentes que a Autora padece em consequência do acidente descrito nos autos e melhor enunciados nos pontos n.ºs 31, 32, 33, 38, 40 e 42 da matéria de facto dada como provada e constante da Douta Sentença, a saber:

31. Mantém acompanhamento regular em consultas na Especialidade Psiquiatria, por síndrome depressivo, queixas de irritabilidade, alterações do sono, cefaleias intensas, sonhos com pesadelos, labilidade do humor, encontrando-se medicada.
32. A Autora, actualmente, é seguida em Psiquiatria, Consulta da Dor crónica, Fisiatria e mantém tratamentos Fisiátricos e de Hidroterapia.
33. A Autora apresenta as seguintes sequelas: perturbação do humor (superior a dois anos), com repercussão a nível social, laboral e pessoal; cicatriz cirúrgica hipercrómica de 4,5 cm na face anterior direita; dor à dígito pressão músculos para vertebrais esquerdos; maior rigidez cervical nos movimentos de lateralização e de rotação, extensão limitada a partir de 15 cm 8 normal 0-20 cm) e flexão limitada até 10 cm (normal 0-2 cm), limitação esta agravada pela dor; no membro superior esquerdo apresenta diminuição de força (grau3/5) e limitação aparente nos movimentos do ombro não conseguindo elevar o membro a mais de 90º, ligeira atrofia da musculatura deltoide e bicípite, assimetria do ombro em comparação com o contra lateral por atrofia marcada da cintura escapular; disestesias na mobilização do ombro e braço, com alívio posicional; reflexos presentes mas menos vivos que nos membros inferiores.
38. Em termos de repercussão permanente da atividade profissional, as sequelas são impeditivas do exercício da atividade profissional habitual, sendo compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional.
40. A Autora necessita actualmente e necessitará no futuro, de ajuda medicamentosa – antidepressivos, ansiolíticos, anti-inflamatórios e analgésicos.
42. A Autora necessita da ajuda de uma terceira pessoa, por um período de 2-3 (duas a três) horas por dia até ao fim da sua vida, para a realização das tarefas de limpeza da casa, cuidar da sua filha, pegar em objectos pesados, e preparar as suas refeições.

43 - Inexistem assim, quaisquer dúvidas de que as lesões, queixas e sequelas atuais e permanentes de que a Autora padece em consequência do acidente de viação descrito nos autos preenchem o conceito de «impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva, de o trabalhador prestar o seu trabalho» previsto no artigo 343º, a alínea b) da Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro (Código do Trabalho) facto esse que implica, sem qualquer margem de dúvidas, a caducidade do trabalho celebrado entre a Autora e a sua entidade patronal, pela qual a mesma exercia a categoria profissional de «Educadora de Infância».

44 - Quanto às perdas salariais (danos emergentes) a Douta Sentença ora recorrida também nesta parte não merece qualquer tipo de reparo ou censura, na medida em que em termos de cálculo da perda de capacidade de ganho sofrida pela Autora, a retribuição em ter em linha de conta é a ilíquida e não a líquida e o que importa é a esperança média de vida e não a idade da reforma.

45 - Quanto às despesas médicas/medicamentosas e de transporte a Douta Sentença ora recorrida também nesta parte não merece qualquer tipo de reparo ou censura na medida em que as mesmas estão todas devidamente documentadas na Petição inicial (referência citius 3829587) e requerimentos probatórios datados de 01/06/2016 com as referências citius 3835089, 3835094 e 3835096.

46 - Documentos esses cujos valores não foram impugnados pela Ré e foram corroborados pelas declarações da Autora e depoimento do seu marido em sede de julgamento.

47 - Quanto aos danos patrimoniais futuros (perda da capacidade de ganho futuro) a Autora dá por integralmente reproduzidas para todos os devidos efeitos legais as suas ALEGAÇÕES e CONCLUSÕES aduzidas no seu Recurso Subordinado de Apelação apresentado em 09/03/2018 com a referência citius 28453115.

48 - Quanto ao auxílio da terceira pessoa a Douta Sentença ora recorrida também nesta parte não merece qualquer tipo de reparo ou censura, sendo justa e equitativa a quantia arbitrada a esse título de 80.000,00 €.

49 - Ficou demonstrado que a Autora, em consequência das lesões sofridas, não é capaz de desempenhar as tarefas da lide doméstica, como o fazia até então.

50 - Até esta data tem sido auxiliada por familiares, dada a falta de capacidade económica para contratar uma pessoa para a execução de tais tarefas.

51 - A provisoriedade da situação presente, demanda que se considere que no futuro a Autora necessite de ajuda permanente de uma terceira pessoa, por um período de 2-3 (duas a três) horas por dia para a realização dessas tarefas.

52 - Numa perspectiva de equidade, haverá que ponderar que o auxílio de uma terceira pessoa perdurará pelo tempo de vida da Autora e que quantia deverá ter por base um período de 2-3 (duas a três) horas por dia e o salário mínimo para o serviço doméstico.

53 - Quanto ao valor arbitrado à Autora a titulo de danos não patrimoniais é justo, equitativo e adequado a compensar os danos não patrimoniais sofridos pela Autora, na medida em que ponderou a culpabilidade do responsável, a situação económica do lesado e do lesante, designadamente:

1. a idade da Autora à data do acidente (44 anos),
2. a gravidade e extensão das lesões sofridas,
3. o período de internamento hospitalar,
4. o défice funcional temporário parcial de 436 dias,
5. as intervenções cirúrgicas a que foi submetida,
6. a extensão das sequelas de que a autora ficou afectada (perturbação do humor, com repercussão a nível social, laboral e pessoal; cicatriz cirúrgica hipercrómica de 4,5 cm na face anterior direita; dor à dígito pressão músculos para vertebrais esquerdos; maior rigidez cervical nos movimentos de lateralização e de rotação, extensão limitada a partir de 15 cm 8 normal 0-20 cm) e flexão limitada até 10 cm (normal 0-2 cm), limitação esta agravada pela dor; no membro superior esquerdo apresenta diminuição de força (grau3/5) e limitação aparente nos movimentos do ombro não conseguindo elevar o membro a mais de 90º, ligeira atrofia da musculatura deltoide e bicípite, assimetria do ombro em comparação com o contra lateral por atrofia marcada da cintura escapular; disestesias na mobilização do ombro e braço, com alívio posicional; reflexos presentes mas menos vivos que nos membros inferiores),
7. a necessidade de acompanhamento regular em consultas na Especialidade Psiquiatria, por síndrome depressivo, queixas de irritabilidade, alterações do sono, cefaleias intensas, sonhos com pesadelos, labilidade do humor, encontrando-se medicada, 8. a necessidade de ser seguida em Psiquiatria, Consulta da Dor crónica, Fisiatria e mantém tratamentos Fisiátricos e de Hidroterapia,
9. o grau de Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica (26 pontos),
10. em termos de repercussão permanente da actividade profissional, as sequelas são impeditivas do exercício da actividade profissional habitual, 11. o Quantum Doloris sofrido de 5/7,
12. o Dano Estético Permanente sofrido de 2/7,
13. a necessidade actual e futura, de realizar hidroterapia e tratamento fisiátrico,
14. a necessidade actual e futura de ajuda medicamentosa – antidepressivos, ansiolíticos, anti-inflamatórios e analgésicos,
15. a necessidade da ajuda de uma terceira pessoa, por um período de 2-3 (duas a três) horas por dia até ao fim da sua vida, para a realização das tarefas de limpeza da casa, cuidar da sua filha, pegar em objectos pesados, e preparar as suas refeições,
16. a Autora temeu pela sua vida,
17. actualmente padece de alterações de humor, do sono e alterações afectivas,
18. antes do acidente era uma pessoa saudável, dinâmica, expedita, diligente e trabalhadora,
19. era também uma pessoa alegre, confiante, cheia de projectos para o futuro,
20. devido às sequelas do acidente tornou-se uma pessoa triste, introvertida, receosa de que o seu estado de saúde piore e desgostosa da vida,
21. devido às cicatrizes posição e dificuldade de movimento do membro superior, deixou de vestir determinadas peças de roupa, como vestidos, camisas de alças e biquíni,
22. devido à medicação que toma a autora sentiu uma diminuição do desejo sexual,
23. à data da ocorrência do acidente, desejava e já tinha planeado e decidido conjuntamente com o seu marido, ter um segundo filho, desejo esse que atenta a natureza e extensão das lesões sofridas e das sequelas atuais de que padece, decidiu não concretizar, por não se sentir em condições de criar uma criança que lhe causa grande tristeza e frustração como esposa, mulher e mãe.

54 - Quanto à condenação da Ré no pagamento de juros de mora calculados no dobro da taxa legal, desde a data da citação e até integral pagamento, a Douta Sentença ora recorrida também nesta parte não merece qualquer tipo de reparo ou censura.

55 - Dispõe o referido artigo 38º/3 que «se o montante proposto nos termos da proposta razoável for manifestamente insuficiente, são devidos juros no dobro da taxa prevista na lei aplicável ao caso, sobre a diferença entre o montante oferecido e o montante fixado na decisão judicial, contados a partir do dia seguinte ao final dos prazos previstos nas disposições identificadas no n.º 1 até à data da decisão judicial ou até à data estabelecida na decisão judicial».

56 - Não havendo controvérsia quanto à responsabilidade do segurado da Ré, como foi o caso dos autos, cumpria-lhe apresentar uma proposta razoável de indemnização, no caso de o dano sofrido ser quantificável, no todo ou em parte.

57 - Incumprindo a seguradora tal dever, justifica-se então a fixação da penalidade prevista no nº. 2, traduzida no agravamento dos juros, porquanto o dano sofrido pelo lesado é quantificável, ainda que só parcialmente.

58 - Se em consequência do sinistro resulta a destruição de bens cujo valor de mercado não gera controvérsia, ou a perda de remuneração motivada por imobilização forçada, justifica-se plenamente o agravamento dos juros da responsabilidade da seguradora, no caso de esta não se pronunciar sobre a assunção ou não assunção da responsabilidade no prazo fixado na alínea e do nº. 1 do artigo 36º, ou, assumindo-a, não apresentar proposta razoável de indemnização ao sinistrado”.

59 - A Portaria nº. 377/2007 impõe às seguradoras a apresentação de propostas razoáveis, em prazo comedido, obstando ao retardamento injustificado (ou não explicado) na reparação, como no oferecimento de reparações frequentemente distantes da real gravidade dos danos sofridos.

60 - No caso dos autos, por conta dos danos patrimoniais e não patrimoniais, a Ré, em sede extrajudicial, não apresentou qualquer proposta de indemnização em fase extrajudicial (cfr. ponto 57 dos factos provados), sendo certo que também não logrou provar qualquer justificação para esse comportamento.

61 - É manifesto que o dano era já quantificável, - data da consolidação das lesões foi fixada em 25.11.2014 - pelo que a Ré tinha todas as condições para efectivar uma proposta razoável de indemnização dos prejuízos sofridos pela Autora, os quais, obviamente, sempre existiam.

62 - Existe uma diferença enorme entre o valor da “não” proposta da Ré e o valor da condenação em 1ª Instância, valor esse que poderá ser ainda bastante superior atenta a eventual procedência do presente recurso Subordinado de Apelação, no que diz respeito aos Danos Patrimoniais sofridos pela Autora em consequência do acidente em discussão nos presentes autos.

63 - É por demais evidente que a Ré não cumpriu o disposto no artº 36º do DL 291/07 porquanto a proposta para ressarcimento dos danos sofridos não constitui «proposta razoável».

64 - Deve, aliás, dizer-se que este normativo visa, claramente, desincentivar o não oferecimento e/ou o oferecimento por parte das seguradoras de valores muito abaixo dos devidos, o que, infelizmente, acontece de forma muito generalizada.

65 - Improcedem assim, todas as Alegações e as Conclusões n.ºs 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9,10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66 e 67 formuladas pela Ré/Recorrente X - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., com o seu Douto Recurso de Apelação.
*
1.2.2. Recurso subordinado (da Autora)

1.2.2.1. Fundamentos (do recurso subordinado)

A Autora (Maria) interpôs recurso de apelação subordinado, pedindo que fosse provido, revogando-se e substituindo-se a sentença recorrida.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (reproduzindo-se aqui ipsis verbis as respectivas conclusões):

1 - A Autora/Recorrente, não concorda com a absolvição e a não condenação da Ré, em pagar à Autora uma quantia indemnizatória, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, que se vier a liquidar em incidente póstumo relativamente aos futuros dispêndios com a necessidade, no futuro, de acompanhamento regular em consultas na Especialidade de Psiquiatria, Consulta da Dor crónica, Fisiatria, tratamentos Fisiátricos e de Hidroterapia e de ajuda medicamentosa (antidepressivos, ansiolíticos, anti-inflamatórios e analgésicos).

2 - A Autora/Recorrente não concorda com o valor indemnizatório que lhe foi atribuído a título de danos futuros pela «perda da capacidade de ganho», na medida em que em termos de repercussão permanente da actividade profissional, as sequelas são impeditivas do exercício da atividade profissional habitual (IPATH) de «Educadora de Infância».

3 - A Autora/Recorrente não concorda com o valor indemnizatório que lhe foi atribuído a título de «Dano Biológico» em consequência da perda ou diminuição de capacidades funcionais decorrente do Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 26 pontos que lhe foi fixado.

4 - O dano é enunciado no ordenamento jurídico nacional como requisito da responsabilidade civil, pressuposto da obrigação de indemnizar, encontrando-se prevista, no artigo 564.º do Código Civil, a ressarcibilidade, não apenas dos danos presentes, mas igualmente dos danos futuros, desde que previsíveis e se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior.

5 - A douta sentença limitou-se a condenar a Ré a pagar à Autora apenas a quantia que se vier a liquidar pelos tratamentos de hidroterapia e fisiatria e despesas com medicamentos relacionados com as lesões do acidente, devendo a condenação ser mais abrangente.

6 - A Autora, entende que a Ré, deverá ser condenada a pagar à Autora, uma quantia indemnizatória, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, que se vier a liquidar em incidente póstumo relativamente aos futuros dispêndios com a necessidade, no futuro, de acompanhamento regular em consultas na Especialidade de Psiquiatria, Consulta da Dor crónica, Fisiatria, tratamentos Fisiátricos e de Hidroterapia e de ajuda medicamentosa (antidepressivos, ansiolíticos, anti-inflamatórios e analgésicos).

7 - Tal conclusão, deriva da matéria de facto dada como provada, mais concretamente nos itens n.ºs 31, 32, 39 e 40, a saber:

31. Mantém acompanhamento regular em consultas na Especialidade Psiquiatria, por síndrome depressivo, queixas de irritabilidade, alterações do sono, cefaleias intensas, sonhos com pesadelos, labilidade do humor, encontrando-se medicada.
32. A Autora, actualmente, é seguida em Psiquiatria, Consulta da Dor crónica, Fisiatria e mantém tratamentos Fisiátricos e de Hidroterapia.
39. A Autora necessita actualmente e necessitará no futuro, de realizar hidroterapia e tratamento fisiátrico.
40. A Autora necessita actualmente e necessitará no futuro, de ajuda medicamentosa – antidepressivos, ansiolíticos, anti-inflamatórios e analgésicos.

8 - Em virtude das lesões sofridas e da irreversibilidade das sequelas atuais e permanentes causadas pelo acidente de viação descrito nos presentes autos, a Autora, atualmente em termos de repercussão permanente da actividade profissional, as sequelas são impeditivas do exercício da atividade profissional habitual (IPATH) de «Educadora de Infância».

9 - No âmbito da responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente de viação, no leque dos danos patrimoniais, destacam-se, os resultantes das sequelas sofridas que impliquem perda de capacidade de ganho.

10 - Em termos de indemnização dos danos patrimoniais, na vertente de lucros cessantes, e sofridos pela autora em consequência das sequelas que lhe advieram com o acidente dos autos, a mesma pode e deve projectar-se em dois planos:

a) «Perda de capacidade de ganho proveniente da sua atividade profissional habitual»: decorrente da perda total ou parcial da capacidade do lesado para o exercício da sua atividade profissional habitual, durante o período previsível dessa actividade, e consequentemente dos rendimentos que dela poderia auferir – no caso em discussão nos autos foi atribuída à autora uma IPATH, ou seja, uma Incapacidade Permanente Absoluta para o seu Trabalho Habitual de «Educadora de Infância», e
b) «Dano biológico»: decorrente da perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para o exercício profissional da actividade habitual do lesado, impliquem ainda assim um maior esforço no exercício dessa actividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expetável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual - no caso em discussão nos autos foi atribuído ao autor um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 26 pontos.

11 - São de considerar como danos diferentes o que decorre da perda de rendimentos salariais, associado ao grau de incapacidade laboral o e compensado pela atribuição de certo capital de remição, e o dano biológico decorrente das sequelas incapacitantes do lesado que - embora não determinem perda de rendimento laboral - envolvem restrições acentuadas à capacidade do sinistrado, implicando esforços acrescidos, quer para a realização das tarefas profissionais, quer para as actividades da vida pessoal e corrente.

12 - No cálculo dos danos patrimoniais futuros decorrentes da perda da capacidade de ganho, deverá considerar-se a produção de um rendimento durante o tempo de vida previsível da vítima, adequado ao que auferiria se não fosse a lesão correspondente ao grau de incapacidade, e adequado a repor a perda sofrida.

13 - Isto implica tomar em linha de conta a idade do lesado ao tempo do acidente, a esperança média de vida (apurada de acordo com os dados estatísticos disponíveis), os rendimentos auferidos ao longo desta, os encargos, o grau de incapacidade, e todos os outros elementos atendíveis.

14 - O lesado afectado de sequelas impeditivas do exercício da actividade profissional habitual encontra-se em posição de desvantagem em relação a outro que, afectado da mesma incapacidade parcial, não ficou impedido de exercer a sua profissão habitual.

15 - Esta posição de desvantagem é agravada pela circunstância da taxa de desemprego do cidadão deficiente ser especialmente elevada (pelo menos o dobro da restante população), porquanto os empregadores partem do pressuposto da sua inadaptação ao desempenho profissional.

16 - Acresce que os elementos estatísticos demonstram que a taxa de pobreza das pessoas com deficiência é 70% superior à média, em parte devido a limitações no acesso ao emprego.

17 - Daí que, na determinação da perda da capacidade de ganho dos lesados afectados de incapacidade definitiva para o exercício da sua profissão, e apelando ao princípio da igualdade, inscrito no art. 13.º n.º 1 da Constituição (implicando o dever de tratar de forma igual o que é igual e de forma diferente o que é diferente), se justifique a utilização da regra que o direito do trabalho aplica ao cálculo da pensão para os sinistrados em acidente de trabalho afectados de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH), a qual é fixada entre 50% e 70% da retribuição, conforme a maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível – art. 48.º n.º 3 al. b) da Lei 98/2009, de 4 de Setembro.

18 - As tabelas financeiras a que a jurisprudência recorre para o cálculo da perda da capacidade de ganho, ponderam já variáveis como a taxa de juro nominal líquida, a taxa anual de inflação, os ganhos da produtividade e as promoções profissionais, procurando assim obter um capital apto a produzir um rendimento anual durante o período previsível da vítima, através da utilização dos juros produzidos e de parte do capital, de modo que, no termo do prazo considerado, aquele se mostre esgotado.

19 - Tais tabelas comportam, pois, através da fórmula matemática utilizada, a dedução devida por entrega antecipada do capital.

20 - Acaso não tivesse sido efectuada matematicamente essa dedução, através do uso da fórmula, o cálculo a efectuar seria, tão só, multiplicar a perda anual de rendimentos pelo tempo de vida previsível e aplicar a essa operação simples uma taxa de dedução.

21 - Mas, comportando já a fórmula as variáveis essenciais e a dedução devida por entrega antecipada do capital, aplicar uma nova dedução representaria nada mais que uma injustificada duplicação de deduções.

22 - De todo o modo, tais fórmulas permitem alcançar um minus indemnizatório, a corrigir e adequar às circunstâncias do caso através de juízos de equidade.

23 - Tendo a vítima ficado impedida de exercer a sua actividade profissional habitual, face às graves sequelas físicas sofridas, acentuadas pelo quadro depressivo acompanhado de stress pós-traumático crónico, prejudicando substancialmente as suas oportunidades de obter novo emprego, justifica-se a elevação do resultado obtido através das tabelas financeiras em cerca de 10%.

24 - Atendendo à matéria de facto dada como provada, mais concretamente nos itens n.ºs 4, 33, 37, 38, 41 e 50 dos factos julgados como assentes e com interesse para a determinação do montante indemnizatório a atribuir à Autora/Recorrente a titulo de danos patrimoniais, mais concretamente a titulo de «perda da capacidade de ganho», na medida em que em termos de repercussão permanente da atividade profissional, as sequelas são impeditivas do exercício da atividade profissional habitual (IPATH) de «Educadora de Infância», deverá o mesmo ser fixado equitativamente em quantia nunca inferior a 425.000,00 (Quatrocentos e Vinte e Cinco Mil Euros), quantia essa cujo pagamento a Autora desde já peticiona da Ré.

25 - Tal montante indemnizatório, deverá ter em linha de conta, os seguintes factores:

1) A Autora nasceu em 26-05-1969 (tinha 44 anos de idade à data do acidente).
2) A Autora apresenta as seguintes sequelas: perturbação do humor (superior a dois anos), com repercussão a nível social, laboral e pessoal; cicatriz cirúrgica hipercrómica de 4,5 cm na face anterior direita; dor à dígito pressão músculos para vertebrais esquerdos; maior rigidez cervical nos movimentos de lateralização e de rotação, extensão limitada a partir de 15 cm 8 normal 0-20 cm) e flexão limitada até 10 cm (normal 0-2 cm), limitação esta agravada pela dor; no membro superior esquerdo apresenta diminuição de força (grau3/5) e limitação aparente nos movimentos do ombro não conseguindo elevar o membro a mais de 90º, ligeira atrofia da musculatura deltoide e bicípite, assimetria do ombro em comparação com o contra lateral por atrofia marcada da cintura escapular; disestesias na mobilização do ombro e braço, com alívio posicional; reflexos presentes mas menos vivos que nos membros inferiores.
3) As referidas sequelas determinam-lhe um défice funcional da integridade físico-psíquica de 26 pontos, não afectando a Autora em termos de autonomia e independência, são causa de sofrimento físico, limitando-a em termos funcionais.
4) Em termos de repercussão permanente da atividade profissional, as sequelas são impeditivas do exercício da atividade profissional habitual, sendo compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional.
5) À data da ocorrência do acidente de viação exercia por conta de outrem, a categoria profissional de «Educadora de Infância» na firma denominada Obra SZ, com sede na Rua … Lisboa, e auferia uma retribuição mensal de 1.706,20€ (Mil Setecentos e Seis Euros e Vinte Cêntimos) discriminado da seguinte forma: 1.649,00€ x 14 meses/ano a título de vencimento base mensal, e 57,20€ X11 meses/ano a título de subsídio de alimentação.
6) Antes do acidente era uma pessoa saudável, dinâmica, expedita, diligente e trabalhadora.

