Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1239/18.8T9BRG.G1
Relator: PAULO SERAFIM
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
NÃO PRONÚNCIA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
IRREGULARIDADE PROCESSUAL DE CONHECIMENTO OFICIOSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - As nulidades previstas no art. 379º do CPP são exclusivas da sentença, isto, é da decisão final, não se aplicando aos despachos, por mais relevantes que sejam, como é o caso da decisão instrutória.
II - Vigorando no nosso ordenamento jurídico processual penal um sistema estribado no princípio da tipicidade das nulidades (cf. art. 118º, nºs 1 e 2), uma eventual omissão de pronúncia que ocorra na decisão instrutória gera uma mera irregularidade, sujeita ao regime de arguição previsto no art. 123º do CPP, uma vez que não se encontra legalmente tipificada como nulidade.
III - A regra geral em matéria de conhecimento de irregularidades é a da necessidade da sua arguição pelo interessado, ou seja, pelo titular do direito protegido pela norma violada, nos estritos prazos legais, ficando a irregularidade sanada se não for tempestivamente arguida – cfr. art. 123º, nº1, do CPP. Excecionalmente, permite-se o conhecimento oficioso e a reparação da irregularidade, no momento em que for notada, quando ela puder afetar o valor do ato praticado – cf. art. 123º, nº2, do CPP.
IV - A cognoscibilidade por iniciativa do Tribunal mostra-se adstrita aos casos em que a irregularidade contende com a violação de uma norma que não se destina, ou não se destina em primeira linha, a proteger um direito de um sujeito ou participante processual, antes exterioriza a concretização de valores e princípios estruturantes do direito penal ou processual penal e/ou constitucional, tendo então o legislador entendido que nestas situações o conhecimento sobre a sua violação, suscetível de afetar a própria realização da justiça no caso concreto, não podia ficar condicionada à eventual invocação da mesma por banda de um sujeito ou interveniente processual, permitindo ainda que esse conhecimento, se atempado, seja operado ex oficcio pelo tribunal para que seja reposta a imprescindível legalidade do ato ou atos processuais afetados.
V- No caso vertente, a irregularidade detetada, derivada de não pronúncia do tribunal a quo na motivação sobre um tipo de crime imputado aos arguidos a título de concurso aparente, após justificação de não pronúncia quanto ao crime prevalecente no concurso, contende com um princípio estruturante do nosso ordenamento jurídico processual penal, merecedor de consagração constitucional, que é o dever de fundamentação das decisões judiciais – cf. art. 97º, nº5, do CPP e art. 205º, nº1, da Constituição da República Portuguesa –, sendo por isso suscetível de conhecimento oficioso.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO:
           
No âmbito do Processo nº 1239/18.8T9BRG.G1, do Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Instrução Criminal ... – Juiz ..., no dia 07.03.2022, pelo Exmo. Juiz de Instrução Criminal foi proferida decisão instrutória com o seguinte dispositivo, na parte que ora releva (referência ...94):

4. Decisão:

4.1. Prescrição do procedimento criminal.
Declaro prescrito o procedimento criminal:
- Relativamente ao arguido AA - situação A – quanto ao crime de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelo artigo 256.º/1-a), d) e e), do Código Penal (com a desqualificação do crime de falsificação de documento, porquanto não está em causa documento autêntico).
- Relativamente ao arguido BB – situação 22 – quanto ao crime de violação de regras urbanísticas, p. e p. pelo artigo 278.º-A/1, do CP.

4.2. De não pronúncia.
A) Da situação A
CC, pela prática de um crime de falsificação ou contrafacção de documento agravado, p. e p. pelo artigo 256.º/1-a), d) e e), e 3, do Código Penal, doravante CP (em concurso aparente com um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigoº 26.º, da Lei 34/87, de 16/7, por referência ao artigo 3.º/1-i), daquela Lei, e 28.º, do CP), como lhe imputa o MP (sendo certo que o documento não é autêntico, pelo que nunca estaria em causa a previsão do n.º 3 do artigo 256.º do CP).

B) Das situações C, D, E e F
DD, pela prática de quatro crimes de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelo artigo 256.º/1-a), d) e e), do CP
DD e EE pela prática de quatro crimes de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelo artigo 256.º/1-a), d) e e), do CP, ainda e também por referência ao artigoº 28.º, do CP, e aos artigos 100.º/2, e 98.º/1-e), ambos do RJUE;
DD e CC, pela prática de quatro crimes de falsificação ou contrafacção de documento agravado, p. e p. pelo artigo 256.º/1-a), d) e e), e 3, do CP (em concurso aparente com um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 26.º, da L. 34/87, de 16/7, por referência aos artigos 3.º/1-i), daquela Lei, e 28.º, do CP),

C) Da situação 2
FF, pela prática de um crime de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelo artigo 256.º/1-a), d) e e), do CP;
FF e GG, pela prática de um crime de falsificação ou contrafacção de documento agravado, p. e p. pelo artigo 256.º/1-a), d) e e), e 3, do CP (em concurso aparente com um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 26.º, da L. 34/87, de 16/7, por referência ao artigo 3.º/1-i), daquela Lei, e 28.º, do CP),
FF e HH pela prática de um crime de violação de regras urbanísticas, p. e p. pelo artigo 278.º-A/1, do CP,
FF e HH, pela prática de um crime de falsificação ou contrafacção de documento agravado, p. e p. pelo artigo 256.º/1-e), e 3, do CP;
FF e HH pela prática de um crime de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelo artigo 256.º/1-a), d) e e), do CP, por referência ao artigo 28.º, do CP, e aos artigos 100.º/2, e 98.º/1-e), ambos do RJUE.

D) Da situação 4
FF e HH pela prática de um crime de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelo artigo 256.º/1-a), d) e e), do CP, por referência ao artigo 28.º, do CP, e aos artigos 100.º/2, e 98.º/1-e), ambos do RJUE;
II e FF pela prática de um crime de violação de regras urbanísticas por funcionário, p. e p. pelo artigo 382.º-A/1 e 2, do CP, por referência aos artigos 28.º e 386.º/1, do CP (em concurso aparente com um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º, do CP),
FF e HH pela prática de um crime de violação de regras urbanísticas, p. e p. pelo artigo 278.º-A/1, do CP.

F) Da situação 15
JJ pela prática de um crime de violação de regras urbanísticas, p. e p. pelo artigo 278.º-A/1, e de um crime de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelo artigo 256.º/1-a), d) e e), ambos do CP.”

▪ Inconformado com a decisão instrutória proferida pelo Mmo. Juiz de Instrução, na parte em que declarou prescrito o procedimento criminal relativamente a alguns crimes imputados a alguns dos arguidos e na parte em que não pronunciou, por falta de indícios suficientes, vários arguidos, dela veio o Ministério Público interpor recurso, que contém motivação e culmina com as seguintes conclusões e petitório (referência ...01):

1 - Inconformados com o despacho de acusação os arguidos CC, DD, EE, KK, GG, HH, II requereram a abertura de instrução.
2 – A 07-03-2022 foi proferida decisão de não pronúncia quanto a estes arguidos e desta decisão que se recorre.
3 – Quanto aos crimes de falsificação ou contrafacção agravado: para efeitos da aplicação da lei penal deve entender-se por documentos autênticos não apenas os que como tal são considerados de acordo com a noção de documento autêntico do Código Civil, mas todos os que tenham origem numa autoridade pública, isto é, cuja emissão ou origem seja de uma autoridade pública.
4 – Assim os arguidos CC e GG, que na qualidade de Presidentes das Juntas de Freguesia ... e ... emitiram e assinaram um documento intitulado Declaração e Certidão com dizeres que sabiam não corresponder à verdade cometeram o crime de falsificação ou contrafacção de documento agravado, previsto e punido pelo artigo 256.º, nº1, al. a), d) e e), nº3 e 4 do C. Penal, atenta a qualidade de funcionário:
5 – No mesmo crime incorreu, com co-autoria, o arguido AA que sabendo da necessidade de tal documento para instruir a sua defesa no processo de contra-ordenação engendrou o plano de obter tal declaração e dando conhecimento ao CC do destino que pretendia a tal declaração solicitou a elaboração de tal declaração. Assim, sendo a prática dos factos 02/02/2015 e a constituição como arguido de AA a 19/03/2021 não se verifica, quanto a este arguido, a prescrição do procedimento criminal porquanto desde a data da prática dos factos até à sua constituição como arguidos não havia decorrido o prazo de 10 anos.
6 - Os arguidos AA e CC; DD e CC; FF e GG; FF e II foram acusados da prática de crimes de falsificação ou contrafacção de documento agravado, em concurso aparente com crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 26.º, da Lei 34/87, de 16/07 por referência ao artigo 3.º, nº1, al.1) e quanto a este crime a decisão instrutória nada disse. A decisão instrutória, contudo, não refere nem analisa este ilícito. Deste modo, o despacho de não pronuncia padece, neste segmento, de omissão de pronúncia, que configura a nulidade prevista no artigo 379.º, nº1, al. c) do Código de Processo Penal, aplicável por força do disposto no artigo 97.º, nº5 do Código de Processo Penal. 
7 - Para instrução da defesa e junção ao processo de contraordenação, o arguido CC emitiu a declaração que atestava que já em data anterior a 1979 existiam uns anexos com a área de 300m2, cuja estrutura foi melhorada em 2000. A afirmação feita, na decisão de não pronúncia que o arguido queria tão só atestar a existência dos pequenos barracos anteriores a 1979 e não a existência de anexos com 300m2, é fazer uma leitura da declaração sem correspondência com o seu teor.
8 - Não corresponde à indiciação dos factos nem tem fundamento nos elementos juntos aos autos a versão que a decisão de não pronúncia que entende como indiciada que o arguido LL atestou/declarou apenas que a construção anterior a 1979 eram os anexos para armazenamento de lenhas.
9 - Deste modo, entendemos que deve ser mantida a imputação dos factos aos arguidos AA e CC, tal como consta da acusação pública deduzida, nos seus artigos 13.º a 25.º.
10 – Situações C,D,E, F – artigos 26.º a 53.º da acusação : os factos levados à acusação sustentam-se na inexistência de qualquer sinais/vestígio/indícios de ruínas; nos registos foto-aéreos, obtidos por entidades públicas, datados de 1965, 1974, 1983, 1994, 1995, 2006, 2007, 2010 e 2012, no seu estudo e interpretação levados a cabo por técnicos de institutos/entidades públicos; na informação prestada pelos técnicos do serviço de fiscalização do Município ... que se deslocaram ao local e atestaram a inexistência de quaisquer ruínas ou sinais da sua existência. As declarações prestadas pelos arguidos, sem qualquer elemento de prova que as corrobore não se revelam, pois, suficientes e adequadas a colocar em crise os elementos de prova que sustentam a acusação.
11 - A omissão de uma diligência – ida ao local e o seu registo fotográfico em 2018 - levou o Mmº Juiz a concluir pela insuficiência dos meios de prova da acusação. Existem, porém, elementos que permitem afirmar a suficiência de indícios da prática dos factos pelos arguidos.
12 - Existem elementos que contrariam as versões dos arguidos. As declarações dos co-arguidos DD e EE não coincidem, contradizem-se e suscitam dúvidas quanto à sua credibilidade. Revelam-se insuficientes para fragilizar os demais elementos de prova da prática dos factos.
13- O arguido CC, na qualidade de presidente da Junta de Freguesia atestou a existência de quatro construções anteriores a 1979, sabendo que tal não era verdade e que tais declarações seriam juntas aos processos de licenciamento.
14 – O arguido EE na qualidade de arquitecto e autor dos projectos atestou o cumprimento dos instrumentos jurídicos aplicáveis sabendo que assim não acontecia, que atestava uma falsa realidade.
15 – Ainda que assim não se entenda, sempre o teria feito sem a certeza de que assim fosse, admitiu como possível ser falsa a realidade que atestava como verdadeira e aceitou-a.
16 - A negação da prática dos factos além de não ser corroborada por qualquer meio de prova, não se mostra conforme às regras da experiência. 
17 – Os elementos de prova juntos permitem concluir pela suficiente indicação da prática dos factos descritos nos pontos 26.º a 53.º, razão pela qual os arguidos DD, EE e CC.
18-  Situação 2: no local onde não existia mais que um abrigo para animais, com 30m2, com base em informações/documentos falsos os arguidos obtiveram as necessárias autorizações para que lograssem a construção de uma moradia com 150m2.
19 - Não podemos concordar com a interpretação dada pelo Mmº Juiz ao afirmar que é irrelevante a alteração do fim da pré-existência do local. Sem a afirmação da existência de um prédio destinado a habitação com a área de 102m2, os serviços de finanças não teriam emitido a certidão junta a fls.6 do processo de licenciamento nº...16. Sem a junção desta certidão ao requerimento para substituição do telhado a obra não seria tratada como isenta de controlo prévio.
20 - O que resulta indiciado dos autos é a existência de um edifício com cerca de 30m2 destinado a abrigo de animais. O arguido FF apresentou o pedido de inscrição na matriz de um prédio com 102m2 de área e destinado a habitação, sabendo que não correspondia à verdade, mas que este seria o primeiro passo necessário para desencadear a possibilidade de todos os acontecimentos posteriores.
21- Por isso, afirmar que o requerimento apresentado junto do Serviço de Finanças é um mero requerimento para correcção de áreas e confrontações, salvo o devido respeito, evidencia errada interpretação dos meios de prova e dos instrumentos jurídicos aplicáveis ao local, que distinguem os diferentes destinos ou usos das edificações existentes/a recuperar e a construir.
22 - O arguido GG, na qualidade de presidente da junta de freguesia afirmou que a edificação existente no local também se se destinava a habitação e atestou a sua existência anterior a 1979, com as concretas características da certidão emitida pelos Serviços de Finanças, depois desta lhe ter sido enviada pelo arguido FF.
23- Fê-lo, sabendo que isso não correspondia à verdade.
24 - Arguido HH:  negou a prática dos factos, afirmou que se limitou a confiar nos documentos que lhe foram entregues pelo co-arguido FF.
25 – Tais declarações - do arguido HH - não são conformes às regras da experiência, não são corroboradas por qualquer meio de prova e não são adequadas e suficientes para fazer fragilizar os elementos de prova que sustentam a acusação e que indiciam a prática dos factos imputados ao arguido HH.
26 – Situação 4: nos elementos juntos pelo arguido FF - que instruíam o seu requerimento - não estava representado qualquer polígono – não obstante estar afirmado que se trata de uma construção com a área relevante de 110m2 - e nas plantas de localização e nos extratos das plantas de síntese o local a reconstruir  estava assinalado em locais diferentes de cada um dos documentos.
27 - Com esta área não podemos dizer que se trate de uma mancha fácil de passar despercebida nas fotografais aéreas captadas ao longo de várias décadas. Contudo e como resulta dos autos, dos registos aerofotográficos não consta qualquer edifício/mancha no local.
28 - Em situações semelhantes, instruídas com elementos da mesma natureza o arguido II assumiu comportamento distinto, o que nos conduz ao juízo de indiciação de conduta concertada com o arguido FF de modo a ser alcançado o fim pretendido: o deferimento do pedido apresentado no município. – processo 9/2014.
29 - A fotografia junta com o requerimento apresentado a 21-02-2014 e que consta do processo de obras – que o arguido FF afirmou ter sido por si tirada aquando da apresentação do pedido, ou seja, no início de 2014 - não revela qualquer sinal de intervenção na cobertura ou telhado nem qualquer vestígio de intervenção no talude a montante. Do livro de obra resulta que os trabalhos iniciaram a 26-10-2016 com preparação do terreno para as fundações. São pequenos sinais, é certo, mas que juntos permitem concluir que a versão trazida pelos arguidos não tem sustentação e é colocada em crise pelos meios de prova juntos. 
30 –  O tipo previsto no artigo 278.º-A, nº1 do C.P. aplica-se também à construção de muros.
31 - Indiciariamente há razões para afirmar que o arguido JJ praticou os factos, tal como se descrevem na acusação: aquando do seu interrogatório assumiu a prática dos factos e nem mesmo no RAI a negou.
32 - O arguido MM não apresentou uma versão alternativa à acusação nem a negou; limitou-se a dizer que em julgamento não repetirá as declarações já prestadas. Com esta afirmação o Mmº Juiz avançou para a alternativa à acusação adiantando que o arguido não tinha qualquer interesse na realização das obras.
33 – O juízo que norteou a decisão instrutória foi o do julgamento, o que não é permitido em sede de Instrução.
Nestes termos e nos demais de direito aplicável, que vossas excelências doutamente suprirão, deve o recurso ser julgado procedente, revogando-se o despacho posto em crise e determinado novo que pronuncie os arguidos AA, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II e JJ pela prática dos factos e dos crimes, tal como descritos na acusação pública, assim se fazendo JUSTIÇA.

▪ Na primeira instância, os arguidos II, FF, GG, HH e EE, notificados do despacho de admissão do recurso, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentaram respostas, nas quais pugnam pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida (referências ...82, ...06, ...38, ...96 e ...23).

