Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5688/17.0T8GMR-C.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: SEGURO FACULTATIVO
POSSIBILIDADE DO LESADO DEMANDAR DIRECTAMENTE A SEGURADORA
LEGITIMIDADE PASSIVA DA SEGURADORA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/14/2018
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – A efectiva realização de uma perícia por parte da seguradora sobre o objecto sinistro, havendo contactos, troca de correspondência e informações entre aquela e o lesado, incluindo uma reunião, tudo com vista à eventual assunção de responsabilidade civil da seguradora no âmbito de contrato de seguro facultativo, consubstancia o conceito de ‘início de negociações directas’ para efeito de acção directa contra a seguradora por parte do lesado.

II – Nestes termos, demandadas a lesante e a sua seguradora pelas lesadas, é a ré seguradora parte legítima
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório;

Nos presentes autos de acção de processo comum, as autoras XX Ldª, demandaram as rés, Sociedade de Construções AM Ldª (1ª ré), Lareiras – Sistemas de Aquecimento Ldª (2ª ré) e Y Companhia de Seguros SA (3ª ré), pedindo a sua condenação:

- Relativamente à 2.ª Autora,

a) Devem as rés ser condenadas solidariamente na reparação in natura, mediante a construção de obra nova do prédio n.º 19;
Ou, em alternativa,
b) Devem as rés ser solidariamente condenadas no pagamento de indemnização correspondente ao valor de construção de obra nova, ou seja, € 132.909,37, acrescido de IVA à taxa legal em vigor e de juros vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento;
c) Serem as rés condenadas solidariamente no pagamento das rendas vencidas, no valor de € 5.500,00 e vincendas até à reparação in natura ou pagamento da indemnização correspondente;
d) Serem as rés condenadas solidariamente no pagamento da quantia de € 18.333,24 a título de compensação pela perda do recheio;
e) Serem as rés condenadas no pagamento das custas do processo.
- Relativamente à 1.ª Autora,
f) Devem as rés ser condenadas solidariamente na reparação in natura, mediante a construção de obra nova do prédio n.º 17;

Ou, em alternativa,
g) Devem as rés ser solidariamente condenadas no pagamento de indemnização correspondente ao valor de construção de obra nova, cuja liquidação se relega para momento ulterior, acrescido de juros vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento;
h) Serem as rés condenadas solidariamente no pagamento da quantia de € 93.688,97 a título de compensação pela perda do recheio;
i) Serem as rés condenadas solidariamente no pagamento de valor não inferior a € 30.000,00, a título de danos morais;

Fundamentaram tal pedido com base na responsabilidade civil da 1ª e 2ª rés, respectivamente empreiteira e subempreiteira, por danos a si causados.
A 3ª ré foi demandada com fundamento na existência de um contrato de seguro celebrado entre a 1.ª Ré e a 3.ª Ré, pelo qual aquela teria transferido esta a responsabilidade civil emergente da sua actividade, nesta estando incluído o fornecimento e instalação do equipamento do sistema de aquecimento.

Em sede de despacho saneador, foi proferida decisão a conhecer da excepção de ilegitimidade passiva da 3ª ré, Y, Companhia de Seguros SA, absolvendo-a da instância.

Inconformada com tal decisão, a 1ª ré interpôs o presente recurso, de cujas alegações se extraem, em súmula, as seguintes conclusões:

1- O presente recurso é apresentado da decisão proferida pelo Tribunal recorrido no despacho saneador, na parte em que julgou a 3.ª Ré, Y – Companhia de Seguros, S.A., parte ilegítima na acção e, em consequência, a absolveu da instância.
2- A Recorrente entende que lhe assiste legitimidade para recorrer desta decisão nos termos do disposto no artigo 631.º do C.P.C, porquanto é parte principal na causa e a decisão recorrida consubstancia um prejuízo para a Recorrente atenta a configuração da acção pelas Autoras, porquanto, com a absolvição da instância da 3.ª Ré, a Recorrente passa a ser a única responsável pelo sinistro, deixa de poder contar com o auxílio daquela Ré na sua defesa e ainda porque lhe fica vedada a possibilidade de opor a prova produzida nesta acção numa futura acção judicial que tenha de vir a propor contra aquela Ré, caso venha a ser condenada.
3- No caso dos autos, as Autoras, no que diz respeito à aqui Recorrente e à Ré Y – Companhia de Seguros, S.A., configuram a acção do seguinte modo: imputam à Recorrente a responsabilidade pela verificação dos danos que sofreram em consequência do sinistro em causa nos autos e invocam a existência de um contrato de seguro de responsabilidade civil celebrado entre as duas Rés, mediante o qual a Recorrente transferiu para a Ré Y – Companhia de Seguros, S.A., a responsabilidade pelos danos causados no exercício da sua atividade profissional de construção civil e, por via de tal contrato, que a Seguradora seja, solidariamente com a Recorrente, condenadas a pagar-lhe a indemnização peticionada.
4- Ora, face à causa de pedir e aos pedidos formulados pelas Autoras na petição inicial, quer a Recorrente, quer a Seguradora têm interesse directo em contradizer o alegado na petição inicial, pelo que a Seguradora é obrigatoriamente um dos sujeitos da relação material controvertida, nos termos do disposto no artigo 30º do CPC.
5- A questão de saber se as Autoras podiam demandar directamente a Seguradora, acompanhada da Recorrente directamente responsável pelo sinistro, tem já a ver com o mérito da acção, com a relação material tal como a lei substantiva a prevê e regula, e não com a questão da legitimidade processual, que é um mero pressuposto processual.
6- Tanto mais que o Tribunal recorrido entendeu que não vem alegada a existência de início de negociações directas entre as lesadas Autoras e a Seguradora, pois não basta para tal a mera alegação de realização de uma averiguação do sinistro, porém, no entender da Recorrente a decisão acerca da existência de início de negociações directas entre as lesadas Autoras e a Seguradora depende de prova que deverá ser produzida nos autos, pelo que prende-se já com o mérito da ação.
7- Ao decidir que a Seguradora é parte ilegítima na acção, o Tribunal recorrido fez, assim, uma incorrecta interpretação e aplicação do artigo 30º do CPC.
8- O Tribunal Recorrido decidiu que a 3.ª Ré Y – Companhia de Seguros, S.A. era parte ilegítima na acção, por não se verificar, no caso, nenhuma das situações previstas no artigo 140º do R.J.C.S, designadamente a existência de início de negociações directas entras as Autoras e a Seguradora, que eram condição para que a mesma pudesse ser demandada a título principal.
9- Efectivamente, no caso em apreço, estamos perante um contrato de seguro facultativo, e este não prevê o direito de o lesado demandar directamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado.
10- A Recorrente entende que dos autos não consta que a Seguradora se limitou a fazer uma averiguação do sinistro, porquanto dos mesmos resulta que, após a ocorrência do sinistro em causa nos autos e de a 1.ª Autora ter dado dele conhecimento à aqui Recorrente, esta deu dele conhecimento à Seguradora, conforme doc. n.º 3 junto com a contestação. Face a esta comunicação, a Seguradora contratou uma empresa que realizou uma peritagem técnica do sinistro, da qual resultou o relatório n.º 13812/16, datado de 22 de Fevereiro de 2017, correspondente ao doc. n.º 4 junto pela Seguradora na sua contestação.
11- Neste relatório figuram como reclamantes XX, Lda., autoras nos autos, e, na sua pág. 4, consta o seguinte: “no local da ocorrência, reunimo-nos com os representantes do Segurado, Sr. Eng.º RS, e dos Reclamantes, Sr. GR, que vive um união de facto com a Sr.ª D. L., sócia-gerente da firma XX, Lda., (…)”.
12- Acresce que, em sede de Petição Inicial, nos artigos 132.º a 133.º, as Autoras alegaram a existência de um contrato de seguro celebrado entre a 3.ª Ré e a aqui Recorrente, identificando, inclusive, a apólice correspondente, pelo que é forçoso concluir-se que, além de as Autoras terem conhecimento da existência de um contrato de seguro celebrado entre a 3.ª Ré e a aqui Recorrente, encetaram com aquela negociações diretas.
13- A Recorrente entende que o Tribunal recorrido fez uma incorrecta interpretação do artigo 140º do RJCS, porquanto, a realização de uma perícia, na qual esteve directamente envolvida a Seguradora e as Autoras, deve ser interpretada como a existência de início de negociações directas entre as Autoras e a Seguradora.
14- Com efeito, este normativo legal exige somente o “início de negociações directas entre o lesado e o segurador”, o mesmo será dizer que não se estabelece aí o modo como essas negociações têm de ser feitas, ou tampouco, quais os atos que as materializam.
15- Acresce que, caso se entenda que a Seguradora não podia ser demandada a título principal, tal como decidiu o Tribunal recorrido, este deveria ter ordenado a sua intervenção a título acessório, porquanto sempre assistiria à Recorrente o direito de requerer a sua intervenção acessória para exercício do seu direito de regresso, nos termos do artigo 321º do CPC.
16- Com efeito, a Recorrente só não fez tal pedido em sede de contestação, atento o facto de a Seguradora ser parte principal na acção, razão pela qual entendeu não lhe assistir legitimidade para requerer a sua intervenção acessória.
17- Porém, nos artigos 112º e 113º da sua contestação, a Recorrente alegou factos que sustentam a intervenção acessória da Seguradora, designadamente a celebração de um contrato de seguro, factos que também foram alegados pelas Autoras em sede de petição inicial.
18- Pelo que, se impunha que o Tribunal Recorrido, ao considerar que a Seguradora não podia ser directamente demandada, ordenasse que a mesma fosse admitida a intervir a título meramente acessório, porquanto o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, compete-lhe dirigir activamente o processo, adoptando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio, e ainda, se for o caso, convidar as partes a suprir as irregularidades dos articulados e determinar a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.
19- A intervenção acessória provocada pode ser requerida em sede de contestação ou no prazo em que a Ré dispõe para o efeito, nos termos do disposto no art.º 322.º, n.º 1 do C.P.C, ora, tendo sido decidido no douto despacho saneador pela ilegitimidade passiva e absolvido da instância aquela Ré, em fase posterior à Contestação, o Tribunal Recorrido frustrou qualquer possibilidade da Recorrente, seja por via principal ou por via acessória, obter perante aquela caso julgado material, até para eventual direito de regresso.
20- Logo após a notificação da decisão recorrida, a Recorrente deduziu incidente de intervenção acessória da Seguradora, porém, foi o mesmo indeferido, por decisão irrecorrível, nos termos do disposto no artigo 322º, n.º 2 do CPC.
21- Ao não ordenar a intervenção acessória da 3ª Ré, o Tribunal recorrido fez uma incorrecta interpretação e aplicação do artigo 5º do CPC, violou o dever de gestão processual consagrado no artigo 6º,do CPC, o princípio da cooperação processual consagrado no artigo 7º do CPC, o princípio da gestão inicial do processo consagrado no artigo 590º do CPC e ainda o princípio da adequação formal consagrado no artigo 547º do CPC.