26 - A lesão corporal sofrida em consequência de um acidente de viação constitui em si um dano real ou dano-evento, designado por dano biológico, na medida em que afecta a integridade físico-psíquica do lesado, traduzindo-se em ofensa do seu bem «saúde».

27 - Trata-se de um «dano primário», do qual, podem derivar, além de incidências negativas não susceptíveis de avaliação pecuniária, a perda ou diminuição da capacidade do lesado para o exercício de actividades económicas, como tal susceptíveis de avaliação pecuniária.

28 - A compensação do dano biológico tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou conversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais.

29 - Atendendo à matéria de facto dada como provada, mais concretamente nos itens n.ºs 4, 33, 37, 38, 41 e 50 dos factos julgados como assentes e com interesse para a determinação do montante indemnizatório a atribuir à Autora/Recorrente a titulo de danos patrimoniais, mais concretamente a titulo de «dano biológico» decorrente da perda ou diminuição de capacidades funcionais em consequência do Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 26 pontos, deverá o mesmo ser fixado equitativamente em quantia nunca inferior a €200.000,00 (Duzentos Mil Euros) quantia essa cujo pagamento a Autora/Recorrente desde já peticiona da Ré/recorrida.

30 - Tal montante indemnizatório, deverá ter em linha de conta, os seguintes fatores:

1) A Autora nasceu em 26-05-1969 (tinha 44 anos de idade à data do acidente).
2) A Autora apresenta as seguintes sequelas: perturbação do humor (superior a dois anos), com repercussão a nível social, laboral e pessoal; cicatriz cirúrgica hipercrómica de 4,5 cm na face anterior direita; dor à dígito pressão músculos para vertebrais esquerdos; maior rigidez cervical nos movimentos de lateralização e de rotação, extensão limitada a partir de 15 cm 8 normal 0-20 cm) e flexão limitada até 10 cm (normal 0-2 cm), limitação esta agravada pela dor; no membro superior esquerdo apresenta diminuição de força (grau3/5) e limitação aparente nos movimentos do ombro não conseguindo elevar o membro a mais de 90º, ligeira atrofia da musculatura deltoide e bicípite, assimetria do ombro em comparação com o contra lateral por atrofia marcada da cintura escapular; disestesias na mobilização do ombro e braço, com alívio posicional; reflexos presentes mas menos vivos que nos membros inferiores.
3) As referidas sequelas determinam-lhe um défice funcional da integridade físico-psíquica de 26 pontos, não afectando a Autora em termos de autonomia e independência, são causa de sofrimento físico, limitando-a em termos funcionais.
4) Em termos de repercussão permanente da actividade profissional, as sequelas são impeditivas do exercício da actividade profissional habitual, sendo compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional.
5) À data da ocorrência do acidente de viação exercia por conta de outrem, a categoria profissional de «Educadora de Infância» na firma denominada Obra SZ, com sede na Rua … Lisboa, e auferia uma retribuição mensal de 1.706,20€ (Mil Setecentos e Seis Euros e Vinte Cêntimos) discriminado da seguinte forma:
1.649,00€ x 14 meses/ano a título de vencimento base mensal, e 57,20€ X11 meses/ano a título de subsídio de alimentação.
6) Antes do acidente era uma pessoa saudável, dinâmica, expedita, diligente e trabalhadora.

31 - A Douta Sentença Recorrida violou as seguintes disposições legais:

a) os artigos 483º, 496º, 562º, 563º, 564º, nº1 n.º 2, 566.º, n.ºs1, 2, 3 todos Código Civil,
b) o princípio da igualdade inscrito no art. 13.º n.º 1 da Constituição (implicando o dever de tratar de forma igual o que é igual e de forma diferente o que é diferente), pelo qual se justifica a utilização da regra que o direito do trabalho aplica ao cálculo da pensão para os sinistrados em acidente de trabalho afectados de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH), a qual é fixada entre 50% e 70% da retribuição, conforme a maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível – art. 48.º n.º 3 al. b) da Lei 98/2009, de 4 de Setembro.
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1.2.2.2. Contra-alegações (ao recurso subordinado)

A (X – Companhia de Seguros, S.A.) contra-alegou, pedindo que se julgasse totalmente improcedente o recurso de apelação subordinado da Autora (Maria).

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (reproduzindo-se aqui ipsis verbis as respectivas conclusões):

1 - O presente recurso subordinado visa a condenação da Recorrente nos danos futuros (patrimoniais e não patrimoniais) de acompanhamento regular em consultas em diversas especialidades e ajuda medicamentosa. Visa, ainda, a alteração do quantum indemnizatório atribuídos a título de dano futuro, na vertente da perda da capacidade de ganho e a condenação numa compensação pelo dano biológico.

QUANTO AOS DANOS FUTUROS (PATRIMONIAIS E NÃO PATRIMONIAIS) DE ACOMPANHAMENTO MÉDICO E AJUDA MEDICAMENTOSA:
2 - ANTES E MAIS: A sentença em crise já condenou a aqui Recorrida «a quantia que se vier a liquidar pelos tratamentos de hidroterapia e fisiatria e despesas com medicamentos relacionados com as lesões do acidente» (sublinhado nosso).

3 - Ou seja, atenta a factualidade provada e não provada (nomeadamente, a vertida nos pontos 4, 5 e 6 dos factos não provados), a Meritíssimo Julgador considerou relevantes, apenas, os tratamentos de hidroterapia e fisiatria, além da medicação.

4 - Aliás, é o relatório pericial que, na pág. 9, descrevendo os tratamentos médicos que evitarão um retrocesso ou agravamento das sequelas, discrimina, única e exclusivamente, a fisiatria e a hidroterapia.

5 - A condenação da aqui Recorrida no pagamento da quantia que se vier a liquidar pelos tratamentos de hidroterapia e fisiatria e despesas com medicamentos acautela cabalmente os danos da aqui recorrente.

QUANTO AOS DANOS FUTUROS PELA PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO:
6 - Determinou a sentença em crise: «Assim, e considerando, por um lado, a idade da autora à data da consolidação das lesões (45 anos), os seus rendimentos, a natureza das lesões sofridas e suas sequelas, entende-se ser equitativamente justa e adequada uma indemnização equivalente a € 280.000,00 € (duzentos e oitenta mil euros), pelos danos futuros».

7 - Para fixação desta indemnização, serão três os factores a ter em conta:
(i) o limite de idade activa, i. e, a idade até à qual se deverá calcular a indemnização;
(ii) o valor da remuneração e,
(iii) a incapacidade permanente.

8 - Ora, e quanto ao limite de idade activa, nenhuma dúvida que este deverá fixar-se nos 65 anos, ou melhor, na idade da reforma, embora não repugne aceitar-se os 70 anos de idade como limite de idade activa, mas nunca os 75 anos de idade.

9 - Quanto ao valor da remuneração a ter em conta, o salário a ter em conta é o salário efectivamente auferido, o salário líquido, sem ter em conta o subsídio de alimentação.

10 - Por fim, quanto à incapacidade propriamente dita, ao contrário do que parece preconizar a Recorrente, não se está perante uma incapacidade permanente absoluta.
Está-se, isso sim, perante uma incapacidade permanente absoluta para o trabalho/profissão habitual (é o que resulta dos factos provados nºs 37 e 38).

11 - É certo que a indemnização para este dano não deve ser calculada como se de incapacidade permanente parcial, com uma incapacidade permanente de 26 pontos se tratasse, mas também não pode ser tratada como uma incapacidade permanente absoluta.

12 - Evitando-se repetições, e por respeito ao princípio da economia processual, remete-se para a motivação do recurso principal, no que respeita ao «paralelismo» efectuado entre o regime a aplicar e o regime da reparação dos acidentes de trabalho.

13 - A elevação do resultado obtidos através das tabelas financeiras em 10% é irrazoável, injustificável e, acima de tudo, desproporcional. Não se pode esquecer que a Demandante/lesada tem capacidade para o exercício de actividades para «outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional».

14 - A Demandante não tem que mudar de área de actividade. Aliás, será por isso, que o contrato de trabalho ainda se mantém.

15 - Por fim, mantem-se, a este propósito, tudo quanto alegado no âmbito do recurso principal.

16 - Dito isto e sem mais delongas, fácil é de ver que a quantia atribuída a este título é exageradíssima, com o que deverá ser reduzida, sendo, portanto, de recusar os argumentos aduzidos pela recorrente para elevar o valor já arbitrado.

DO DANO BIOLÓGICO:
17 - A Recorrida mantem tudo quanto alegado e exposto no recurso principal.

18 - Numa breve análise à factualidade provada e aos montantes arbitrados, quer a título de danos patrimoniais, quer a título de danos não patrimoniais, constata-se facilmente que o Meritíssimo Julgador, apesar de não o ter autonomizado, já considerou o dano biológico nos montantes fixados – vd. Fundamentação da decisão.

19 - A opção do Julgador em nada prejudica a recorrente e é comum na jurisprudência (vd., entre outros, os Acs. do STJ de 25/06/2002, de 24/09/2009 e de 17/12/2009).

20 - Sintetizando a questão, Maria da Graça Trigo, «Adopção do Conceito de “Dano Biológico” pelo Direito Português», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Vol. VI, Coimbra Editora, 2012, p. 653, defende – por sua vez – que «O dano biológico, sendo um dano real ou dano-evento, não deve, em princípio, ser qualificado como dano patrimonial ou não patrimonial, mas antes como tendo consequências de um e/ou outro tipo; e também por isso, em nosso entender, o dano biológico não deve ser tido como um dano autónomo em relação à dicotomia danos patrimoniais/ danos não patrimoniais».

21 - Isto para explicar que a posição do Meritíssimo Julgador é válida, tem acolhimento jurisprudencial e doutrinário e, na prática, em nada ofende os direitos da recorrente, porquanto os concretos danos por si sofridos em consequência da lesão da integridade psicofísica que sofreu já foram acautelados na fixação da indemnização pelos danos não patrimoniais e patrimoniais futuros.

22 - Deve manter-se, quanto a esta parte, integralmente a sentença em crise.
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 2, ambos do C.P.C.), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, nº 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº 2, in fine, ambos do C.P.C.).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar

Mercê do exposto, 02 questões foram submetidas à apreciação deste Tribunal:

- Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e valoração da prova produzida, já que a mesma

. não permitia que se dessem como demonstrados os factos provados enunciados sob o número 42 («A Autora necessita da ajuda de uma terceira pessoa, por um período de 2-3 (duas a três) horas por dia até ao fim da sua vida, para a realização das tarefas de limpeza da casa, cuidar da sua filha, pegar em objectos pesados, e preparar as suas refeições»), sob o número 46 («A Autora despendeu em deslocações a quantia de € 2.500,00 (Dois Mil e Quinhentos Euros)»), e sob o número 55 («A Autora, à data da ocorrência do acidente, desejava e já tinha planeado e decidido conjuntamente com o seu marido, ter um segundo filho, desejo esse que atenta a natureza e extensão das lesões sofridas e das sequelas atuais de que padece, decidiu não concretizar, por não se sentir em condições de criar uma criança»);

. e impunha que se aditasse um novo facto A Autora mantem, actualmente, o contrato de trabalho, sem termo, com a firma denominada ‘Obra de SZ, a aguardar o desfecho do processo de acidente de trabalho») ?

- Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação das normas legais consideradas (face nomeadamente ao sucesso da prévia impugnação da matéria de facto feita, mas também de forma independente dele), devendo ser alterada a decisão de mérito proferida, alterando-se os valores indemnizatórios (arbitrados a título de perdas salariais, de despesas transportes, de perda de capacidade de ganho, de custo com o auxílio com terceira pessoa, de danos não patrimoniais, e de dano biológico, reduzindo-se os mesmos, como defende a Ré no seu recurso principal, ou elevando-se os mesmos, como defende a Autora no seu recurso subordinado), e bem assim alterando-se o cálculo dos juros de mora (quer pela aplicação da mera taxa supletiva legal, quer pela consideração de um novo termo inicial no que tange à indemnização arbitrada a título de danos não patrimoniais) ?
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1. Decisão de Facto do Tribunal de 1ª Instância
3.1.1. Factos Provados

Realizada a audiência de julgamento no Tribunal de 1ª Instância, resultaram provados os seguintes factos:

1 - No dia 12 de Setembro de 2013, cerca das 18 horas e 20 minutos, na Estrada Nacional n.º 103, na freguesia de Gamil, concelho de Barcelos, distrito de Braga, ocorreu um embate entre o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula XA, propriedade de, e conduzido por, M. C., e o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula EM, propriedade de Maria (aqui Autora), conduzido por António.

2 - A Autora (Maria) era transportada gratuitamente como ocupante (passageira) no veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula EM.

3 - Através de contrato de seguro titulado pela apólice nº 752891124, a Proprietária do veículo de matrícula XA havia transferido para X - Companhia de Seguros, S.A. (aqui Ré) a responsabilidade civil pelos danos emergentes da sua circulação.

4 - A Autora (Maria) nasceu em 26 de Maio de 1969.

5 - O veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula EM, no qual seguia como passageira a Autora (Maria), circulava na Estrada Nacional n.º 103, na freguesia de Gamil, concelho de Barcelos, no sentido de marcha Barcelos/Braga, dentro da sua metade direita da faixa de rodagem (hemi-faixa), bem junto à berma direita.

6 - O veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula EM, no qual seguia como passageira a Autora (Maria), circulava a uma velocidade de cerca de 30/40 Km/horários.

7 - O veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula EM, no qual seguia como passageira a Autora (Maria), circulava com as luzes de cruzamento (médios) e com as luzes de presença traseiras ligadas (acesas).

8 - Ao aproximar-se de uma passagem para peões, o Condutor do veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula EM, reduziu a velocidade, parou e imobilizou-o por completo, para deixar passar os peões que já tinham iniciado a travessia da passadeira.

9 - Nesse momento, o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula EM, é embatido na parte traseira pelo veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula XA, conduzido por M. C..

10 - A Condutora do veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula XA, circulava a velocidade de cerca de 90/100 (noventa/cem) Km/horários.

11 - A Condutora do veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula XA, seguia sem atenção à sua condução e ao demais trânsito.

12 - Mercê do referido nos factos provados anteriores, a Condutora do veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula XA, não se apercebeu do veículo parado à sua frente, e não reduziu a velocidade a que seguia, acabando por embater no veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula EM.

13 - O embate ocorreu a cerca de 3/4 (três/quatro) metros de distância antes da passagem para peões, e totalmente dentro - e a meio -, da metade direita da faixa de rodagem, considerando o sentido de marcha de ambos os veículos (Barcelos/Braga).

14 - Em consequência do embate, o veículo onde seguia a Autora (Maria) foi projectado para a sua frente, ficando a uma distância de cerca de 15 (quinze) metros de distância do local do embate.

15 - O local onde ocorreu o embate configura uma recta, com mais de 100 (cem) metros de extensão, com boa visibilidade.

16 - A Estrada Nacional n.º 103, à data e no local onde ocorreu o embate, tinha uma faixa de rodagem, que, em toda a sua largura, media cerca de 7,20 metros (sete metros e vinte centímetros), e o pavimento betuminoso/alcatroado encontrava-se regular e em bom estado de conservação.

17 - O estado do tempo era seco.

18 - A velocidade máxima permitida, conforme sinalização vertical existente no local, era de 50 km/horários.

19 - Logo após o acidente, a Autora (Maria) foi transportada para o Serviço de Urgências do Hospital Santa Maria Maior, de Barcelos.

20 - A Autora (Maria) apresentava cervicalgia com irradiação MSEsq e cefaleias.

21 - A Autora (Maria), no mesmo dia 12 de Setembro de 2013, após ter sido observada e sujeita a exames radiológicos, teve alta para a sua habitação, medicada e com indicação de repouso e de regresso ao Hospital, caso as queixas se agravassem.

22 - A Autora (Maria) passou a ser acompanhada e assistida pela Seguradora Y Plc - Sucursal em Portugal (aqui Interveniente Principal), nos seus serviços clínicos na Clínica Santo António, em Braga, e no Hospital de Santa Maria no Porto, sito na Rua de Camões, n.º 906, 4049 - 025 Porto.

23 - A Autora (Maria), devido à persistência das dores na coluna cervical e no membro superior esquerdo, voltou a iniciar a baixa de 12 de Fevereiro de 2014 a 24 de Abril de 2014.

24 - Por manter cervicobraquialgia esquerda, a Autora (Maria) recorreu ao médico de família no Centro de Saúde (…), que lhe passou baixa desde 23 de Maio de 2014 e durante 12 dias.

25 - Dada a persistência das dores, a Autora (Maria) recorreu várias vezes ao serviço de urgência do Hospital de Braga.

26 - Em 17 de Março de 2014, a Autora (Maria) recorreu novamente à seguradora de acidentes de trabalho, Seguradora Y Plc - Sucursal em Portugal, por agravamento das queixas dolorosas e de impotência funcional a nível da coluna cervical e do membro superior esquerdo, sendo observada na especialidade de Neurocirurgia, sendo-lhe diagnosticado:
a) Queixas de cervicalgia com irradiação ao MSE e cefaleias.
b) RMN discopatia crave de C5-C6 EMG com radiculopatia de C5.

27 - Em 21 de Março de 2014, a Autora (Maria) foi submetida a um E.M.G., mantendo queixas incapacitantes relativas ao plexo braquial.

28 - No dia 07 de Abril de 2014, a Autora (Maria) foi novamente avaliada, mantendo dores incapacitantes no membro superior esquerdo.

29 - Posteriormente, em 08 de Maio de 2014, e por persistência das queixas dolorosas e de impotência funcional a nível da coluna cervical e do membro superior esquerdo, a Autora (Maria) decidiu consultar V. C., Medico Neurocirurgião, o qual referiu a existência de cervicobraquialgia esquerda e lhe propôs tratamento cirúrgico.

30 - Em 20 de Maio de 2014, por continuar o agravamento das dores e por crise grave de cervicobraquialgia com disparesia (4/5), a Autora (Maria) foi operada no Hospital da Ordem da Lapa, por V. C., tendo no dia 21 de Maio de 2014 efectuado artrodese C5-C6, o qual não resultou em melhoria significativa.

31 - A Autora (Maria) mantém acompanhamento regular em consultas na Especialidade Psiquiatria, por síndrome depressivo, queixas de irritabilidade, alterações do sono, cefaleias intensas, sonhos com pesadelos, e labilidade do humor, encontrando-se medicada.

32 - A Autora (Maria) é actualmente seguida em Psiquiatria, Consulta da Dor crónica, e Fisiatria; e mantém tratamentos Fisiátricos e de Hidroterapia.

33 - A Autora (Maria) apresenta as seguintes sequelas: perturbação do humor (superior a dois anos), com repercussão a nível social, laboral e pessoal; cicatriz cirúrgica hipercrómica de 4,5 cm na face anterior direita; dor à dígito pressão músculos para vertebrais esquerdos; maior rigidez cervical nos movimentos de lateralização e de rotação, extensão limitada a partir de 15 cm 8 normal 0-20 cm) e flexão limitada até 10 cm (normal 0-2 cm), limitação esta agravada pela dor; no membro superior esquerdo apresenta diminuição de força (grau3/5) e limitação aparente nos movimentos do ombro, não conseguindo elevar o membro a mais de 90º, ligeira atrofia da musculatura deltoide e bicípite, assimetria do ombro em comparação com o contra lateral por atrofia marcada da cintura escapular; disestesias na mobilização do ombro e braço, com alívio posicional; e reflexos presentes mas menos vivos que nos membros inferiores.

34 - A data da consolidação das lesões Autora (Maria) foi fixada em 25 de Novembro de 2014, lesões que lhe determinaram:
- um défice funcional temporário total de 4 dias;
- um défice funcional temporário parcial de 436 dias;
- um período de repercussão temporária na actividade profissional total de 360 dias.

35 - A Autora (Maria) sofreu um quantum doloris de grau 5, numa escala de 1 a 7.

36 - As lesões provocam à Autora (Maria) um dano estético de grau 2, numa escala de 1 a 7.

37 - As referidas sequelas determinam à Autora (Maria) um défice funcional da integridade físico-psíquica de 26 pontos; e não a afectando em termos de autonomia e independência, são causa de sofrimento físico, limitando-a em termos funcionais.

38 - Em termos de repercussão permanente da actividade profissional, as sequelas Autora (Maria) são impeditivas do exercício da actividade profissional habitual, sendo compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional.

39 - A Autora (Maria) necessita actualmente, e necessitará no futuro, de realizar hidroterapia e tratamento fisiátrico.

40 - A Autora (Maria) necessita actualmente, e necessitará no futuro, de ajuda medicamentosa - antidepressivos, ansiolíticos, anti-inflamatórios e analgésicos.

41 - À data da ocorrência do acidente de viação, Autora (Maria) exercia por conta de outrem a categoria profissional de «Educadora de Infância», na firma denominada Obra SZ, com sede na Rua … Lisboa; e auferia uma retribuição mensal de € 1.706,20 (mil, setecentos e seis euros, e vinte cêntimos) discriminado da seguinte forma: € 1.649,00 x 14 meses/ano a título de vencimento base mensal, e € 57,20 X 11 meses/ano a título de subsídio de alimentação.

42 - A Autora (Maria) necessita da ajuda de uma terceira pessoa, por um período de 2-3 (duas a três) horas por dia, até ao fim da sua vida, para a realização das tarefas de limpeza da casa, cuidar da sua filha, pegar em objectos pesados, e preparar as suas refeições.

43 - A Autora (Maria) esteve sem trabalhar desde a data da ocorrência do acidente de viação (12 de Setembro de 2013) e até à presente data.

44 - Durante este período, a Autora (Maria) recebeu a quantia de € 3.366,25 (três mil, trezentos e sessenta e seis euros, e vinte e cinco cêntimos), de Seguradora Y Plc - Sucursal em Portugal; e a quantia de € 267,39 (duzentos e sessenta e sete euros, e trinta e nove cêntimos), da Segurança Social.