O arguido II formulou as seguintes conclusões:

“I - Entende-se que dos autos não consta substrato probatório minimamente consistente e seguro que permita afirmar a premissa de ausência da preexistência alegada pelo requerente do processo de licenciamento, sendo certo que, como bem nota a douta decisão instrutória recorrida, o ónus probatório em sede de procedimento administrativo de licenciamento é diverso no domínio processual penal, impondo à acusação a respetiva prova que, in casu, não ocorreu.
II - O único argumento da acusação em defesa da inexistência da preexistência resume-se – única e exclusivamente - à circunstância de o respetivo polígono não resultar da cartografia comum utilizada pelo aí requerente e pelo Município.
III – A cartografia que representa polígonos representativos das edificações preexistentes teve por base levamento aerofotogramétrico, que toma como ponto de partida um conjunto de fotografias aéreas, método esse que enferma de limitações pois uma parte significativa das edificações reconhecidamente existentes à data dessa recolha – incluindo edifícios centenários - não vem aí representada.  
IV – Conforme foi explicado e provado pelo Arguido em fase de instrução, a representação das manchas de edificações fica muito aquém da realidade, atentas as limitações dessa forma de recolha de dados e reconhecidas na douta decisão instrutória, designadamente (i) o facto de a recolha de fotografia aérea não detetar edificações inseridas sob zonas arborizadas ou circundadas por vegetação mais densa, (ii) o facto de as condições de luz e cor nem sempre permitirem contraste bastante com as coberturas das edificações e (iii) o facto de tais dados não terem sido acompanhados de levantamento de dados por trabalho de campo, no solo.
V - Decorre dos registos fotográficos de fls. 10 do P.A. - que o Ministério Público apenas agora em fase de recurso põe em causa - a edificação em questão está embutida numa cintura vegetal de alguma densidade e sob copas de espécies arbóreas, não sendo possível constatá-la por via de fotografia aérea, satélite ou outros meios análogos.
VI - A ausência da representação de um polígono não pode, pois, ser equiparado à inexistência de edificação num preciso local, tratando-se de um elemento probatório pouco rigoroso e pouco fiável para sustentar uma efetiva ausência de qualquer preexistência.
VII - Nada consta dos autos, nem existiu qualquer ato de inquérito, que suportasse a premissa de que não existia no local a alegada preexistência. Calcorreada a prova recolhida em inquérito nenhum outro meio de prova versa sobre a efetiva presença ou ausência da alegada preexistência, sendo que a única referência direta a essa situação é efetuada pelo Arguido FF (cfr. fls. 300 a 304 – Volume I) o qual referiu que ali havia uma construção anterior a 1979.
VIII - Existem, por outro lado, outros indícios e meios de prova que abonam a favor da realidade da preexistência, designadamente as fotos de fls. 10 do P.A. e, ainda, a existência de referência à edificação, com uma área de construção de 110 m2, concordante com a alegada preexistência, quer na descrição do prédio na Conservatória do Registo Predial (prédio ...23/...), quer na inscrição matricial (art. ...75º urbano), conforme resulta das certidões de fls. que constam dos autos e do P.A., que não mereceram qualquer objeção de cariz urbanístico por parte das respetivas entidades.

Sem prescindir:
IX - Se já existe uma falta de indícios suficientes no que tange ao elemento objetivo do tipo de crime a que se refere o art. 382.º-A do CP, essa ausência é muito mais intensa no que diz respeito ao seu elemento subjetivo que – sublinha-se – apenas é punível a título de dolo, mas já não de negligência.
X - Calcorreada a prova constante dos autos (testemunhal, declarações dos Arguidos e documental), não existe qualquer prova ou simples indício no sentido de que o Arguido II tivesse atuado com a consciência de violação de regras urbanísticas, e muito menos, em conluio com quer que fosse – mormente o Arguido FF - construindo a acusação uma atuação consertada a partir do nada, aspeto que especialmente se repudia, de forma veemente. Com efeito, absolutamente nada indicia uma qualquer proximidade ou relação do Arguido II com a obra e, sobretudo, com o seu proprietário, relativamente ao qual havia uma ausência completa de ligações, arredando qualquer laivo de conluio.
XI – A avaliação dos indícios de intencionalidade não pode deixar de considerar todo o concreto quadro circunstancial subjacente à avaliação efetuada pelo Arguido II, na sua informação de 10/03/2014.
XII – Desse quadro circunstancial resultam (i) as limitações já assinaladas na fonte utilizada para representar os polígonos com edificações preexistentes; (ii) as fotos de fls. 10 do P.A., onde é representada visualmente a preexistência, sendo visível um muro com aspeto muito antigo; (iii) a representação gráfica direta da preexistência nas peças técnicas com que o requerente, Arguido FF, instruiu o procedimento; (iv) a existência do termo de responsabilidade do autor do projeto, que atestou a conformidade da operação urbanística com as regras legais e regulamentares aplicáveis; (v) a “memória descritiva” subscrita pelo autor do projeto, que faz referência a uma edificação “em mau estado de conservação”, com “pouco ou quase nada recuperável”, mas com aproveitamento de elementos construtivos anteriores.
XIII – E, ainda, (vi) a existência de referência à edificação, com uma área de construção de 110 m2, concordante com a alegada preexistência, quer na descrição do prédio na Conservatória do Registo Predial (prédio ...23/...), quer na instrução matricial (art. ...75º urbano), junto ao Processo Administrativo, que não mereceram qualquer objeção ou comprovação de cariz urbanístico por parte das respetivas entidades que assumiram a existência desse edifício nesses registos públicos.
XIV – Ao que se soma (vii) a existência de um processo administrativo de “obra isenta de controlo prévio” que constituía um antecedente processual, que incidia sobre o mesmo prédio e dizia respeito a obras de manutenção na cobertura / obras de restauro requeridas pelo Arguido FF em 05/03/2013, deferidas pelo Município em 17/07/2014.
XV - Donde emerge um quadro que convenceu o Arguido II do pressuposto da invocada preexistência que, de acordo com a magra matéria que resulta dos autos, não permite sustentar qualquer intencionalidade dolosa e, muito menos, o conluio.
XVI - Na avaliação da existência, ou não, de indícios suficientes, impunha-se um juízo de prognose, face ao concreto quadro factual que se deparava ao Arguido, considerando ambos os pratos da balança, aspeto que se entende constituir – com o devido respeito – a falha essencial do Ministério Público na defesa da posição que exprime por via do presente recurso.
XVII – Ao contrário do sustentado no douto recurso do Ministério Público, não é verdade que o Arguido tenha utilizado dualidade de critério face aos processos 36/2013, 37/2013, 38/2013 e 39/2013, também apensos aos presentes autos, inspecionando previamente o local nestes.
XVIII - Existem razões objetivas e que resultam diretamente dos referidos processos para justificar essa diferença de atuação, que infra se enunciam.
XIX - Decorre dos referidos processos apensos que existe uma divergência entre as áreas consideradas na estimativa orçamental e as constantes da descrição da Conservatória do Registo Predial, sendo que pelo menos em 3 dos 4 casos, o requerente renunciou à área mais elevada que lhe atribuía a descrição da Conservatória do Registo Predial, o que se apresentava pouco natural.
XX - Os processos 36/2013, 37/2013, 38/2013 e 39/2013 possuíam uma outra atipicidade: deram entrada na mesma data, para o mesmo local e pelo mesmo requerente, o que suscitou reservas e cuidados adicionais em função dessa particularidade.
XXI - Conforme decorre dos processos apensos em alusão, nos passos iniciais do roteiro eletrónico não era feita qualquer menção aos antecedentes, ao contrário do que sucede na “Situação 4” em que existiu uma anterior comunicação de “obras isentas de controlo prévio”, traduzindo também uma situação menos típica, em face do conteúdo das pretensões e da sua localização.
XXII - Os referidos processos 36 a 39/2013 reportavam-se a “reconstrução de um edifício destinado a alojamento local”. No entanto, esta categoria de empreendimento pressupõe e exige a prévia existência de habitação, devidamente licenciada ou anterior à entrada em vigor no Regulamento Geral das Edificações Urbanas, o que tornava não natural a ausência de antecedentes processuais.
XXIII – Nos processos administrativos 36 a 39/2013 não é diretamente peticionada a demolição do edificado considerado pelo requerente como preexistente a qual, no entanto e de forma contraditória, resultava da representação vertida nas peças desenhadas.
XXIV - Nestes processos 36 a 39/2013 colocava-se a questão de harmonização entre a arquitetura das alegadas preexistências (arquitetura tradicional minhota) e a sua destruição e substituição por edificações de linguagem arquitetónica contemporânea, sendo que a avaliação da possibilidade de manter a primitiva linha arquitetónica, desejável neste caso concreto, implicava uma avaliação no local, conforme resulta do conjunto das informações técnicas prestadas.
XXV – Finalmente, mas não menos importante, salienta-se que a desnecessidade de inspeção ao local em processos de licenciamento de obras particulares era já a regra, conforme decorria (e ainda decorre) do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, e não a exceção, tendo o Arguido seguido na “Situação 4” a mesma.
XXVI - Do procedimento administrativo de licenciamento 9/2014 não resulta a data em que o registo fotográfico invocado pelo Digníssimo Magistrado do Ministério Público foi colhido, mormente se antes ou depois daquele “procedimento de obras isentas de controlo prévio” requerido em 05/03/2013 e deferido em 17/07/2014. XXVII - Portanto, do mesmo não decorria se a realidade representada pela foto seria anterior ou posterior a tal procedimento, de forma a poder suscitar dúvidas ao Arguido II. O qual – obviamente – não podia contar com o teor das explicações dadas ulteriormente, e já nos presentes autos, pelo Arguido KK, para daí retirar adotar alguma iniciativa adicional.
XXVIII - Acresce que dos autos nem sequer resulta que essa intervenção tivesse, sequer, sido concretizada ou terminada, sendo que o posterior recurso ao licenciamento também se relacionou com o desmoronamento parcial da edificação, que obrigou a uma intervenção mais profunda. Sabe-se que essa primeira intervenção “isenta de controlo prévio” foi requerida, foi deferida, mas não resulta dos autos se chegou ao fim ou – sequer – se chegou a ser iniciada.
XXIX - Não se alcança, também, o fundamento da alusão na conclusão 29 do recurso do Ministério Público, ao “talude a montante”, já que do referido anterior processo de “obra isenta de controlo prévio” não existe qualquer referência a taludes ou movimentos de terras, resumindo-se o seu objeto a “obras de manutenção da cobertura” e a “obras de restauro”.
XXX - Para concluir que dessa foto não decorria, para o Arguido, qualquer incoerência relativamente ao anterior procedimento de “obras isentas de controlo prévio” que lhe fosse cognoscível e lhe pudesse chamar a atenção no conjunto dos demais elementos já referidos.
XXXI – De acordo com o art. 97º do RJUE, à Portaria n.º 1268/2008, de 6/11 e, à data dos factos, à Portaria n.º 216-E/2008, de 03/03 o “Livro de Obra” é um documento mobilizado apenas na fase posterior ao licenciamento da obra, sendo um elemento instrutório obrigatório, com o termo de abertura já elaborado, para a emissão do alvará de licença de construção.
XXXII – Ao emergir no procedimento em fase processualmente mais avançada face ao pedido de inicial é amplamente posterior à emissão da informação de 10/03/2014 pela qual o Arguido II veio acusado pelo Ministério Público, razão pela qual jamais poderia ser tido em conta nessa informação.”

O arguido FF formulou as seguintes conclusões:
“- SITUAÇÃO 2

1. Este processo inicia-se com base num relatório provindo da IGAMAOT, datado de fevereiro de 2017, em que é dito de uma forma clara e taxativa a fls. 33 verso, que: “(19) É assim seguro que as ruínas, ilustradas no registo fotográfico que instruiu o projeto de arquitetura, visaram forjar um cenário de construção, numa área em que, à luz do disposto no POA..., não são admitidas novas construções para os fins visados pelo particular (cf. artigo 9º do regulamento deste plano).”.
2. A pretensa prova não foi recolhida em sede de inquérito e assentou num paradigma distinto do que deve ser almejado num processo criminal, porquanto em sede criminal é ao MP que incumbe demonstrar indiciariamente a ausência da pré-existência, não se podendo bastar com a conclusão (errada) que a IGAMAOT retirou, de considerar que o particular não fez prova daquela pré-existência.
3. Tendo por base esse relatório seguiu-se a abertura do presente um inquérito, onde apenas se fez a inquirição de testemunhas e a tomada de declarações dos arguidos, dizendo todos, em uníssono, que a pré-existência era uma realidade física indesmentível.
4. Em sede de acusação, o Ministério Público derivou nos pressupostos-base, trilhando um caminho distinto do sugerido pela IGAMAOT, fazendo com que partisse de uma pré-existência naquele local, não de 102mt2, mas somente de 30mt2, descartando por completo a base do raciocínio (errado) da IGAMAOT, de pretensa inexistência da pré-existência, não dando, por conseguinte, credibilidade ao facto indicado por esta, que, exclusivamente, assentava nos levantamentos aéreofotogramétricos.
5. Como já se alegou no passado, em sede de requerimento de abertura de instrução, é público e notório que a desconformidade de áreas, sejam elas cobertas, não cobertas, de logradouro e/ou da própria totalidade do prédio, é uma questão que surge diariamente no meio registal, notarial e até judicial, e pode entroncar em inúmeras e diferentes razões, que não de índole urbanística.
6. A correção matricial e predial, considerada na acusação como uma ampliação e que vem acoplada a uma ficcionada conjugação de esforços dos intervenientes, não é de todo bastante para merecer a chancela de “indício”, donde dever concluir-se, como o JIC bem fez, pela não pronúncia do arguido.
7. No que tange ao uso do edifício, essa é uma temática que, na realidade, só agora, em sede de recurso, o MP traz à liça, com intuito de tentar tornar mais “exuberante” a invocada ilegalidade construtiva.
8. A questão do uso ou utilização do edifício não constitui matéria que seja suscetível de apreensão num processo de natura criminal, pela simples e singela razão que o “uso” não faz parte do tipo penal previsto no art. 278º-A do Código Penal, que apenas alude a “obra de construção, reconstrução ou ampliação de imóvel”.
9. As próprias entidades administrativas intervenientes no processo (CM..., APA e CCDR), confrontadas com todos os elementos do processo entenderam que esse pretenso facto, relativo ao “uso”, não seria “questão”, dando pareceres favoráveis e deferindo, a final, o licenciamento.
10. Em contraponto, no caso vertente, os contraindícios são muitos, substancialmente relevantes e bem mais exigentes do que a simples constatação nominal de uma pretensa desconformidade de áreas e de uso.
11. Assentam nas declarações prestadas pelo arguido em sede de inquérito; nas declarações dos próprios vendedores do prédio no âmbito do processo administrativo; no suporte fotográfico e topográfico junto, na declaração de antiguidade da pré-existência, e na própria análise instrutória e decisória que as três entidades administrativas intervenientes fizeram. 
12. Este conjunto de postulados permitiram e permitem dar solidez a um licenciamento feito sem mácula e dar consistência ao despacho de não pronúncia proferido.

- SITUAÇÃO 4
13. A essência do alegado pelo Ministério Público centra-se na inexistência de qualquer pré-existência no aludido prédio, socorrendo-se na falta de suporte aéreo-fotográfico que o comprove.
14. Se na SITUAÇÃO 2 o próprio MP abandonou a tese defendida pela IGAMAOT de inexistência de pré-existência, ao considerar haver uma construção de apenas 30mt2, descurando (ainda que não o refira diretamente) aquele levantamento aéreo-fotogramétrico, já aqui assume caminho ou posição inversa, emprestando-lhe relevância.
15. O mais razoável seria igualmente desconsiderar o levantamento aerofotográfico, mas, o problema, é que se partissem desse pressuposto, admitindo a sua existência, como não estamos numa zona reservada (50mt), mas sim numa zona de proteção da albufeira (500mt), sempre seria legalmente possível realizar a ampliação de construções, como veio efetivamente a suceder, o que equivaleria dizer-se que a hipótese de “crime” nunca se colocaria desde o seu início.
16. Além disso, no relatório preconizado pela IGAMAOT, que está na base da abertura do inquérito, não vem assumida a inexistência da pré-existência, bem pelo contrário, antes se optando por dissertar sobre a (i)legalidade da reconstrução (fls. 32 a 34), o que ajuda a tornar ainda mais frágil a diferente posição assumida pela acusação.
17. Em sentido contrário ao pretendido pelo MP, temos que no aludido prédio existia desde tempos imemoriais uma construção e a prova desse facto reside na abertura da descrição com o nº 812/ ..., feita em 23.10.1995 pelo então proprietário, cerca de 17 anos antes do arguido o ter adquirido.
18. E, como bem dá conta o JIC na decisão instrutória proferida, que o MP não rebate nas suas alegações de recurso:
“No caso, a reconstrução é viável, bem como o acréscimo até 30% de área até ao limite de 200 m2 (fls. 786).
Não carecia de parecer da APA (fls. 787).
O Tribunal teve ainda em consideração as declarações do arguido II (fls. 830 e ss) e a informação de fls. 837 e 839.
(…)
Na verdade, resulta suficientemente claro que pelo menos desde o ano de 1995 o prédio existia como urbano, com uma área coberta de 110m2 e área descoberta de 350 m2 (fls. 1291) o que logo descredibiliza a construção acusatória. Mas, como se disse, construção de 1995 então já apoiada numa outra mais antiga.
(…)
Isto que acaba de se dizer leva a uma outra consideração, mais genérica, mas não menos importante (como aliás já temos referido para outras situações), para enfatizar que a questão de erigir (como o faz a IMAGAOT e o MP repesca) a critério fundamental de sustentação das pré-existências a análise dos polígonos de implantação, representados nas plantas topográficas que instruíram os projectos de arquitectura, apresenta por si evidente insuficiência se não ocorrer acompanhamento de outros elementos de prova que corroborem faz evidenciar apresenta claros resultados insatisfatórios.”.
19. Na decorrência do supra alegado, os contraindícios existentes vão precisamente em sentido contrário ao preconizado pelo Ministério Público e o licenciamento da operação urbanística era sempre possível, como o foi efetivamente, no âmbito do processo de licenciamento municipal,
20. Em suma, bem andou o JIC ao decidir não pronunciar o Arguido pelos crimes de que vinha injustamente acusado.”