Pede que se revogue a decisão recorrida de julgar a Ré Y Companhia de Seguros, S.A parte ilegítima na acção e de a absolver da instância.

Houve contra alegações, suscitando-se previamente a inadmissibilidade da apelação por falta de legitimidade para recorrer da apelante e pugnando-se ainda pela confirmação do julgado.

II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar;

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos do artº 639º, do Código de Processo Civil (doravante CPC).

As questões a apreciar são as seguintes:

a) Da questão prévia atinente à falta de legitimidade da apelante para recorrer;
b) Da excepção de ilegitimidade da ré Y, Companhia de Seguros SA.

Colhidos os vistos, cumpre decidir:

III – Fundamentos;

1. De facto;

Têm-se em conta os elementos com incidência jurídico-processual constantes do relatório supra e a factualidade vertida nos articulados pelas partes, cujo teor se dá por reproduzido.

2. De direito;

a) Da questão prévia atinente à falta de legitimidade da apelante para recorrer;

Por razões de sistematologia jurídica, abordaremos em primeiro lugar a questão prévia relativa à falta de legitimidade da apelante para recorrer suscitada pela recorrida, sendo que a procedência desta preclude o conhecimento do recurso.

Vejamos:
Na decisão recorrida decidiu-se absolver a apelada seguradora com base na sua ilegitimidade passiva, uma vez que a mesma foi demandada pelas autoras na acção que contra si formularam um pedido de condenação solidária juntamente com as rés empreiteira, aqui recorrente, e subempreiteira.

Ocupava, assim, como parte principal, o lugar de ré na acção, face a um pedido de condenação formulado pelas autoras, autoras estas que não recorreram da absolvição da instância desta recorrida.