45 - Para além do que foi suportado pela Seguradora do trabalho, a Autora (Maria) despendeu, em despesas médicas e medicamentosas, a quantia € 11.175,43 (onze mil, cento e setenta e cinco euros, e quarenta e três cêntimos).

46 - Em deslocações, Autora (Maria) despendeu a quantia de € 2.500,00 (dois mil, quinhentos euros, e zero cêntimos).

47 - Em consequência das lesões sofridas com o acidente, e durante os tratamentos, a Autora (Maria) sofreu dores.

48 - A Autora (Maria) temeu pela sua vida.

49 - A Autora (Maria) padece actualmente de alterações de humor, do sono, e de alterações afectivas.

50 - Antes do acidente, a Autora (Maria) era uma pessoa saudável, dinâmica, expedita, diligente e trabalhadora.

51 - Antes do acidente, a Autora (Maria) era também uma pessoa alegre, confiante, cheia de projectos para o futuro.

52 - Devido às sequelas do acidente, a Autora (Maria) tornou-se uma pessoa triste, introvertida, receosa de que o seu estado de saúde piore, e desgostosa da vida.

53 - Devido às cicatrizes, posição e dificuldade de movimento do membro superior, a Autora (Maria) deixou de vestir determinadas peças de roupa, como vestidos, camisas de alças e biquíni.

54 - Devido à medicação que toma, a Autora (Maria) sentiu uma diminuição do desejo sexual.

55 - A Autora (Maria), à data da ocorrência do acidente, desejava e já tinha planeado, e decidido conjuntamente com o seu Marido, ter um segundo filho, desejo esse que, atenta a natureza e extensão das lesões sofridas e das sequelas actuais de que padece, decidiu não concretizar, por não se sentir em condições de criar uma criança.

56 - O referido no facto provado anterior causa à Autora (Maria) grande tristeza e frustração, como esposa, mulher e mãe.

57 - A Ré, apesar de assumir a responsabilidade - reconhecendo a culpa do seu Segurado na produção do acidente -, não apresentou à Autora (Maria) qualquer proposta razoável de indemnização.

58 - A Interveniente Principal (Seguradora Y Plc - Sucursal em Portugal) pagou à Autora (Maria), a título de indemnizações pela incapacidade temporária para o trabalho, a quantia de € 3.366,25 (três mil, trezentos e sessenta e seis euros, e vinte e cinco cêntimos); e de despesas hospitalares, medicamentosas e com transportes, pagou o montante global de € 1.314,65 (mil, trezentos e catorze euros, e sessenta e cinco cêntimos).

59 - No âmbito do processo laboral, a Interveniente Principal (Seguradora Y Plc - Sucursal em Portugal) despendeu a quantia global de € 530,40 (quinhentos e trinta euros, e quarenta cêntimos), a título de encargos judiciais.

60 - Por força do sinistro em discussão nos presentes autos, foi intentada acção para cobrança de créditos hospitalares pelo Hospital de Braga - Escala Braga, que correu termos pela Comarca de Braga - Instância Central - 1ª Secção de trabalho - J2 (Processo n.º 12/14.7TTBCL-A).

61 - No dia 25 de Junho de 2015, realizou-se no processo referido no facto provado anterior uma audiência de partes, tendo a Interveniente Principal (Seguradora Y Plc - Sucursal em Portugal) acordado pagar ao Hospital de Braga - Escala Braga, a quantia de € 224,14 (duzentos e vinte e quatro euros, e catorze cêntimos).

62 - A Interveniente Principal (Seguradora Y Plc - Sucursal em Portugal) pagou ainda, no âmbito do referido processo de cobrança de créditos hospitalares, o montante global de € 668,42 (seiscentos e sessenta e oito euros, e quarenta e dois cêntimos), de encargos judiciais e honorários.
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3.1.2. Factos não provados

Na mesma decisão do Tribunal de 1ª Instância, foram considerados não provados os seguintes factos, aqui enumerados com uma adicional «» (considerando-se ainda que os «restantes factos alegados pelas partes nos respectivos articulados revelam-se inócuos para a decisão da causa, conclusivos ou constituem matéria de direito, (…) motivo pelo qual não foram vertidos para o elenco dos factos provados ou dos factos não provados»):

1’ - Em consequência das queixas, lesões e sequelas, a Autora (Maria) tem actualmente tem necessidade de usar um suporte/protecção para imobilizar o seu braço esquerdo junto ao peito, situação essa que lhe causa desgosto, designadamente quando se desloca a locais públicos em passeio e lazer, e quando passeia com a sua Filha menor, a qual por sua vez também sente bastante desgosto por essa situação que afecta a sua mãe, em comparação com as mães das suas colegas.

2’ - Em consequência das queixas, lesões e sequelas, a Autora (Maria) não pode actualmente, e não poderá no futuro, nos seus tempos livres e de lazer, praticar qualquer actividade e modalidade de desporto, que requeira movimento e boa mobilidade, ou qualquer outro tipo de funcionalidade do membro superior esquerdo, designadamente andar de bicicleta, o que fazia antes do acidente com bastante regularidade.

3’ - A Autora (Maria) necessita, actual e diariamente, de descansar por vários períodos de tempo, já que não consegue manter-se muito tempo de pé, sentada, a escrever, a trabalhar no computador, a conduzir, nem consegue pegar em crianças.

4’ - A Autora (Maria) necessita actualmente, e necessitará no futuro, de efectuar vários exames médicos de diagnóstico, e de aferição da consolidação das lesões e sequelas.

5’ - A Autora (Maria) necessita actualmente, e necessitará no futuro, de acompanhamento médico periódico, nas especialidades médicas de Ortopedia, Psiquiatria, Fisioterapia, Medicina Física e Reabilitação, Neurologia, Neurocirurgia, Neurocirurgia Funcional, para superar as consequências físicas e psíquicas das lesões e sequelas.

6’ - A Autora (Maria) terá necessidade no futuro de se submeter a várias intervenções cirúrgicas e plásticas, a vários internamentos hospitalares, de efectuar várias despesas hospitalares, de efectuar vários tratamentos médicos e clínicos, de ajudas técnicas, de efectuar várias deslocações a hospitais e clínicas, para tratamento e correcção das lesões e sequelas sofridas com acidente.
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3.2. Modificabilidade da decisão de facto

3.2.1.1. Erro de julgamento - Incorrecta apreciação da prova legal

Lê-se no art. 607º, nº 5 do C.P.C. que o «juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto», de forma consentânea com o disposto no C.C., nos seus art. 389º do C.C. (para a prova pericial), art. 391º do C.C. (para a prova por inspecção) e art. 396º (para a prova testemunhal).
Contudo, a «livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes» (II parte, do nº 5 do art. 607º do C.P.C. citado, com bold apócrifo).

Mais se lê, no art. 662º, nº 1 do C.P.C., que a «Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».

Logo, quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do art. 607º, nº 4 do C.P.C., aqui aplicável ex vi do art. 663º, nº 2 do mesmo diploma).

Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no C.C.), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspectos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.

Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico - com força probatória plena - cuja falsidade não tenha sido suscitada (arts. 371º, nº 1e 376º, nº 1, ambos do C.P.C.), ou quando exista acordo das partes (art. 574º, nº 2 do C.P.C.), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (art. 358º do C.C., e arts. 484º, nº 1 e 463º, ambos do C.P.C.), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (vg. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos arts. 351º e 393º, ambos do C.P.C.).

Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).
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3.2.1.2. Erro de julgamento - Incorrecta livre apreciação da prova

3.2.1.2.1. Âmbito da sindicância (provocada) do Tribunal da Relação

Lê-se no nº 2, als. a) e b) do art. 662º citado, que a «Relação deve ainda, mesmo oficiosamente»: «Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade de depoente ou sobre o sentido do seu depoimento» (al. a); «Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova» (al. b)».

«O actual art. 662º representa uma clara evolução [face ao art. 712º do anterior C.P.C.] no sentido que já antes se anunciava. Através dos nºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e fundar a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.

(…) Afinal, nestes casos, as circunstâncias em que se inscreve a sua actuação são praticamente idênticas às que existiam quando o tribunal de 1ª instância proferiu a decisão impugnada, apenas cedendo nos factores de imediação e da oralidade. Fazendo incidir sobre tais meios probatórios os deveres e os poderes legalmente consagrados e que designadamente emanam dos princípios da livre apreciação (art. 607º, nº 5) ou da aquisição processual (art. 413º), deve reponderar a questão de facto em discussão e expressar de modo autónomo o seu resultado: confirmar a decisão, decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão num sentido restritivo ou explicativo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 225-227).

É precisamente esta forma de proceder da Relação (apreciando as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, e indo à procura da sua própria convicção), que assegura a efectiva sindicância da matéria de facto julgada, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise (conforme Ac. do STJ, de 24.09.2013, Azevedo Ramos, comentado por Teixeira de Sousa, Cadernos de Direito Privado, nº 44, p. 29 e ss.).
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3.2.1.2.2. Modo de operar o duplo grau de jurisdição - Ónus de impugnação

Contudo, reconhecendo o legislador que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto «nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência», mas, tão-somente, «detectar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento» (preâmbulo do DL 329-A/95, de 12 de Dezembro), procurou inviabilizar a possibilidade de o recorrente se limitar a uma genérica discordância com o decidido, quiçá com intuitos meramente dilatórios.

Com efeito, e desta feita, «à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como de se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respectivas alegações que servem para delimitar o objecto do recuso», conforme o determina o princípio do dispositivo (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 228, com bold apócrifo).

Lê-se, assim, no art. 640º, n 1 do C.P.C. que, quando «seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».

Precisa-se ainda que, quando «os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados», acresce àquele ónus do recorrente, «sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes» (art. 640º, nº 2, al. a) citado).

Logo, deve o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada; e esta última exigência (contida na al. c) do nº 1 do art. 640º citado), «vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente», devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor enquanto «decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes», «impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 129, com bold apócrifo).

Dir-se-á mesmo que as exigências legais referidas têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efectividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).

Por outras palavras, se o dever - constitucional e processual civil - impõe ao juiz que fundamente a sua decisão de facto, por meio de uma análise crítica da prova produzida perante si, compreende-se que se imponha ao recorrente que, ao impugná-la, apresente a sua própria. Logo, deverá apresentar «um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido» por si (Ac. da RP, de 17.03.2014, Alberto Ruço, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, in www.dgsi.pt, como todos os demais sem indicação de origem).

Com efeito, «livre apreciação da prova» não corresponde a «arbitrária apreciação da prova». Deste modo, o Juiz deverá objectivar e exteriorizar o modo como a sua convicção se formou, impondo-se a «identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do Julgador», e ainda «a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto» (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, p. 655).

«É assim que o juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)» (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 325)
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«Destarte, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (provado, não provado, provado apenas…, provado com o esclarecimento de que…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, pág. 591, com bold apócrifo).

Dir-se-á mesmo que, este esforço exigido ao Juiz de fundamentação e de análise crítica da prova produzida «exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo Tribunal Superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao acto jurisdicional» (José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, p. 281).

É, pois, irrecusável e imperativo que, «tal como se impõe que o tribunal faça a análise critica das provas (de todas as que se tenham revelado decisivas)… também o Recorrente ao enunciar os concreto meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa deve seguir semelhante metodologia», não bastando nomeadamente para o efeito «reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, p. 595, com bold apócrifo).

De todo o exposto resulta que o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros: só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente; sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento; e nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).

Importa, porém, não esquecer - porque (como se referiu supra) se mantêm em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância. «Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, pág. 609).
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3.2.1.2.3. Carácter instrumental da impugnação da decisão de facto

Veio, porém, a jurisprudência precisar ainda que a impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face à mesma.

Com efeito, a «impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B [do anterior C.P.C.], visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorretamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efetivo objetivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10, com bold apócrifo).

Logo, «por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente» (Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo nº 1024/12, com bold apócrifo).

Por outras palavra, se, «por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.

Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10, com bold apócrifo. No mesmo sentido, Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo nº 6628/10).
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3.2.2. Concretizando, considera-se que a Recorrente principal (X – Companhia de Seguros, S.A.) - única que impugnou a decisão sobre a matéria de facto julgada - cumpriu o ónus de impugnação que lhe estava cometido pelo art. 640º, nº 1 do C.P.C. (conclusão distinta de saber se, tendo-o feito, existe fundamento para a pretendida alteração dos factos julgados como provados).

Com efeito, indicou nas suas conclusões de recurso: os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (os factos provados enunciados na sentença recorrida sob os números 42, 46 e 55, e a omissão de um novo, que pretende aditar); os concretos meios probatórios que imporiam decisão diferente (no caso, o relatório pericial, as declarações de parte prestadas pela Autora, e o depoimento prestado pela testemunha António, seu marido); e a decisão que, no seu entender, se impunha (o darem-se como não demonstrados os factos provados enunciados sob os números 42, 46 e 55, e o aditar-se um novo facto ao elenco dos provados).

Prosseguindo - na verificação do cumprimento do ónus de impugnação a cargo da Ré recorrente (X - Companhia de Seguros, S.A.) -, e relativamente ao juízo crítico próprio, assentou o mesmo numa diferente valoração feita do relatório pericial, e da prova pessoal produzida em audiência final (exclusivamente limitada às declarações de parte prestadas pela Autora, e ao depoimento prestado pelo seu marido, testemunha António).

Por outras palavras, admitindo-se necessariamente que o Tribunal a quo ouviu integralmente os depoimentos que a Recorrente seleccionou na sua impugnação, e apreciou o relatório médico-legal junto, certo é que fez dos mesmos uma outra valoração, ajuizando todo o seu conjunto face às regras da experiência.

Assim, pretendendo a Ré recorrente sindicar este juízo, importaria que indicasse as razões pelas quais entende que àqueles depoimentos e relatório pericial deveria ter sido dada outra relevância, o que fez.
Crê-se estar, assim, este Tribunal da Relação em condições de poder proceder (nos limites autorizados pelo art. 640º do C.P.C.) à reapreciação da matéria de facto pretendida pela Ré recorrente (X - Companhia de Seguros, S.A.).
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3.3. Modificabilidade da decisão de facto - Caso concreto

3.3.1. Necessidade de ajuda por uma terceira pessoa - Quantificação

Veio a Ré recorrente (X - Companhia de Seguros, S.A.) defender a alteração da decisão sobre a matéria de facto, por entender que o Tribunal a quo teria feito uma errada interpretação e valoração da prova produzida, já que a mesma não permitia que se desse como provada a necessidade do apoio por uma terceira pessoa, por um período de 2-3 horas por dia, vertida no facto provado enunciado sob o número 42 («A Autora necessita da ajuda de uma terceira pessoa, por um período de 2-3 (duas a três) horas por dia até ao fim da sua vida, para a realização das tarefas de limpeza da casa, cuidar da sua filha, pegar em objectos pesados, e preparar as suas refeições»).

Invocou para o efeito a alegada contradição de tal facto com o relatório pericial (resposta ao quesito 38), e com o afirmado pela própria Autora e pela testemunha António (quando identificaram os Familiares que a vem ajudando na realização das tarefas para que se encontra incapacitada, tendo também aquela alegadamente limitado a duas horas diárias o apoio de que necessitaria).

Começa-se por considerar o juízo de prova vertido na sentença recorrida, para depois se aferir da bondade da sindicância que lhe foi feita pela Ré recorrente (X – Companhia de Seguros, S.A.).
Assim, ponderou a mesma para este efeito (limitando-se a reprodução às partes relevantes para este propósito e com bold apócrifo, aposto nos segmentos que se consideraram mais relevantes, atento o objecto da sindicância):
«(…)
A convicção do tribunal baseou-se no conjunto da prova produzida consistente no relatório pericial, nos documentos juntos aos autos, no depoimento das testemunhas e nas declarações de parte.
(…)
Quanto às lesões sofridas pela autora baseou-se o tribunal essencialmente no teor do relatório médico-pericial realizado, que descreveu as sequelas de que a autora ficou a padecer em consequência do acidente e sua relação com as limitações atuais da autora.
(…)
A autora de forma sincera e impressiva, relatou as limitações sentidas no seu quotidiano que lhe advém das sequelas decorrentes do acidente, descrevendo as dificuldades em tarefas tão simples como vestir determinadas peças de vestuário, cuidar da filha (à data com três anos de idade), o não conseguir conduzir com segurança, e que por essa razão deixou de fazer, a lide doméstica que é realizada pelo marido e por familiares. A este propósito, esclareceu que tarefas como engomar, que exige uma posição de pé por muito tempo, aspirar que contende com movimentos dos braços e coluna, entre muitas outras cuja execução exige o contributo dos dois membros, são penosas de realizar, tendo-se socorrido do auxílio da sua sogra, por não dispor de condições financeiras para contratar uma pessoa para esse serviço. Referiu, também, a frustração que estas situações lhe causam e a sensação de impotência e fracasso que sente.
(…)
Frequenta a consulta da dor, por não suportar as dores que sente, e consultas de psiquiatria, por se sentir de rastos, por nesta fase da sua vida ter visto tudo desmoronar, a sua profissão, a assistência à sua filha, o empenho no casamento e o merecimento pessoal.
As declarações prestadas pela autora foram corroboradas pela testemunha António, seu marido, que concretizou a forma como as atuais limitações da autora interferem no seu dia-a-dia, pessoal e familiar, bem como o desgosto e tristeza sentidos pela autora pela sua condição atual.
(…)»

Logo, uma primeira conclusão se pode desde já enunciar: o Tribunal a quo, no juízo de prova de demonstração do facto provado enunciado sob o número 42, ponderou toda a prova (pericial e pessoal) produzida sobre ele, incluindo aquela que a Ré recorrente elegeu para fundar o seu antagónico juízo.
Ouvido integralmente o registo áudio da prova pessoal produzida, e examinado o relatório de perícia médico-legal junto, subscreve este Tribunal da Relação aquele seu juízo.

Com efeito, e atendendo primeiro ao dito relatório pericial, o que o mesmo singelamente afirma (na resposta ao quesito 38) é que «não é de admitir» que a Autora venha a necessitar/carecer do apoio/auxílio/ajuda permanente de uma terceira pessoa, «uma vez que é dextra e o lado afectado é o esquerdo». Assim, e tal como resulta do seu expresso teor, o dito relatório médico-legal não chega a excluir essa possibilidade, limitando-se a afirmar que a mesma não é previsível, por entender que a Autora poderia realizar as tarefas em causa exclusivamente com o seu braço direito.
Contudo, e salvo o devido respeito por aquela opinião contrária, a generalidade das tarefas de limpeza de casa, de cuidar de uma criança pequena, de pegar em objectos pesados, e de preparar refeições, requer e convoca o concurso dos dois membros superiores (como qualquer pessoa que tenha estado - acidental e temporariamente - privada do uso de um deles bem saberá).
Relembra-se, a propósito, que a «força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal» (art. 389º do C.C.): parte-se «do princípio de que aos juízes não é inacessível o controlo do raciocínio que conduz o perito à formulação do seu laudo e de que lhes é de igual modo possível optar por um dos laudos ou por afastar-se mesmo de todos eles, no caso frequente de divergência entre os peritos» (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, 1985, p. 583, com bold apócrifo).

Precisa-se, porém, que o «juiz, querendo responder, num certo sentido, a determinados pontos de facto controvertidos, relativamente aos quais o relatório pericial inculca uma resposta diferente, deverá naturalmente analisar criticamente as restantes provas (…) e mostrar, até certo ponto, que as razões invocadas pelos peritos para lograr determinadas respostas não são convincentes à luz do quadro mais geral de certas provas, que terão inculcado na mente do julgador uma diferente convicção» (J. P. Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2ª edição, Coimbra Editora, 2009, p. 560).

Ora, e prosseguindo neste esforço, dir-se-á que, quer a Autora (Maria), nas declarações de parte que prestou, quer o seu Marido (a testemunha António) confirmaram - integral e coerentemente - a necessidade do apoio de uma terceira pessoa, na realização daquelas tarefas (identificando inclusivamente os Familiares que generosamente o vêm fazendo); e se é certo que a Autora acabou por balizar esse apoio em duas horas diárias, começou por referir quatro, sendo que o seu Marido consistentemente referiu três a quatro horas.

Relembra-se, a propósito do valor probatório a atribuir às declarações de parte, que depois de um inicial entendimento de que deveriam, em regra, ser consideradas apenas como um princípio ou complemento de prova (exigindo a demonstração do facto que afirmassem uma prova adicional), se assiste mais recentemente a uma reacção a essa degradação antecipada do valor probatório a atribuir-lhes, por falta de fundamento legal: as mesmas deverão ser consideradas como meio de prova autónomo que são, consagrado em termos amplos (e não apenas como mero princípio de prova), valendo plenamente para a formação da convicção do juiz (e ainda que não se apresentem acompanhadas de mais elementos de prova), já que só desse modo se garante uma tutela plena e efectiva (mormente, naquelas situações em que inexistam outros meios de prova idóneos à comprovação da factualidade alegada).

Questiona-se, a propósito, se «a aferição da credibilidade da prova é tarefa que possa ser detetada previamente, em geral e abstrato?» E enfatiza pertinentemente que «se as partes podem passar a declarar a seu pedido o que viram, ouviram, sentiram, cheiraram, tocaram, conversaram, disseram, em suma, o que testemunharam, e porque o testemunharam não faz qualquer sentido conferir a estas declarações proferidas por pessoas que materialmente são testemunhas só porque são partes, um valor diverso do daqueles factos que foram testemunhados por quem é material e formalmente testemunha» (Elizabeth Fernandez, «Nemo Debet Essse Testis in Propria Causa ? Sobre a (in)Coerência do Sistema Processual a Este Propósito», Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, p. 23 e 36).

Logo, para que as declarações de parte possam valer como prova positiva e idónea, não precisam de ser necessariamente corroboradas por outras provas; terão que ser, sim, idóneas por si só.

Não deixam, porém, os adeptos deste mais recente entendimento (e de forma conforme com o reconhecimento da inegável fragilidade decorrente do interesse próprio de quem depõe) de enfatizarem que esta maior ou menor idoneidade, aferida necessariamente em função do caso concreto, dependerá nomeadamente: da possibilidade, ou impossibilidade, de recurso a outros meios de prova, para além das declarações de parte; e da forma como as mesmas foram prestadas, isto é, com ou sem serenidade e relativo desapego face à realidade retratada (circunstâncias a ponderar cum grano salis, face à natureza de parte do depoente), com ou sem convicção e assertividade, nomeadamente na fundamentação (incluindo corroborações periféricas), com ou sem contradições (incluindo correcções espontâneas), com ou sem hesitações ou tibiezas (incluindo reacção da parte a perguntas inesperadas), com ou sem espontaneidade e fluidez (incluindo contextualização espontânea do relato, e riqueza de detalhes).