O arguido GG formulou as seguintes conclusões:
I.
A presente acusação não apresenta qualquer sustento factual, na verdade os procedimentos administrativos foram todos cumpridos, foi efetuado um levantamento topográfico, o que implica um termo de responsabilidade, o mesmo é facultado a uma entidade pública, nomeadamente repartição de finanças e posteriormente os mesmos documentos servem para ser utilizados em conservatória predial ou para obter uma declaração da junta de freguesia e posteriormente da câmara municipal onde o imóvel se encontra situado.
II.
Como refere o JIC “Uma outra nota que importa evidenciar é a de que se no âmbito do processo administrativo cabe ao interessado a prova da pré-existência (cfr. acórdão do TCAN, proc. 00076/04.1BEPNF apud Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, Comentado, Fernanda Paula Oliveira e outros, Almedina, 4.ª ed. reimpressão, p. 461), tal já não acontece no processo penal quanto ao arguido que comungue a qualidade de interessado no processo administrativo” e ainda “… também é certo que no âmbito do processo penal essa mesmo certidão – enquanto documento autentico – exige da acusação um reforço probatório complementar à sustentação da não pré-existência.”.
III.
Mais refere o JIC que “… não deixando nele de se evidenciar na conclusão 40 de que as “entidades licenciadores não reconheceram a invalidade dos atos praticados no contexto do licenciamento das operações urbanísticas” …”.
IV.
Pelo que não se verifica assim qualquer crime cometido pelo recorrido no que toca à violação de regras urbanísticas.
V.
Mais a própria lei, nomeadamente o RJUE no seu artigo 2, al.) A, define edificação como a atividade ou resultado da construção, reconstrução, ampliação, alteração ou conservação de um imóvel destinado a utilização humana.
VI.
O conceito de utilização humana não pode ser somente materializado em habitação, é mais amplo do que isso, ao contrário do que pretende fazer crer o MP.
VII.
Tal e qual refere o JIC “Os documentos constantes dos processos de licenciamento camarário (pastas I, II e II ano 2016) infirma a factualidade acusatória …”.
VIII.
Mais, os diversos testemunhos prestados nos autos, vão em sentido diverso do da acusação e atestam positivamente o que os recorridos afirmam, pelo que se pode afirmar que o aqui recorrido não cometeu nenhum crime de violação de regras urbanísticas.
IX.
E dos próprios autos resulta, a favor do recorrido, que outras entidades com competência nesta situação, tais como a agência portuguesa do ambiente (APA), ou a comissão de coordenação desenvolvimento da região norte (CCDRN) emitiram parecerem favorável e não descortinaram qualquer ilegalidade.
X.
Pelo que, bem andou o JIC ao decidir não pronunciar o Arguido, relativamente à situação 2.
XI.
Na situação 4, ficou cabalmente provado que o prédio se encontrava registado como urbano, desde o ano de 1995, sendo que o mesmo tinha uma área coberta de 110m2 e descoberta de 350m2.
XII.
O pedido de licenciamento foi instruído com duas fotografias que atestavam a existência de edificações, neste caso, o local não se encontra inserido em zona de REN, sendo possível legalmente a reconstrução do edificado, sem necessitar de parecer da APA, pelo que a acusação do MP mais uma vez se encontra sem credibilidade.
XIII.
Atenta a aludida pré-existência e as consequências decorrentes do art. 60º nº 2 do RJUE, seria sempre viável a sua reconstrução, conforme de resto a CCDR-N da nota no parecer que deu presente nos autos.
XIV.
Sendo que o MP não consegue na sua acusação ou recurso demonstrar que o aqui arguido/recorrido falsificou um documento, pese embora e sem prova, continue o MP a defender essa tese sem sustento.
XV.
Pelo que, bem andou o JIC ao decidir não pronunciar o Arguido, agora aqui recorrido, relativamente à situação 4.

O arguido EE formulou as seguintes conclusões:

Dos indícios suficientes.

1 - O Ministério Público proferiu acusação, imputando ao arguido EE a prática de um crime de falsificação ou contrafação de documento, p. e p. pelo art.º 256º, n.º 1, als. a), d) e e), do Código Penal.
2- Face a tal acusação, o arguido requereu a abertura de instrução e, em sede de decisão instrutória, logrou obter uma decisão de não pronúncia. 
3- Inconformado com tal douta decisão, o Ministério Público interpôs o presente recurso daquele despacho de não pronúncia.
4- Vejamos, então, quais os requisitos para que seja possível, em sede de instrução, proferir despacho de pronúncia e/ou de não pronúncia.
5- Para a pronúncia, não obstante não ser necessária a certeza da existência da infração, como é em sede de julgamento, os factos indiciários deverão ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, consubstanciem um todo persuasivo da culpabilidade do arguido, impondo um juízo de elevada probabilidade de condenação no que respeita aos factos que lhe são imputados.
6- Na mente do julgador deverá estar sempre presente a defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de proteção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso do bom nome e reputação do cidadão.
7- A suficiência dos indícios de futura condenação do arguido, aferida por um juízo de alta probabilidade, em face das regras da experiência comum e livre apreciação da prova, tem de ser compatibilizada com o princípio in dubio pro reo, pois o mesmo vigora em todas as fases do processo penal.
8- No caso dos autos, o Ministério Público para sustentar os factos constantes da acusação invocou, em síntese, os aspetos seguintes:
a informação prestada pelos técnicos do serviço de fiscalização do Município ... que se deslocaram ao local e atestaram a inexistência de quaisquer ruínas ou sinais da sua existência;
o facto de as fotografias juntas pelos arguidos, ao processo de licenciamento, não pertencerem ao local da obra;
as fotografias aéreas tiradas ao local, durante vários anos e até 2012, por organismos estatais e militares, que atestam a inexistência de ruínas de construções ou sinais da sua existência;
as declarações contraditórias dos arguidos, nas duas fases processuais, e sem qualquer elemento de prova que as corrobore, pelo que as mesmas não se revelam suficientes e adequadas a colocar em crise os elementos de prova que alegadamente sustentam a acusação.
9- Salvo o devido respeito, o arguido EE não aceita as conclusões a que chegou o Ministério Público, nas suas alegações de recurso, pelas seguintes razões:
quanto à informação prestada pelos técnicos do serviço de fiscalização do Município ..., que se deslocaram ao local, cumpre dizer que os mesmos constataram apenas e tão só que naquele dia e hora no local das obras não existiam ruínas ou sinais da sua existência e nada mais para além disso;
quanto ao facto de as fotografias juntas ao processo não pertencerem ao local da obra, cumpre dizer que tal facto não é da responsabilidade do arguido EE, uma vez que as mesmas foram-lhe entregues em mão pelo coarguido DD, não tendo aquele motivos para desconfiar da sua correspondência com o local em causa e/ou inveracidade, aliás conforme declarou nos autos;
quanto ao facto de as fotografias aéreas tiradas ao local, até ao ano de 2012, não apresentarem vestígios de ruínas ou sinais da sua existência, tal situação de per se não permite concluir, sem a conjugação de mais elementos de prova, que as mesmas não existissem, até porque o local esteve durante muitos anos envolto em matagal, silvas e arbustos, o que impedia a sua visibilidade;
quanto às alegadas declarações contraditórias dos arguidos, nas duas fases processuais, cumpre dizer que não se pode chegar a tal conclusão sem que seja apresentado mais algum elemento de prova que as corrobore, uma vez que as mesmas apenas são divergentes em alguns pormenores atinentes à memória e ao tempo entretanto já decorrido;
alega, ainda, o Ministério Público que o arguido EE, em sede de inquérito, afirmou que todos os documentos foram-lhe entregues pelo coarguido DD e que nunca tinha visto as ruínas. Porém, em sede de instrução, já assumiu posição diversa e afirmou que se deslocou ao local, que já estava limpo e viu as ruínas, pelo que tais declarações não são credíveis ou plausíveis e por isso devem servir para se concluir pela existência de indícios suficientes da prática dos factos de que está acusado nos autos;
salvo o devido respeito, tal conclusão é abusiva e contrária às regras do ónus da prova, até porque não existe qualquer contradição nas declarações do arguido EE. Porquanto o por ele afirmado, em sede de inquérito, mormente que os documentos em causa lhe foram entregues pelo coarguido DD e que nunca tinha visto as ruínas, correspondem à verdade do ocorrido, uma vez que antes de elaborar os projetos deslocou-se ao local e só conseguiu ver matagal e arbustos, motivo pelo qual não viu as aludidas ruínas;
quanto às fotografias que lhe foram entregues pelo coarguido DD, cumpre dizer:
em primeiro lugar, que o arguido EE não é geografo, nem especialista em cartografia e fotografia aérea, pelo que não teve qualquer motivo para desconfiar que as citadas fotografias não correspondiam ao local da obras; e
em segundo lugar, o facto de o coarguido DD, depois de o processo de licenciamento de obras já ter dado entrada nos serviços camarários, ter alegadamente confidenciado ao arguido EE que talvez as fotografias aéreas que lhe entregou não fossem do local das obras, tal informação de per se não é suficiente para se poder concluir que o mesmo, quando elaborou o projeto, ou projetos, e deu a sua entrada nos serviços camarários, sabia que estava a atestar e a declarar falsamente, a tais serviços, factos que não correspondiam à verdade, como defende o Ministério Público na sua acusação;
Quanto ao facto de o arguido EE ter declarado, em sede de instrução, que se deslocou ao local, o qual já estava limpo e que viu as ruínas, tal afirmação não constitui nenhuma contradição com o que tinha declarado em sede de inquérito, porquanto, logo que tomou conhecimento e se levantou a dúvida sobre tal situação, o mesmo deslocou-se ao local das obras, encontrando o mesmo limpo de mato, silvas e arbustos, motivo pelo qual já conseguiu visualizar as ruínas ali existentes. 
10- Aqui chegados e ao contrário do que defende o Ministério Público, nas suas doutas alegações de recurso, in casu que “(…..) as declarações prestadas pelos arguidos (…..) as mesmas não se revelam suficientes e adequadas a colocar em crise os elementos de prova que sustentam a acusação”, cumpre dizer que não é o arguido que tem o ónus de apresentar provas que sustentem os factos descritos na acusação, mas sim o acusador, sob pena de se estar a inverter o princípio do acusatório e do ónus da prova, constitucionalmente consagrado no nosso ordenamento jurídico-penal.
11- Por sua vez, a infirmar os factos constantes na douta acusação pública, temos:
- as declarações dos arguidos, que negam a sua prática, mesmo que se admita – sem conceder – que existem pequenas contradições entre os seus depoimentos;
a ausência de uma única prova direta em como o arguido EE sabia que as fotografias que lhe foram entregues pelo coarguido DD não correspondiam ao local das obras;
- o facto de o arguido EE, logo que lhe foi transmitido que no local das obras não existiam quaisquer ruínas ou vestígios da sua existência, de imediato deslocou-se ao local e constatou que o mesmo estava coberto de matagal;
- tendo, mais tarde, já na fase de execução das obras, o arguido EE ido ao local encontrando o mesmo limpo de matagal, silvas e arbustos, constatando então a existência das citadas ruínas;  
- a ausência de fotografias aéreas dos locais em causa, no período compreendido entre o ano de 2012 e o ano de 2018 - uma das razões em que se baseou o M.º Juiz de Instrução ao proferir o despacho recorrido - implica, no mínimo, a subsistência de dúvidas sobre a existência ou não das aludidas ruínas.
12- Deste modo é forçoso concluir que a ausência de qualquer prova direta sobre a prática dos factos, sendo a prova indireta existente manifestamente insuficiente para o efeito, pois baseia-se em dois factos indiretos (indícios), impede a formulação de uma convicção judicial minimamente segura com base na prova indiciária.
13- Sendo que, nesta matéria, para além da existência de uma pluralidade de indícios indiretos exige-se, ainda, que os indícios sejam periféricos relativamente ao facto a provar, bem como que estejam interligados com o facto nuclear carecido de prova e que não percam força pela presença de contraindícios que neutralizem a sua eficácia probatória, como se verifica no caso em análise.
14- Motivos pelos quais, o arguido EE entende que as provas produzidas nos autos foram de molde a abalar fortemente os indícios já insuficientes constantes do inquérito, nos termos decididos e melhor explicitados no douto despacho de não pronúncia.
15- Subsistindo, ainda, quanto a nós, uma dúvida insanável sobre a prática dos factos na descrição sustentada pelo Ministério Público, na sua acusação, uma vez que não é possível reputar de mais convincente ou persuasiva a versão da acusação relativamente à versão do(s) arguido(s), a não ser que fossem obtidos mais elementos de prova diretos que corroborassem a versão da acusação, o que não é o caso.
16- Razões pelas quais não é possível concluir – sem que subsistam sérias dúvidas -  da existência de indícios suficientes de que o arguido praticou os factos que lhe são imputados na acusação pública.
17- Não se devendo olvidar, por outro lado, nesta matéria da prova, que no nosso ordenamento jurídico-penal vigora o princípio da presunção de inocência, neste caso na sua vertente do “in dubio pro reu" devendo tecnicamente tal "non liquet" ser resolvido sempre em benefício do arguido.
18-  Sendo que os factos que vierem a ser imputados na acusação têm de ser estabelecidos para além de qualquer dúvida razoável, pois, caso tal não se verifique e/ou quando factos relevantes para a decisão não ultrapassem aquela dúvida, como ocorre nos presentes autos, os mesmos terão de ser valorados em benefício do arguido, em obediência ao princípio "in dubio pro reo” que é um princípio imposto pela lógica, pelo senso e pela probidade processual o qual consagra que: "a dúvida equivale (...) à prova positiva  da não culpabilidade" - (Cfr. neste sentido, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Lições coligidas por M. João Antunes  1988/89, pag. 146, e R. L. J. ano 105, pag. 125 e segs. e o Acórdão do S. T. J. de 13/01/94, Coletânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça Ano II Tomo I, pag. 197).
19- Como se disse, por indiciação suficiente entende-se a existência de uma alta probabilidade de ao arguido vir a ser aplicada, em razão dos meios de prova existentes, uma pena ou uma medida de segurança.
20- Dispõe o artigo 286º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que: "A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
21- Tanto para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige a prova no sentido da certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se possa formar a convicção de que existe uma alta probabilidade de que foi cometido o crime pelo arguido.
22- Sendo, essa probabilidade, uma certeza mais positiva do que negativa, devendo o juiz apenas pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forme uma firme convicção no sentido de que é muito provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido.
23- Motivo pelo qual é também forçoso concluir que na falta da chamada «prova direta», a prova indiciária requer uma pluralidade de dados indiciários plenamente provados ou absolutamente credíveis para se poder considerar um determinado facto como provado.
24- Por outro lado, e uma vez que a prova indiciária assenta em presunções, e seguindo a jurisprudência maioritária defendida pelos nossos tribunais, nesta matéria, a utilização deste tipo de prova exige, em síntese:
em primeiro lugar e em regra, uma pluralidade de elementos indiciários;
em segundo lugar, que tais elementos sejam concordantes; e, 
em terceiro lugar, que tais indícios sejam inequívocos, ou seja, tendo em conta uma observação de acordo com as regras da experiência, que tais indícios afastem, para além de toda a dúvida razoável, a possibilidade dos factos se terem passado de modo diverso daquele para que apontam aqueles indícios probatórios.
25- Exigindo-se, assim, a existência de uma pluralidade de dados indiciários plenamente provados ou absolutamente credíveis, sendo para o efeito imprescindível a existência de um elemento probatório direto, o qual desacompanhado de outros elementos probatórios, in casu indiretos, não permite considerar como indiciado o facto em causa.
26- Ora, a prova coligida nos presentes autos não permite a formulação de um juízo de certeza positivo quanto à existência de indícios suficientes de que o arguido EE cometeu os factos constantes da douta acusação pública.
27- Razões pelas quais, o M.º Juiz de Instrução Criminal depois de ter efetuado todas as diligências de prova necessárias e após ter averiguado e analisado toda a prova recolhida, nos autos, concluiu pela inexistência de indícios suficientes de que o arguido EE tenha cometido o crime de que está acusado, tendo, consequentemente, deduzido douto despacho de não pronúncia.
28- Pelo exposto, atentos tais ensinamentos – quer quanto à definição do conceito de suficiência dos indícios para efeitos de acusação, o qual deve ser aferido através de um juízo de alta probabilidade, quer quanto à eficácia da prova indireta ou indiciária, sem olvidar o princípio do “in dubio pro reo” –, para além das alegadas incongruências dos depoimentos prestados pelos arguidos, inexistem nos autos quaisquer outros elementos de prova que sustentem os factos constantes da acusação, pelo que é forçoso concluir pela inexistência de indícios suficientes da prática dos crimes imputados ao arguido EE, nos presentes autos.
29- Motivos pelos quais, outra não podia ter sido a decisão do M.º Juiz de Instrução senão a de que inexistem indícios suficientes da prática, pelo arguido EE, dos crimes que lhe foram imputados na acusação pública e consequentemente proferir despacho de não pronúncia, como proferiu, o qual se deverá manter para todos os legais efeitos, assim se fazendo Justiça.

