Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
73/18.0T8BCL.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: SERVIDÃO
EXTENSÃO DA SERVIDÃO
MODO DE EXERCÍCIO
NECESSIDADES NORMAIS E PREVISÍVEIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Na reapreciação da decisão da matéria de facto a Relação, enquanto instância de recurso, deve observar o disposto no art.º 662.º do C.P.C., impondo-se-lhe avaliar todas as provas carreadas para os autos, valorando-as e ponderando-as com recurso às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus conhecimentos das pessoas e das coisas, para formar a sua própria convicção.

II- Encontrando-se constituída uma servidão de passagem a pé para uma casa de habitação, para se saber da sua extensão e modo como deve ser exercida há que recorrer aos princípios estabelecidos nos art.os 1564.º e 1565.º, n.º 2 do Código Civil (C.C.).

III- Assim, sendo o título constitutivo da servidão que regula a sua extensão e o modo como deve ser exercida, em caso de dúvida deve entender-se constituída a servidão por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o menor prejuízo para o prédio serviente.

IV- As “necessidades normais” de uma casa de habitação consubstanciam-se no trânsito de pessoas a pé, sendo previsível que tais pessoas transportem carga que consigam suportar (v.g., sacos de compras, braçados de legumes e plantas, etc.) tendo ainda de se admitir que usem um carrinho de mão como auxiliar no transporte dos volumes mais pesados (v.g., lenha, sacos de batatas, etc.), com o que o espaço que tem de lhes ser disponibilizado não pode reduzir-se àquele que ocupa o corpo de uma pessoa, nem é curial que se tome por referência apenas a largura da porta de entrada da casa.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

A) RELATÓRIO

I.- L. S. intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra A. G. e marido M. G., pedindo a condenação destes a:

- reconhecerem que ela, Autora, é dona do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia de ..., concelho de Barcelos, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...;
- removerem a barra que instalaram no início do caminho de servidão;
- reconhecerem que só têm passagem pelo caminho de servidão que lhes foi autorizada.

Fundamenta alegando, em síntese, que adquiriu o dito prédio por compra e o direito de propriedade sobre ele por usucapião, nele instalando a sua casa de habitação. Acede a esta sua casa por uma porta que deita para a Rua ... e por outra, outra virada a nascente, para um caminho de servidão, que, se estende desde o portão do prédio dos Réus até à referida Rua ..., tendo 11,04 metros de comprimento, e uma largura variável, entre os 2,42 metros no início e 3,35 metros mais acima, caminho que serve três casas e não tem saída.
Os Réus, há cerca de um ano, com o intuito de se apoderarem do dito caminho, colocaram, junto à via pública, uma estrutura com um mecanismo eléctrico e uma barra metálica oscilante, impedindo-a de aceder à sua habitação pela porta que deita sobre ele.
Porque eles, Réus, não têm qualquer direito sobre o referido caminho, que lhes não pertence, pretende ela, Autora, que a barra que se encontra a atravessá-lo seja removida para nunca mais ser instalada.
Os Réus contestaram e deduziram reconvenção, pedindo ainda a condenação da Autora como litigante de má fé.
Na contestação impugnaram os factos invocados pela Autora.

Na reconvenção pedem que:

1º - A Autora/Reconvinda seja condenada a reconhecer a legítima e exclusiva propriedade deles, Rconvintes, sobre o prédio urbano identificado nos artigos 42º e 48º da reconvenção (artigo ... urbano da freguesia de ..., concelho de Barcelos), no qual se integra o caminho particular que se situa a nascente / sul do prédio da mesma Autora/Reconvinda;
2º - Seja declarada extinta a servidão de passagem a pé, existente a favor do prédio da Autora/Reconvinda, sobre o caminho de servidão a si, Reconvintes, pertencente, por desnecessidade, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 1569.º do Código Civil.
Fundamentam estes pedidos invocando a aquisição do referido prédio por sucessão e o direito de propriedade sobre ele por usucapião, no qual se integra o caminho particular com cerca de 15 metros de comprimento e largura que oscila entre os 3,5 m e 4,5m, que dá acesso pedonal ao prédio da Autora, dando ainda acesso aos prédios urbano e rústico deles Réus/Reconvintes (respectivamente artigos matriciais ... e ...), ambos da freguesia de ..., referida.
Mais alegam que a servidão de passagem que onera o referido seu prédio é desnecessária ao prédio da Autora, já que, à presente data, este tem uma frente para o caminho público (actual Rua ...), que se situa a norte desta sua habitação, com uma frente de mais de 15 metros, apresentando uma entrada com largura superior àquela entrada lateral, por onde comodamente tem entrada pedonal para a totalidade do seu prédio e mesmo de viatura se assim o pretender.

Os autos prosseguiram os seus termos, vindo a proceder-se ao julgamento que culminou com a prolação de douta sentença que:

A) julgando a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, decidiu:
a) condenar os Réus a reconhecer que a Autora é dona e legítima possuidora do prédio urbano composto por casa de um pavimento, sito na Rua ..., nº …, freguesia de ..., concelho de Barcelos, com a área total de 67 m2, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº ...;
c) absolver os Réus do demais contra si peticionado.
B) julgando a reconvenção parcialmente procedente, por parcialmente provada, decidiu:
a) condenae a Reconvinda/Autora a reconhecer o direito de propriedade dos Reconvintes/Réus sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ..., composto por edifício de rés-do-chão e andar, com a área de 144 m2, tendo de área coberta 60 m2, e logradouro com a área de 200 m2, sito em ..., freguesia de ..., concelho de Barcelos, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …º, no qual se integra o caminho descrito em 15) dos factos provados, que se situa a nascente do prédio da Reconvinda/Autora;
b) absolver a Reconvinda/Autora do demais contra si peticionado.