(No primeiro sentido apontado, de precoce estigma quanto ao valor probatório das declarações de parte, e na jurisprudência: Ac. da RP, de 15.09.2014, António José Ramos, Processo nº 216/11.4TUBRG.P1, Ac. da RP, de 20.11.2014, Pedro Martins, Processo nº 1878/11, Ac. da RP, de 17.12.2014, Pedro Martins, Processo nº 2952/12, Ac. da RP, de 17.12.2014, Pinto dos Santos, Processo nº 8181/11, Ac. da RP, de 23.03.2015, Eusébio Almeida, Processo nº 1002/10.4TVPRT.PI, Ac. da RL, de 07.06.2016, Pedro Brighton, Processo nº 427/13.8TVLSB.L1-1, Ac. da RP, de 20.06.2016, Manuel Fernandes, Processo nº 2050/14, Ac. da RE, de 06.10.2016, Tomé Ramião, Processo nº 1457/15, ou Ac. da RL, de 13.10.2016, Ondina Carmo Alves, Processo nº 640/13.8TCLRS.L1.-2.

No segundo sentido referido, que aqui se sufraga: Ac. da RE, de 12.03.2015, Mata Ribeiro, Processo nº 1/12.6TBPTM.E1, Ac. do STJ, de 05.05.2015, Gabriel Catarino, Processo nº 607/06.2TBPMS.C1.S1, Ac. da RG, de 17.09.2015, António Figueiredo de Almeida, Processo nº 912/14.4TBVCT-A.G1, Ac. da RG, de 02.05.2016, António Figueiredo Almeida, Processo nº 2745/15.1T8VNF-A.G1, Ac. da RE, de 12.01.2017, Paulo Amaral, Processo nº 812/13.5TBVNO.E1, Ac. da RL, de 26.04.2017, Luís Filipe Pires de Sousa, Processo nº 18591/15.0T8SNT.L1-7, ou Ac. do TCAS, de 19.10.2017, Sofia David, Processo nº 985/16.5BEALM.)

Ora, e tal como o Tribunal a quo já o tinha enfatizado, ouvido o registo áudio das declarações prestadas pela Autora (Maria), resulta do mesmo que, não obstante a natural comoção que pontualmente foi denotando, se pronunciou de forma espontânea e fluída, segura e assertiva, coerente e consentânea com as lesões e sequelas que comprovadamente regista, nada se detectando em desabono da idoneidade que foi atribuída às respectivas declarações.

Já relativamente ao depoimento prestado pela interessada testemunha António, seu marido, relembra-se que esta circunstância (vínculo conjugal) não foi eleita pela lei processual civil como impedimento legal para depor (arts. 495º e 496º, ambos do C.P.C.), mas apenas como outorgando ao depoente a faculdade de se recusar a fazê-lo (art. 497º, nº 1, al. c), do C.P.C.).

Terá, assim, a lei sido sensível ao facto, reconhecido na normalidade da vida, de que são precisamente os cônjuges, ou os familiares mais próximos, que serão muitas vezes as únicas, ou as privilegiadas, testemunhas de muitos dos aspectos da vida privada trazida a juízo, como consabidamente sucede com lesões registadas na integridade física e psíquica de uma vítima de acidente de viação, e com as consequências que delas resultaram para a vida do lesado, nomeadamente nos seus aspectos mais privados ou íntimos.

Assim, e tal como sucede com o valor probatório a atribuir às declarações de parte, recusa-se aqui qualquer antecipada degradação do valor probatório a atribuir às testemunhas a quem a lei concede a faculdade de se recusarem a depor (como é o caso do cônjuge, em acção em que a pessoa com quem está casado seja parte), tudo dependendo novamente da forma com o seu depoimento tenha sido em concreto prestado.

Ora, e tal como o Tribunal a quo já o tinha enfatizado, ouvido o registo áudio do depoimento prestado pela testemunha António, resulta ter sido o mesmo realizado de forma espontânea e fluída, segura e assertiva, coerente e consentânea com as lesões e sequelas que comprovadamente a Autora regista, nada se detectando em desabono da idoneidade que lhe foi atribuída pelo Tribunal a quo.

Por fim, dir-se-á ainda que não se acolhe aqui a demais argumentação da Ré recorrente, segundo a qual, dispondo a Autora do apoio de Familiares na realização das tarefas diárias para a qual se encontra incapacitada (v.g. Sogra, e Tia do Marido), no cumprimento do que sejam desejáveis e habituais laços de solidariedade familiar, não necessita de contratar - e remunerar - uma terceira pessoa para esse fim.

Com efeito, sendo real a necessidade da Autora de dispor de um tal apoio diário, e até ao fim da sua vida, não pode a respectiva satisfação assentar na actual generosidade, e disponibilidade (quer física, quer de proximidade geográfica) de familiares do Marido, já que: consubstanciando mera tolerância, poderá cessar a qualquer momento por exclusiva iniciativa dos próprios; ainda que se mantivesse e reiterasse esse seu propósito, a concretização de consentânea acção estará sempre dependente das respectivas condições física e psíquica, e bem assim de habitação próxima; e, ainda que se mantivessem os pressupostos anteriores, como qualquer desses generosos familiares é mais velho do que a Autora, previsivelmente falecerão antes dela, deixando desse modo por satisfazer essa sua remanescente necessidade.

Logo, uma segunda conclusão se impõe: cabendo indiscutivelmente à Autora (Maria) o ónus da prova da necessidade, e da quantidade, do apoio a ser-lhe prestado por uma terceira pessoa, bastaria à Ré (X - Companhia de Seguros, S.A.) torná-la duvidosa, para que a mesma se quedasse indemonstrada - conforme art. 346º do C.C..

Com efeito, «o significado essencial do ónus da prova não está tanto em saber a quem incumbe a prova do facto, como de determinar o sentido em que deve o tribunal decidir no caso de não se fazer prova do facto» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, I, 4ª edição, Coimbra Editora, 1987, p. 306). Compreende-se, por isso, que se afirme que o ónus da prova comporta necessariamente uma prévia dimensão fáctica (pertinente ao processo interior do julgador, quanto ao convencimento sobre a ocorrência do facto), que impõe que a dúvida sobre a realidade de um facto» se resolva «contra a parte a quem o facto aproveita» (art. 414º do C.P.C.):

Contudo, e por falta de produção de qualquer prova própria, a Ré (X - Companhia de Seguros, S.A.) não logrou demonstrar o contrário do afirmado pela prova produzida pela Autora, ou sequer abalar a sua credibilidade.

Assim, e por falta de fundamento, improcede, nesta parte, o recurso de impugnação da matéria de facto, interposto pela Ré (X - Companhia de Seguros, S.A.), relativo à necessidade, e quantidade, de apoio a prestar à Autora por uma terceira pessoa, vertida no facto provado enunciado sob o número 42 - que por isso permanece inalterado.
*

3.3.2. Despesas de deslocação/transporte

Veio a Ré recorrente (X – Companhia de Seguros, S.A.) defender a alteração da decisão sobre a matéria de facto, por entender que o Tribunal a quo teria feito uma errada interpretação e valoração da prova produzida, já que a mesma não permitia que se dessem como provadas as despesas de deslocação de € 2.500,00, vertidas no facto provado enunciado sob o número 46 («A Autora despendeu em deslocações a quantia de € 2.500,00 (dois mil, quinhentos euros, e zero cêntimos»).

Invocou para o efeito não ter a Autora discriminado devidamente as deslocações feitas; e, naturalmente, não terem as mesmas sido objecto de prova, pelas declarações prestadas por ela, e pelo depoimento prestado pela testemunha António.

Começa-se por considerar o juízo de prova vertido na sentença recorrida, para depois se aferir da bondade da sindicância que lhe foi feita pela Ré recorrente (X – Companhia de Seguros, S.A.).

Assim, ponderou a mesma para este efeito (limitando-se a reprodução às partes relevantes para este propósito e com bold apócrifo, aposto nos segmentos que se consideraram mais relevantes, atento o objecto da sindicância):

«(…)
A convicção do tribunal baseou-se no conjunto da prova produzida consistente no relatório pericial, nos documentos juntos aos autos, no depoimento das testemunhas e nas declarações de parte.
(…)
As declarações prestadas pela autora foram corroboradas pela testemunha António, seu marido (…).
Relatou, ainda, a testemunha as elevadas despesas médicas e medicamentosas e com deslocações que o casal tem suportado, relato que foi compaginado com os documentos de fls 88 a 172.
(…)»

Logo, uma primeira conclusão se pode desde já enunciar: o Tribunal a quo, no juízo de prova de demonstração do facto provado enunciado sob o número 46, ponderou toda a prova produzida sobre ele, incluindo-se nesta, não apenas a pessoal (declarações de parte da Autora, e depoimento da testemunha seu Marido), como igualmente a documental.
Ouvido integralmente o registo áudio da prova pessoal produzida, e examinados os documentos juntos aos autos, subscreve este Tribunal da Relação aquele seu juízo.

Com efeito, não só a Autora, nas declarações de parte que prestou, confirmou ter realizado inúmeras deslocações, precisando locais, como a testemunha António precisou tê-las inclusivamente escriturado numa folha de Excel, admitindo-se com naturalidade que fosse o cálculo final dela apurado que haja servido para sustentar a alegação vertida na petição inicial e depois objecto de julgamento (sem que a Ré haja previamente acusado essa alegação de lacunar, conclusiva, ou ininteligível).
Acresce que a esta coerente e complementar prova pessoal se juntou prova documental, consentânea com aquela outra.

Por fim, dir-se-á, e novamente, que a Ré não produziu qualquer outra destinada a infirmar, ou sequer a tonar duvidosa, aquela primeira.

Logo, uma segunda conclusão se impõe: cabendo indiscutivelmente à Autora o ónus da prova das deslocações feitas, e do respectivo custo, bastaria à Ré torná-la duvidosa, para que os mesmos se quedassem indemonstrados - conforme art. 346º do C.C.. Contudo, e de novo por falta de produção de qualquer prova própria, a Ré não logrou demonstrar o contrário do afirmado pela prova produzida pela Autora, ou sequer abalar a sua credibilidade.

Assim, e por falta de fundamento, improcede, nesta parte, o recurso de impugnação da matéria de facto, interposto pela Ré (X – Companhia e Seguros, S.A.), relativo às deslocações, e respectivo custo, realizadas pela Autora, vertidos no facto provado enunciado sob o número 46 - que por isso permanece inalterado.
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3.3.3. Frustração do propósito de nova gravidez da Autora

Veio a Ré recorrente (X – Companhia de Seguros, S.A.) defender a alteração da decisão sobre a matéria de facto, por entender que o Tribunal a quo teria feito uma errada interpretação e valoração da prova produzida, já que a mesma não permitia que se desse como provada a frustração do propósito da Autora de voltar a engravidar, vertida no facto provado enunciado sob o número 55 («A Autora, à data da ocorrência do acidente, desejava e já tinha planeado, e decidido conjuntamente com o seu Marido, ter um segundo filho, desejo esse que, atenta a natureza e extensão das lesões sofridas e das sequelas actuais de que padece, decidiu não concretizar, por não se sentir em condições de criar uma criança»).

Invocou para o efeito a alegada contradição de tal facto com o relatório pericial (resposta ao quesito 60); e a inexistência de qualquer suporte documental, ou outro, que corroborasse as declarações prestadas pela Autora e pela testemunha António.

Começa-se por considerar o juízo de prova vertido na sentença recorrida, para depois se aferir da bondade da sindicância que lhe foi feita pela Ré recorrente (X – Companhia de Seguros, S.A.).

Assim, ponderou a mesma para este efeito (limitando-se a reprodução às partes relevantes para este propósito e com bold apócrifo, aposto nos segmentos que se consideraram mais relevantes, atento o objecto da sindicância):

«(…)
A convicção do tribunal baseou-se no conjunto da prova produzida consistente no relatório pericial, nos documentos juntos aos autos, no depoimento das testemunhas e nas declarações de parte.
(…)
A autora de forma sincera e impressiva, relatou as limitações sentidas no seu quotidiano que lhe advém das sequelas decorrentes do acidente (…).
Com comoção referiu a intenção de engravidar e os exames de preparação que já tinha realizado, desejo que afastou por sentir não ter condições físicas e psíquicas bastantes para criar um filho.
(…)
Frequenta a consulta da dor, por não suportar as dores que sente, e consultas de psiquiatria, por se sentir de rastos, por nesta fase da sua vida ter visto tudo desmoronar, a sua profissão, a assistência à sua filha, o empenho no casamento e o merecimento pessoal.
As declarações prestadas pela autora foram corroboradas pela testemunha António, seu marido, que concretizou a forma como as atuais limitações da autora interferem no seu dia-a-dia, pessoal e familiar, bem como o desgosto e tristeza sentidos pela autora pela sua condição atual.
(…)»

Logo, uma primeira conclusão se pode desde já enunciar: o Tribunal a quo, no juízo de prova de demonstração do facto provado enunciado sob o número 55, ponderou toda a prova (pericial e pessoal) produzida sobre ele, incluindo aquela que a Ré recorrente elegeu para fundar o seu antagónico juízo.
Ouvido integralmente o registo áudio da prova pessoal produzida, e examinado o relatório de perícia médico-legal junto, subscreve este Tribunal da Relação aquele seu juízo.

Com efeito, e atendendo primeiro ao dito relatório pericial, o que o mesmo singelamente afirma (na resposta ao quesito 60) é: «Desconhecemos se a examinanda queria ter outro filho. Da parte ginecológica não teve qualquer lesão que a impeça de engravidar. Apenas se teria que fazer um ajuste/redução, da terapêutica para o poder fazer».

Precisa-se, porém, que não é a superveniente impossibilidade de conceber, ou de levar a termo uma gravidez, que está em causa no facto provado enunciado sob o número 55, mas sim se a Autora tinha esse desejo; e se o mesmo ficou frustrado pelas lesões sofridas, e respectivas sequelas, por a fazerem sentir que não tem condições para criar uma criança.

Ora, da audição do registo áudio do seu depoimento, bem como do prestado pelo seu Marido, resulta cabalmente explicada de que forma é que as incapacidades físicas e psíquicas adquiridas pela Autora após o acidente de viação em causa condicionaram o respectivo desejo de renovada maternidade, não só pela forçada dilação imposta pela sua recuperação, como ainda porque a mesma não foi total (consumindo ainda hoje muita da sua energia, nomeadamente os seus esforços físicos e anímicos).

Reiteram-se, aqui, as anteriores considerações a respeito: da concreta valoração probatória a atribuir à prova pessoal produzida em audiência final; e da ausência de produção, pela Ré, de qualquer outra que a infirmasse, ou tornasse meramente duvidosos os factos por ela afirmados.

Logo, uma segunda conclusão se impõe: cabendo indiscutivelmente à Autora o ónus da prova da frustração, mercê do acidente em causa, do seu propósito de renovada maternidade, bastaria à Ré torná-la duvidosa, para que a mesma se quedasse indemonstrada - conforme art. 346º do C.C.. Contudo, não o fez.

Assim, e por falta de fundamento, improcede, nesta parte, o recurso de impugnação da matéria de facto, interposto pela Ré (X – Companhia e Seguros, S.A.), relativo à superveniente frustração do propósito de renovada maternidade da Autora, vertida no facto provado enunciado sob o número 55 - que por isso permanece inalterado.
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3.3.4. Novo facto a aditar

Veio ainda a Ré recorrente (X – Copanhia de Seguros, S.A.) defender a alteração da decisão sobre a matéria de facto, por entender de novo que o Tribunal a quo deveria ter aditado um facto novo ao elenco dos provados, pertinente à manutenção em vigor do contrato de trabalho da Autora («A Autora mantem, actualmente, o contrato de trabalho, sem termo, com a firma denominada “Obra SZ”, a aguardar o desfecho do processo de acidente de trabalho»).

Contudo, e salvo o devido respeito pela sua opinião contrária, considera-se que, face ao facto provado enunciado sob o número 38 («Em termos de repercussão permanente da actividade profissional, as sequelas da Autora são impeditivas do exercício da sua actividade profissional habitual, sendo compatíveis com outras profissões da área a sua preparação técnico-profissional»), o facto pretendido aditar é irrelevante para a decisão da causa, considerando qualquer uma das soluções plausíveis da questão de direito.

Com efeito, quer o prévio contrato de trabalho da Autora se encontre, ou não, em vigor, aguardando o desfecho do processo de acidente de trabalho, certo é que a mesma se encontra definitivamente incapacitada para o exercício da sua anterior actividade de educadora de infância, sem prejuízo de poder vir a exercer outras funções consentâneas com a sua preparação técnico-profissional (o que, necessariamente, acabará por se reflectir no dito contrato de trabalho, numa outra sede, própria, que não esta); e são exclusivamente estes os factos a atender aqui, para indemnização a arbitrar pela alegada perda da sua futura capacidade de ganho.

Assim, por o respectivo conhecimento ser irrelevante para a decisão a proferir, não se conhece do recurso de impugnação da matéria de facto, interposto pela Ré recorrente (X - Companhia de Seguros, S.A.), relativo ao facto pretendido aditar por ela - que por isso permanece omisso no elenco dos factos provados.
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Mantém-se, assim, integralmente inalterada a decisão sobre a matéria de facto julgada pelo Tribunal a quo.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Danos - Natureza
4.1.1.1. Danos patrimoniais

O dano é a perda in natura que o lesado sofre, em consequência de um certo facto, nos interesses - materiais, espirituais ou morais - que o direito violado ou a norma jurídica infringida visam tutelar. É a lesão causada no interesse juridicamente tutelado, que reveste as mais das vezes a forma de uma destruição, subtracção ou deterioração de certa coisa, material ou incorpórea (v.g. é a morte ou são os ferimentos causados à vítima; é a perda ou a afectação do seu bom nome ou reputação; sãos os estragos causados no veículo; as fendas abertas num edifício por uma explosão; a destruição de coisa alheia).
Logo, ao lado do dano real, existe o seu reflexo na situação patrimonial do lesado, falando-se por isso em danos patrimoniais e danos não patrimoniais.

Lê-se no art. 564º, nº 1 do C.C. que o «dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão».
Logo, nos danos patrimoniais a lei contempla quer os danos emergentes, isto é, a perda ou diminuição de valores já existentes no património do lesado, quer os lucros cessantes, isto é, os benefícios que este deixou de obter em consequência da lesão, o acréscimo patrimonial frustrado.
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4.1.1.2. Danos patrimoniais futuros

Lê-se no art. 564º, nº 2 do C.C. que, na «fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis».
Precisa-se, antes de mais, que nestes «danos futuros» tanto se contêm os danos emergentes como os lucros cessantes.
Precisa-se ainda que, tal como resulta expressamente da letra da lei, a indemnização respectiva depende de duas condições cumulativas: a respectiva previsibilidade e determinabilidade. (Neste mesmo sentido, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 8ª edição, Almedina, Abril de 2009, p. 336).

Como exemplo frequente de dano patrimonial futuro encontramos a perda da capacidade de ganho, resultante de dano biológico, entendido como dano-evento, reportado a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com tradução médico-legal, ou como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, aqui por dele decorrer precisamente perda ou diminuição de proventos laborais (Ac. do STJ, de 20.05.2010, Lopes do Rego, Processo nº 103/2002.L1.S1, e Ac. do STJ, de 26.01.2012, João Bernardo, Processo nº 220/2001.L1.S1, onde se faz uma resenha histórica do surgimento do conceito dano biológico e da sua construção).

Contudo, a jurisprudência vem entendendo que esta perda da capacidade de ganho que se pretende valorar, nem mesmo depende da efectiva perda ou diminuição de remuneração por parte do lesado (v.g. por ser menor, ou se encontrar desempregado, ou não exercer qualquer profissão remunerada), compreendendo antes este dano patrimonial uma ideia de frustração de utilidades futuras e de frustração de expectativas de aquisição de bens.

Daí que mesmo que não haja retracção salarial, a incapacidade permanente parcial dá lugar a indemnização pelos danos sofridos, pois o dano físico determinante da incapacidade exige do lesado um esforço suplementar (físico e psíquico) para obter o mesmo resultado do trabalho. Ora, é precisamente neste agravamento da penosidade (de carácter fisiológico) para a execução, com regularidade e normalidade, das tarefas próprias e habituais de quaisquer funções que impliquem a utilização do corpo, que deve radicar-se o arbitramento da indemnização por danos patrimoniais futuros.

Estes lucros cessantes - correspondendo à perda da capacidade aquisitiva de ganho -, é um dano do lesado directo, que reverterá para o próprio, em caso de sobrevivência por mera incapacidade para o trabalho.
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4.1.1.3. Danos não patrimoniais

Já os danos não patrimoniais são os não susceptíveis de avaliação pecuniária (numa definição negativa), porque se reportam a valores ou interesses da personalidade física, moral, espiritual ou ideal.

Por outras palavras, danos não patrimoniais «são os que afectam bens não patrimoniais (bens da personalidade), insusceptíveis de avaliação pecuniária ou medida monetária, porque atingem bens, como a vida, a saúde, a integridade física, a perfeição física, a liberdade, a honra, o bom nome, a reputação, a beleza, de que resultam o inerente sofrimento físico e psíquico, o desgosto pela perda, a angústia por ter de viver com uma deformidade ou deficiência, os vexames, a perda de prestígio ou reputação, tudo constituindo prejuízos que não se integram no património do lesado, apenas podendo ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente» (Ac. do STJ de 25.11.2009, Raúl Borges, Processo nº 397/03.0GEBNV.S1).