Do Direito.

Do crime de falsificação de documento e/ou de contrafação de documento.

30- Para a eventualidade de esse Venerando Tribunal da Relação vir a entender que o invocado nas alegações de recurso do Ministério Público tem razão de ser – o que não se concebe e apenas por dever de patrocínio – o arguido EE alega, ainda, em sua defesa o que se passa a descriminar infra.  
31- Conforme alegou no seu requerimento de Abertura de Instrução (RAI), o arguido EE entende que os factos que lhe foram imputados, na acusação pública, não preenchem os requisitos necessários para que se possa considerar preenchidos os elementos dos tipos legais, quer objetivos quer subjetivos, dos crimes de que foi acusado.

Vejamos.

32-  Porém, segundo a tese do Ministério Público, o arguido EE sabia e estava plenamente consciente que estava a fazer constar, de tais documentos, factos que não correspondiam à verdade, o que quis e representou.
33- Salvo o devido respeito por tal opinião, que é muito, não pode o arguido EE concordar, de forma alguma, com tal conclusão.
34- Porquanto, do teor dos citados documentos lavrados, assinados e emitidos pelo arguido EE, melhor referidos na douta acusação pública, apenas é possível extrair e concluir que o mesmo, ao elaborar os aludidos termos de responsabilidade, memórias de adequabilidade e memórias descritivas, se limitou a atestar e a declarar – após estudo prévio efetuado para o efeito, de acordo com os documentos que lhe foram facultados pelo coarguido DD e de acordo com a legislação aplicável ao caso - que as obras em questão cumpriam todos os requisitos legais para ser aprovada, como efetivamente cumpriam.
35- Isto é:  o teor dos citados documentos lavrados, assinados e emitidos pelo arguido EE, constantes dos citados processos de licenciamento, são na sua substância e na sua essência intrinsecamente verdadeiros, na medida em que os mesmos se limitam a atestar – perante os serviços camarários competentes e de forma verdadeira - que os Projetos em causa cumpriam todas as regras e normas regulamentares aplicáveis e exigíveis pelos regulamentos e pela lei, tendo por referência os exatos termos da documentação que lhe foi entregue pelo coarguido DD e ainda toda a regulamentação e legislação aplicável ao caso, e nada mais para além disso.
36- Por sua vez, o tipo subjetivo desta norma exige Dolo Direto, Necessário e/ou Eventual, o que claramente também não resulta da prova coligida, quer em sede de inquérito, quer em sede de instrução.
37- Na verdade, o que resulta dos elementos probatórios coligidos nos autos é que o arguido desconhecia e não tinha a mínima consciência da existência de qualquer desconformidade entre os documentos apresentados nos serviços da CM... e a realidade.
38- Sendo indubitável que resulta, ainda, de forma clara, dos citados elementos probatórios, que a conduta do arguido não preencheu o tipo objetivo, nem o tipo subjetivo do crime de falsificação de documento p. p. pelo artigo 256º, n.º 1, als. a), d) e e), do Código Penal.
39- Devendo, ainda, acrescentar-se, para além do já invocado, nesta matéria, que o tipo objetivo desta norma exige a presença de documento que contenha uma declaração idónea a provar um facto, mas não qualquer facto, pelo que o(s) aludidos “Termo(s) de Responsabilidade do Autor do Projeto de Arquitetura" e "Termo de Responsabilidade do Coordenador do Projeto", não encaixam na noção de documento para efeitos da alínea a), do artigo 255º do Código Penal.
40- E sendo os aludidos Termos de Responsabilidade documentos apenas para efeitos meramente civis, já não o são para efeitos jurídico-penais, pois que as declarações que incorporam não servem de meio de prova no tráfico jurídico probatório e, por isso, não têm sequer a virtualidade de lesar o bem jurídico protegido pela norma, ou seja, a segurança e a credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental.
41- Na medida em que as declarações que contêm os citados Termos de Responsabilidade não conferem, nem retiram, quaisquer direitos, não criam, não modificam, nem extinguem uma relação jurídica – (Cfr. neste sentido; Prof. Dr.ª Helena Moniz, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II, pág. 683, seguindo o rumo indicado por Figueiredo Dias, in “Actas”, 1993, pág. 298: “a falsidade em documentos é punida quando se tratar de uma declaração de facto falso, mas não todo e qualquer facto falso, apenas aquele que for juridicamente relevante, isto é, aquele que é apto a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica”.
42- Pelo que, não havendo documento, porquanto o termo de responsabilidade certamente não encaixa na definição de documento para efeitos jurídico-penais, não há crime de falsificação de documento – (cfr. neste sentido, a Ilustre Conselheira, Dr.ª Helena Moniz, na sua obra “O Crime de Falsificação de Documentos”, a pág. 179).
43- Mais se devendo referir que o tipo legal de crime de falsificação exige, no que respeita ao tipo subjetivo, para além do Dolo Genérico – isto é, conhecimento e vontade de praticar um facto com consciência da sua censurabilidade -, o Dolo Específico, in casu a intenção de causar prejuízo ou de obter benefício ilegítimo, o que claramente não se extrai da prova coligida no decurso dos autos.
44- Exigindo o dolo específico que, no momento da prática do crime de falsificação, o arguido deverá ter conhecimento de que está a falsificar um documento ou que está a usar um documento falso, e apesar disto, quer falsificá-lo ou utilizá-lo com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outrem benefício ilegítimo, conclusão que não é possível extrair dos elementos probatórios coligidos no decurso do inquérito.
45- Ademais, como se invocou supra, o arguido estava plenamente convencido da veracidade dos documentos em que se baseou para lavrar os aludidos termos de responsabilidade e demais documentos, os quais lhe foram entregues pelo coarguido DD, pelo que é igualmente forçoso concluir que não está preenchido o elemento subjetivo específico de tal tipo legal de crime.
46- Pelo exposto, não se pode considerar preenchidos os elementos do tipo legal objetivo e subjetivo do crime de falsificação de documento, pelo que e, consequentemente, deve o douto despacho de não pronúncia, ora recorrido, ser mantido na íntegra, como é de justiça.

▪ Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral da República deduziu parecer em que acompanha o alegado pelo Ministério Público no recurso, promovendo a sua procedência (referência ...58).
Cumprido o disposto no art. 417º, nº2 do CPP, foi apresentada resposta ao sobredito parecer pelo arguido/recorrido II em que dá por reproduzidos os termos alegados nas contra-alegações oportunamente apresentadas (referência ...05).
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
*

II – ÂMBITO OBJETIVO DOS RECURSOS (QUESTÕES A DECIDIR):

É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, C.P.P.)[1].

Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa dilucidar são as seguintes [por precedência lógica]:

- Nulidade do despacho recorrido por omissão de pronúncia relativamente ao crime de abuso de poder, p. e p. pelo art. 26º, nº1, da Lei nº 34/87, de 16.07, por referência ao art. 1º, nº1, da mesma Lei, imputado aos arguidos AA, CC, DD, FF, GG e II, em concurso aparente com os respetivos crimes de falsificação ou contrafação de documento agravados;
- Agravamento do crime de falsificação ou contrafação de documento imputado, em coautoria, ao arguido AA por força da natureza autêntica do documento em causa e consequente inexistência de prescrição do respetivo procedimento criminal;
- Da reclamada existência de indícios suficientes da prática pelos arguidos dos factos descritos na acusação pública e dos crimes que aí lhes foram imputados (falsificação ou contrafação de documento agravados e de violação de regras urbanísticas).
*

III – APRECIAÇÃO: 
           
III.1 - Da alegada nulidade do despacho recorrido por omissão de pronúncia:

Neste conspecto, invoca o recorrente Ministério Público [cf. conclusão 6ª] que os arguidos AA e CC; DD e CC; FF e GG; FF e II foram acusados da prática de crimes de falsificação ou contrafacção de documento agravado, em concurso aparente com crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 26.º, da Lei 34/87, de 16/07 por referência ao artigo 3.º, nº1, al.1) e quanto a este crime a decisão instrutória não refere nem analisa este ilícito.
Deste modo, no entendimento do recorrente, o despacho de não pronuncia padece, neste segmento, de omissão de pronúncia, que configura a nulidade prevista no artigo 379.º, nº1, al. c) do Código de Processo Penal, aplicável por força do disposto no artigo 97.º, nº5 do Código de Processo Penal.
           
Apreciando.
           
Compulsada a douta acusação pública deduzida nos autos, constata-se que nessa peça processual são imputados aos arguidos, entre outros, os seguintes ilícitos criminais [cf. referência ...21]:
           
A) Da situação A
1- Incorreram os arguidos AA e CC, em co-autoria, e na forma consumada, na prática de um crime de falsificação ou contrafacção de documento agravado, p. e p. pelo art.º 256.º, n.ºs 1, als. a), d) e e), e 3, do Código Penal, doravante CP (em concurso aparente com um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 26.º, da L. 34/87, de 16/7, por referência aos art.º 3.º, n.º 1, al. i), daquela Lei, e 28.º, do CP),
(…)

B) Das situações C, D, E e F
(…)
3- Incorreram os arguidos DD e CC, em co-autoria, e na forma consumada, na prática de quatro crimes de falsificação ou contrafacção de documento agravado, p. e p. pelo art.º 256.º, n.ºs 1, als. a), d) e e), e 3, do CP (em concurso aparente com um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 26.º, da L. 34/87, de 16/7, por referência aos art.º 3.º, n.º 1, al. i), daquela Lei, e 28.º, do CP),

C) Da situação 2
(…)
2- Incorreram os arguidos FF e GG, em co-autoria, e na forma consumada, na prática de um crime de falsificação ou contrafacção de documento agravado, p. e p. pelo art.º 256.º, n.ºs 1, als. a), d) e e), e 3, do CP (em concurso aparente com um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 26.º, da L. 34/87, de 16/7, por referência aos art.º 3.º, n.º 1, al. i), daquela Lei, e 28.º, do CP),
(…)

D) Da situação 4
2Incorreram os arguidos II e FF na prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de violação de regras urbanísticas por funcionário, p. e p. pelo artigo 382.º-A/1 e 2, do CP, por referência aos artigos 28.º e 386.º/1, do CP (em concurso aparente com um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º, do CP)
(…)”

Por seu turno, na douta decisão recorrida foi decidido, na parte ora relevante:

4.1. Prescrição do procedimento criminal.
Declaro prescrito o procedimento criminal:
- Relativamente ao arguido AA - situação A – quanto ao crime de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelo artigo 256.º/1-a), d) e e), do Código Penal (com a desqualificação do crime de falsificação de documento, porquanto não está em causa documento autêntico).
(…)
4.2. De não pronúncia.
A) Da situação A
CC, pela prática de um crime de falsificação ou contrafacção de documento agravado, p. e p. pelo artigo 256.º/1-a), d) e e), e 3, do Código Penal, doravante CP (em concurso aparente com um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigoº 26.º, da Lei 34/87, de 16/7, por referência ao artigo 3.º/1-i), daquela Lei, e 28.º, do CP), como lhe imputa o MP (sendo certo que o documento não é autêntico, pelo que nunca estaria em causa a previsão do n.º 3 do artigo 256.º do CP).

B) Das situações C, D, E e F
(…)
DD e CC, pela prática de quatro crimes de falsificação ou contrafacção de documento agravado, p. e p. pelo artigo 256.º/1-a), d) e e), e 3, do CP (em concurso aparente com um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 26.º, da L. 34/87, de 16/7, por referência aos artigos 3.º/1-i), daquela Lei, e 28.º, do CP),

C) Da situação 2
(…)
FF e GG, pela prática de um crime de falsificação ou contrafacção de documento agravado, p. e p. pelo artigo 256.º/1-a), d) e e), e 3, do CP (em concurso aparente com um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 26.º, da L. 34/87, de 16/7, por referência ao artigo 3.º/1-i), daquela Lei, e 28.º, do CP),
(…)

D) Da situação 4
II e FF pela prática de um crime de violação de regras urbanísticas por funcionário, p. e p. pelo artigo 382.º-A/1 e 2, do CP, por referência aos artigos 28.º e 386.º/1, do CP (em concurso aparente com um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º, do CP)
(…)”

No que concerne à factualidade da Situação A (artigos 13ª a 25ª da acusação) e à declarada prescrição do procedimento criminal instaurado contra o arguido AA e não pronúncia do coarguido CC, por falta de indícios suficientes da prática do respetivo crime, expende-se no despacho recorrido (ponto 3.4.1):
           
«Estão os referidos arguidos [AA e CC da prática de um crime de falsificação de documento agravado, em concurso aparente com um crime de abuso de poder, sempre com utilização do artigo 28.º do CP, no essencial por em 08/01/2015 o arguido CC (presidente de junta de Rio ...) ter emitido uma declaração onde, no essencial, fez constar, referindo-se à construção referida na acusação, que o prédio era “…composto por anexos para armazenamento de lenhas, tendo no ano de 2000 a estrutura sido melhorada. Mais se declara que a construção é anterior ao ano de 1979, altura da entrada em vigor do RGEU”.
A primeira evidência interpretativa a que se chega é a de que o arguido CC, na declaração em causa, está a referir-se aos anexos para armazenamento de lenhas como sendo de construção anterior ao ano de 1979. Pois afirma que foram melhorados no ano de 2000 (aliás se lermos a decisão administrativa de fls. 10/12 do Anexo I essa realidade é clara).
Acontece que o arguido AA veio juntar aos autos (fls. 1652 a 1670) documentos que permitem afirmar que no ano de 1964 foi autorizada a construção de um barraco em madeira com 4mx3mx6m de altura, destinado a abrigo do pessoal, e que no ano seguinte (1965) foi legalizada a manutenção de uma construção de madeira e esteio de cimento, coberto de telha, destinado a arrecadação de madeiras da fábrica de serração, tanto assim que no ano de 2006 requereu licenciamento para construção de vedação e estabelecimento de um acesso carral a um edifício destinado a garagem (armazém). Ora, o que consta da acusação é que o arguido entre os anos de 2000 e 2004 construiu sem licença um pavilhão composto por vigas metálicas, chapa metálica, blocos de cimento, com cerca de 300m2. E é com referência a esta construção que o MP entende que a referida declaração é falsa, porquanto aquela não é anterior à entrada em vigor do RGEU.
As testemunhas identificadas a fls. 230, 231 e 232 dizem que sempre se lembram de terem existido pequenos barracos onde colocavam lenhas e madeiras que vinha da serração na altura pertencente ao mesmo dono. E vista a declaração (fls. 216 – emitida em 08/01/2015) não se vê como se possa afirmar a falsidade da mesma. Pois o que dela consta é verdadeiro, a saber: o prédio é composto por anexos, como se viu, e no ano de 2000 a estrutura foi melhorada (pese embora o MP diga que a construção do pavilhão de 300m2 ocorre entre os anos de 2000 e 2004 e que é nova). E também como se viu em 1964 e em 1965 ocorreram duas construções – um barraco e uma arrecadação.
Feito este percurso, tem de se afirmar que o afirmado pela IGAMAOT no parecer parcelar de fls. 26 e ss, I vol, dos autos, concretamente nos pontos 3 e 8, é completamente especulativo e ademais coloca a nu a falibilidade da afirmada e solicitada “avaliação fotointerpretativa à Direcção-Geral do Território” na qual esta “não identificou nas coberturas aéreas respeitantes aos anos de 1965 a 1983 quaisquer construções no polígono de implantação alusivo ao local das alegadas construções primitivas”. Pois decorre dos elementos documentais juntos pelo referido arguido que os ditos “pequenos barracos” já existiam antes de 1979.
Ora, quando na declaração de fls. 216 o arguido diz que a construção é anterior a 1979, está a referir-se à construção anterior à que foi melhorada no ano de 2000, ou seja, está a referir-se à existência/construção do barraco e da arrecadação. Não é assim claramente falsa a declaração, logo o seu uso não é típico (não havendo igualmente abuso de poder). [negrito nosso]
Em adicional importa ainda dizer (tal como se dirá em outra situação infra) que estamos em presença de uma mera declaração (o que é diferente de certidão). Na verdade, uma certidão é emitida pela junta de freguesia, no âmbito das suas competências, cabendo apenas ao presidente da junta assinar, em nome da junta de freguesia, a mesma (artigo 18.º/1-l) da Lei 75/2013, de 12/09).
Só assim terá valor de documento autêntico (artigo 363.º/2 do Código Civil).
No caso concreto, o arguido emitiu apenas uma declaração (fls. 216), é certo que enquanto presidente da junta e com utilização do selo branco, mas o certo é que o mesmo, enquanto membro, não se confunde com o órgão, a junta de freguesia. Como tal, não tendo competência de emissão, não está – nem pode estar – em causa documento autêntico.
Feito este percurso importa afirmar que os factos constantes da acusação, na parte em que se reportam à afirmada falsidade sob os n.os 18.º, 19.º, 20.º, 21.º, 22.º, 23.º, 24.º e 25.º, não se mostram suficientemente indiciados (por isso, por comodidade de exposição, serão em bloco assim considerados).
Ademais, como se disse, o documento “declaração” não é autentico. E se o não é também não está em causa a previsão do n.º 3 do artigo 256.º do CP.
Como tal, nos termos do n.º 1 do referido artigo 256.º, a pena de prisão é até três anos. O que importa, nos termos do artigo 118.º/1-c) do CP, que o prazo de prescrição seja de 5 anos. Como o uso, nos termos afirmados na acusação (artigo 22.º da mesma) foi em 02/02/2015, tem de concluir-se que o referido prazo de 5 anos terminou em 02/02/2020.
O arguido AA foi constituído como tal apenas em 19/03/2021 (fls. 1247) e a acusação foi apenas proferida em 09/04/2021.
Consequentemente, quanto a ele (AA) sempre ocorre a prescrição do procedimento criminal.”