Como causa de pedir, as autoras invocaram a responsabilidade civil da empreiteira e da subempreiteira, causadora dos alegados danos sofridos devidos ao aludido incêndio, sendo a seguradora, aqui recorrida, demandada por via de contrato de seguro celebrado com a ré empreiteira.
Contrapõe então a recorrida que, nos termos do artº 631º, nº 1, do CPC, a apelante não pode recorrer porque, embora sendo parte principal, não é parte vencida.
Vencidas foram apenas as autoras, na sua óptica.

Por outro lado, argumenta ainda que a recorrente também não foi directa e efectivamente prejudicada, como o exige o nº 2 do supracitado preceito, para ter legitimidade para recorrer.

Arvora que a recorrente não é estranha à lide nem parte acessória da mesma, antes é parte principal.
Além disso, que nenhum reflexo negativo resulta directamente da decisão no património da recorrente já que a mesma não é condenada a realizar nenhuma prestação, nem sequer fica sujeita a qualquer tipo de ónus ou dever.
Enfim, que, do facto de a recorrida ser absolvida da instância, não resulta directa e efectivamente que a recorrente passe sequer a ser “responsável pelo sinistro” e muito menos a “única responsável”.
Discorda-se de tal.
Na verdade, a recorrida foi demandada pelas autoras como ré nesta acção, ou seja, é parte principal.
Logo, atenta essa configurada qualidade de litisconsórcio do lado passivo, sendo parte principal, não podia ser chamada à acção como parte acessória pela recorrente.

E face à sua absolvição da instância, não deixou a co-ré recorrente de ser directa e efectivamente prejudicada com tal decisão, uma vez que deixou de poder responder solidariamente perante as autoras com as demais co-rés, tanto mais que a absolvida, recorrida, foi demandada como seguradora da recorrente.

Isto é, a recorrente ficou directa e efectivamente prejudicada pela decisão.
Em suma, não podendo a recorrente, co-ré juntamente com a recorrida, impugnar a decisão de absolvição da instância desta, por não ter ficado vencida, também não pôde suscitar a sua intervenção como parte acessória, por a recorrida ter sido demandada como parte principal.
O que, além de passar a configurar a recorrente ré como única responsável, sem a presença da sua seguradora como auxiliar da defesa, a caracterizada qualidade de parte principal da recorrida pelas autoras preclude a possibilidade de discussão de questões que poderiam ter repercussão na acção de regresso neste processo.

Pelo que se deixa exposto, é, pois, a recorrente directa e efectivamente prejudicada pela decisão, tendo legitimidade para recorrer.

b) Da excepção de ilegitimidade da ré Y, Companhia de Seguros SA.

Quanto ao mérito do recurso, argumenta a recorrente que a recorrida seguradora é parte legítima, podendo ser demandada directamente porque houve uma configuração de início de negociações directas entre as autoras e a 3ª ré, seguradora, tendo esta interesse directo em contradizer os factos que servem de suporte à causa de pedir e pedido.
Por outro lado, atento o dever de gestão processual, consagrado no artº 6º, do CPC, e os princípios da cooperação processual, gestão inicial do processo e da adequação formal, estabelecido nos artºs 7º, 590º e 547º, todos do CPC, o tribunal recorrido deveria ter ordenado a sua intervenção a título acessório.

Apreciando.
A legitimidade do réu confere-se pelo interesse directo que tem em contradizer, traduzindo-se este no prejuízo que dessa procedência advenha.
Na falta de indicação da lei em contrário, titulares do interesse relevante para o efeito de legitimidade são os sujeitos da relação controvertida, tal como a configura o autor – artº 30º, nºs 1, 2 e 3 do CPC.
No caso em apreço, foi alegada a existência de um contrato de responsabilidade civil facultativo entre as 1ª e 3ª rés.

Neste âmbito, estipula o artº 140º, nºs 2 e 3 da Lei do Contrato de Seguro (LCS), aprovada pelo Dec.Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, que:

«2 - O contrato de seguro pode prever o direito de o lesado demandar directamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado.
3 - O direito de o lesado demandar directamente o segurador verifica-se ainda quando o segurado o tenha informado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre o lesado e o segurador».

In casu, é inaplicável o mencionado nº 2, por o contrato de seguro não prever especificamente tal demanda directa da seguradora pelo lesado.
Porém, o tribunal recorrido afastou linearmente também a situação contemplada no seu nº 3, por entender que a mera alegação de realização de uma averiguação de sinistro não se enquadra no apontado conceito de “início de negociações directas entre lesado e segurador”.

Não se perfilha este entendimento.