Logo, o dano não patrimonial assume vários modos de expressão: o chamado quantum doloris, que se reporta às dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária, com tratamentos, intervenções cirúrgicas, internamentos (nele se considerando a extensão e a gravidade das lesões, e a complexidade do seu tratamento clínico); o dano estético, prejuízo anátomo-funcional e que se refere às deformidades e aleijões que perduraram para além do processo de tratamento e recuperação da vítima; o prejuízo de distracção ou passatempo, caracterizado pela privação das satisfações e prazeres da vida, como a renúncia a actividades extra-profissionais, desportivas ou artísticas; o prejuízo de afirmação social, dano indiferenciado, que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar, profissional, sexual, afectiva, recreativa, cultural, cívica), integrando este prejuízo a quebra da «alegria de viver»; o prejuízo da saúde geral e da longevidade, em que avultam o dano da dor e o défice de bem estar, e que valoriza as lesões muito graves, com funestas incidências na duração normal da vida; os danos irreversíveis na saúde e bem estar da vítima e o corte na expectativa de vida; o prejuízo juvenil, que afecta os sinistrados muito jovens que ficam privados das alegrias próprias da sua idade; o prejuízo sexual, consistente nas mutilações, impotência, resultantes de traumatismo nos órgãos sexuais; e o prejuízo da auto-suficiência, caracterizado pela necessidade de assistência duma terceira pessoa para os actos correntes da vida diária (tudo conforme Ac. do STJ, de 25.11.2009, Raúl Borges, Processo nº 397/03.0GEBNV.S1, reiterado depois no Ac. da RG, de 10.10.2013, Helena Melo, Processo nº 5981/12.0TBVCT.G1).
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4.1.1.4. Dano biológico

Conforme já aflorado, o dano corporal «constitui um “tertium genus”, ao lado do dano patrimonial e do dano moral, distinguindo-se o dano biológico e o dano moral subjetivo, assentes na estrutura do facto gerador da diminuição da integridade bio-psíquica, constituindo o dano biológico o evento do facto lesivo da saúde, e o dano moral subjetivo, tal como o dano patrimonial, o dano consequência, em sentido estrito» (Ac. do STJ, de 12.1.2017, Hélder Roque, Processo nº 1292/15.6T8GMR.S1).

Compreende-se, por isso, que se afirme que o «dano biológico, sendo um dano real ou dano-evento, não deve, em princípio, ser qualificado como dano patrimonial ou não patrimonial, mas antes como tendo consequências de um e/ou outro tipo; e também por isso, em nosso entender, o dano biológico não deve ser tido como um dano autónomo em relação à dicotomia danos patrimoniais/ danos não patrimoniais» (Maria da Graça Trigo, «Adoção do Conceito de “Dano Biológico” pelo Direito Português», Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Vol. VI, Coimbra Editora, 2012, p. 653).

Logo, o «dano biológico, tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano moral, devendo a situação ser apreciada, casuisticamente, verificando-se se a lesão originará, no futuro, durante o período ativo do lesado ou da sua vida, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, uma afetação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade» (Ac. do STJ, de 12.1.2017, Hélder Roque, Processo nº 1292/15.6T8GMR.S1).

Quando o dano biológico não determine perda ou diminuição dos proventos profissionais (isto é, a lesão traduz apenas uma afectação da potencialidade física, psíquica ou intelectual da vítima, para além do agravamento natural resultante da idade lesão, mas que não originará no futuro - durante o período activo do lesado ou da sua vida -, e só por si, uma perda da capacidade de ganho), o mesmo será indemnizável autonomamente em sede de danos não patrimoniais.

Quando, pelo contrário, o dano corporal se repercuta na capacidade de produzir rendimentos (existindo um nexo de causalidade entre a afectação da integridade físico-psíquica e a redução da capacidade laboral), a indemnização a arbitrar deverá ter «como base e fundamento»: «quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou conversão de emprego do lesado, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afetar; quer a acrescida penosidade e esforço no exercício da sua atividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem uma sequela irreversível das lesões sofridas» (Ac. do STJ, de 10.12.2012, Lopes do Rego, Processo nº 632/2001.G1.S1, com bold apócrifo).

Ora, nesta segunda perspectiva (de repercussão do dano corporal na capacidade de produzir rendimentos), «deverá aditar-se ao lucro cessante, decorrente da previsível perda de remunerações, calculada estritamente em função do grau de incapacidade permanente fixado, uma quantia que constitua justa compensação do referido dano biológico, consubstanciado na privação de futuras oportunidades profissionais, precludidas irremediavelmente pela “capitis deminutio” de que passou a padecer (o lesado), bem como pelo esforço acrescido que o já relevante grau de incapacidade fixado irá envolver para o exercício de quaisquer tarefas da vida profissional ou pessoal».

Contudo, esta «outra vertente do dano biológico, enquanto privação de outras oportunidades pessoais ou profissionais decorrentes do défice físico-psíquico, não pode deixar de ser considerado no âmbito do ressarcimento a título de danos patrimoniais futuros, influenciando e majorando, portanto, no cálculo equitativo do seu “quantum”, mas não constituindo, um dano a valorar em uma outra quantia, autónoma ou separada do quantum indemnizatório a fixar em sede de danos patrimoniais futuros, sob pena de constituir uma duplicação indemnizatória, violadora da lei e dos princípios da equidade que presidem à fixação do montante indemnizatório em causa» (Ac. da RG, de 02.11.2017, António Barroca Penha - aqui 2º Juiz Adjunto -, Processo nº 1315/14.6TJVNF.G1).

No cálculo da respectiva indemnização podem (outros dirão, devem) ter-se em conta, como instrumentos auxiliares para este efeito, as tabelas financeiras ou as fórmulas matemáticas que vêem sendo consideradas na jurisprudência (Ac. da RP, de 20.03.2012, M. Pinto dos Santos, Processo nº 571/10.3TBLSD.P1).

Contudo, também aqui se entende que esta indemnização não se destina a repor o «status quo ante» (inviável, em casos de danos que atingem a saúde e a integridade física do lesado), mas antes a consubstanciar uma compensação susceptível de minorar ou atenuar os efeitos da lesão sofrida.

(Confirmando a ressarcibilidade do dano biológico, grosso modo nos termos expostos, e para além dos já citados, Ac. do STJ, de 19.05.2009, Fonseca Ramos, Processo nº 298/06.0TBSJM.S1, Ac. do STJ, de 23.11.2010, Hélder Roque, Processo nº 456/06.8TBVGS.C1.S1, Ac. do STJ, de 21.03.2013, Salazar Casanova, Processo nº 565/10.9TBPVL.S1, Ac. do STJ, de 02.12.2013, Garcia Calejo, Processo nº 1110/07.9TVLSB.L1.S1, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Oliveira Vasconcelos, Processo nº 99/12.7TCGMR.G1.S1, e Ac. do STJ, de 04.06.2015, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Processo nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1.)

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4.1.2. Concretizando, verifica-se que, atenta a matéria definitivamente assente nos autos, e recurso de apelação principal da Ré, bem como o recurso de apelação subordinado da Autora, estão submetidos à apreciação deste Tribunal da Relação: o montante da indemnização a arbitrar à Autora, pelas perdas salariais registadas, pelas despesas de transporte, pela perda da futura capacidade de ganho, pelo custo com a contratação de terceira pessoa, pelo custo com futuras consultas médicas de especialidade, pelo défice físico-psíquico, pelo sofrimento físico e psicológico, pelo défice estético, pela alteração de personalidade, e pela alteração do desejo sexual; e a forma de cálculo dos juros de mora (taxa aplicável, e termo inicial da sua contagem).
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4.2. Critérios de Determinação da Indemnização por danos patrimoniais

4.2.1.1.1. Danos patrimoniais em geral

Lê-se no 562º do C.C. que «quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação». Logo, haverá que indemnizar o lesado dos danos experimentados e advindos do evento que obriga à reparação, de forma a reconstituir-lhe a situação que existiria se não houvesse ocorrido o facto lesivo.

Assim, e quanto aos danos patrimoniais (susceptíveis de avaliação pecuniária, porque incidem sobre interesses de natureza material ou económica, reflectindo-se no património do lesado), sendo possível a reposição natural, será por ela que se deverá optar, uma vez que mais cabalmente assegura a reparação devida.

«O fim precípuo da lei nesta matéria é, por conseguinte, o de prover à directa remoção do dano real à custa do responsável, visto ser esse o meio mais eficaz de garantir o interesse capital da integridade das pessoas, dos bens ou dos direitos sobre estes.

Se o dano (real) consistiu na destruição ou no desaparecimento de certa coisa (veículo, quadro, jóia, etc.) ou em estragos nela produzidos, há que proceder à aquisição de uma coisa da mesma natureza e à sua entrega ao lesado, ou ao conserto, reparação ou substituição da coisa por conta do agente. (…)

Note-se que a lei (art. 562º) manda reconstituir, não a situação anterior à lesão, mas a situação (hipotética) que existiria, se não fora o facto determinante da responsabilidade. Aplicando este pensamento à solução da reconstituição natural, dir-se-á, consistindo a lesão na destruição de certos animais (…) ou de certas plantas em viveiro, que a reconstituição se há-de operar tendo em conta a idade (o desenvolvimento e, por consequência, o valor) que os animais ou as plantas teriam, se não tivessem sido destruídos, à data em que a substituição é efectuada» (João de Matos Antunes Varela, Direito das Obrigações, Vol. I, 7ª edição, Livraria Almedina, 1991, p. 903 e 904).

Mas, sendo a reconstituição natural impossível de efectivar, há que lançar mão do que promana da teoria da diferença, contida nos arts. 562º e 566º, nº 2 do C.C., segundo a qual a indemnização deve concretizar-se pela diferença entre a situação actual hipotética do património do lesado (no momento em que se efectiva a operação diferencial e a situação real), e a situação em que o seu património se encontraria se a conduta que obriga à reparação não tivesse sido praticada.

Assim, a indemnização operar-se-á mediante a entrega duma quantia em dinheiro, equivalente ao valor em que o património atingido diminuiu em consequência do dano sofrido, sem culpa do demandante.
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4.2.1.1.2. Montante da remuneração a considerar («Rendimentos líquidos auferidos à data do acidente, fiscalmente comprovados»)

Lê-se no art. 64º, nº 7 do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto (Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, que transpôs para o ordenamento jurídico nacional a 5ª Directiva Automóvel - Directiva 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio), na redacção que lhe foi dada pelo Dec-Lei nº 153/2008, de 6 de Agosto, que, para «efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao lesado, o tribunal deve basear-se nos rendimentos líquidos auferidos à data do acidente que se encontrem fiscalmente comprovados, uma vez cumpridas as obrigações declarativas relativas àquele período, constantes da legislação fiscal».

Reproduz-se nesta actual redacção do art. 64º, nº 7 citado o antes, e igualmente, consagrado na Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio (que fixa os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados de uma proposta razoável de indemnização do dano corporal, tendo sido posteriormente alterada pela Portaria nº 679/2009, de 25 de Junho), a qual foi desde logo prevista no art. 39º, nº 5 do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto.

A dita Portaria veio regular, por iniciativa do legislador nacional, diversos aspectos da regularização de sinistros rodoviários, sobretudo no que respeita ao dano corporal, fixando nomeadamente critérios e valores orientadores para efeitos da determinação da sua indemnização.

Lia-se inicialmente no art. 6º da Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, que, em caso de morte, serão indemnizáveis os danos patrimoniais futuros daqueles que os podiam exigir à vítima (nº 1); e que, para «efeitos de apuramento do rendimento mensal da vítima, são considerados os rendimentos líquidos auferidos à data do acidente, fiscalmente comprovados» (nº 2).

Contudo, e salvo o devido respeito pela opinião contrária (no caso, da Ré recorrente principal), reconhecendo-se a intenção moralizadora de efectivo cumprimento dos deveres de cidadania contributiva, consagrada nos sucessivos diplomas legais referidos, entende-se que, nesta sede, o apuramento da realidade efectivamente ocorrida deverá ser feito de acordo com os critérios de justiça material que sempre a nortearam (e não de acordo com critérios próprios de outras instâncias do Estado, focadas em objectivos distintos, nomeadamente de índole fiscal).

Precisa-se, ainda, que são quase sempre os profissionais ou prestadores de serviços menos diferenciados, que por isso auferem rendimentos mais baixos, quem com maior frequência os omite na sua declaração fiscal, por forma a não verem desse modo diminuída uma parcela da sua reduzida remuneração; e são também eles quem (pela maior facilidade de substituição) fica mais sujeito à pressão do empregador para agir desse modo.

Concorda-se, assim, com os que defendem que deverá ser recusada a aplicação das disposições legais citadas, nomeadamente por violarem princípios constitucionais, como o da igualdade (art. 13º da C.R.P.), e o do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (art. 20º da C.R.P.).

(Neste sentido, o imprescindível artigo de Laurinda Guerreiro Gemas, «A Indemnização Dos Danos Causados Por Acidentes de Viação - Algumas Questões Controversas», Revista Julgar, nº 8, Maio de 2009, p. 42 a 60, também disponível in http://julgar.pt/category/online/ .)
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4.2.1.2. Caso concreto

4.2.1.2.1. Perdas salariais registadas

Concretizando, e atendendo às perdas salarias suportadas pela Autora no período em que esteve sem poder trabalhar (de 12 de Setembro de 2013 - data do acidente - a 25 de Novembro de 2014 - data de consolidação das suas lesões), verifica-se que o Tribunal a quo considerou para arbitramento de indemnização a sua remuneração mensal bruta (incluindo subsídio de refeição, de férias e de natal), arbitrando-lhe um valor global de € 23.493,96 (por descontar ao prévio de € 27.127,60, a quantia de € 3.633,64, recebida da Interveniente Principal e da Segurança Social, a este preciso título).

Contudo, e salvo o devido respeito pela sua opinião contrária, concorda-se com a Ré recorrente principal, quando a mesma defende que terá que se considerada para este efeito a remuneração líquida mensal, de € 1.173,81 (por se retirar à mesma os encargos com a Segurança Social e com o I.R.S, na ordem de 30%, e o subsídio de refeição, de € 59,80, conforme recibos de vencimento que são fls. 84, verso dos autos).

Com efeito, o prejuízo suportado pela Autora com a perda da respectiva remuneração restringe-se a esse o montante, já que as quantias retidas/deduzidas a título de encargos com impostos e contribuições para a segurança social não integravam o seu rendimento disponível; e o subsídio de refeição é apenas devido quando o trabalhador cumpre efectivamente a sua prestação.

Logo, a Autora suportou perdas salariais, no período referido, de € 14.880,92, conforme:

. € 1.173,81 (remuneração líquida mensal) x 16 meses (incluindo 1 subsídio de férias, e 1 subsídio de natal) = € 18.780,96
. € 18.780,96 - € 3.900,64 (€ 3.633,25 pagos pela Interveniente Principal + € 267,39 pagos pela Segurança Social) = € 14.880,32.

Altera-se, por isso, nesta parte a sentença recorrida, reduzindo-se a indemnização arbitrada por perdas salariais, de € 23.493,96 para € 14.880,92 (pela procedência do recurso de apelação principal, interposto pela Ré).
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4.2.1.2.2. Despesas de transporte/deslocação

Já relativamente às despesas suportadas pela Autora com deslocações e transportes, no montante de € 2.500,00, verifica-se que a Ré recorrente soçobrou no recurso de impugnação de tal factualidade, sendo que centrara apenas aí a sua sindicância (e não também no cálculo do montante da indemnização arbitrada).

Mantem-se, por isso, nesta parte inalterada a sentença recorrida (pela improcedência do recurso de apelação principal, interposto pela Ré).
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4.2.2. Danos patrimoniais futuros

4.2.2.1.1. Rebate patrimonial do dano biológico

Em sede de reparação do dano patrimonial, importa pormenorizar a forma de cálculo pertinente ao dano patrimonial futuro, nomeadamente o pertinente à perda de ganho.

Com efeito, um «os casos mais frequentes em que o tribunal tem de atender aos danos futuros é aquele em que o lesado perde ou vê diminuída, em consequência do facto lesivo, a sua capacidade laboral». Entende-se, então, que «a indemnização a pagar ao lesado deve, neste caso, representar um capital que se extinga no fim da sua vida activa e seja susceptível de garantir, durante esta, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganhos» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, 1987, p. 580, com bold apócrifo).

Contudo, torna-se necessário proceder ao cálculo de redução do benefício que normalmente advém do facto de se receber de uma só vez o capital correspondente a prestações mensais que se iria recebendo, proteladas no tempo, sabida a remuneração paga hoje por aquele capital (o que se traduziria num enriquecimento injustificado).

Nessas situações, defende-se a atribuição de «uma quantia em dinheiro que produza o rendimento [fixo] mensal mas que, ao mesmo tempo, lhe [ao lesado] não proporcione um enriquecimento injustificado à custa do lesante, isto é, é necessário que, na data final do período considerado, se ache esgotada a quantia atribuída. Conseguir-se-á isso se as prestações mensais - que serão sempre iguais - forem constituídas quer pelos rendimentos produzidos pela quantia atribuída (juros), quer pela sucessiva e progressiva amortização desta. Assim, no início - no ano 1 - a maior parte do montante da prestação será constituída por juros e a menor parte dela pela parcela de amortização; esta aumentará progressivamente na medida em que sucessivamente vai diminuindo a parcela relativa aos juros de tal modo que, no fim do período - no último ano - a realização da prestação esgotará o capital atribuído» (Ac. do STJ, de 02.02.1993, CJSTJ, Ano I, Tomo I, p. 130. Ainda, Ac. do STJ, de 10.05.1994, CJSTJ, Ano II, Tomo II, p. 86, e Ac. da RP, de 06.11.1990, CJ, Tomo 5, p. 185 e 186)
.
Para isto, e a acrescer às condicionantes da vida activa - ou da esperança de vida à nascença - da vítima e da maioridade dos filhos (quanto os mesmos reclamem alimentos), haverá ainda que considerar uma outra: a taxa de juro líquida e inalterável que deverá ser tida em conta (normalmente feita coincidir com a taxa de aplicações financeiras de um particular, por exemplo para depósitos a prazo de três a seis meses, ou para aplicações em Fundos de Investimento Mobiliário com baixo grau de risco, compostos, essencialmente, por títulos de Dívida Pública).

Depois, na determinação do capital necessário para, nos termos referidos, produzir as diferentes rendas periódicas utilizou-se inicialmente a seguinte fórmula

C = P x [ 1 / t - 1+t / (1+t)^n x t] + P x (1 + t) ^-n

em que

. C - Representa o capital (total) a depositar no ano 1
. P - Representa o valor da prestação mensal a pagar ao lesado
. t - Representa a taxa de juro mensal considerada
. n - Representa o número de meses em que as prestações se manterão

Contudo, a mesma pressupunha que o valor da remuneração mensal perdida se manteria, ao longo de todo o período de tempo a considerar, inalterável. Defende-se, por isso, que importará introduzir naquele cálculo uma taxa do crescimento previsível da prestação no período considerado, sendo preferível adoptar a seguinte fórmula (proposta como «Anexo III – Método de cálculo do dano patrimonial futuro», na Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio - depois actualizada pela Portaria nº 679/2009, de 25 de Junho -, recorda-se que diploma previsto desde logo no art. 39º, nº 5 do Dec-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, que transpôs para o ordenamento jurídico nacional a 5ª Directiva Automóvel - Directiva 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio).

DPF = {[(1 – ((1 + k)/(1 + r))^n)/(r -k)] × (1+r)} × p

em que

. p - Representa o valor das prestações (rendimentos anuais) da vítima
. r - Representa a taxa de juro nominal líquida das aplicações financeiras, de 5% ao ano
. k - Representa a taxa anual de crescimento da prestação, de 2%
. n - Representa o número de meses em que as prestações se manterão

A mesma Portaria fornece depois um quadro listagem de factores multiplicativos, que nos dão o resultado do cálculo da fórmula para diferentes horizontes temporais, sempre baseados numa taxa de juro de 5%, e numa taxa de inflação de 2%, que - à data da sua publicação - eram pressupostos razoáveis.

Precisa-se o funcionamento da taxa de desconto - correspondente à taxa de juro que se irá aplicar à indemnização a arbitrar -, para produzir o rendimento pretendido: se a taxa for muito alta (como o foi noutros tempos), não se torna necessário depositar um capital elevado; mas se a taxa for muito baixa (como o é hoje), torna-se necessário depositar muito mais capital, para se vir a obter o rendimento desejado. Portanto, quanto mais baixa for a taxa de desconto, maior será de facto o valor da indemnização a arbitrar.

Ora, actualmente, os referidos pressupostos encontram-se desactualizados: (i) por um lado, a taxa de inflação tem-se mantido claramente abaixo do referido valor de 2%; e (ii) tornou-se impossível colocar dinheiro a render, sem risco, a 5% ao ano (conforme é considerado na fórmula de cálculo da Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio), sendo termo de comparação mais adequado as Obrigações do Tesouro que apresentam rentabilidade que variam entre os 0,7% (a 5 anos) e cerca de 3% (a 30 anos).

Compreende-se, assim, que se afirme que a «Jurisprudência tem estabelecido critérios de apreciação e de cálculo do dano biológico (quer ele se reconduza, no concreto, a um dano patrimonial - quando há perda/diminuição dos rendimentos profissionais -, ou a um dano não patrimonial - quando não ocorra essa perda/diminuição) com o objectivo de reduzir o mais possível a margem de arbítrio e de subjectivismo dos julgadores e por forma a que haja uma maior uniformidade na sua quantificação» (Ac. da RP, de 20.03.2012, M. Pinto dos Santos, Processo nº 571/10.3TBLSD.P1).

Os ditos critérios são os seguintes: «(i) a indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendimento que a vítima não auferirá e que se extingue no final do período provável de vida; (ii) no cálculo desse capital interfere necessariamente, e de forma decisiva, a equidade, o que implica que deve conferir-se relevo às regras da experiência e àquilo que, segundo o curso normal das coisas, é razoável; (iii) os métodos matemáticos e/ou as tabelas financeiras utilizados para apurar a indemnização têm um mero carácter auxiliar, indicativo, não substituindo de modo algum a ponderação judicial fundada na equidade; (iv) deve ser proporcionalmente deduzida no cômputo da indemnização a importância que o próprio lesado gastaria consigo próprio ao longo da vida (em média, para despesas de sobrevivência, um terço dos proventos auferidos), consideração esta que, contudo, vale unicamente para os casos de morte do lesado; (v) deve ponderar-se o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros, pelo que há que considerar esses proveitos introduzindo um desconto no valor encontrado, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado à custa do infractor ou da sua seguradora; (vi) deve ter-se preferencialmente em conta, mais do que a esperança média de vida activa da vítima, a esperança média de vida, uma vez que, como é óbvio, as necessidades básicas do lesado não cessam no dia em que deixa de trabalhar por virtude da reforma» (Ac. do STJ, de 05.07.2007, Nuno Cameira, Processo nº 07A1734).

Com efeito, defende-se que o «número de anos que importa ter em conta não é o número de anos que falta atingir para a idade da reforma, mas sim para a idade correspondente à esperança média de vida da vítima» (Ac. da RP, de 03.02.2014, Carlos Gil, Processo nº 2138/10.7TBPRD.P1, com bold apócrifo. No mesmo sentido, considerando a esperança média de vida e não a esperança de vida activa, Ac. do STJ, de 31.03.2004, Ferreira Girão, Processo nº 04B497, Ac. do STJ, de 02.12.2008, Salazar Casanova, Processo nº 07A2237, e Ac. do STJ, de 07.02.2013, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Processo nº 3557/07.1TVLSB.L1.S1)
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Em Portugal, neste momento - e segundo dados publicados pelo Instituto Nacional de Estatística (já referidos supra) -, a esperança média de vida é, com tendência para aumentar: dos homens, de 77 anos; e das mulheres, de 83 anos.