Por outro lado, no que tange às situações C, D, E e F e 2 (artigos. 26º a 53º e 54º a 96º da acusação), relativamente à não pronúncia de arguidos que se encontravam acusados da prática de crimes de falsificação ou contrafacção de documento agravado, p. e p. pelo artigo 256.º/1-a), d) e e), e 3, do Código Penal, em concurso aparente com um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 26.º, da Lei 34/87, de 16/7, por referência ao artigo 3.º/1-i), daquela Lei, e 28.º, do CP, por alegada falta de indícios suficientes do seu cometimento, as respetivas decisões mostram-se fundamentadas no despacho recorrido pela seguinte forma (pontos 3.4.2 e 3.4.3):
«- situações C, D, E e F (artigos 26 a 53 da acusação) – diz respeito aos arguidos EE, DD e CC.
Estão imputados pelo MP crimes de falsificação de documento.
Ao arguido DD a prática de 12 crimes; ao arguido EE 4 crimes e ao arguido CC 4 crimes. Isto com o entendimento, grosso modo, de que por serem 4 as situações existem tantos crimes quanto os documentos afirmados falsos fabricados/entregues nos diferentes momentos e perante as diferentes entidades.
Apenas o arguido EE (arquitecto) requereu a abertura da instrução (fls. 1793 e ss). E quanto a ele estão em causa 4 crimes de falsificação de documentos, com referência a cada situação, objectivamente os factos pertinentes da acusação são:
39. Assim, e depois de elaborados os respectivos projectos, que ambos conheciam, e não obstante conhecerem ambos também as condicionantes de edificação vigentes para aquele local, o arguido DD, no dia 6/9/2013, dá entrada ... de quatro pedidos de licenciamento de obras particulares, que passaram a ali correr termos, respectivamente e por referência aos prédios identificados a 32.º e 37, com as designações:
-“Processo de Licenciamento de Obras Particulares n.º 36/2013”, -“Processo de Licenciamento de Obras Particulares n.º 37/2013”, -“Processo de Licenciamento de Obras Particulares n.º 38/2013”, -“Processo de Licenciamento de Obras Particulares n.º 39/2013”,
Indicando, em todos eles, como tipo de operação a realizar “reconstrução de um edifício de habitação destinada a uma unidade de alojamento local”, juntando, em cada um deles, a respectiva certidão predial com as descrições supra referidas.
40. E instruiu cada um daqueles requerimentos com os seguintes documentos que ambos os arguidos conheciam, e como ambos haviam acordado e reunido:
a) levantamentos fotográficos do local, com ilustração da alegada edificação destinada a habitação que ali existia, mas que nunca ali existiu, como ambos bem sabiam;
b) plantas de localização, de ordenamento-PDM, de implantação, de apresentação, do piso, dos alçados, com sinalização do local a construir e da edificação que ali alegadamente existia, mas que nunca ali existiu como ambos bem sabiam;
c) termos de responsabilidade do autor do projecto de arquitectura, elaborados pelo próprio arguido EE e por si assinados a 4 e 5/9/2013, atestando, além do mais, o seguinte:
«EE, Arquitecto (…), declara, para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-lei n.º 555/99 (…) que o projecto de arquitectura, de que é autor, relativo à obra de reconstrução de um edifício de habitação destinada a uma unidade de alojamento local, localizado no Lugar ..., Freguesia ... (…) cujo licenciamento foi requerido pelo Sr. DD (…) observa as normas legais e regulamentares aplicáveis, designadamente as normas técnicas gerais e específicas de construção, os instrumentos de gestão territorial, nomeadamente o (…) POA... (…), a portaria 232/2008 de 11 de Março e o DL n.º 163/2008 de 8 de Agosto». (negritos nossos)
d) termos de responsabilidade do coordenador do projecto elaborado pelo próprio arguido EE e por si assinados a 4 e 5/9/2013, atestando, além do mais, o seguinte:
« EE, Arquitecto (…), declara, para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-lei n.º 555/99 (…) que o projecto de arquitectura de que é autor, relativo à obra de reconstrução de um edifício de habitação destinada a uma unidade de alojamento local, localizado no Lugar ..., Freguesia ... (…) cujo licenciamento foi requerido pelo Sr. DD (…) observa as normas legais e regulamentares aplicáveis, designadamente as normas técnicas gerais e específicas de construção e os instrumentos de gestão territorial». (negritos nossos)
e) das memória descritiva e justificativas, elaboradas pelo próprio arguido EE e por si assinadas a 4 e 5/9/2013, juntas a fls. 9 a 15 daqueles quatro processos de licenciamento e que aqui se dão por reproduzidas, dando conta, além do mais do seguinte:
«a presente memória refere-se à descrição dos trabalhos necessários à reconstrução de um edifício habitacional para instalação de uma unidade de alojamento local (…) trata-se dum prédio (…) inserido de acordo com regulamento do POA... em Espaços Silvo-Pastoris – em zonas de protecção/conservação ecológica da paisagem (…) o edifício existente apresenta-se numa fase de degradação bastante avançada (…) dado tratar-se de um edifício existente, pretende com esta intervenção reconstruir o edifício de forma a prever o previsto no artigo 69.º do POA...».
(…)
41. Sucede que, ao contrário do ali alegado naqueles termos de responsabilidade, memória descritiva, levantamentos topográficos, plantas e levantamentos fotográficos, nunca ali existiu qualquer edificação, muito menos destinada a habitação, e, por isso, as obras efectivamente a realizar, ao contrário do também ali alegado, não se tratavam de qualquer reconstrução mas de construção, de raiz, de um novo edifício, e, como tal, não cumpriam os regulamentos aplicáveis, nomeadamente o POA... e RJREN, nas normas referidas a 27.º a 29.º, que proíbem a construção de novas edificações naquele local para aqueles fins, como ambos os arguidos bem sabiam.
No r.a.i., diz o arguido EE que ignorava a actuação do arguido DD, desconhecendo a desconformidade com a realidade dos documentos que este lhe apresentou (o que afastaria desde logo qualquer co-autoria), limitando-se a analisar os mesmos e, em conformidade, elaborou os termos de responsabilidade (e memórias de adequabilidade, descritivas e justificativas), atestando que as obras cumpriam os requisitos legais para serem aprovadas, pelo que os documentos que lavrou, emitiu e assinou são intrinsecamente verdadeiros, pois correspondem e corporizam efectivamente a verdade das características dos terrenos e edifícios em causa em face dos documentos que lhe foram facultados.
Foi esta a versão que grosso modo em sede de interrogatório na instrução reafirmou.
Como supra se disse o arguido EE não está acusado pelo MP de um crime de violação de regras urbanísticas – tanto assim que os quatro projectos urbanísticos (36/2013, 37/2016, 38/2013 e 39/2013) apresentados pelo co-arguido DD na Câmara Municipal ... foram indeferidos que acatou não construindo. Aliás, nenhum dos arguidos abrangidos nas referidas situações o está.
Vejamos então os elementos de prova.
O que dizem os intervenientes nas situações em causa.
Estão juntos aos autos quatro processos destinados à pretensão de licenciamento (processos 36/2013, 37/2013, 38/2013 e 39/2013), cada um em respectiva pasta.
O requerente das 4 operações urbanísticas (o co-arguido DD) em sede de interrogatório na PJ realizado em 17/07/2018 (fls. 316 e ss) diz ter sido ele, por referência ao ano de 2013, que tratou de todas as questões relacionadas com a apresentação à Câmara Municipal ... de quatro pedidos de licenciamento para a construção de edificações no Lugar ..., em Rio ....
Diz não só que as edificações existiam como existem (pré-existências). Mas que estão todas em ruínas, sendo actualmente visíveis, o que não se verificava até há pouco tempo, uma vez que se encontravam cobertas por vegetação.
O outro co-arguido CC – presidente da junta de Rio ... que em 22/09/2013 atestou as pré-existências – não prestou declarações (fls. 278).
O arguido requerente (EE) afirmou em inquérito a fls. 296/297 e afirmou em sede de interrogatório na instrução que apenas produziu a documentação e declarou o que declarou em face da documentação que lhe foi fornecida pelo interessado nos projectos urbanísticos (o co-arguido DD), já que em 2013 face à vegetação existente não conseguiu ver no local as afirmadas pré-existências, apesar de ter tentado.
Em sede de interrogatório na fase da instrução afirmou que posteriormente, no caso após a apresentação de pedido de licenciamento na Câmara e na sequência de convocação por esta para uma reunião, acabou por ir ao local e viu as edificações, as quais não correspondiam às fotografias. Ou seja, as edificações existiam (apesar de desconformes com as fotografias juntas com a formulação da pretensão de licenciamento).
Uma primeira nota que ressalta dos autos é que a investigação não cuidou de, em face das declarações do arguido DD, ir ela própria ao local (em 2018) confirmar ou não a existência de edificações em ruínas por referência (ou não) às fotografias incluídas nos processos de licenciamento.
Era o mínimo que se impunha com exigência de aporte dessa informação aos autos (designadamente através de registo fotográfico).
Lendo-se o relatório final da PJ (o OPC que o MP escolheu) verifica-se isso claramente (fls. 857 e ss – 3.º vol.).
Lembre-se que estamos apenas no âmbito de crimes de falsificação – não de crimes violação de regras urbanísticas onde uma eventual construção clandestina em cima de uma afirmada pré-existência poderia ocultar esta (se efectivamente existisse).
No caso não é nada disso.
O que se afirmou existir no tempo da investigação seria facilmente verificável.
Não se percebe assim o recurso a “avaliação fotointerpretativa” como mais uma vez se afirma no ponto 8 do relatório da IGAMAOT (fls. 31 dos autos) e a conclusão do ponto 9.
Na verdade, se estamos, como estamos, apenas no âmbito da falsificação por via da falsa afirmação de uma pré-existência, bastava ir ao local em 2018 e documentar fotograficamente a inexistência da pré-existência afirmada (estendendo assim a responsabilidade aos demais arguidos - fabricação/uso) ou então, a ser relevante, documentar fotograficamente a pré-existência afirmada pelo arguido DD de forma a comprovar a desconformidade entre o por ele afirmado e o real.
Está aqui bem vincado o erro do transporte acrítico do afirmado pela IGAMAOT para o processo penal.
Mas dito isto, vista a documentação (os 4 processos de licenciamento) temos:
Quatro fotografias de quatro ruínas (fls. 17, 20, 21 e 17 que fazem parte de cada um dos respectivos processos de pretensão de licenciamento).
Lido cada processo de licenciamento deles constam mimetizados os seguintes dizeres “…pese embora o documento de posse mencione o prédio urbano objecto da intervenção, tendo, ademais, e após deslocação destes serviços ao local, sido furtada a visualização de qualquer construção, nem tão pouco vestígios de ali ter havido qualquer edificação”. Acontece, como é bom de ver, que a afirmação “após a deslocação destes serviços ao local” é absolutamente inconsequente à pretensão do MP no quadro da sustentação indiciária da ausência da pré-existência. Se esses dizeres são suficientes à sustentação do indeferimento da pretensão de licenciamento por parte da CM..., não cabe a este Tribunal tecer qualquer aprofundamento, mas categoricamente, por si, nenhuma relevância probatória têm na sustentação indiciária da pertinente factualidade acusatória, tanto mais que, como se disse, a investigação não cuidou de, em face da afirmação do arguido DD, ir ao terreno em 2018 e infirmar, documentando, o que este disse também em 2018 “Estas edificações estão todas em ruína, sendo actualmente visíveis, o que não se verificava até há pouco tempo, uma vez que se encontravam cobertas por vegetação”.
Mais uma vez relembre-se que estamos apenas no âmbito de falsificações.
Ora, se os serviços camarários referem em Setembro de 2013 que tendo “após deslocação destes serviços ao local, sido furtada a visualização de qualquer construção, nem tão pouco vestígios de ali ter havido qualquer edificação” e tendo o arguido referido em 2018 (em 17/07/2018), ou seja quase cinco anos depois, que “Estas edificações estão todas em ruína, sendo actualmente visíveis, o que não se verificava até há pouco tempo, uma vez que se encontravam cobertas por vegetação”, ademais quando o arguido EE (requerente) refere em Julho de 2018 (fls. 296), reportado a 2013, que “chegou a visitar as proximidades dos locais onde eram pretendidas as construções, porém não se tendo conseguido aproximar das localizações concretas uma vez que a vegetação impedia os acessos. Da visita que fez afirma não ter conseguido ver as preexistências alegadas no processo, uma vez que a vegetação tem uma densidade e uma altura que impossibilitam, além do acesso, a observação das existências nesse terreno”, a conclusão lógica que se impõe é que a investigação não foi claramente proactiva, deixando assim claramente intocados relevantes contra-indícios quanto à afirmação acusatória da inexistência de construções, mesmo em face das declarações do arguido EE em sede de instrução, ao dizer (mesmo que sem grande convicção) que posteriormente verificou a desconformidade do edificado. Ademais quando, em 22/09/2013, o co-arguido CC (presidente da junta de freguesia ...) em cada um dos quatro documentos denominados “Declaração” atesta que o arguido “DD …é proprietário de um prédio urbano …descrito na Conservatória do registo Predial ......, cuja construção é anterior ao ano de 1979…”. Sendo que desde 29/07/2013 se encontrava inscrito na Conservatória do Registo Predial (fls. 1430 a 1454) que cada um dos 4 prédios, descritos na matriz como urbanos, era composto de casa de habitação com logradouro.
Seguramente que, ademais em face das acima referidas declarações do arguido DD, em 2018 o mecanismo do artigo 148.º do CPP (reconhecimento de objectos) era a diligência investigatória que imediata e claramente se impunha ter sido levada a efeito com vista a sustentar a falsidade, reportada a 2013, da afirmação da pré-existência, o que não foi feito.
Assim, como já se disse, a afirmada avaliação fotointerpretativa solicitada à DGT, da qual resulta não identificada nas coberturas aéreas dos anos 1965, 1974, 1983, 1994, 1995, 2006, 2007, 2010 e 2012 quaisquer construções nos polígonos de implantação onde constariam as alegadas pré-existências, representadas nas plantas topográficas que instruíram em 2013 os projectos de arquitectura, é absolutamente insuficiente para, conjuntamente com os dizeres “e após deslocação destes serviços ao local, sido furtada a visualização de qualquer construção, nem tão pouco vestígios de ali ter havido qualquer edificação”, afirmar supremacia indiciária relativamente aos contra-indícios já afirmados.
E lembre-se que o Município ... refere (reportado a uma outra situação destes autos – cfr. fls. 325 pasta I do processo de licenciamento ...16) que os serviços quando se deslocam ao local para verificar factos/vestígios devem “reduzir essa constatação a auto e, preferencialmente, com recurso a registo fotográfico e georreferenciação em cartografia”.
Ademais não se colhe claramente nos autos onde esteja a afirmada avaliação fotointerpretativa solicitada à DGT, com referência às coberturas aéreas dos anos 1965, 1974, 1983, 1994, 1995, 2006, 2007, 2010 e 2012. Mas mesmo que essa avaliação fotointerpretativa não seja mais do que a interpretação (também por parte de quem ora olha) dos denominados polígonos que resultam da cartografia junta aos processos de licenciamento, onde cada polígono representará uma edificação, o facto de, por referência à localização de edificação de cada uma das quatro habitações, não se mostrar referenciado qualquer polígono, tal não significa, sem mais, a não existência do edificado afirmado pelo arguido DD.
Ou seja, para concluir, os factos afirmados na acusação – leia-se a não existência das quatro edificações/ruínas – assenta apenas:
- na afirmada avaliação fotointerpretativa.
- no facto dos serviços camarários se terem deslocado a cada uma dos locais e não terem visto qualquer ruína ou sequer dela vestígios.
Perante esta forma algo difusa de prova, os contra-indícios são bastantes para fazer claudicar a narrativa acusatória em ternos de suficiente indiciação.
- arguido DD afirma as pré-existências.
- existem quatro declarações do presidente da junta de freguesia ... a afirmar que “DD …é proprietário de um prédio urbano …descrito na Conservatória do registo Predial ......, cuja construção é anterior ao ano de 1979…”.
- existe descrição matricial e inscrição no registo predial referente a cada prédio como urbano.
E não se diga que tais documentos são também eles falsos – tanto que os arguidos estão acusados dos crimes de falsificação desses documentos. É que o alicerce da construção fáctica parte da não existência das pré-existências e quanto a estas não decorrem dos autos que não existissem.