Com efeito, afigura-se-nos que a expressão ‘negociação’ não pode cingir-se ao significado literal de acordo ou convénio para efeitos de pagamento de valores indemnizatórios.
Desde logo, negociar significa pactuar, promover, tratar de, com vista a um acordo.
No caso dos autos, além de as autoras terem alegado nos artigos 132.º a 133.º a existência de um contrato de seguro celebrado entre a 3.ª ré e a aqui recorrente, identificando, inclusive, a apólice correspondente, foram juntos documentos relativos a peritagem técnica do sinistro por parte da seguradora, em combinação com as autoras, trocaram entre si (autoras e seguradora) correspondência [vide escritos de fls. 163 (neste, além de se fazer referência a auto de vistoria, é referido pela empresa de peritagem mandatada pela ré seguradora, quanto à remoção de escombros, que será tomada uma decisão oportunamente e após entrega de documentação e é ainda formulado o pedido ao representante das autoras para que tais escombros sejam preservados como se encontram no local) e 167 (neste é inclusive solicitado ao dito representante das autoras um esclarecimento escrito do tipo de trabalhos contratados com a 1ª ré, aqui segurada] e encetaram contactos para entrega de documentos na posse das autoras atinentes ao objecto do sinistro (como seja orçamentos de reconstrução dos dois imóveis, fotocópias das cadernetas prediais, documento a requere a licença de utilização, certidão permanente da empresa, cartão de cidadão da autora D. L., esclarecimento escrito do tipo de trabalhos contratados com a 1ª ré, empresa, relatório dos bombeiros, relatório da ocorrência da PSP).
E, na sequência dessa averiguação de sinistro, houve, pelo menos uma reunião entre o perito mandatado pela seguradora e os representantes das autoras e da segurada, como se alcança do relatório n.º 13812/16, de 22 de Fevereiro de 2017, correspondente ao doc. n.º 4 junto pela seguradora na sua contestação, onde consta o seguinte: “no local da ocorrência, reunimo-nos com os representantes do Segurado, Sr. Eng.º RS, e dos Reclamantes, Sr. GR, que vive um união de facto com a Sr.ª D. L., sócia-gerente da firma XX, Lda., (…)”.

Em suma após a ocorrência do sinistro em causa nos autos e de a 1.ª autora ter dado dele conhecimento à aqui recorrente, 1ª ré, esta deu dele conhecimento à seguradora, 3ª ré.

Esta estabeleceu contactos com as autoras, pedindo elementos e informações a pedido do seu perito para instrução de uma perícia, cujo objectivo era a ré tomar posição sobre a pretensão das autoras, assumindo ou declinando o sinistro, o que veio a fazer (veja-se o escrito de fls. 170 verso).

Todo o circunstancialismo descrito é de molde a consubstanciar o referido conceito de início de negociações directas entre as autoras lesadas e a ré seguradora.

A entender-se de outro modo, estar-se-ia a frustrar a ratio legis desse preceito, permitindo que a seguradora se subtraia a uma demanda directa por parte das lesadas, não obstante ter combinado e encetado todo um conjunto de diligências destinadas à possível assunção de responsabilidade pelo sinistro e eventual indemnização.

Acresce dizer que no preâmbulo do Decreto-Lei n.°72/2008, justifica-se o regime assim concebido pelo princípio da relatividade dos contratos.

Todavia, como defende o Exmº Juiz Conselheiro Moitinho de Almeida - “A protecção do tomador do seguro e dos segurados no novo regime legal do contrato de seguro”, Comunicação de 22.06.2009, em Acção de Formação do CSM, Porto - “este princípio não é absoluto pois razões, designadamente de ordem social, podem exigir que determinados contratos produzam efeitos em relação a terceiros. É o caso do arrendamento e, em nosso entender, do contrato de seguro mesmo facultativo, na linha da grande maioria das legislações europeias”.
E acrescenta o mesmo autor que, mesmo na Alemanha, país que não admite a acção directa nos seguros facultativos, o lesado pode demandar a seguradora para que se constate que o seguro é válido e cobre o risco na base dos danos sofridos.
Enfim, está em causa a salvaguarda de interesses legítimos quer dos lesados, quer dos segurados, em geral consumidores.
Atente-se que no caso recursivo sub judice é a própria segurada quem invoca a legitimidade passiva da sua seguradora.

Do que deixa aduzido resulta que a recorrida seguradora é parte legítima do lado passivo para ser demandada pelas autoras.
Fica prejudicado o conhecimento da questão atinente à sua intervenção acessória.
Procede, assim, apelação.