Por fim, tem-se ainda presente que sempre será «tarefa melindrosa calcular o valor indemnizatório deste dano, já que, tirando a idade das vítimas e a incapacidade que as afecta, tudo o mais é aleatório. Com efeito é inapreensível, agora, qual vai a ser a evolução do mercado laboral, o nível remuneratório do emprego, a evolução dos níveis dos preços, dos juros, da inflação, a evolução tecnológica, além de outros elementos que influem no nível remuneratório, como por exemplo, os impostos. Daí que, nos termos do n° 3 do art. 566° do Código Civil, a equidade deverá funcionar “com maior peso” ante a dificuldade de averiguar com exactidão a extensão dos danos» (Ac. da RC, de 28.05.2013, José Avelino Gonçalves, Processo nº 1721/08.5TBAVR.C1, com bold apócrifo).
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4.2.2.1.2. Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio

Veio, porém, a discutir-se inicialmente se os critérios da Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, seriam, ou não, vinculativos para os tribunais (defendendo a Ré precisamente, no seu recurso de apelação principal, aquele primeiro entendimento).

Contudo, encontra-se hoje estabilizado o entendimento de que a dita Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, não é vinculativa para os tribunais, devendo «os valores propostos (…) ser entendidos como o são os resultantes das tabelas financeiras disponíveis para a quantificação da indemnização por danos futuros, ou seja, como meios auxiliares de determinação do valor mais adequado, como padrões, referências, factores pré-ordenados, fórmulas em forma abstracta e mecânica, meros instrumentos de trabalho, critérios de orientação, mas não decisivos, supondo sempre o confronto com as circunstâncias do caso concreto e, tal como acontece com qualquer outro método que seja a expressão de um critério abstracto, supondo igualmente a intervenção temperadora da equidade, conducente à razoabilidade já não da proposta, mas da solução, como forma de superar a relatividade dos demais critérios. Os valores indicados, sendo necessariamente objecto de discussão acerca da sua razoabilidade entre o lesado e a entidade que deverá pagar, servirão apenas como uma referência, um valor tendencial a ter em conta, mas não decisivo», assumindo um carácter instrumental (Ac. do STJ, de 25.02.2009, Raul Borges, Processo nº 3459/08, com bold apócrifo. No mesmo sentido: Ac. do STJ, de 07.07.2009, Pires da Graça, Processo nº 205/07.3GTLRA.C1; Ac. do STJ, de 18.03.2010, Santos Carvalho, Processo nº 1786/02.3SILSB.L1.S1; Ac. do STJ, de 14.09.2010, Ferreira de Almeida, Processo nº 797/05.1TBSTS.P1; Ac. do STJ, de 17.05.2012, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Processo nº 48/2002.I.2.S2; Ac. do STJ, de 07.02.2013, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Processo nº 3557/07.1TVLSB.L1.S1; Ac. da RP, de 20.03.2012, Manuel Pinto dos Santos, Processo nº 571/10.3TBLSD.P1; Ac. da RP, de 15.01.2013, Vieira e Cunha, Processo nº 1949/06.2TVPRT.P1; e Ac. da RG, de 12.01.2012, Manuel Bargado, Processo nº 282/09.2TCGMR-A.G1).

Contesta-se, sobretudo, que se visse ali a imposição aos tribunais de limites máximos coincidentes com os resultantes da Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, reafirmando-se energicamente que o único critério legal a observar, pela instância judicial, é o resultante do Código Civil: entendimento contrário «traduziria um insustentável retrocesso na protecção devida aos lesados, voltando-se a um “miserabilismo” indemnizatório há muito justificadamente derrogado pelos critérios jurisprudenciais dominantes, de modo a afastar decididamente o arbitramento de montantes indemnizatórios irrisórios, desproporcionadamente exíguos perante a gravidade das lesões sofridas» (Ac. do STJ, de 01.07.2010, CJ, Tomo II, p. 139. No mesmo sentido, Ac. do STJ, de 15.04.2009, Raul Borges, Processo nº 08P3704; Ac. da RC, de 03.12.2008, Fernando Ventura, Processo nº 33/07.6PTCBR.C1; e Ac. da RP, de 15.01.2013, Vieira e Cunha, Processo nº 1949/06.2TVPRT.P1).

Com efeito, pondera-se nesse sentido:

. natureza do diploma - tratando-se de uma portaria (mero diploma regulamentar, publicado no exercício de competências administrativas do Governo), hierarquicamente inferior a uma lei ou a um decreto-lei, não os pode revogar, derrogar ou alterar (nomeadamente, restringindo direitos que a lei civil - tal como vem sendo jurisprudencialmente interpretada - confere aos lesados);

. âmbito de aplicação - a portaria tem um âmbito institucional específico de aplicação, relativo à fase pré ou extrajudicial, e às relações internas estabelecidas entre as vítimas e as empresas seguradoras, limitando-se a estabelecer critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente de viação de proposta razoável para indemnização (em ordem a prevenir, e limitar o mais possível, a pura discricionariedade em tal domínio, e a prevenir os litígios). Visa-se, tão só e apenas, o estabelecimento de regras/princípios que visam agilizar a apresentação de propostas razoáveis de indemnização, numa fase pré-judicial.

Compreende-se, por isso, que se afirme que parte «significativa das soluções adoptadas nesta portaria baseia-se em estudos sobre a sinistralidade automóvel do mercado segurador e do Fundo de Garantia Automóvel e na experiência partilhada por este e pelas seguradoras representadas pela Associação Portuguesa de Seguradores, no domínio da regularização de processos de sinistros» (6º § do Preâmbulo da Portaria).

Mais se compreende que a proposta razoável, e a rapidez da sua apresentação, consubstanciem deveres gerais próprios das empresas de seguros (arts. 36º e 38º, ambos do Dec-Lei nº 291/07, de 21 de Agosto), e deveres particulares das mesmas na regularização de sinistros que envolvam danos corporais (arts. 37º e 39º do último diploma citado). Logo, os números propostos pelas seguradoras (que se impõem às mesmas como valores mínimos) valerão nesse específico quadro de procura de uma solução consensual do litígio.

Compreende-se, por fim, que se defenda que, passando-se para um quadro de resolução judicial de litígio sobre valores, os constantes da Portaria em análise deverão ser objecto de um agravamento de 20%, já que, «apesar dela, não se evitou o litígio nem as despesas, demoras e maçadas inerentes» (conforme Ac. do STJ, de 18.03.2010, Santos Carvalho, Processo nº 1786/02.3SILSB.L1.S1, citado supra, com bold apócrifo);

. a letra da lei - o art. 1º, nº 2 desde logo afirma que as disposições constantes da portaria não afastam o direito à indemnização de outros danos nos termos da lei, nem a fixação de valores superiores aos propostos.

Por outro lado, resulta do 4º § do preâmbulo da Portaria que, o regime que consagra, relativo aos prazos e às regras de proposta razoável, tem em vista facilitar a tarefa «de quem está obrigado a reparar o dano e sujeito a penalizações», retirando-se dessa passagem que o próprio diploma prevê que seja declarada judicialmente a falta de razoabilidade na proposta indemnizatória.

Por fim, do art. 38º, nº 3 do Dec-Lei nº 291/07, de 21 de Agosto, resulta que possa ser considerado manifestamente insuficiente o montante proposto em termos da proposta razoável (caso em que são devidos juros no dobro da taxa prevista na lei aplicável ao caso, sobre a diferença entre o montante oferecido e o montante fixado na decisão judicial).

Resta apenas acrescentar que, se o facto lesivo de que emerge o dano pretendido indemnizar ocorreu em data anterior à da entrada em vigor da Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio - 27 de Maio de 2008, conforme o seu art. 14º -, nunca a mesma poderá ter aplicação, por força do disposto no art. 12º, nº 1 do C.C. (conforme, Ac. do STJ, de 15.04.2009, Raul Borges, Processo nº 08P3704, e Ac. da RG, de 12.01.2012, Manuel Bargado, Processo nº 282/09.2TCGMR-A.G1); e se não tiver sido realizada a avaliação médico-legal do dano corporal, também não será a mesma passível de aplicação, já que a pressupõe (nomeadamente, pela valorização em pontos das sequelas, conforme «Instruções gerais» do «Anexo II – Tabela de avaliação de incapacidades permanentes em direito civil»).
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4.2.2.2. Caso concreto

4.2.2.2.1. Perda da futura capacidade de ganho

Concretizando, e relativamente à determinação do montante de indemnização pela perda de futura capacidade ganho da Autora, verifica-se que o Tribunal a quo referiu ter considerado no seu cálculo uma perda absoluta de capacidade de ganho (dita de € 1.706,20 mensais) e a esperança média de vida da Autora (dita de 75 anos), arbitrando-lhe para este efeito uma indemnização fixada equitativamente em € 280.000,00.

Contudo, e salvo o devido respeito pela sua opinião contrária, concorda-se com a Ré recorrente, quando a mesma enfatiza que, não obstante a Autora tenha ficado definitivamente impedida de exercer a sua profissão habitual, de educadora de infância, pode exercer outras profissões/funções da área da sua preparação técnico-profissional.

Crê-se, assim, justificar-se a aplicação aqui do critério vertido no art. 48º, nº 3, al. b) da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro (conforme a própria Autora sustenta no seu recurso de apelação subordinado), que determina que, no cálculo da pensão para sinistrados em acidentes de trabalho afectados por uma incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, a mesma seja fixada entre 50% e 70% da retribuição, conforme a maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível.

Pondera-se, para este efeito: a idade da Autora neste momento (49 anos, completados no dia 26 de Maio deste ano); o défice funcional da integridade físico-psíquica de 26 pontos que regista; e a crescente e reconhecida competitividade do cada vez mais escasso e rarefeito mercado de trabalho (nomeadamente, na sua área, face à preocupante baixa de natalidade), privilegiando por isso a contratação dos candidatos mais novos, e sem qualquer tipo de deficiência físico-psíquica.

Crê-se, assim, adequado reportar o cálculo da perda da capacidade de ganho da Autora a 70% da sua remuneração média mensal líquida.

Logo, obter-se-ia um valor de indemnização por perda futura da capacidade de ganho da Autora de € 272.628,35,00, conforme:

. [€ 1.173,81 x 14] x 70% x 50% x 37 anos = € 212.811,53
. [€ 1.173,81 x 14] x 70% x 20% x 26 pontos = € 59.817,35
. € 212.811,53 + € 58.817,35 = € 272.628,35

Contudo, importa não esquecer que estamos situados no domínio da indemnização do dano civil (e não laboral); e que há um indesmentível benefício para a Autora no recebimento imediato do que, ao longo dos seus próximos 37 anos e 6 meses de previsível vida receberia de forma repartida (tomando como termo inicial a data de consolidação das suas lesões - 25 de Novembro de 2014 -, e como termo final a sua actual expectativa de vida, de 83 anos, tendo ela própria nascido a 26 de Maio de 1969).
Logo, replicando outras decisões jurisprudenciais, e tendo em conta que todo este percurso é meramente auxiliar do juízo de equidade que preside à determinação da indemnização devida, considera-se adequado um valor final de € 250.000,00.
Deverá, assim, ser atribuída à Autora, pela perda da sua futura capacidade de ganho, uma indemnização total de € 250.000,00.

Altera-se, por isso, nesta parte a sentença recorrida, reduzindo-se a indemnização arbitrada por perda da futura capacidade de ganho, de € 280.000,00 para € 250.000,00 (pela procedência parcial, nesta parte, do recurso de apelação principal, interposto pela Ré, e pela improcedência total, nesta parte, do recurso de apelação subordinado, interposto pela Autora).
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4.2.2.2.2. Apoio a prestar por terceira pessoa - Custo

Em sede de danos patrimoniais futuros, importa ainda considerar a necessidade da Autora de ser apoiado por terceira pessoa, por um período de duas a três horas por dia, até ao final da sua vida.
O Tribunal a quo referiu ter considerado no seu cálculo o salário mínimo para o serviço doméstico; arbitrou-lhe para este efeito uma indemnização fixada equitativamente em € 80.000,00.
Contudo, e pese embora não assista razão à Ré recorrente principal, quando a mesma defende que não se teriam provados os pressupostos fácticos dessa necessidade de apoio à Autora, certo é que a indemnização arbitrada terá de ser melhor detalhada e determinada.

Com efeito, considerando como valor da remuneração hora do serviço doméstico € 5,00 (por presumivelmente corresponder ao valor médio praticado no interior norte do país), a Autora terá um custo mensal global de € 330,00, conforme

. [€ 5,00 (remuneração horária) x 3 (horas diárias)] x 22 (dias úteis) = € 330,00

Prosseguindo no detalhe dos pressupostos fácticos a considerar, dir-se-á: à data do acidente (12 de Setembro de 2013), a Autora tinha 44 anos e 3 meses (nasceu em 26 de Maio de 1969); e tendo uma esperança de vida de 83 anos, faltar-lhe-iam naquela data 38 anos e 9 meses para a atingir (isto é, 465 meses).
Devendo desde então suportar € 330,00 com o custo mensal do apoio de que necessitou desde então, 14 vezes por ano, verifica-se que esse custo mensal corrigido é de € 385,00, conforme

. € 330,00 (remuneração global mensal) x 14 (meses) = € 4.620,00
. € 4.620,00 : 12 = € 385,00

A determinação do valor indemnizatório a atribuir a este título parte, assim, destes dois pressupostos fundamentais: (i) o custo de uma remuneração anual real de € 4.620,00; (ii) durante um período de 38 anos e 9 meses.
Logo, obter-se-ia um valor de indemnização pelo custo do apoio de uma terceira pessoa de € 179.025,00, conforme

. € 385,00 (remuneração global mensal) x 465 (meses) = € 179.025,00

Haveria, de seguida, que proceder ao cálculo de redução do benefício que normalmente advém do facto de se receber de uma só vez o capital correspondente ao custo faseado que se iria suportando, de forma protelada no tempo, sabida a remuneração paga hoje por aquele capital (o que se traduziria num enriquecimento injustificado).

Contudo, quaisquer que fossem os critérios de cálculo desse benefício, sempre a quantia a arbitrar a este título à Autora seria superior aos € 80.000,00 que, equitativamente, lhe foram fixados pelo Tribunal a quo.

Ora, tendo sido apenas a Ré quem recorreu do montante de € 80.000,00 atribuído para este efeito à Autora (pugnando pela não atribuição de qualquer quantia), e não também esta - que se conformou com aquele quantitativo indemnizatório -, improcedendo o recurso de apelação principal, deverá a sentença recorrida manter-se nesta parte inalterada.

Mantem-se, por isso, nesta parte a sentença recorrida, permanecendo a indemnização arbitrada pela necessidade de apoio por uma terceira pessoa fixada em € 80.000,00 (pela improcedência, nesta parte, do recurso de apelação principal, interposto pela Ré).
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4.2.2.2.3. Consultas médicas de especialidade e aquisição de medicamentos - Futuras e regulares

Ainda em sede de danos patrimoniais futuros, veio a Autora, no recurso de apelação subordinado que interpôs, defender que a Ré (X – Companhia de Seguros, S.A.) deveria ter sido igualmente condenada a pagar-lhe uma indemnização, a liquidar em posterior incidente próprio, relativa aos «futuros dispêndios com a necessidade, no futuro, de acompanhamento regular em consultas na Especialidade de Psiquiatria, Consulta da Dor crónica, Fisiatria, tratamentos Fisiátricos e de Hidroterapia e de ajuda medicamentos (antidepressivos, ansiolíticos, anti-inflamatórios e analgésicos)».

Defendeu que os factos provados sob o números 31 («Mantém acompanhamento regular em consultas na Especialidade Psiquiatria, por síndrome depressivo, queixas de irritabilidade, alterações do sono, cefaleias intensas, sonhos com pesadelos, labilidade do humor, encontrando-se medicada»), sob o número 32 («A Autora, actualmente, é seguida em Psiquiatria, Consulta da Dor crónica, Fisiatria e mantém tratamentos Fisiátricos e de Hidroterapia »), sob o número 39 («A Autora necessita actualmente e necessitará no futuro, de realizar hidroterapia e tratamento fisiátrico ») e sob o número 40 («A Autora necessita actualmente e necessitará no futuro, de ajuda medicamentosa – antidepressivos, ansiolíticos, anti-inflamatórios e analgésicos ») permitiriam a procedência deste seu pedido.

Começa-se por precisar que o Tribunal a quo, de forma conforme com esta prova, considerou que, a «título de danos futuros, o que resultou demonstrado foi a necessidade de a autora realizar hidroterapia e tratamento fisiátrico bem como ajuda medicamentosa (antidepressivos, ansiolíticos, anti-inflamatórios e analgésicos) para superar as consequências físicas das lesões e sequelas de que ficou a padecer» (com bold apócrifo), pelo que veio a condenar «a ré X - Companhia de Seguros, S.A. a pagar à autora a quantia que se vier a liquidar pelos tratamentos de hidroterapia e fisiatria e despesas com medicamentos relacionados com as lesões do acidente».

O mesmo Tribunal a quo decidiu igualmente que «não resultou apurado que a autora venha a necessitar de efectuar outros exames e cirurgias ou outro acompanhamento médico» (com bold apócrifo), de forma conforme com os factos não provados enunciados sob o número 4’ («A Autora necessita actualmente e necessitará no futuro, de efectuar vários exames médicos de diagnóstico e de aferição da consolidação das lesões e sequelas»), sob o número 5’ («A Autora necessita actualmente e necessitará no futuro, de acompanhamento médico periódico nas especialidades médicas de Ortopedia, Psiquiatria, Fisioterapia, Medicina Física e Reabilitação, Neurologia, Neurocirurgia, Neurocirurgia Funcional para superar as consequências físicas e psíquicas das lesões e sequelas») e sob o número 6 («Terá necessidade no futuro de se submeter a várias intervenções cirúrgicas e plásticas, a vários internamentos hospitalares, de efectuar várias despesas hospitalares, de efectuar a vários tratamentos médicos e clínicos, de ajudas técnicas, de efectuar várias deslocações a hospitais e clínicas para tratamento e correcção das lesões e sequelas sofridas com acidente»).

Logo, e relativamente a consultas de especialidade de Psiquiatria, Consulta da Dor crónica e Fisiatria, ficou assente que a Autora as frequenta hoje regularmente, mas não que o tenha necessariamente que fazer no futuro (por isso não se prevenindo a indemnização do respectivo custo, pelo cometimento desse encargo à Ré).

Ora, e salvo o devido respeito pela opinião contrária da Autora, o elenco de factos provados e de factos não provados relevantes nesta matéria é de todo conforme com a decisão do Tribunal a quo; e é o mesmo necessariamente desconforme com a pretensão que ela própria apresentou em sede de recurso de apelação subordinado, uma vez que para a sua procedência teria necessariamente que ter impugnado os factos não provados enunciados sob os números 4’, 5’ e 6’, o que não fez.

Mantem-se, por isso, nesta parte inalterada a sentença recorrida (pela improcedência, nesta parte, do recurso de apelação subordinado, interposto pela Autora).
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4.3. Critérios de Determinação da Indemnização por danos não patrimoniais

4.3.1. Lê-se no art. 496º, nº 1 do C.C. que, «na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito», aqui se incluindo aqueles que afectem profundamente os valores ou interesses da personalidade física ou moral.

Contudo, a gravidade do dano não patrimonial indemnizável deverá ser aferida por um padrão objectivo (embora tendo em conta as circunstâncias do caso concreto), e não por um padrão subjectivo, derivado de uma sensibilidade especialmente requintada ou exacerbada ou, pelo contrário, particularmente embotada (João de Matos Antunes Varela, Direito das Obrigações, Vol. I, 7ª edição, Livraria Almedina, 576).

Lê-se ainda, no nº 4 do art. 496º citado, que «o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º», isto é, o «grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado, e as demais circunstâncias do caso» (mormente, o tipo de lesões registadas e o sofrimento daí resultante), sem esquecer os padrões adoptados pela jurisprudência e a flutuação da moeda.

Logo, o critério fundamental de fixação desta indemnização por danos não patrimoniais é a equidade, cujo julgamento «é sempre o produto de uma decisão humana que visará ordenar determinado problema perante um conjunto articulado de proposições objectivas; distingue-se do puro julgamento jurídico por apresentar menos preocupações sistemáticas e maiores empirismo e intuição» (António Menezes Cordeiro, O Direito, 122º, p. 272. No mesmo sentido, Almeida Costa, «Reflexões Sobre a Obrigação de Indemnização», RLJ, 134º, p. 299, e Vaz Serra, RLJ, 114º, p. 310). Opera, por isso, como um mecanismo de adaptação da lei geral às circunstâncias do caso concreto (só o juiz - e não a lei abstracta - o podendo fazer).

Por outras palavras, ao «fixar o valor em dívida com base na equidade, o Tribunal deixa de aplicar as normas jurídicas em sentido estrito, para lançar mão de um critério casuístico que aquela situação demanda, em termos de ponderação das particularidades do caso, tendo em conta a decisão justa e adequada à hipótese em julgamento, pelo que o critério é consentidamente deixado ao prudente arbítrio do julgador, com a carga de subjectividade que isso implica, mas sempre com o limite da solução mais justa, equitativa e objectiva».

Reconhece-se, assim, que o «recurso à equidade constitui um critério residual», por envolver «uma atenuação do rigor da norma legal, por virtude da apreciação subjectiva do julgador, subtraindo este aos critérios puros e rigorosos de carácter normativo fixados na lei» (Ac. do STJ, de 13.04.2010, Fonseca Ramos, Processo nº 109/2002.C1.S1).

Quanto à situação económica do autor do facto lesivo e da vítima, terão que ser ponderados «no contexto da situação económica do cidadão médio e do significado do bem jurídico afectado para a vida em sociedade» (Abrantes Geraldes, Temas da Responsabilidade Civil, Vol. II, Indemnização dos Danos Reflexos em Geral, 2ª edição, Almedina, p. 24).

Relativamente às demais circunstâncias do caso, atende-se aqui nomeadamente às lesões registadas e aos sofrimentos que provocaram, tendo necessariamente em conta a idade do lesado.