Os fundamentos tidos por insuficientes, no âmbito do processo de licenciamento afirmado, para comprovar a pré-existência é uma realidade aí resolvida, mas que não se apresenta como dado adquirido no âmbito do processo penal no sentido da afirmação da falsidade – seja fabricação, fazer constar ou uso – dos documentos aí apresentados.
E não importa, no âmbito do processo penal, tecer considerações teóricas sobre a protecção jurídica ou não da ruína (cujo conceito aliás não unívoco). Sem prejuízo do que supra se disse, até se pode admitir ausência de protecção jurídica de uma ruína ao abrigo do disposto no artigo 60.º do RJUE, pois nele não está apenas contemplada a protecção passiva, mas também a activa. Se efectivamente se contemplasse apenas a protecção passiva do edificado existente, a protecção da confiança dos particulares através do principio tempus regit actum levaria inevitavelmente à contemplação da ruína, na medida em que estaria vedada ao particular a possibilidade de efectuar obras de reparação, restauração e reconstrução do edificado (Fernando Alves Correia, Manuel de Direito do Urbanismo, Vol. I, p. 677-679). Como não é o caso a protecção da ruína tende a desprotecção, designadamente nas situações de aproveitamento de ruínas desprovidas de condições físicas que permitam reconstruir as características essências da edificação ao nível das áreas, de implantação e de reconstrução, volumetria, cércea e altura. Mas esta é, como se disse, uma questão relevante de apreciação no procedimento de licenciamento, mas já não em sede de falsificação, considerando a construção acusatória de que foram sinalizadas construções que nunca existiram.
Sendo que relativamente ao arguido requerente (EE), enquanto arquitecto, autor e coordenador dos projectos (artigos 10.º, 98.º/1-e) e 100.º/2 do RJUE), não resulta evidenciada falsidade de declaração nos termos de responsabilidade (referidos no ponto 40.º, alíneas c) e d) da acusação), considerando que nas imputadas falsas declarações (falsidade intelectual/ideológica) está pressuposta a ausência de edificado a reconstruir, o que, como se viu, não resulta suficientemente indiciado, mesmo que o referido arguido quando emitiu os referidos termos de responsabilidade não tivesse um conhecimento directo da existência das pré-existências, porquanto só mais tarde é que verificou a desconformidade entre o que foi por si declarado e a realidade (mas entre o pré-edificado e as fotografias), não havendo assim também declarações desconforme com as normas legais e regulamentares aplicáveis, mesmo com referência às normas do ordenamento do território constantes do plano municipal (na previsão do n.º 2 do artigo 10.º do RJUE) .
Do que se conclui que, em termos de afirmação de suficiente indiciação, não pode manter-se a factualidade pertinente constante na acusação que também aqui, por comodidade de exposição, é em bloco assim considerada, concretamente a constante dos n.os 30, 31, 33, 34, 35, 36, 38, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51 e 52, na parte que se refere às “falsas declarações”, “falsificações” e “fabricação”, com referência às pré-existências, o que aproveita não apenas ao arguido requerente (EE), mas também aos arguidos DD e CC.
Quanto ao arguido LL, em adicional (embora já sem relevância) também aqui estamos em presença de uma mera declaração (o que é diferente de certidão). Na verdade, uma certidão é emitida pela junta de freguesia, no âmbito das suas competências, cabendo apenas ao presidente da junta assinar, em nome da junta de freguesia, a mesma (artigo 18.º/1-l) da Lei 75/2013, de 12/09).
Só assim terá valor de documento autêntico (artigo 363.º/2 do Código Civil).
No caso concreto, foi o arguido LL que emitiu as 4 declarações (todas em 22/09/2013 – cfr. 50, 51, 52 e 53 do Anexo I), atestando por sua honra. E mesmo que o tenha feito enquanto presidente da junta e com utilização do selo branco, o certo é que o mesmo, enquanto membro, não se confunde com o órgão junta de freguesia. Como tal, não tendo competência de emissão, não está em causa documento autêntico.
[…]
Quanto à situação 2.
Estão acusados os arguidos FF e GG (falsificação de documentos), FF e HH (violação de regras urbanísticas), FF e HH (falsificação de documentos)
Grosso modo está afirmado na acusação que no prédio denominado “...” (inscrito na matriz sob o artigo ...04 e descrito na CRPredial sob o artigo 1497/...21) existia apenas uma construção com cerca de 30m2, com apenas um piso, destinada a corte/abrigo de animais, mas que o arguido KK engendrou um estratagema para fazer crer que tal construção era destinada a habitação, com dois pisos e três divisões, e tinha uma área de implantação de 102m2, o que fez primeiro junto do serviço de finanças (SF), depois junto da Conservatória do Registo Predial (CRPredial), do presidente da Junta (co-arguido GG
) e da CM... (fls. 51 da Pasta I), onde fez entrar um requerimento de substituição do telhado, sendo que o que pretendia era posteriormente construir uma habitação unifamiliar em área proibida, seja em REN e em POA....
Dito isto, vejamos.
O correspondente processo de licenciamento n.º ...16 encontra-se nas pastas I, II e III, o qual se iniciou em 12/02/2016 (data do carimbo de entrada).
E reporta-se ao prédio urbano com a matriz n.º ...62 (fls. 9 e 10 da pasta I), assumindo o arguido HH a responsabilidade de autor do projecto e de coordenador, por termos datados de 11/02/2016 (fls. 13 e 14).
E do edificado (a reconstruir) constam duas fotografias a fls. 33.
Com o devido respeito, não se apreende nos autos fonte probatória bastante à sustentação indiciária da factualidade constante da acusação, não se vislumbrando que ao caso se mostre decisivo à sustentação acusatória a circunstância de alteração de fim da pré-existência, ou seja a afirmação de que mesma era de habitação quando claramente não era. Lembre-se, como infra se evidenciará, que edificação, nos termos do artigo 2.º/-a) do RJUE é a actividade de construção, reconstrução, ampliação, alteração ou conservação de um imóvel destinado a utilização humana, sabendo-se que a utilização humana não é apenas a que se materializa na habitação.
Sem prejuízo do que se disse quanto ao aproveitamento da intervenção da IGAMAO, do respectivo Apenso (Apenso IGAMOT) consta que o arguido FF estava a construir em 04/02/2016 uma habitação sem licença de construção (neste sentido clandestina – lembre-se que apenas em 12/02/2016 deu entrada o pedido de licenciamento – já que o conhecimento que deu à CM... foi apenas para substituição do telhado – como tal sem necessidade de qualquer procedimento de controlo prévio) e as imagens do edificado aí constantes são mais ou menos categóricas quanto à construção de raiz, havendo indícios de que a velha (pré-existência – já lá vamos) foi claramente destruída, sendo que esta questão em principio nem se apresenta propriamente relevante (cfr. fls. 760), desde que não se coloque em causa a existência do pré-edificado apto a ser reconstruído.
Ora, quanto à pré-existência os autos documentam-na suficientemente.
Os documentos constantes dos processos de licenciamento camarário (pastas I, II e III ano 2016) infirmam a factualidade acusatória, pelo menos não sustentam o afirmado percurso dito empreendido pelo arguido FF no dito propósito ao trabalhar e consolidar uma ficção, começando pelo SF, passando pela CRPredial, pelo presidente da junta de freguesia e terminando na CM... (Câmara Municipal ...).
Foi a testemunha NN (fls. 352 da pasta I) que – por referência às fotografias do estado da obra – iniciou a construção dois anos antes (2014), dizendo que começou por retirar o telhado e que as paredes ruíram. Diz que conhecia muito bem o local e que a edificação “era uma corte de animais e servia, ainda, para recolha de alfaias agrícolas”.
Também OO (fls. 354, pasta I) afirma que que se tratava de uma construção antiga alta, porquanto tinha um piso sobrelevado para guardar feno para os animais, sendo que no depoimento de fls. 376 não apresenta conhecimento relevante de comparação da pré-existência com as plantas.
PP (fls. 356, Pasta I) referiu conhecer a edificação antiga com dois pisos, tendo a ideia que o ... era para guardar animais e o andar para outros fins, o qual a fls. 379 apresenta depoimento de conformidade da pré-existência com aspectos das plantas exibidas.
QQ (fls. 358, Pasta I) conheceu recentemente a edificação, antes da intervenção, a qual tinha dois pisos.
RR (fls. 360 e 371, pasta I) disse que o prédio foi pertença da sua família, incluído dele, tendo-o vendido ao FF (arguido) dizendo que havia uma edificação antiga, com mais de 150 anos, com dois pisos (... e andar). No ... andar guardam animais e no piso superior feno e palha. Nunca residiu ninguém no local.
SS (fls. 362, pasta I) presta idêntico depoimento ao da anterior testemunha. Cfr. ainda fls. 1156 e ss dos autos, onde o mesmo, enquanto cabeça de casal, apresenta em 09/03/2007 no serviço de finanças de ... requerimento para correção de áreas e confrontações, bem como o requerimento de fls. 1160, apresentado por TT quanto ao prédio inscrito na matriz n.º ...04, bem como o levantamento topográfico de fls. 1162 e ss e posterior inscrição na matriz urbana (fls. 1164/1170). E no documento de fls. 1158, com referência ao artigo ...04.º rústico já é referido em 2007 um edificado com área coberta de 30m2, sendo afirmado que a mesma já existia antes das avaliações gerais realizada em 1989 (fls. 1158/verso).
NN (fls. 352/353 e 365/367), QQ (fls. 368) confirmaram a conformidade da pré-existência com a planta, quanto a ambos os pisos, havendo alguma imprecisão nos depoimentos de RR (fls. 371) e SS (fls. 373) quanto ao aspecto da conformidade da pré-existência com a planta exibida.
Teve-se ainda em consideração o depoimento de UU (fls. 237/239), Chefe de Divisão da ..., o qual afirma que ao que sabe ninguém da autarquia se deslocou ao local para verificar a existência das afirmadas pré-existências. Pese embora a testemunha VV (fls. 264 e ss dos autos) referia que se lembra de existir uma construção antiga com aproximadamente 20m2 e que o arguido construiu uma com uma área de implantação a rondar os 200m2.
Bem como as declarações dos arguidos GG (fls. 248/251), KK (fls. 300/304) e HH (fls. 308/311).
E se em 05/12/2016 a Câmara Municipal ... tinha dúvidas (fls. 325 e ss – pasta I), após o termo de processo administrativo emitiu, em 05/06/2017 certidão (pasta II) dizendo “Mais se certifica, de acordo com a razão de ciência evidenciada pelos meios de prova constantes do procedimento administrativo (…) que tais plantas são conformes a implantação, formato e cércea da preexistência”.
Daí que em 19/02/2019 tenha emitido Alvará de Licença de Obras de Reconstrução sem preservação de fachadas n.º 10/2019, relativamente ao prédio descrito na CRP ... sob o n.º ...97 e inscrito na matriz urbana sob o artigo ...62.
Dizendo “As obras, aprovadas por Despacho do Sr. Vice-Presidente, de 14/02/2019, respeita o disposto no POAC - Plano Ordenamento Albufeira ... e apresentam as seguintes características:
Obras de: RECONSTRUÇÃO SEM PRESERVAÇÃO DAS FACHADAS.
Área total de construção: 160m2; volumetria do edifício: 0 m3; área de implantação: 0 m2; n.º de pisos 2, acima da cota de soleira e abaixo da mesma cota; cécea:0 metros de altura, n.º de fogos: 0”.
E em 21/08/2020 a Câmara Municipal emitiu o competente ALVARÁ DE AUTORIZAÇÃO DE UTILIZAÇÃO DE EDIFÍCIO/FRACÇÃO.
Ora, não tendo quanto a esta situação o MP acusado nenhum funcionário ou titular de cargo político, com referência à Câmara Municipal ... (artigos 382.º-A do CP e 18.º-A da Lei 34/87), não se percebe bem a construção acusatória (a não ser que se olhe para o processo administrativo como de legalização e não de licenciamento).
É certo que (também sem prejuízo do que se disse quanto à valia da intervenção desta entidade administrativa) do relatório final da IGAMAOT consta (fls. 1512/verso – Anexo II, vol. 4.º - bem como fls. 33 do I vol. dos autos, ponto 17) que “…persistindo dúvidas quanto à presença da preexistência, esta Inspeção-Geral solicitou a realização de uma avaliação fotointerpretativa à DGT, que não identificou, em nenhuma das coberturas aérea que detém, respeitantes aos anos de 1965, 1974, 1983, 1994, 2006, 2007, 2010 e 2012, quaisquer construções nos polígonos de implantação alusivo às alegas preexistências representados nas plantas topográficas que instruíram o projeto de arquitetura”, mais afirmando que “o levantamento aerofotogramétrico na posse da autarquia também não contém, na área em referência, qualquer polígono representativo daquele edifício”.
E com base nisto conclui – ponto 19 – “É assim seguro que as ruínas, ilustradas no registo fotográfico que instruiu o projeto de arquitetura visaram forjar um cenário de construção”.
Trata-se de conclusão que eventualmente pode ser válida no quadro de eventual processo administrativo de reposição da legalidade urbanística, mas não no âmbito dos presentes autos. Aliás nem sequer foram válidas no processo administrativo de licenciamento, tanto que a CM... aprovou o projecto – pese embora a posição contrária da IGAMAOT a fls. 678 a 679/verso dos autos.
O arguido FF foi ouvido (fls. 298/304) e explicou os factos em conformidade com a posição que verte no requerimento de abertura da instrução, mas também em conformidade com o que de essencial resulta do processo de licenciamento.
Em conformidade com o que supra se disse resulta dos autos que a IGAMAOT (fls. 676 a 680) se insurge contra a legalização levada a cabo pela CM..., pugnando pela intervenção do MP no sentido de suscitar a invalidade do acto administrativo. Mas tal reposição não pode ser claramente por via do presente processo crime.
Relembre-se, a legalização do processo construtivo foi realizada pela CM... (projecto de arquitectura aprovado – fls. 625/627 da Pasta II – tendo o processo de licenciamento sido aprovado em 16/01/2019 e a licença de utilização emitida em 21/08/2020 – fls. 850, fls. seguinte a fls. 919 e fls. 921, todas da pasta III), mesmo conhecendo a posição contrária da IGAMAOT. Veja-se o que diz esta entidade, na informação que faz em 16/04/2019 (fls. 678 e ss dos autos).
E, como se disse, o MP não tirou consequências criminais contra quem decidiu o licenciamento (com o entendimento a entidade administrativa – CM... – parece tratar o processo como de licenciamento, mesmo estando em causa um processo de tutela da legalidade urbanística. Pois este está previsto para as situações de legalização, nos termos do artigo 102.º-A do RJUE).
E ao que se vislumbra ainda não terá intentado (o MP junto dos TAF) a competente acção administrativa especial junto dos Tribunais Administrativos, pedindo em coerência a declaração de nulidade do despacho que deferiu o licenciamento, em face do que resulta de fls. 691 dos autos. Antes optou (o MP junto dos tribunais comuns) pela via criminal, mas claramente fragilizado nesta opção.
Tanto que resulta dos autos – e aliás a própria IGAMAOT reconhece – que a Agência Portuguesa do Ambiente (APA, IP – cfr. fls. 846 do processo 6/2006, pasta III) e a Comissão de Coordenação Desenvolvimento da Região Norte (CCDRN) emitiram parecer favorável.
A APA diz em 13/12/2016 (fls. 431 da Pasta II) que a pretensão do arguido FF merece parecer favorável, tal como havia afirmado em 18/10/2016 (fls. 297 dos autos).
E a CCDRN que em 12/09/2016 (fls. 273 e ss – Pasta I – e fls. 294 e ss dos autos) havia dado parecer desfavorável, afirma em 02/02/2018 (fls. 624 - Pasta II) que dado que a pretensão não ocupa área da REN não há lugar a pronúncia, tendo em 20/10/2020 (fls. 815/817) se pronunciado em termos substanciais de encontro à pretensão do requerente, numa clara evolução da sua posição.
Tendo ainda presente que ao nível subjectivo se exige consciência da desconformidade da conduta com as normas urbanísticas. Cfr. ainda os depoimentos dos técnicos de fls. 777/778, 779/780.
Uma nota final quanto ao arguido GG. Diz o MP que tal arguido emitiu a certidão que faz constar do artigo 68.º da acusação e com os dizeres que aí refere. Deve dizer-se que existe alguma falta de rigor por parte do MP, porquanto a certidão é emitida pela junta de freguesia ..., no âmbito das suas competências, cabendo apenas ao presidente da junta assinar, em nome da junta de freguesia, a mesma (artigo 18.º/1-l) da Lei 75/2013, de 12/09). Só assim terá valor de documento autêntico (artigo 363.º/2 do Código Civil). Ou seja, o referido arguido não emitiu a referida certidão. Quem a emitiu foi a junta de freguesia. Ademais, também por força do que se disse relativamente à pré-existência, esta factualidade está não suficientemente indiciada, também em face das suas declarações (fls. 248/251).
Do que decorre que a factualidade pertinente (quanto à situação 2), em termos de afirmação de suficiente indiciação, não pode manter-se que também aqui, por comodidade de exposição, é em bloco assim considerada, concretamente a constante dos n.os 59, 60, 61, 63, 64, 65, 66, 67, 69, 70, 71, 72, 74, 76, 78, 79, 80, 86, 87, 91, 92, 93, 94 e 96, aproveitando assim a todos os arguidos (KK, GG e HH).»