IV – Decisão:

Em face do exposto, acordam os Juizes da 1ª Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, por se verificar a legitimidade passiva da demandada Y – Companhia de Seguros SA, prosseguindo os autos os seus ulteriores termos.

Custas pela apelada.
Guimarães,14.6.2018

ANTÓNIO SOBRINHO
JORGE TEIXEIRA
JOSÉ AMARAL (VENCIDO CONFORME DECLARAÇÃO DE VOTO)

VOTO DE VENCIDO

Ciente, embora, da controvérsia em torno do tema (cfr. Ac.s da RP, de 31-01-2013, proc. 2499/10.8TBVCD-A.P1, de 14-03-2013, proc. 977/09.0TBMCN.P1, e de 14-11-2013, pº 1394/13.3TBMAI-A.P1; e desta Relação, de 09/07/2015, pº 4077/14, 01-10-2015, pº 345/13.0TBAMR-A.G1, de 19-11-2015, proc. 814/13.1TJVNF-A.G1, e de 19-10-2017, proc. 6101/15.3T8BRG.G1), e com todo o respeito pelo entendimento prevalecente nesta decisão, dela divergi por, no meu, a apelação não merecer provimento.

Admitindo conhecer do recurso por a decisão alvo dele ser efectivamente impugnável pela segurada, tê-la-ia confirmado, considerando correctos os seus fundamentos e seguindo na esteira da argumentação expendida pela apelada nas suas contra alegações, que julgaria ajustadas e de acolher, e aceitando que a questão é de legitimidade ad causam e não de legitimidade ad substantiam.

Não estando prevista, no regime anterior, a demanda directa da seguradora pelo lesado, o legislador, perante as divergências jurisprudenciais a tal propósito suscitadas e não obstante a orientação maioritária coeva daquele, expressa e claramente entendeu e decidiu optar (cfr. preâmbulo do DL nº 72/2008, de 16 de Abril) pela preservação do princípio da relatividade dos contratos, dispondo que o terceiro lesado não pode, por via de regra, exigir a indemnização ao segurador (artº 140º, a contrario) e só tal admitindo em situações excepcionais definidas (artºs 146º, nº 1, e 140º, nºs 2 e 3).

Assim permanecendo em sintonia com o Regulamento Europeu nº 864/2007, de 11 de Julho (cujo artigo 18º possibilita a demanda directa do segurador do responsável pelo lesado se a lei aplicável à obrigação extracontratual ou a lei aplicável ao contrato de seguro assim o previr), mas arrostando com as críticas oponíveis e até as desvantagens práticas da solução, visou-se, apenas, entre nós, estender aquela possibilidade (demanda directa), no caso de se não estar perante seguro obrigatório e de nada se ter estipulado contratualmente, à hipótese de o segurado ter informado o lesado da existência do contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre ele e o segurador.

E mesmo depois de, pela Lei 147/2015, de 9 de Setembro, terem sido introduzidas alterações ao DL 72/2008, assim se manteve intocado tal regime, apartado das vantagens, até de ordem social, que a demanda directa pode propiciar e enfatizadas pelos comentadores a propósito de outras soluções em diferentes países do espaço europeu, significando isso o claro desígnio assumido pelo legislador.

In casu, só aquela hipótese (início de negociações directas) é aqui discutível em face do objecto do recurso.

Ora, não foi alegado, pelas autoras, que tenham reclamado à ré seguradora a indemnização em pecunia, muito menos por restauração natural, nem que esta tenha tomado qualquer posição de onde resulte ou se possa ao menos inferir que aceitou com elas discutir (negociar) o pagamento devido em função do contrato de seguro.

A alusão às mesmas, no cabeçalho do relatório pericial, como “reclamantes” não me parece significativa, antes meramente tabelar.

Como, ademais, diz José Vasques (cit., no Ac. RP, de 14-11-2013, proc.1394/13.3TBMAI-A.P1), a noção ou o conceito de “início de negociações directas entre o lesado e o segurador”, na expressão legalmente plasmada, “em nenhum caso, poderá equivaler à mera apresentação de reclamação do lesado perante o segurador com a consequente resposta deste”. Na verdade, o “início de negociações” tem de reflectir uma vontade e atitude das partes, mormente da seguradora, no sentido de que, embora nem a lei nem o contrato prevejam a demanda directa, mas uma vez postas em contacto e em face dos factos já averiguados e dos termos da apólice existente, elas, livre e voluntariamente, aceitam, no caso concreto e em termos análogos, tratar, de boa-fé, entre si e directamente, da questão e admitem resolvê-la e compô-la por consenso.