Por fim, ter-se-ão ainda «em consideração os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, face ao que dispõe o art. 8º, nº 3, do CC, fazendo-se a comparação do caso concreto com situações análogas equacionadas noutras decisões judiciais, não se perdendo de vista a sua evolução e adaptação às especificidades do caso sujeito» (Ac. do STJ, de 15.04.2009, Raul Borges, Processo nº 08P3704, com bold apócrifo).

Com efeito, «não deve confundir-se a equidade com a pura arbitrariedade ou com a total entrega da solução a critérios assentes em puro subjectivismo do julgador, devendo a mesma traduzir a justiça do caso concreto, flexível, humana, independentes de critérios normativos fixados na lei, impondo-se que o julgador tenha em conta as regras da prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida» (Ac. do STJ, Álvaro Rodrigues, Processo nº 2025/04.8, com bold apócrifo).

O recurso à equidade, imposto pelo art. 496º, nº 4 do C.C., «não afasta», assim, «a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso» (Ac. do STJ, de 22.01.2009, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Processo nº 07B4242, com bold apócrifo). Com efeito, os «Tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no artº 13º da Constituição» (Ac. do STJ, de 31.01.2012, Nuno Cameira, Processo nº 875/05.7TBILH.CV1.S1).

Dir-se-á, por tudo, que não se trata aqui de uma verdadeira indemnização, mas sim da atribuição de certa soma pecuniária, que se julga adequada a compensar e a minorar dores e sofrimentos, mercê das alegrias e satisfações que a mesma pode proporcionar.
Por outras palavras, os «interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis, não podem ser reintegrados por equivalente. Mas é possível, em certa medida, contrabalançar o dano, compensá-lo mediante satisfações derivadas do dinheiro. Não se trata, portando, de atribuir ao lesado “um preço de dor” ou “um preço de sangue”, mas de lhe proporcionar uma satisfação, em virtude da aptidão do dinheiro para propiciar a realização de uma ampla gama de interesses, na qual se podem incluir interesses de ordem refinadamente ideal» (Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, 1991, p. 115).

Tal reparação reveste mesmo uma natureza mista, visando, por um lado, compensar (mais até do que indemnizar) os danos não patrimoniais sofridos pelo lesado; e, por outro, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico, com os meios adequados do direito civil, a conduta do agente (assim também se compreendendo o apelo, feito no art. 496º, nº 4 do C.C., ao «grau de culpabilidade do agente»).

Contudo, precisa-se que esta vertente secundária (sancionatória, de pena privada), face à vertente principal (essencialmente compensatória), apenas tem pleno sentido nos casos de responsabilidade civil em que o autor do dano é, simultaneamente, o efectivo pagador da indemnização, não se intrometendo um terceiro, estranho ao facto lesivo, com quem foi contratualizada a transferência da responsabilidade (v.g. mormente, as empresas seguradoras).

Por outras palavras, referir «a indemnização por danos como assumindo um carácter sancionatório/punitivo não faz grande sentido em matéria de acidentes de viação, em que o direito da pessoa lesada é exercido em acção directamente interposta apenas contra a empresa de seguros, em que o responsável civil, único demandado, por força das regras adjectivas, não é o próprio lesante, o agente do facto criminoso, da violação ilícita do direito de outrem, mas antes “um substituto”, uma entidade de matriz colectiva, que prossegue o objectivo do lucro, para quem foi “transferida” esta espécie de responsabilidade. E o mesmo acontecerá se estivermos em face a caso de responsabilidade objectiva, pelo risco, em que não se vê como falar em função punitiva da responsabilidade civil.

De diferente modo será se estivermos face a ofensa à honra, à autodeterminação sexual, à liberdade de decisão e de acção, à propriedade, à integridade física ou à vida - mas agora nestes dois casos em sede de crimes de ofensa à integridade física e de homicídio doloso, em que não há, obviamente, lugar a uma prévia “contratualização” de transferência de responsabilidade do autor da lesão para terceiro, coincidindo o demandado responsável criminal com o demandado responsável civil.

Nesses casos, ao proceder-se à quantificação da indemnização há que ponderar que o lesante será o efectivo pagador, não devendo o montante indemnizatório a encontrar atingir um valor que redunde numa extrema dificuldade em cumprir ou num convite ao incumprimento, devendo assumir patamar mínimo de exigibilidade, nomeadamente em casos em que o condenado, devedor da prestação indemnizatória, se encontra em situação de reclusão, em que as possibilidades de pagamento da indemnização obviamente minguam» (Ac. do STJ, de 15.04.2009, Raul Borges, Processo nº 08P3704, com bold apócrifo).

Reconhece-se, porém, que: da «conjugação do art. 496º com o 494 para que remete, verifica-se que a indemnização deve antes de mais ser ajustada à gravidade da ofensa (dentro do critério geral da restauração, quanto possível, da situação que existiria se não fosse a ofensa) e ao grau de culpa do agente», e «só depois a situação económica e outras circunstâncias do caso» (Ac. da RC, de 16.01.2008, Belmiro Andrade, Processo nº 555/04.0GTAVR.C1); todos estes elementos de ponderação implicam uma certa dificuldade de cálculo, com o inerente risco de nunca se estabelecer uma indemnização rigorosa e precisa (Ac. do STJ, de 16.04.1991, Cura Mariano, BMJ nº 406, p. 618).

No entanto, há muito que se defende que deve ter um alcance real e não meramente simbólico, por forma a que se atinja um justo grau de “compensação”, sendo «mais que tempo, conforme jurisprudência que, hoje, vai prevalecendo, de se acabar com miserabilismos indemnizatórios. A indemnização por danos patrimoniais deve ser correcta, e a compensação por danos não patrimoniais deve tender, efectivamente, a viabilizar um lenitivo ao lesado, já que tirar-lhe o mal que lhe foi causado, isto, neste âmbito, já ninguém nem nada consegue ! Mas - et pour cause - a compensação por danos não patrimoniais deve ter um alcance significativo, e não meramente simbólico. Aliás, é nesta linha que se encontra, como é do conhecimento geral, o contínuo aumento dos seguros obrigatórios estradais e dos respectivos prémios» (Ac. do STJ, de 16.12.1993, Cardona Ferreira, CJ, 1993, Tomo III, p. 182, com bold apócrifo. Reafirmando-o, Ac. do STJ, de 15.04.2009, Raul Borges, Processo nº 08P3704, já citado, com extensa indicação de outros arrestos).

Este juízo sai reforçado se, conforme o «considerou o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 19 de Abril de 2012 (proc. n.º 3046/09.0TBFIG.S1, acessível em www.dgsi.pt)», destacarmos «a nossa inserção no espaço político, jurídico, social e económico correspondente à União Europeia e o maior relevo que vem sendo dado aos direitos de natureza pessoal, tais como o direito à integridade física e à qualidade de vida, e, bem assim, que a jurisprudência deste mesmo Supremo Tribunal tem evoluído no sentido de considerar que a indemnização em causa deve constituir um lenitivo para os danos suportados e não ser orientada por critérios hoje considerados miserabilistas, por forma a, respondendo actualizadamente ao comando do artigo 496º, traduzir uma efectiva possibilidade compensatória para os danos suportados e a suportar» (Ac do STJ, de 18.06.2015, Fernanda Isabel Pereira, Processo nº 2567/09.9TBABF.E1.S1).
*
4.3.2. Caso concreto

4.3.2.1. Danos não patrimoniais em geral

Concretizando, verifica-se que o Tribunal a quo arbitrou à Autora, pelo conjunto dos danos não patrimoniais por ela sofridos, uma indemnização de € 200.000,00 (o dobro do que a mesma tinha peticionado, pretendendo agora a Ré que a mesma seja reduzida a valor não superior a € 75.000,00), ponderando nomeadamente:

«(…)
No caso concreto, em consequência do acidente, a autora ficou a padecer de perturbação do humor com repercussão a nível social, laboral e pessoal, apresenta cicatriz cirúrgica hipercrómica de 4,5 cm na face anterior direita; maior rigidez cervical, no membro superior esquerdo apresenta diminuição de força (grau3/5) e limitação nos movimentos do ombro. Apresenta atrofia da musculatura deltoide e bicípite, assimetria do ombro em comparação com o contra lateral por atrofia marcada da cintura escapular; disestesias na mobilização do ombro e braço.

Resultante destas lesões a autora ficou com um défice da integridade físico-psíquica de 26 pontos, sofreu um quantum doloris de grau 5 (cinco) numa escala de 1 a 7 e um dano estético 2 (dois) numa escala de 1 a 7.

As lesões sofridas provocaram dores físicas, tanto no momento do acidente como no decurso dos tratamentos a que a autora que foi submetida.

A situação espelhada na matéria de facto provada demonstra que as componentes do dano não patrimonial acima mencionadas alcançam níveis deveras relevantes.

Não pode também descurar-se o prejuízo de afirmação pessoal, aqui relevando sobremaneira a circunstância de a autora aos 45 anos se ver incapaz de exercer a atividade que sempre desempenhou, e que exercia com grande dedicação, e de ter abandonado o desejo de voltar a ser mãe, sentindo-se diminuída na sua condição de mulher, mãe e esposa. Do mesmo modo, não se pode olvidar o prejuízo da saúde geral e da longevidade, considerando as consequências das lesões.

No geral, importa atender ao facto de à autora ter sido imposta, para toda a sua vida, uma diminuição da sua qualidade de vida (não só menor desfrute dos prazeres da vida, como maiores sacrifícios físicos e psíquicos no normal acontecer dos dias).
(…)»

Dir-se-á serem de indesmentível gravidade os danos não patrimoniais sofridos pela Autora, permitindo (impondo) a respectiva ressarcibilidade.

Atendendo, então, aos critérios legais de fixação da indemnização em causa, e quanto ao grau de culpabilidade do agente, verifica-se que tais danos advieram de um acidente de viação de que a Autora foi vítima; e que se traduziu num embate violentíssimo de outro veículo naquele que a transportava, e para o qual em nada contribuiu.

Quanto à situação económica da Ré, nada foi alegado em tempo oportuno pela Autora; e, por isso, nada se provou a propósito. Sabe-se, porém, ser uma sociedade comercial, que se acredita de larga capacidade económico-financeira (a mesma que lhe permite e justifica que continue a operar no mercado, onde as sociedades comerciais só se deverão manter se tiverem os lucros que determinaram a sua constituição, e determinam a sua operação).

Relativamente à situação económica da Autora, apurou-se ser a mesma educadora de infância, não trabalhar desde a data do acidente, viver com o Marido e uma Filha menor, e ser auxiliada pela Sogra e por uma Tia, nomeadamente por não ter condições económicas próprias para contratar uma empregada doméstica.

Quanto às demais circunstâncias do caso, não se pode deixar de atender: à idade da Autora à data do sinistro, de 44 anos (nasceu no dia 26 de Maio de 1969); à multiplicidade de lesões registadas (físicas e psíquicas), bem como às sequelas delas já advindas, e que limitam a sua capacidade para realizar diversas tarefas do dia a dia, fazendo-a doravante depender de terceiros para o efeito; ao agravamento que a sua limitação física irá sofrer ao longo dos anos; à angústia e dor vividas pela Autora, sendo esta última já crónica; à diminuição da libido que regista, com necessárias consequências no nível de intimidade mantida com o seu Marido, ou do nível de satisfação que dela retira; aos danos estéticos resultantes nomeadamente da maior atrofia do seu membro superior esquerdo, e das cicatrizes resultantes das intervenções cirúrgicas a que foi submetida; à frustração do seu desejo de renovada maternidade; à definitiva impossibilidade de continuar a exercer a sua profissão habitual de educadora de infância; à negativa alteração da sua personalidade (de alegre e confiante, para triste e depressiva); e ao desgosto e sentimento de menos valia que toda esta situação (que vive há mais de quatro anos) implicou, e implica, para si.

Considerando agora o pendor das prévias decisões jurisprudenciais, e recordando que a indemnização pela perda do maior bem, a vida, vem sendo fixada entre € 50.000,00 e € 80.000,00, dir-se-á que, embora se possam tomar estes valores como uma referência, serão apenas mais um dos factores de ponderação em causa.

Com efeito, o «montante pecuniário compensatório, a arbitrar genericamente a título de danos de carácter não patrimonial, não tem que obedecer a qualquer critério (obrigatório) de proporcionalidade relativamente ao específico dano morte (compensação pela perda do direito à vida)», «face à natureza, autonomia e especificidade inerentes às duas espécies de danosidade em equação» (Ac. do STJ, de 14.09.2010, Ferreira de Almeida, Processo nº 797/05.1TBSTS.P1).

«Na realidade, embora se reconhecendo que o direito à vida é o valor supremo em si mesmo, há situações em que a sobrevivência a um acidente ou desastre corresponde a uma forma insidiosa de opressão contínua e de desfalecimento, cuja dor, pela sua persistência e gravidade se instala na vítima a tal ponto e por tanto tempo que a faz crer que a vida deixa de valer ou de fazer sentido, porque a depressão ataca profundamente e a vítima se sente morrer a cada dia que passa». Foi considerando-o que a jurisprudência tem vindo «a atribuir indemnizações compensatórias por danos não patrimoniais a vítimas com graves sequelas ou incapacidades, consideravelmente superiores às compensações geralmente atribuídas pela perda do direito à vida» (Ac. do STJ, de 20.01.2010, Mário Cruz, Processo nº 60/2002.L1.S1, com bold apócrifo).

Contudo, é indesmentível, pela consulta de diversos acórdãos, que noutras situações (v.g. de vítimas mais jovens, e com graus de afectação da sua integridade física superiores) as indemnizações arbitradas têm sido significativamente inferiores a € 200.000,00, sendo este montante reservado a casos de extrema dependência, adquirida e definitiva (v.g. tetraplegia), conforme:

. Ac. do STJ, de 15.05.2013, Salazar Casanova, Processo nº 6297/06.5TVLSB.L1.S1 - «Numa síntese da jurisprudência do Supremo Tribunal encontramos decisões que fixam a indemnização por danos morais em montantes superiores a 100.000€ em gravíssimos casos de paraplegia, mas não em todos; situações muito graves pelos danos causados e pelos sofrimentos padecidos têm sido indemnizadas em montantes inferiores a tal quantia»;

. Ac. do STJ, de 11.12.2012, Salreta Pereira, Processo nº 369/07.6TBRGR.L1.S1 - «Acima de 100.000 €, casos de excepcional gravidade (paraplegia, tetraplegia ou incapacidade de 100%)»;

. Ac. do STJ, de 17.03.2016, Mário Belo Morgado, Processo nº 338/09.1TTVRL.P3.G1.S1 - fixada indemnização por danos não patrimoniais de € 50.000,00, a sinistrada com 36 anos de idade, deformação grave do pé direito, com amputação dos cinco dedos e do antepé, dificuldade na deslocação e uso de prótese para toda a vida, cicatrizes em 18% da superfície corporal e graves alterações psicológicas;

. Ac. do STJ, de 28.01.2016, Maria da Graça Trigo, Processo nº 7793/09.8T2SNT.L1.S1 - fixada indemnização por danos não patrimoniais de € 40.000,00, face a quantum doloris de grau 5, sujeição a quatro operações, internamento por longos períodos, mais duas operações a que ainda teria de se sujeitar, vários tratamentos de reabilitação, dano estético de grau 4;

. Ac. do STJ, de 26.01.2016, Fonseca Ramos, Processo nº 2185/04.8TBOER.L1.S1 - fixada indemnização por danos não patrimoniais de € 45.000,00, a jovem de 20 anos, desportista, que ficou com várias cicatrizes em zonas visíveis e padeceu de acentuado grau de sofrimento (quantum doloris de grau 5) e relevante dano estético;

. Ac. do STJ, de 21.01.2016, Lopes do Rego, Processo nº 1021/11.3TBABT.E1.S1 - fixada indemnização por danos não patrimoniais de € 50.000,00, a jovem de 27 anos, múltiplos traumatismos, sequelas psicológicas, quantum doloris de grau 5, dano estético de 2 pontos, incapacidade parcial de 16 pontos, repercussão nas actividades desportivas e de lazer de grau 2, claudicação na marcha e rigidez da anca direita;

. Ac. do STJ, de 04.06.2015, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Processo nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1- fixada indemnização por danos não patrimoniais de € 40.000,00, a jovem de 17 anos, vários tratamentos médicos, intervenções e internamentos, alta mais de 4 anos depois do acidente, repercussões estéticas, quantum doloris de grau 6, e grave culpa da condutora do veículo causador do acidente;

. Ac. do STJ, de 05.07.2012, João Bernardo, Processo nº 1451/07.5TBGRD.C1.S1 – fixada indemnização por danos não patrimoniais de € 60.000,00, por perda, total e irreversível, da visão de um dos olhos, deformação estética de 6 numa escala de 1 a 7, sofrimento, durante meses, de dores, de intensidade 6 numa escala igual, outras lesões, como fractura do malar direito e da órbita direito, intervenções cirúrgicas, e um consequente quadro psíquico muito negativo;

. Ac. do STJ, de 29.10.2009, Lopes do Rego, Processo nº 523/2002.S1 – fixada indemnização por danos não patrimoniais de € 68.200,00, por lesões físicas, causadas por disparo de arma de fogo, que implicaram risco de vida, internamentos prolongados e ditaram sequelas irremediáveis e gravosas para a autonomia e qualidade de vida da vítima, de 7 anos de idade, afectada por uma incapacidade de 75% em consequência das gravosas lesões neurológicas sofridas;

. Ac. do STJ, de 07.07.2009, Fernando Fróis, Processo nº 1145/05.6TAMAI.C1 - fixada indemnização por danos não patrimoniais de € 75.000,00, a adulto com 36 anos, amputação do membro inferior esquerdo, várias intervenções e tratamentos médicos, repercussões estéticas, claudicação por inadaptação à prótese, e quantum doloris de grau 6.

Tudo ponderado, crê-se por mais ajustada à indemnização dos danos não patrimoniais sofridos pela Autora a quantia de € 75.000,00.

Altera-se, por isso, nesta parte a sentença recorrida, reduzindo-se a indemnização arbitrada por danos não patrimoniais, de € 200.000,00 para € 75.000,00 (pela procedência parcial, nesta parte, do recurso de apelação principal, interposto pela Ré).
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4.3.2.2. Défice funcional físico-psíquico (dano biológico)

Veio, porém, a Autora, no recurso de apelação subordinado que interpôs, pretender que o dano biológico que regista (défice funcional da integridade físico-psíquica de 26 pontos, que não a afectando em termos de autonomia e independência, é causa de sofrimento físico, limitando-a em termos funcionais) fosse objecto de indemnização autónoma e adicional.

Contudo, e salvo o devido respeito pela sua opinião contrária, e tal como já referido supra, essa sua pretensão, a ser deferida, consubstanciaria uma legalmente inadmissível duplicação de indemnização de um mesmo dano: a sua repercussão patrimonial (em termos de perda de futura capacidade de ganho) já foi indemnizada em sede própria (de danos patrimoniais futuros), e a sua vertente puramente corporal foi-o igualmente no lugar que lhe cabia (de danos não patrimoniais).

Mantem-se, por isso, nesta parte inalterada a sentença recorrida (pela improcedência total, nesta parte, do recurso de apelação subordinado, interposto pela Autora).
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4.4. Juros de mora

4.4.1.1. Taxa aplicável (geral) - Termo inicial de contagem

Lê-se no art. 566º, nº 2 do C.C., que «a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal, e a que teria nessa data se não tivessem existido danos». Assim, dever-se-á eventualmente proceder à actualização dos valores indemnizatórios arbitrados (nomeadamente, em função da inflação e da depreciação da moeda).

Mais se lê, nos arts. 804º, nº 1 e 805º, nº 3, ambos do C.C., que a mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor, sendo que, no caso da responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor se constitui em mora desde a citação (uma vez que, na generalidade dos casos, só então o crédito daquele se torna líquido).

Lê-se ainda no art. 559º, nº 1 do C.C. que os «juros legais e os estipulados sem determinação de taxa ou quantitativo são fixados em portaria conjunta do Ministro da Justiça e das Finanças e do Plano», encontrando-se actualmente fixados em 4% ao ano (conforme Portaria nº 291/03, de 08 de Abril).

Precisa-se, porém, que quer a jurisprudência maioritária, quer a doutrina, sempre entenderam que qualquer um dos regimes de actualização do montante indemnizatório referidos (art. 566º, nº 2 e art. 805º, nº 3, ambos do C.C.), quando operasse em data anterior à prolação da sentença condenatória, apenas se aplicaria às quantias fixadas para ressarcimento dos danos patrimoniais.

Com efeito, estes (ao contrário dos danos não patrimoniais) são redutíveis a valores exactos, podendo por isso sobre eles recair, matematicamente, índices de inflação. Já relativamente aos danos não patrimoniais, são os mesmos ponderados em função de outros critérios, entre os quais se pode desde logo incluir o do valor da moeda.

Por outras palavras, enquanto que em relação à indemnização por danos patrimoniais se pode falar de uma dívida de valor, e por isso apurada e actualizada em função de critérios matemáticos, a indemnização por danos não patrimoniais não é correspondente ao valor patrimonial de certa coisa, atendendo-se na sua fixação desde logo à actualização necessária (v.g. Ac. da RL, de 26.03.1992, CJ, Tomo 2, p. 152 e sgs., Ac. da RE, de 12.05.1992, CJ, Tomo 3, p. 349, ou Ac. da RC, de 22.4.1993, CJ, Tomo 2, p. 69).
O entendimento exposto viria a ser parcialmente consagrado num Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, uniformizador de jurisprudência - Nº 4/2002 -, onde se afirma que «sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do nº 2 do artigo 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805º, nº 3 (interpretado restritivamente), e 806º, nº 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação» (DR, I Série - A, de 27 de Junho de 2002).

Do mesmo modo se deverá entender relativamente às indemnizações atribuídas para rebate patrimonial do dano biológico (perda da capacidade de ganho).

Com feito, na sua determinação atende-se desde logo ao montante actual dos seus parcelares factores de cálculo, nomeadamente: ao actual salário mensal médio português; à actual esperança média nacional de vida; ao actual benefício decorrente da remuneração de capital passível de ser obtida no sistema bancário (para desconto no montante do capital global a arbitrar).

Age-se, assim, à semelhança do que igualmente se pondera a respeito da indemnização por danos não patrimoniais, já que na determinação do seu montante se considera desde logo o decurso do tempo (nomeadamente, face à progressiva elevação dos montantes indemnizatórios operada paulatinamente pela jurisprudência).
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4.4.1.2. Taxa agravada

Lê-se no art. 37º («Diligência e prontidão da empresa de seguros na regularização dos sinistros que envolvam danos corporais») do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, que, «comunicada pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo terceiro lesado a ocorrência de um sinistro automóvel coberto por um contrato de seguro e que envolva danos corporais, a empresa de seguros deve, relativamente à regularização dos danos corporais» comunicar «a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de 45 dias, a contar da data do pedido de indemnização, caso tenha entretanto sido emitido o relatório de alta clínica e o dano seja totalmente quantificável, informando daquele facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro lesado, por escrito ou por documento electrónico» (nº 1, al. c), do preceito citado).