Cumpre ainda atentar na fundamentação aduzida pelo Tribunal a quo no que concerne à decisão de não pronúncia dos arguidos II e KK, acusados que estavam da prática de um crime de violação de regras urbanísticas por funcionário, p. e p. pelo artigo 382.º-A/1 e 2, do CP, por referência aos artigos 28.º e 386.º/1, do CP, em concurso aparente com um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º, do CP.

Assim, diz-se na decisão recorrida a tal propósito (ponto 3.4.3, segunda parte):
«Quanto à situação 4.
Estão acusados os arguidos FF e HH por crimes de falsificação de documento e violação de regras urbanísticas e FF e II por crime de violação de regras urbanísticas por funcionário.
Também aqui está afirmada uma falsa pré-existência (prédio sito no Lugar ..., ..., descrito na CRP sob o n.º ...23) com 110m2 de implantação, descrito na matriz sob o artigo ...75, cujo ano de inscrição foi 1995 (fls. 5 – pasta I do processo 9/2014, bem como fls. 201 dos autos)
E também aqui é afirmado, como pressuposto para a intervenção urbanística que se seguiu, um desmoronamento ocorrido no ano de 2012.
Mas no que importa a esta situação, antes de mais vejamos o processo de licenciamento (constante da referida pasta I com os dizeres: Processo 9/2014).
O pedido é instruído com duas fotografias de uma edificação visivelmente antiga (fls. 10), como sendo alegadamente a referente à descrição no registo, ou seja, como tendo uma área coberta de 102m2, encimada com os dizeres “Quinta ...”, referindo o arguido FF (fls. 303) ter sido o próprio a tirar essas fotografias.
Consta da certidão de teor da CRPredial que a anterior proprietária (sujeito passivo) era C... - Investimentos Imobiliários, Lda (fls. 39 da pasta I e fls. 844 dos autos).    A qual adquiriu o prédio a WW e a XX em 01/09/2008 (fls. 1289 e ss), resultando da caderneta predial de fls. 1291 que tal prédio estava descrito na matriz desde 1995 como “casa de habitação composta de ... amplo e de andar com 3 divisões, com logradouro” (trata-se de documento impresso em 12/01/2011). Cfr., em complemento a caderneta predial de fls. 5 da pasta I, do processo 9/2014, onde o titular é já o arguido FF.
E a fls. 1172/1173 consta que aquela C... - Investimentos Imobiliários, Lda por requerimento de 01/08/2011 inscreveu-o na matriz afirmando tratar-se de prédio com 16 anos, afecto à habitação, com dois pisos e 3 divisões.
Como é bom de ver, a referência ao prédio em causa como tendo 16 anos, reporta-se à circunstância de o referido prédio (cfr. fotos de fls. 10 da pasta I) ter sofrido intervenção urbanística exactamente no referido ano de 1995 (16 anos antes de 2011), tanto assim que o acréscimo em tijolo não deixa margem para dúvida quanto ao tempo recente da intervenção. E assim, omisso há mais de 5 anos, foi participado nas finanças em 27/03/1995 (fls. 1291). Mas também revela no mais uma outra construção, em pedra, mais antiga.
Resulta de fls. 1264 e ss que o arguido FF intentou acção contra a referida C..., com vista à execução específica, no que importa referindo o prédio urbano composto de casa de habitação, sito em Assento, freguesia ..., ..., descrito na Conservatória competente sob o número ...12 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...75. Cfr. ainda fls. 1296 a 1300 e cópia da sentença de fls. 1347/1351. Cfr. fls. 1352/1362.
O edifício não se insere na zona reservada da POAC - Plano Ordenamento Albufeira ... (fls. 761). Esta situação (4) foi autorizada pela ERRAN (fls. 778).
O local não está abrangido pela REN (fls. 784 e ss), nos dizeres da CCDRN, ao contrário do que se apreende da posição da IGAMAOT (fls. 1518/verso do relatório – anexo II, vol 4.º).
No caso, a reconstrução é viável, bem como o acréscimo até 30% de área até ao limite de 200 m2 (fls. 786).
Não carecia de parecer da APA (fls. 787).
A IGAMAOT entendeu promover junto do MP no TAF a impugnação contenciosa do acto administrativo que deferiu o pedido de licença da reconstrução, para efeitos de propositura da competente acção administrativa (fls. 787).
Desconhece-se se o MP junto do TAF o fez ou não.
O Tribunal teve ainda em consideração as declarações do arguido II (fls. 830 e ss) e a informação de fls. 837 e 839.
Ora, este conjunto probatório permite alcançar a débil sustentação probatória indiciaria dos factos imputados pelo MP na acusação.
Na verdade, resulta suficientemente claro que pelo menos desde o ano de 1995 o prédio existia como urbano, com uma área coberta de 110m2 e área descoberta de 350 m2 (fls. 1291) – o que logo descredibiliza a construção acusatória. Mas, como se disse, construção de 1995 então já apoiada numa outra mais antiga.
O facto de do livro de obra (constante do Anexo I) se iniciar em 26/10/2014 com os dizeres “preparação do terreno paras as fundações …” não contende com a pré-existência, porquanto comporta indiciariamente que esta pode ter sido totalmente demolida, seguida de imediata reconstrução.
Isto que acaba de se dizer leva a uma outra consideração, mais genérica, mas não menos importante (como aliás já temos referido para outras situações), para enfatizar que a questão de erigir (como o faz a IMAGAOT e o MP repesca) a critério fundamental de sustentação das pré-existências a análise dos polígonos de implantação, representados nas plantas topográficas que instruíram os projectos de arquitectura, apresenta por si evidente insuficiência se não ocorrer acompanhamento de outros elementos de prova que corroborem no terreno ou não esse sinal “polígono”. A tal “análise fotointerpretativa” que a IGAMAOT faz evidenciar apresenta claros resultados insatisfatórios.
Considere-se ainda que a DGTerritório (fls. 64 do anexo I) quanto à situação 4 diz “não foi possível tirar ilacções face à existência de vegetação densa”.
Consequentemente também aqui o Tribunal dá como não suficientemente indiciada a pertinente factualidade constante da acusação, o que aproveita aos três arguidos (FF, HH e II), que por comodidade de exposição é em bloco assim considerada, concretamente a constante dos n.os 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 111, 112, 114, 115, 116, 118, 119, 120, 121 e 122.»

Na decisão recorrida, mais adiante, procede-se à análise da tipicidade dos crimes de falsificação de documentos, de violação de regras urbanísticas e de violação de regras urbanísticas por funcionário, previstos nos artigos 256º do CP, 278º-A do CP e 382º-A, respetivamente, para concluir pela não pronúncia dos arguidos a quem tais ilícitos criminais são imputados no libelo acusatório, por falta de indiciação da factualidade suscetível de integrar os seus elementos objetivos e objetivos.
           
Destarte, refere-se, entre o mais, na motivação da decisão:
 
«3.5. Os crimes de falsificação de documentos e de violação de regras urbanísticas. Dispõe o artigo 256.º do Código Penal que:
1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:
a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;
b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;
c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;
d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;
e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou
f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito; é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2 - A tentativa é punível.
3 - Se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267.º, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.
4 - Se os factos referidos nos n.os 1 e 3 forem praticados por funcionário, no exercício das suas funções, o agente é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
Nos termos do artigo 225.º/-a) do CP documento é a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão, quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa ou animal para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta.
Dispõe ainda o artigo 100.º do DL 555/99, d e16/12 (RJUE) que:
(…)
2 - As falsas declarações ou informações prestadas pelos responsáveis referidos nas alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 98.º, nos termos de responsabilidade ou no livro de obra integram o crime de falsificação de documentos, nos termos do artigo 256.º do Código
 Ao que se apreende em todas as situações infra (para além do posterior uso) na base do documento estão situações de afirmada falsificação ideológica, ou seja situações em que o documento é inverídico, ocorre falsificação na substância, ou seja prestam-se declarações ou informações de um facto falso juridicamente relevante.
Vejamos as situações em que apenas são imputados crimes de falsificação de documentos (situações A e C, D, E e F).
Estão acusados os arguidos AA e CC, com referência à situação A, pela prática de um crime de falsificação agravado.
Considerando a factualidade dada como não suficientemente indiciada, desde logo que a declaração em causa não comporta dizeres falsos, impõe-se categoricamente a não pronúncia de ambos aos arguidos (o que importa ainda estar prejudicado o afirmado crime de abuso de poder em concurso aparente), sendo que relativamente ao arguido AA ainda por via da prescrição do procedimento criminal. [sublinhado e negrito nossos]
Estão acusados também pela prática de crimes de falsificação de documentos os arguidos DD, EE e CC, com referência às situações C, D, E e F.
E também aqui (independentemente do número exagerado de crimes de falsificação imputados, pois deve entender-se que comete um só crime o agente que, na mesma ocasião, realiza actos de falsificação material e ideológica de diversos documentos – cfr, Comentário do Código Penal, Paulo Pinto de Albuquerque, 4.ª ed. actualizada, p. 1008 – tanto mais que o MP utiliza o artigo 28.º do CP, mas não deixa de imputar, em concurso efectivo, a prática de crimes de falsificação de documento, o do próprio e o do comparticipante qualificado, como se verifica, v.g. nas situações C, D, E, e F e 2) em face da factualidade dada como não suficientemente indiciada, no caso ao não ter sido dado como suficientemente que as pré-existências não existiam, claudica claramente o pressuposto em que o MP sustenta os dizeres acusatórios, como tal as apontadas falsificações, o que importa a não pronúncia dos arguidos.
Vejamos agora as situações em que apenas são imputados crimes de falsificação de documentos em concurso com crimes de violação de regras urbanísticas ou apenas estes, também por funcionário (situações 2, 4, 5, 15 e 22).

Dispõe o artigo 278.º-A do Código Penal:

1 - Quem proceder a obra de construção, reconstrução ou ampliação de imóvel que incida sobre via pública, terreno da Reserva Ecológica Nacional, Reserva Agrícola Nacional, bem do domínio público ou terreno especialmente protegido por disposição legal, consciente da desconformidade da sua conduta com as normas urbanísticas aplicáveis, é punido com pena de prisão até três anos ou multa.
2 - Não são puníveis as obras de escassa relevância urbanística, assim classificadas por lei. (…)

Dispõe o artigo 382.º-A do Código Penal que:

1 - O funcionário que informe ou decida favoravelmente processo de licenciamento ou de autorização ou preste neste informação falsa sobre as leis ou regulamentos aplicáveis, consciente da desconformidade da sua conduta com as normas urbanísticas, é punido com pena de prisão até três anos ou multa.
2 - Se o objecto da licença ou autorização incidir sobre via pública, terreno da Reserva Ecológica Nacional, Reserva Agrícola Nacional, bem do domínio público ou terreno especialmente protegido por disposição legal, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos ou multa.

Pela incriminação prevista no artigo 278.º-A, com referência ao bem jurídico, protege-se a preservação da natureza, na vertente do solo (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 4.ª ed., actualizada, p. 1070), mesmo contra a vontade do proprietário do imóvel.
Trata-se de crime comum “quem” e de dano quanto à lesão do bem jurídico (embora no Título IV, dos crimes contra avida em sociedade, inserido no capítulo III, crimes de perigo comum).
Pois, no que importa ao caso e do ponto de vista objectivo, o ataque ao bem jurídico ocorre com a realização da obra de construção, reconstrução ou ampliação de imóvel que incida sobre terreno da Reserva Ecológica Nacional (REN) e Reserva Agrícola Nacional (RAN), bem com da realização das referidas operações urbanísticas à revelia do Plano de Ordenamento da Albufeira da ... (POA...) – aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 92/2002, de 07/05 (terreno especialmente protegido por disposição legal).
Sem os concretos actos materiais de construção, reconstrução ou ampliação de imóvel não há ataque ao bem jurídico.
A tentativa não é punível – artigo 23.º/1 do CP.

Nos termos do artigo 2.º do RJUE:
- construção é a obra de criação de nova edificação (al. b);
- reconstrução são as obras de construção subsequentes à demolição, total ou parcial, de uma edificação existente, das quais resulta a reconstituição da estrutura das fachadas (al. c)
- ampliação são as obras de que resulte o aumento da área de implantação, da área total de construção, da altura da fachada ou do volume de uma edificação existente (al. e).
E são apenas estas as três modalidades típicas de acção.
Pois, para além delas, nos termos do artigo 2.º/-a) do RJUE a actividade de edificação comporta ainda as situações de obras de alteração (al. d) ou de obras de conservação (al. f) de um imóvel.
           
Assim, v.g., obras de modificação das características físicas de uma edificação existente, ou a sua fracção, designadamente a respectiva estrutura resistente, o n.º de fogos ou divisões interiores, ou a natureza e cor dos materiais de revestimento exterior, sem aumento da área total de construção, da área de implantação ou de altura da fachada, não encontra previsão típica no artigo 278.º-A do CP.