As autoras, porém, limitaram-se, na petição, a alegar (item 132) que têm conhecimento do contrato de seguro. Não invocaram, sequer abstractamente, a norma legitimadora da demanda directa da seguradora nem os factos capazes de permitir a aplicação desta, que, de resto, os elementos do processo também não viabilizam.

Com efeito, a participação, pela segurada 1ª ré, do evento lesivo verificado à seguradora 3ª ré, e as diligências de averiguação subsequentes por esta encetadas, nomeadamente a peritagem, inserem-se nos comuns e normais deveres decorrentes do artº 100º, da LCS, e previstos nas cláusulas 15ª e 16ª do contrato. Aliás, não se concebe que a seguradora pudesse responder mesmo perante o seu segurado sem se inteirar das circunstâncias em que o sinistro eclodiu de modo a apurar se dele para si resulta responsabilidade nos termos contratados e sem, para tal, contar com a cooperação das lesadas.

A reunião, no local, com os representantes da segurada e destas, e o pedido de informações e de elementos a uma e outras, circunscrevem-se à missão, cometida à empresa averiguadora, de investigar os factos, nada mostrando que também da tarefa de assumir, definir e tratar dos termos do cumprimento da obrigação de indemnizar, quiçá perante os terceiros lesados, tivesse sido incumbida e com atribuição dos necessários poderes para tal, sequer preliminarmente.

Não se tratou, pois, de negociações, ao menos em fase de início.

Para como tal poderem ser consideradas à luz da norma em questão, haveria de mostrar-se que, nos contactos havidos, entre lesadas e seguradora, em face do contrato de seguro e pressupondo o enquadramento nele da ocorrência averiguada, mais do que averiguar e informar-se de todas as circunstâncias atinentes ao evento e consequências, a seguradora admitiu, de forma ao menos tácita ou implícita, a eventualidade de àquelas directamente vir a satisfazer a prestação contratada com a segurada (pagamento e não a restauração natural) e de, nessa perspectiva, acertar com elas o respectivo montante e definir os termos do cumprimento. Isto apesar de, pelo contrato, em rigor não lhe ter sido transferida a responsabilidade civil pelo facto lesivo, já que isso aquele não comporta nem a lei configura.

Não se sabe sequer se e que posição teria tomado a seguradora em face do relatório recebido da empresa de peritagens por si contratada, mormente se junto das lesadas e ciente que estas tinham conhecimento do contrato de seguro, alguma abordagem consequente, ainda que inicial mas preordenada à discussão da indemnização, reciprocamente foi feita no sentido de a negociar. Consta apenas do relatório – sintomaticamente – como parecer do perito, que o sinistro “não teria enquadramento no âmbito de cobertura da apólice” mas que nada mais adiantou “sem prévia instrução da requerente”.

A admitir-se que, nas diligências do perito “tendentes a apurar as circunstâncias” em que ocorreu o evento “bem como à regularização dos prejuízos consequentes”, as autoras se fizeram devidamente representar em reunião com ele no local, e apesar de se presumir que o objectivo normal delas era serem indemnizadas, nada mostra que tenham efectiva e directamente apresentado qualquer reclamação perante a ré nem que a tal interacção, justificada mais pela consciência recíproca da existência do contrato de seguro e comunhão no desígnio de averiguar as respectivas circunstâncias, corresponda, objectiva e subjectivamente, um consequente início de negociações.

Subsumir a parca factualidade resultante dos autos àquele conceito normativo, assim o interpretando e aplicando de modo tão abrangente e considerando-o por ela preenchido, implica admitir por um lado (ao franquear-se, assim, a eficácia do contrato em relação a terceiros) o que o legislador quis vedar pelo outro (ao confinar os seis efeitos apenas às partes) e, portanto, s.m.o., a violação do respectivo comando.

Quanto à hipótese de convolação em intervenção acessória, remeto para o que a tal propósito consta do Acórdão desta Relação, de 19-10-2017 (processo 6101/15.3T8BRG.G1), maxime ponto 4 do respectivo sumário e ponto 2 da fundamentação de direito.

14-06-2017

José Amaral