Contudo, sempre «que, no prazo previsto na alínea c) do número anterior, não seja emitido o relatório de alta clínica ou o dano não seja totalmente quantificável», a «assunção da responsabilidade aí prevista assume a forma de “proposta provisória”, em que nomeia especificamente os montantes relativos a despesas já havidas e ao prejuízo resultante de períodos de incapacidade temporária já decorridos» (nº 2, al. a), do mesmo art. 37º).

Mais se lê, no art. 39º («Proposta razoável para regularização dos sinistros que envolvam danos corporais») do mesmo diploma, que «proposta provisória» prevista na «na alínea c) do n.º 1 (…) do artigo 37.º consubstancia-se numa proposta razoável de indemnização, no caso de a responsabilidade não ser contestada e de o dano sofrido ser quantificável, no todo ou em parte» (nº 1).

Entende-se por «proposta razoável de indemnização», «aquela que não gere um desequilíbrio significativo em desfavor do lesado», de acordo com os arts. 39º, nº 6 e 38º, nº 4, da Lei do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, «só podendo ser razoável a proposta que não conduza a um prejuízo desproporcionado, arbitrário ou injustificado para o lesado, à vista do dano sofrido» (José Vítor Santos Amaral, Contrato de Seguro, Responsabilidade e Boa-Fé, Almedina, Colectânea de Jurisprudência, 2017, p. 202).

A dita proposta provisória e razoável de indemnização - no caso de a responsabilidade não ser contestada e de o dano sofrido ser quantificável, no todo ou em parte - , deverá ser apresentada no prazo máximo de 90 dias a partir da data da apresentação do pedido de indemnização pelo terceiro lesado, sob pena de serem devidos juros no dobro da taxa legal prevista na lei aplicável ao caso sobre o montante da indemnização fixado pelo tribunal ou, em alternativa, sobre o montante da indemnização proposto para além do prazo pela empresa de seguros, que seja aceite pelo lesado, e a partir do fim desse prazo (arts. 39º, nº 2, 38º, nº 2, 37º, nº 3, todos do diploma citado).

(Na jurisprudência, com interesse, Ac. do STJ, de 12.1.2017, Hélder Roque, Processo nº 1292/15.6T8GMR.S1, Ac. da RG, de 02.11.2017, António Barroca Penha, Processo nº 1315/14.6TJVNF.G1, ou Ac. da RG, de 22.02.2018, Anabela Tenreiro, Processo nº 1959/14.6T8GMR.G1.)

Apresentada pela seguradora a dita proposta de indemnização por danos corporais e consequências deles resultantes, caberá então «ao lesado alegar e provar que o conteúdo dessa proposta não correspondia aos “termos substanciais e procedimentais previstos no sistema de avaliação e valorização dos danos corporais por utilização da Tabela Indicativa para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil” – cfr. art. 39º, n.º 3, do D.L. n.º 291/2007, de 21.08», sob pena dos juros de mora devidos serem calculados «apenas à taxa legal prevista na lei aplicável ao caso» (Ac. da RG, de 02.11.2017, António Barroca Penha, Processo nº 1315/14.6TJVNF.G1).
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4.4.2. Caso concreto

Concretizando, tendo o Tribunal a quo dado como provado que a Ré, «apesar de assumir a responsabilidade reconhecendo a culpa do seu segurado na produção do acidente, não apresentou à Autora qualquer proposta razoável de indemnização», veio a condená-la no pagamento de juros de mora, «calculados no dobro da taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento», sob o montante global de € 597.169,39, arbitrado a título de indemnização por todos os danos invocados e provados pela Autora.
Contudo, defendeu a Ré, no recurso de apelação principal que apresentou, que a Autora nunca lhe formulou qualquer pedido de indemnização, desconhecendo ela própria o acompanhamento médico que lhe ia sendo feito, uma vez que era realizado pela Interveniente Principal, na sua qualidade de Seguradora da respectiva Entidade Patronal.

Ora, assiste efectivamente razão à Ré, quando a mesma afirma que não foi alegado pela Autora que a haja interpelado extrajudicialmente para o pagamento da dita indemnização, sendo que a contagem do prazo de 90 dias para a apresentação de uma proposta razoável - ainda que provisória - se inicia precisamente com aquele acto.

Assiste ainda razão à Ré, quando a mesma defende que o termo inicial da contagem dos juros de mora devidos pelo não pagamento da indemnização por danos não patrimoniais coincide com a data da decisão que a arbitre, e não com a citação para os presentes autos, do mesmo modo sucedendo com a indemnização por perda da futura capacidade de ganho (neste sentido, (Ac. da RG, de 02.11.2017, António Barroca Penha, Processo nº 1315/14.6TJVNF.G1, ou Ac. da RG, de 22.02.2018, Anabela Tenreiro, Processo nº 1959/14.6T8GMR.G1).

Altera-se, por isso, nesta parte a sentença recorrida, sendo a taxa de juros de mora aplicável a supletiva legal (de 4% ao ano), e coincidindo o termo inicial dos que sejam devidos pela indemnização por danos não patrimoniais, e pela perda de futura capacidade de ganho, com a data da sentença que as arbitrou (pela procedência, nesta parte, do recurso de apelação principal, interposto pela Ré).

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Importa decidir em conformidade, pela parcial procedência do recurso de apelação principal interposto pela Ré (X - Companhia de Seguros, S.A.), e pela total improcedência do recurso de apelação subordinado interposto pela Autora (Maria).

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V – DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação principal interposto pela Ré (X - Companhia de Seguros, S.A.), e em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação subordinado interposto pela Autora (Maria), e, em consequência, em:

· alterar a sentença recorrida, na parte em que condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 23.493,96, para indemnização de perdas salariais registadas até 25 de Novembro de 2014, reduzindo agora aquela quantia para € 14.880,32 (catorze mil, oitocentos e oitenta euros, e trinta e dois cêntimos);

· alterar a sentença recorrida, na parte em que condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 280.000,00, para indemnização da perda da sua futura capacidade de ganho, reduzindo agora aquela quantia para € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros, e zero cêntimos);

· alterar a sentença recorrida, na parte em que condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 200.000,00, para indemnização dos danos não patrimoniais por ela sofridos, reduzindo-se agora aquela quantia para € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros, e zero cêntimos);

· alterar a sentença recorrida, na parte em que elegeu a data de citação da Ré como termo inicial de contagem dos juros de mora devidos por ela, pela falta de oportuno pagamento à Autora da quantia de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros, e zero cêntimos), arbitrada agora para indemnização do perda de futura capacidade de ganho, e da quantia de € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros, e zero cêntimos), arbitrada agora para indemnização dos danos não patrimoniais, sendo tais juros contados desde a data da sentença condenatória;

· alterar a sentença recorrida, na parte em que utilizou para cálculo dos juros de mora devidos uma taxa agravada, correspondente ao dobro da taxa supletiva legal, sendo tais juros calculados a esta última, de 4% ao ano;

· manter integralmente o remanescente da sentença recorrida.
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Custas da apelação principal pela Ré e pela Autora, na proporção dos respectivos decaimentos, e da apelação subordinada totalmente pela Autora (art. 527º, nº 1 do C.P.C.).
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Guimarães, 28 de Junho de 2018.


Maria João Marques Pinto de Matos
José Alberto Martins Moreira Dias (votou vencido, conforme declaração anexa)
António José Saúde Barroca Penha


Voto de vencido: Votamos a decisão final, à exceção da parte respeitante à indemnização arbitrada a título de diferenças salariais e quando, no cálculo da indemnização por dano biológico/perda da capacidade aquisitiva futura da Autora, se atende, no cálculo dessa concreta indemnização, ao montante da retribuição líquida por ela auferida à data do acidente, em vez da retribuição ilíquida (bruta) por ela auferida, cuja decisão final, no entanto, subscrevemos, por considerarmos que mesmo a atender a essa retribuição ilíquida, o montante indemnizatório arbitrado à Autora, a título de indemnização por dano biológico/perda da sua capacidade aquisitiva futura, se mostra equitativa.
Com efeito, entendemos que o cálculo daquelas indemnizações por diferenças salariais e por dano biológico/perda da capacidade aquisitiva futura, carece de ser feito por referência à retribuição ilíquida (bruta) da lesada à data do acidente, pelo que, nessa medida, teríamos confirmado a sentença proferida pela 1ª Instância, a título de indemnização por diferenças salariais.
Enuncie-se que não desconhecemos as divergências jurisprudenciais existente a propósito desta concreta matéria e que uma corrente, quiçá, inclusivamente, a maioritária, defende que as referidas indemnizações carecem de ser calculadas com base na retribuição líquida, atento o princípio da diferença (neste sentido Acs. STJ. de 14/06/2005, Proc. 1648/05; de 02/02/2010, Proc. 660/05.6TBVZ.P1.S1; e de 19/01/2010, Proc, 275/07.4TBMGL.C1.S1, in base de dados da DGS!), enquanto outra, defende que esse cálculo deve ser feito por referência à retribuição ilíquida (bruta) - Ac. RP de 23/10/2014, Proc, 148112.9TBVL.Pl, na mesma base de dados.
Salvo o devido respeito, que é muito, por quem sufraga o enunciado primeiro entendimento, em nossa modesta opinião, os defensores dessa tese confundem claramente o plano da responsabilidade civil, isto é, relação lesado/responsável civil pela satisfação da indemnização, com o plano fiscal, ou seja, a relação lesante/entidade empregadora deste/Administração Fiscal - Segurança Social, relação esta à qual o responsável civil pela satisfação da indemnização é totalmente alheio.
Mais. Preocupados em dar concretização prática ao princípio da diferença e impressionados com a circunstância do lesado não trazer "para casa" a retribuição ilíquida (bruta) e com ela contar para os seus gastos pessoais e do seu agregado familiar, mas sim essa retribuição ilíquida, uma vez descontado o montante do IRS e dos descontos para a Segurança Social a que se encontra sujeita, os defensores dessa tese concluem que no cálculo das indemnizações por diferenças salariais e/ou por dano biológico/perda da capacidade aquisitiva futura, sob pena de se postergar o princípio da diferença e se estar a enriquecer o lesado, se tem de considerar a retribuição líquida, com o que confundem, reafirma-se, aqueles dois enunciados planos da responsabilidade civil e o fiscal, além de postergarem o princípio da unidade do sistema jurídica, de fazerem seriamente perigar o próprio princípio da diferença, além de estarem claramente a enriquecer o responsável civil pela satisfação da indemnização, em detrimento do lesado.

Vejamos..
Não há dúvidas que o lesado recebe da entidade empregadora, como contrapartida da disponibilização àquela da sua força de trabalho, seja manual ou intelectual, a retribuição ilíquida (buta) e que é esta que a primeira lhe paga como contrapartida dessa disponibilização, retribuição essa que é integrada não só pelo salário base, como por todos as prestações pagas àquele pela entidade empregadora com caráter regular e que não tenham outra causa justificativa que não seja a disponibilização da sua força de trabalho.
Logo que o lesado/trabalhador que sofre uma incapacidade temporária ou permanente para o exercício da sua atividade profissional em consequência de acidente de trabalho ou de viação ou de outra natureza qualquer, deixa de receber em consequência direta e necessária das lesões e sequelas emergentes desse acidente, determinativas dessa incapacidade, é a sua retribuição ilíquida (bruta) e é esta retribuição ilíquida que a sua entidade empregadora lhe deixou de pagar em consequência direta e necessária daquele concreto evento (acidente) e, por conseguinte, atento o princípio da diferença, é por referência a essa sua retribuição ilíquida que se tem de atender para efeitos de cálculo da indemnização que lhe é devida.
Dir-se-á que o lesado não recebe o valor da retribuição ilíquida, mas esta, um vez descontados o imposto de IRS e de descontos para a Segurança Social a que se encontra sujeita - o que é rigorosamente verdade e, por isso, subscrevemos - e que, consequentemente, por força do enunciado princípio da diferença, impõe-se descontar à retribuição ilíquida o montante do IRS e dos descontos para a Segurança Social a que essa retribuição se encontra sujeita, para efeitos de cálculo da indemnização que lhe é devida, sob pena de se postergar aquele princípio e se enriquecer o trabalhador, o que já não podemos subscrever.
Na verdade, ao assim argumentar-se, está-se manifestamente, reafirma-se, a confundir a relação lesado/responsável civil pela satisfação da indemnização (responsabilidade civil), com a relação lesado/entidade empregadora desta/Administração Fiscal-Segurança Social (relação fiscal), à qual o responsável civil pela satisfação da indemnização em sede de responsabilidade civil é absolutamente alheio.
Esquece-se que o lesado vê a sua retribuição ilíquida tributada em sede de IRS e descontos para a Segurança Social por via da existência de norma fiscal que sujeitam os rendimentos provenientes do trabalho a semelhante tipo de imposto e de desconto.
Esquece-se que o lesado não traz "para casa" a sua retribuição ilíquida por via da existência de norma fiscal que impõe à sua entidade empregadora a obrigação de reter na fonte o montante do IRS e do desconto para a Segurança Social a que essa sua retribuição ilíquida se encontra sujeita.
Esquece-se que o montante do IRS e do desconto para a Segurança Social retido pela entidade empregadora ao lesado/trabalhador não pertence à entidade empregador, mas antes ao Estado, competindo à entidade empregadora entregá-lo à Administração Fiscal e/ou à Segurança Social, sob pena de incorrer na comissão de um crime de abuso fiscal.
Consequentemente, não fora a existência das normas de Direito Fiscal que sujeitam os rendimentos provenientes de trabalho a tributação em sede de IRS e para a Segurança Social, dúvidas não existiriam que os defensores daquela primeira tese jurisprudencial não teriam qualquer base legal para sustentar que no cálculo da indemnização por diferenças salariais e por dano biológico/perda da capacidade aquisitiva futura, em sede de acidente de viação, impõe-se atender à retribuição líquida e não à bruta.
Logo, não fora a existência de normas de Direito Fiscal que obrigam a entidade empregadora a reter na fonte ao trabalhador esse imposto de IRS e para a Segurança Social, ainda que sujeitassem os rendimentos de trabalho por ele auferidos a esse tipo de impostos, mas obrigassem o próprio trabalhador/lesado a entregar esse impostos à Administração Fiscal e/ou à Administração Fiscal, não temos dúvidas alguma em concluir que os defensores daquela tese jurisprudencial não teriam qualquer base legal para sustentar que no cálculo da indemnização por diferenças salarias e por dano biológico, em sede de acidente de viação, impõe-se atender à retribuição líquida.
Em ambas essas situações em que as normas de Direito Fiscal não sujeitassem aqueles rendimentos provenientes do trabalho a IRS e a descontos para a Segurança Social ou em que, sujeitando-os impusesse a obrigação de entrega desse imposto e desconto ao próprio trabalhador/lesado, dúvidas não podem subsistir que mesmo os defensores daquele enunciado primeiro entendimento teriam de sustentar que o cálculo da indemnização por perdas salariais ou por dano biológico/perda da capacidade aquisitiva futura em sede de acidente de viação, teria de ser feito por referência ao salário ilíquido/bruto.

No entanto, os defensores daquela primeira corrente, dando por adquirido que as indemnizações arbitradas a título de diferenças salariais e dano biológico/perda de capacidade aquisitiva futura arbitradas a lesado em sede de acidente de viação, não são tributadas em sede de IRS, sequer para efeitos de descontos para a Segurança Social - dado esse que não temos como minimamente seguro, face ao vigente Código do IRS e às constantes alterações das leis fiscais, até porque se trata de indemnização que incide sobre quantias que deixaram de ser auferidas pelo lesado, mas que respeitam a rendimentos de trabalho -, sustentam que, por força do princípio da diferença, esse tipo de indemnizações carecem de ser calculadas tendo por base a retribuição líquida do lesado à data do acidente, sob pena de enriquecimento sem causa do lesado.
Com dito, os defensores dessa tese, além de confundirem claramente o plano da responsabilidade civil com o plano fiscal e de alicerçarem aquela sua tese em dados totalmente inseguros, fazem perigar seriamente o princípio da diferença. É que se esse tipo de indemnização não beneficiar efetivamente daquela isenção em sede de IRS e descontos para a Segurança Social, como nos parece que não beneficia, ao menos totalmente, estão claramente a arbitrar uma indemnização que não é suscetível de indemnizar a totalidade do dano sofrido pelo lesado em consequência de acidente de viação.
Depois, caso aquela indemnização esteja efetivamente isenta de descontos para efeitos de IRS e descontos para a Segurança Social, os defensores daquela tese partem do pressuposto que, ao prescindir desses descontos, o Estado quis beneficiar o responsável civil pela satisfação da indemnização, ou seja, em regra, uma seguradora que, inclusivamente, por norma, é uma multinacional, com forte poder económico e financeira, e não a parte efetivamente mais fraca, que é o lesado, não obstante a primeira nem sequer ser parte na relação fiscal, tanto assim que não obstante atenderem no cálculo da indemnização devida ao lesado apenas à retribuição líquida deste, não condenam a responsável civil pela satisfação da indemnização, a entregar à Administração Fiscal e/ou à Segurança Social a parte da indemnização respeitante ao IRS e ao desconto para a Segurança Social não considerada na indemnização arbitrada ao lesado, sequer existe notícia que aquelas procedam a essa entrega à Administração Fiscal e/ou à Segurança Social.
Sintetizando: preocupados em não enriquecer o lesado, em detrimento do estado (único que é prejudicado caso abra, efetivamente, mão do imposto de IRS e dos descontos para a Segurança Social sobre a parte indemnizatório por acidente de viação por perdas salarias e dano biológico/perda da capacidade aquisitiva futura, ou seja, por perda de rendimentos do trabalho), os defensores dessa tese jurisprudencial, não têm a preocupação de estar a enriquecer a responsável civil pela satisfação da indemnização.
Esses defensores partem do princípio que o Estado, caso tenha efetivamente aberto mão desses impostos quis beneficiar, não o lesado (parte mais fraca), mas sim a parte mais forte.
Acresce que esses defensores colocam em crise o princípio da unidade do sistema jurídico, uma vez que em sede de Direito do Trabalho, quer para efeitos de cálculo de indemnização por cessação do contrato de trabalho ou por acidente de trabalho, se considera sempre, nesses cálculos, a retribuição ilíquida (bruta), não a líquida.
Finalmente, ao isentarem o responsável civil pela satisfação da indemnização de parte dessa indemnização, esses defensores acabam por apelar à irresponsabilidade, na medida em que o autor do facto ilícito-civil sabe, de antemão, que se provocar um acidente de viação, está isento de parte da sua responsabilidade (a parte referente ao IRS e aos descontos para a Segurança Social que incide sobre a retribuição auferida ou putativamente auferida pelo lesado).
Deste modo, o que não podemos deixar de sufragar a posição jurisprudencial, ainda que eventualmente minoritária, que sustenta que no cálculo da indemnização em sede de acidente de viação por perdas salariais e/ou dano biológico/perda da capacidade aquisitiva futura é à retribuição ilíquida (bruta) que se tem de atender.
Valor probatório do depoimento de parte e das declarações de parte: Lidos e relidos os argumentos explanados no acórdão que subscrevemos, até porque o que vamos dizer nenhum reflexo nele teve em sede de impugnação da matéria de facto nele operada pelos apelantes, com os concretos fundamentos que explanamos no acórdão desta Relação, proferido em 03/05/2018, Proc. 4891117.8YIPRT. 01, in base de dados da DOSI, de que fomos relator, continuamos a não descortinar fundamento legal para divergirmos do nosso entendimento e que é o que aí sufragamos, em função do qual as declarações ou o depoimento de parte, sem valor confessório, não podem ser utilizadas para se dar como provados factos favoráveis ao depoente ou declarante, quando não sejam corroborados por outros elementos de prova. Nessa medida, essas declarações e depoimento apenas valem como início de prova.
Na verdade, conforme coloca em destaque o Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 504/2004, publicado no DR, II Série, de 02/11/2004, a confissão não constitui meio de prova de quem emite a declaração, mas a favor da parte com interesses contrários, ninguém podendo, por mero ato seu, formar provas a seu favor.
Juros de mora a calcular sobre a indemnização arbitrada a título de dano biológico:
Votamos a decisão final que condenou a seguradora a pagar juros de mora, a calcular sobre o quantum indemnizatório nela arbitrado à Autora por dano biológico/perda da capacidade aquisitiva futura, desde a data da prolação da sentença, exclusivamente atendendo à especificidade do caso concreto.
Com efeito, tendo a Autora ficado incapaz para o exercício da sua profissão habitual de educadora de infância, e tendo a mesma continuado de baixa médica após a data da consolidação médico- legal das lesões que sofreu em consequência direta e necessária do acidente de viação, peticionando esta diferenças salarias respeitante a período de tempo posterior a essa consolidação, há que se lhe reconhecer o direito indemnizatório a essas diferenças, como se lhe reconheceu, e arbitrar-lhe a indemnização pela incapacidade permanente, desde a data da prolação da sentença Logo os juros de mora a calcular sobre esta indemnização, são calculados desde a data da prolação da sentença.
No entanto, impõe-se realçar que nas situações regra, não é este o entendimento que sufragamos.
Com efeito, com a consolidação médico-legal das lesões sofridas pela lesada em consequência direta e necessária do acidente de viação, estabilizam-se as lesões e as sequelas para ela emergiram do acidente.
Consequentemente, nos casos em que a lesada não fique curada, isto é, sem incapacidade permanente, há que se lhe arbitrar a indemnização correspondente às perdas salariais que eventualmente sofreu até à data da consolidação médico-legal das lesões e arbitrar-lhe uma indemnização por dano biológico/perda da capacidade aquisitiva futura, a calcular por referência à data da consolidação médico- legal em função do grau de incapacidade permanente com que ficou, em definitivo, afetada.
Consequentemente, em regra, os juros moratórios que incidem sobre a indemnização por diferenças salariais e por dano biológico/perda da capacidade aquisitiva futura (aliás, sobre todas as indemnizações por danos patrimoniais), são calculados desde a citação, até porque, normalmente, a consolidação médico-legal das lesões é anterior à propositura da ação,

Guimarães, 28 de junho de 2018

O 1º Adjunto
(José Alberto Martins Moreira Dias)