Como se disse supra:
Quando o legislador se refere a imóvel não está a referir-se a coisa imóvel, pois estes são dois conceitos normativos diferentes.
O Código Civil trata estas duas realidades na sua singularidade distintiva.
Tal como o próprio Código Penal, v.g. nos artigos 215.º, 216.º e 375.º refere-se a coisa imóvel, já no artigo 278.º-A se refere a imóvel.
Como também já se disse o próprio RJUE, no artigo 2.º/a) define edificação como a actividade ou resultado da construção, reconstrução, ampliação (alteração ou conservação) de um imóvel destinado a utilização humana. E embora qualquer outra construção que se incorpore no solo seja também edificação, está bem clara a diferença entre o imóvel e qualquer outra edificação.
Decorre assim que, v.g., a construção/reconstrução de muros em desconformidade com as regras urbanísticas não encontra previsão típica no artigo 278.º-A/1 do Código Penal, tal como não encontra previsão qualquer acção sobre o coberto vegetal, qualquer construção de vedação, movimentação de terras, etc. E importa enfatizar isto, porquanto da acusação constam várias referências a muros, vedações, acessos/arruamentos, como se estas realidades urbanísticas encontrassem previsão no referido normativo.
Se merecem tutela por via de reposição da legalidade urbanística seguramente que não será por força da previsão típica apontada.
Ainda, como diz Paulo Pinto de Albuquerque (ob. cit.) a acção (obra de construção, reconstrução ou ampliação de imóvel) só é típica quando, no que importa propriamente ao caso dos autos, se verifique a desconformidade com as normas urbanísticas aplicáveis, sendo estas apenas as que regem e limitam a acção, v.g., em terreno REN, RAN ou outro terreno especialmente protegido.
Dir-se-á assim que o âmbito de protecção típica está essencialmente, embora não exclusivamente, dirigido às situações de construção, reconstrução ou ampliação clandestinas. Pois neste tipo de situações o agente assume conscientemente uma conduta desconforme com as normas urbanísticas aplicáveis. Na verdade, se não desencadeou qualquer processo prévio (v.g., licenciamento) devido (artigo 4.º do RJUE), quando se impunha por não haver isenção (artigo 6.º do RJUE), claramente que actuou em desconformidade com as normas urbanísticas.
Já pela incriminação prevista no artigo 382.º-A, com referência ao bem jurídico, protege-se também a preservação da natureza, na vertente do solo, mas em primeiro plano protege-se a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 4.ª ed., actualizada, p. 1300, bem como Inês Fernandes Godinho, in Estudos Sobre Crimes de Responsabilidade dos Eleitos Locais, AEDREL, p. 82).
Está em causa um crime específico, próprio.
Sem prejuízo de outras construções, se ocorreu ataque ao bem jurídico integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário estamos também perante um crime de dano, já no que se refere ao bem jurídico preservação da natureza, na vertente do solo dir-se-á que está em causa um crime de perigo se não ocorreu por via do licenciamento ou da autorização qualquer operação urbanística (sendo na previsão do n.º 2 do artigo 382.º-A a tentativa punível).
Mas importa referir que as condutas típicas se referem apenas aos processos de licenciamento e de autorização, estando assim fora de relevância penal outros mecanismos de controlo administrativo relacionados com o ordenamento do território.
Naqueles procedimentos de controlo prévio, concretamente no procedimento de licenciamento, o particular tem de aguardar pela apreciação da Administração e pela sua decisão (que pode ser de deferimento ou de indeferimento).
Desde logo não encontram previsão típica as situações que possam cair no âmbito de um processo de legalização (artigo 102.º-A do RJUE) de situações de facto (v.g., como supra se disse, quem constrói à revelia de um processo de licenciamento e perante o facto consumado inicia posteriormente o processo de legalização da construção. Neste processo qualquer eventual conduta de prestação falsa por funcionário sobre as leis ou regulamentos aplicáveis em desconformidade com as normas urbanísticas não é típica à luz do artigo 382.º-A.
Por isso mesmo não previu o legislador uma norma idêntica à constante do n.º 4 do artigo 278.º-A, pois se a obra ilegal foi, entretanto, legalizada não faria qualquer sentido ordenar a sua demolição.
Uma rápida referência ao artigo 28.º do CP. Em alguma dessintonia com Damião da Cunha, in A reforma legislativa em matéria de corrupção, Coimbra Editora, p. 115/116, quando afirma o entendimento de que cada um comete o seu crime, deve contudo dizer-se que se o agente comum solicita ao agente funcionário, que acede, uma qualquer actuação típica
nos termos do artigo 382.º-A/2, mas depois não materializa a licença obtida através da sua acção, na previsão do n.º 1 do artigo 278.º-A (punível com pena de prisão até 3 anos), desistindo do propósito construtivo, não praticando assim o seu crime, com que fundamento praticou o crime mais grave do funcionário, do artigo 382.º-A/2 (punível com pena de prisão até 5 anos). Mas construindo imóvel, a solução de concurso efectivo – tal como o MP o afirma para a situação 4 – apresenta-se, com o devido respeito, insustentável, porquanto claramente ocorre uma situação de concurso aparente, a punir nos termos do artigo 382.º-A/2 do CP.
Tendo presente que fora das caraterísticas dos solos previstas no n.º 1 do artigo 278.º-A e do n.º 2 do artigo 382.º-A, o agente comum que constrói imóvel (ou outro tipo de construção) sem licença, ou seja realiza construção clandestina, não comete o crime do artigo 278.º-A. Já se obtiver indevida licença em conluio com funcionário (e constrói, imóvel ou coisa imóvel) comete o crime do artigo 382.º-A/1, punível com pena de prisão até três anos (ou multa), com recurso ao artigo 28.º do CP (neste caso, embora a pena de prisão seja igual – até 3 anos ou multa – o objecto da acção é mais abrangente do que o previsto no artigo 278.º-A, como se disse apenas relativo a imóvel).
Enfatizando que o agente tem de actuar consciente da desconformidade da sua conduta com as normas urbanísticas, não bastando representar como possível a desconformidade com a norma. Ou seja, o agente tem de conhecer que a sua informação ou decisão colide com as normas legais vigentes sobre a matéria (José Mouraz Lopes, em Os Novos Crimes Urbanísticos no Código Penal, em As Alterações de 2010 ao Código Penal e ao Código de Processo penal, CEJ, Coimbra Editora, p. 80).
Está excluído o dolo eventual.
Assim, numa abordagem perfunctória, do confronto dos elementos típicos do artigo 278.º-A do CP com os elementos típicos do artigo 382.º-A/2 do CP ou do artigo 18.º-A da Lei 34/87, de 16/07, verificamos que nestes é abrangido qualquer processo de licenciamento ou de autorização (v.g. artigo 4.º do RJUE) de operações urbanísticas, com o sentido amplo da definição constante da al. j) do artigo 2.º, ou seja, muito para além das supras modalidades típicas de acção sobre o objecto (qualquer imóvel) de previsão do artigo 278.º-A.
Dito isto, com referência a cada uma das situações referidas na acusação pública e em face da factualidade dada como suficiente e não suficientemente indiciada, temos:
- os arguidos FF e HH estão acusados, com referência à situação 2, da prática de um crime de violação de regras urbanísticas, na previsão do artigo 278.º-A/1 do CP.
Em face do que acima se disse apenas pode estar em causa a construção da moradia unifamiliar, enquanto imóvel (já não os espaços exteriores, passeios acessos e muros – e não importa abordar a questão do ponto de vista da pretensão da pena acessória).
Ora, como se referiu, a construção da afirmada moradia unifamiliar (imóvel) não resulta de conduta desconforme com as normas urbanísticas aplicáveis. E não resulta porquanto a narrativa acusatória assenta num pressuposto que não foi considerado como suficientemente indiciado. No caso que tenha sido criada uma falsa aparência de pré-existência. Ademais, como se viu, a CM... afirmou a legalidade no processo de licenciamento, sem que o MP tenha imputado qualquer crime de violação de regras de construção por funcionário (no caso ter ocorrido no âmbito do processo de licenciamento uma decisão favorável em desconformidade com as regras urbanísticas. Situação que já assim não seria no âmbito de processo de legalização).
Como tal impõe-se a não pronúncia dos referidos arguidos, seja pelos crimes de falsificação de documentos seja pelo crime de violação de regras urbanísticas (este apenas imputado aos arguidos FF e HH) – claudicando ainda o crime de abuso de poder imputado aos arguidos FF e GG em concurso aparente, porquanto não resulta indiciada a factualidade de suporte. [negrito nosso]
E o que caba de se afirmar é transponível no essencial para a situação 4.
Na verdade, também aqui o pressuposto acusatório fundamental claudicou – a afirmada ausência da pré-existência.
Pois, claudicou completamente o afirmado pelo MP que “naquele local, nunca existiu qualquer edificação”, porquanto como supra se disse resulta suficientemente adquirido que pelo menos desde o ano de 1995 o prédio existia como urbano, com uma área coberta de 110m2 e área descoberta de 350 m2.
E assim sendo, também nesta situação se impõe a não pronúncia dos referidos arguidos, seja pelos crimes de falsificação de documentos, seja pelo crime de violação de regras urbanísticas, na previsão do artigo 382.º-A ou na previsão do artigo 278.º-A – claudicando ainda o crime de abuso de poder imputado aos arguidos FF e II em concurso aparente com o crime de violação de regras urbanísticas por funcionário, porquanto não resulta indiciada a factualidade de suporte [negrito nosso]

Como vimos, o recorrente Ministério Público arguiu no recurso a nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia sobre os crimes de abuso de poder, p. e p. pelo art. 26º da Lei nº 34/87, de 16.07, com referência ao artigo 1º, nº1, al. i) da mesma Lei, e ao art. 28º do CP, imputados aos arguidos AA e CC (situação A), DD e CC (situações C, D, E e F) e FF e GG (situação 2), em concurso aparente com os imputados crimes de falsificação ou contrafação de documento agravados.
O arguente invoca, para tanto, o disposto no art. 379º, nº1, c), do CPP, por remissão do art. 97º, nº5, do mesmo diploma legal.
Os arguidos II e FF encontram-se igualmente acusados da prática de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art. 382º do CP, em concurso aparente com um crime de violação de regras urbanísticas por funcionário, p. e p. pelo art. 382º-A, nºs 1 e 2, do CP, por referência aos artigos 28º e 386º, nº1, ambos do CP (situação 4).
Prescreve o art. 379º, nº1, alínea c), primeira parte, que “É nula a sentença […] quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar […]”
Por seu turno, estatui o art. 97º, nº5, do CPP: “Os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.”
Urge desde já lavrar duas notas acerca da predita alegação recursória.
A primeira é a de que a alusão ao disposto no art. 97º, nº5, do CPP denota, salvo o devido respeito, uma certa confusão entre a invocada nulidade, fundada em omissão de pronúncia, e uma outra nulidade igualmente prevista no art. 379º, nº1, mas na alínea a), por referência ao art. 374º, nº2, do mesmo diploma legal, esta estribada em falta de fundamentação da decisão.
Por outro lado, como temos entendido, as nulidades previstas no art. 379º do CPP são exclusivas da sentença, isto, é da decisão final, não se aplicando aos despachos, por mais relevantes que sejam, como é o caso da decisão instrutória.    
Vigora no nosso ordenamento jurídico processual penal um sistema estribado no princípio da tipicidade das nulidades (cf. art. 118º, nºs 1 e 2). Assim sendo, uma eventual omissão de pronúncia que ocorra no despacho recorrido gera uma mera irregularidade, sujeita ao regime de arguição previsto no art. 123º do CPP, uma vez que não se encontra legalmente tipificada como nulidade (cf. arts. 119º e 120º do mesmo diploma legal, a contrario).
A regra geral em matéria de conhecimento de irregularidades é a da necessidade da sua arguição pelo interessado, ou seja, pelo titular do direito protegido pela norma violada, nos estritos prazos legais, ficando a irregularidade sanada se não for tempestivamente arguida – cfr. art. 123º, nº1, do CPP.
Excecionalmente, permite-se o conhecimento oficioso e a reparação da irregularidade, no momento em que for notada, quando ela puder afetar o valor do ato praticado – cf. art. 123º, nº2, do CPP.
Contudo, a cognoscibilidade por iniciativa do Tribunal mostra-se adstrita aos casos em que a irregularidade contende com a violação de uma norma que não se destina, ou não se destina em primeira linha, a proteger um direito de um sujeito ou participante processual, antes exterioriza a concretização de valores e princípios estruturantes do direito penal ou processual penal e/ou constitucional, tendo então o legislador entendido que nestas situações o conhecimento sobre a sua violação, suscetível de afetar a própria realização da justiça no caso concreto, não podia ficar condicionada à eventual invocação da mesma por banda de um sujeito ou interveniente processual, permitindo ainda que esse conhecimento, se atempado[2], seja operado ex oficcio pelo tribunal para que seja reposta a imprescindível legalidade do ato ou atos processuais afetados.
A este propósito, louvamo-nos no doutamente expendido no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21.11.2016, proferido no Processo nº 42/13.6GBVRL-C.G1, relator Jorge Bispo, disponível em www.dgsi.pt: «[…] o n.º 2 do citado art. 123º, prevê uma válvula de escape, admitindo a declaração e reparação oficiosa de irregularidades que possam afetar o valor do ato praticado, obviamente limitadas pelo campo de proteção da norma que deixou de observar-se.
Assim, se a norma se destina a proteger unicamente interesses de determinado interveniente/sujeito processual e este não se tiver prevalecido da faculdade de invocar o vício, a irregularidade fica definitivamente sanada, não sendo possível declará-la oficiosamente.
Porém, se estiver em causa norma ordenadora ou que tenha subjacente a concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de Direito material, já a irregularidade pode ser declarada oficiosamente sem qualquer restrição.
Conforme refere Maia Gonçalves - In Código de Processo Penal Anotado, 9ª Edição Revista e Atualizada, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 312., apesar de as irregularidades serem consideradas em geral vícios de menor gravidade do que as nulidades, a grande variedade de casos que na prática se podem deparar impõe que se não exclua a priori a possibilidade de ao julgador se apresentarem irregularidades de muita gravidade, mesmo suscetíveis de afetar direitos fundamentais dos sujeitos processuais.
Daí a grande margem de apreciação que se dá ao julgador, nos n.ºs 1 e 2 do art. 123º, que vai desde considerar a irregularidade inócua e inoperante, até à invalidade do ato inquinado pela irregularidade e dos atos subsequentes que possa afetar, passando pela reparação oficiosa da irregularidade. Trata-se de questões a decidir pontualmente pelo julgador, com muita ponderação pelos interesses em equação, máxime as premências de celeridade e de economia processual e os direitos dos interessados.»
Dito isto, adiantamos que, salvo melhor opinião, a douta decisão recorrida não padece de irregularidade por omissão de pronúncia acerca dos imputados crimes de abuso de poder, pois que o Tribunal a quo, relativamente a todas as situações em apreço, conheceu desses crimes reportando-se a eles no dispositivo da decisão instrutória, não pronunciando os arguidos a quem os mesmos vinham imputados (em concurso aparente com outros ilícitos criminais) pela sua prática.       
Concomitantemente, ao nível da motivação, no que tange às situações A, 2 e 4, o Tribunal recorrido expôs no despacho recorrido, ainda que de modo sucinto, admite-se, mas ainda assim suficiente, os motivos factuais e jurídicos que conduziram a tal decisão, em súmula por julgar não suficientemente indiciada a factualidade imputada na douta acusação aos arguidos em causa que, no entendimento do Tribunal, comumente estribava a imputação àqueles da prática de crimes de falsificação ou contrafação de documentos (autênticos) e/ou de violação de regras urbanísticas por funcionário, em concurso aparente com os alegadamente cometidos crimes de abuso de poder.  
Distintamente, compulsada integralmente a motivação constante do despacho recorrido (supra transcrita), julgamos que, no que em específico se reporta às situações C, D, E e F, apesar de o Tribunal a quo ter expressamente mencionado na decisão a não pronúncia dos arguidos DD e CC também quanto ao imputado – em concurso aparente – crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 26.º, da Lei nº 34/87, de 16/7, por referência aos artigos 3.º/1-i), da mesma Lei, e 28.º, do CP (a par da não pronúncia pela prática de quatro crimes de falsificação ou contrafacção de documento agravado, p. e p. pelo artigo 256.º/1-a), d) e e), e 3, do CP), a decisão olvidou, nesta parte, a respetiva fundamentação.
Com efeito, não obstante o visível esforço e labor empreendido pelo Tribunal recorrido na elaboração da fundamentação da decisão, cremos que quanto àquelas específicas situações (tratadas em bloco), certamente por compreensível esquecimento, faltou referir, como foi feito para as demais situações em questão, a concreta causa, de facto e de direito, para não pronunciar também os arguidos DD e CC pelo crime de abuso de poder, pois que este “renasceu”, isto é, ganhou novamente autonomia, face à ali explicada e decidida não pronúncia pelos crimes de falsificação ou contrafação de documento.
Como menciona Maria Paula Ribeiro de Faria, in “Formas Especiais do Crime”, UCE, Porto, 2017, pp. 381-382, «Existe um concurso aparente de normas sempre que as condutas praticadas correspondem abstratamente a várias fattispecies sancionatórias sem que se possa efetivamente falar de crimes autónomos. […] A necessidade de reconhecimento do concurso aparente de normas decorre do princípio segundo o qual ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo crime, pelo que, se a relação entre as normas não for devidamente esclarecida sob o ponto de vista interpretativo, deixa de existir correspondência entre a gravidade dos factos praticados pelo agente e a pena que lhe é efetivamente aplicada. Está aqui presente uma preocupação de equidade e de certeza jurídica a impedir uma resposta penal excessiva do Estado, que não seria legítima quer sob o ponto de vista da necessidade e proporcionalidade da pena, quer sob o ponto de vista da reeducação e da reintegração social do agente. De acordo com uma primeira explicação do concurso legal ou aparente [a adotada pela autora e por nós], todos os elementos das normas incriminadoras estão preenchidos, pelo que elas concorrem efetivamente entre si, embora só uma delas seja aplicável.» 
A decisão de aplicação de uma das normas assenta na relação de especialidade, subsidiariedade [como sucede in casu] ou consunção que se estabeleça entre as normas abstratamente aplicáveis.[3]
Assim sendo, no caso vertente, a irregularidade detetada contende com um princípio estruturante do nosso ordenamento jurídico processual penal, merecedor de consagração constitucional, que é o dever de fundamentação das decisões judiciais – cf. art. 97º, nº5, do CPP e art. 205º, nº1, da Constituição da República Portuguesa –, sendo por isso suscetível de conhecimento oficioso.   
Por conseguinte, cumpre declarar parcialmente inválido o despacho recorrido, na parte em que não fundamentou a decisão de não pronúncia dos arguidos DD e CC quanto à prática de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art. 26º da Lei nº 34/87, de 16.07, por referência ao art. 1º, nº1, al. i) da mesma Lei, e ao art. 28º do CP, que lhes foi imputado na acusação relativamente às situações descritas nos Pontos C, D, E e F, em concurso aparente com quatro crimes de falsificação ou contrafação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nºs 1, als. a), d) e e), e 3, do CP, pelos quais foram igualmente não pronunciados e, consequentemente, determinar que o Tribunal a quo profira nova decisão instrutória em que sane tal irregularidade, decidindo nesse conspecto em conformidade.
Termos em que, ainda que por fundamentos não totalmente coincidentes com os invocados pelo recorrente Ministério Público, o recurso será julgado parcialmente procedente.

Atento o supra exposto, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso deduzido pelo Ministério Público.
           
*

IV - DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente [ainda que por fundamentos não inteiramente coincidentes] o douto recurso interposto pelo Ministério Público e, em conformidade:

IV.1 - Declarar irregular o douto despacho recorrido na parte em que não fundamentou a decisão de não pronúncia dos arguidos DD e CC quanto à prática de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art. 26º da Lei nº 34/87, de 16.07, por referência ao art. 1º, nº1, al. i) da mesma Lei, e ao art. 28º do CP, que lhes foi imputado na acusação relativamente às situações descritas nos Pontos C, D, E e F, em concurso aparente com quatro crimes de falsificação ou contrafação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nºs 1, als. a), d) e e), e 3, do CP, pelos quais foram igualmente não pronunciados e, consequentemente, determinar que o Tribunal a quo profira nova decisão instrutória em que sane tal irregularidade, decidindo nesse conspecto em conformidade.

IV.2 – Atento o supra decidido, julgar prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.

Sem tributação.
*
                                                                    
Guimarães, 9 de janeiro de 2023,

Paulo Correia Serafim (Relator)
[assinatura eletrónica]       
Pedro Freitas Pinto (Adjunto)
[assinatura eletrónica]
Anabela Varizo Martins (Adjunta)
[assinatura eletrónica]
(Acórdão elaborado pelo relator e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP)


[1] Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e seguintes; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém atualidade.
[2] A tempestividade do conhecimento só ocorre, como é sabido, até ao trânsito em julgado da decisão final, momento a partir do qual ficam sanadas quaisquer nulidades ou irregularidades.
[3] O artigo 26º da Lei nº 34/86, de 16.07, prevendo a punição do titular de cargo político por abuso de poderes, comina tal conduta com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou pena de multa de 50 a 100 dias, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal, como sucede com a maior gravidade sancionatória prevista no art. 256º, nºs 1 e 3 do CP, para o crime de falsificação ou contrafação de documento autêntico ou autenticado (pena de prisão de 1 a 5 anos).