Inconformada, traz a Autora o presente recurso pedindo que se decida pela remoção da barra oscilante da entrada do caminho e “pela não posse” dos Recorridos sobre o mesmo caminho.
Contra-alegaram os Réus/Recorridos propugnando para que se mantenha a impugnada decisão.
O recurso foi recebido como de apelação, com efeito devolutivo.
Colhidos, que se mostram, os vistos legais, cumpre decidir.
**
II.- A Apelante/Autora formulou as seguintes conclusões:

a - A Recorrente tem uma porta virada para o caminho em causa, há mais de 70 anos.
b – Os recorridos têm portões, que fecham sempre, à entrada das suas propriedades, que impedem o acesso a qualquer intruso, e não têm necessidade da barra oscilante.
c - A barra oscilante que os recorridos colocaram no início do caminho impede a recorrente de aceder livremente à porta lateral.
d – Devem, por isso, os recorridos remover a barra oscilante que colocaram à entrada do caminho em discussão.
e – Ademais que as servidões devem estar de forma permanente livres e desimpedidas.
f – E salvo melhor entendimento, pelos factos apontados nas alegações não pode verificar-se a posse originária dos recorridos sobre o caminho,
g – pois há um errado enquadramento do direito aos factos Art. 1365 n. 2, art. 1362 e 1548 do cc.
**
III.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do C.P.C., sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.

Consideradas, pois, as conclusões acima transcritas, cumpre:

- reapreciar a decisão de facto, a entenderem-se preenchidos os pressupostos da reapreciação; e
- reapreciar a decisão de mérito no que se refere às pretensões recursivas formuladas.
**
B) FUNDAMENTAÇÃO

IV.- O Tribunal a quo proferiu a seguinte decisão de facto:

i) julgou provado que:

5.1. – MATÉRIA DE FACTO PROVADA

1 – Está descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº .../19870717, o prédio urbano composto por casa de um pavimento, sito na Rua ..., nº …, freguesia de ..., concelho de Barcelos, com a área total de 67 m2, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ....
2 – Pela Ap. 40 de 2013/07/31 está registada, a favor da Autora L. S., a aquisição do prédio descrito em 1) por compra a A. M..
3 – L. S. é a titular inscrita, para efeitos fiscais, do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia de ..., concelho de Barcelos, com a área total de 67 m2, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ....
4 – A Autora adquiriu o prédio mencionado em 1) há mais de 20 anos e, desde então, de forma ininterrupta, é aí que dorme, que faz as refeições e recebe visitas, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, sempre na convicção que não lesa o direito de propriedade de terceiros.
5 – A Autora acede à habitação mencionada em 1) por uma porta que deita para a Rua ... e outra virada a nascente para um caminho.
6 – Em data não concretamente apurada, os Réus colocaram no início do caminho referido em 5) e já dentro deste, imediatamente a seguir à Rua ..., uma barreira automática oscilante, que permite o seu levantamento.
7 – Quando a Autora precisa de descarregar lenha ou batatas, tem que fazer o seu transporte para casa à mão, passando pela barreira referida em 6).
8 – Por herança, a esposa do Réu recebeu uma casa de habitação que fica a sul da habitação da Autora e é contígua a esta e do lado nascente também estrema com o caminho referido em 5).
9 – Está descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº .../19960116, o prédio composto por edifício de rés-do-chão e andar, com a área de 144 m2, coberto com a área de 60 m2, logradouro com a área de 200 m2 e lavradio com a área de 800 m2, sito em ..., freguesia de ..., concelho de Barcelos, a confrontar do norte com caminho, do sul com J. A., do nascente com A. A. e do poente com A. C. e caminho, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e na matriz predial rústica sob o artigo ....
10 – Pela Ap. 22 de 1996-01-16 está registada, a favor da Ré A. G., casada com M. G., a aquisição do prédio referido em 9), por sucessão com adjudicação em inventário de C. M. e M. J..
11 – A. G. é a titular inscrita, para efeitos fiscais, do prédio rústico, descrito como quintal, videiras em ramada, dez fruteiras e pastagem, sito em ..., freguesia de ..., concelho de Barcelos, a confrontar do norte com caminho, do sul com J. A., do nascente com A. A. e do poente com A. C. e outro, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ....
12 - Está descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº …/19960116, o prédio urbano, composto por casa de rés-do-chão, com a área de 49 m2, sito em ..., freguesia de ..., concelho de Barcelos, a confrontar do norte com U. M., do sul e do nascente com caminho e do poente com P. G., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ....
13 – Pela Ap. 22 de 1996-01-16 está registada, a favor da Ré A. G., casada com M. G., a aquisição do prédio referido em 12), por sucessão com adjudicação em inventário de C. M. e M. J..
14 – A. G. é a titular inscrita, para efeitos fiscais, do prédio urbano, descrito como casa com um pavimento, sito em ..., freguesia de ..., concelho de Barcelos, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ....
15 – Há mais de 30 anos, que o caminho referido em 5) se inicia na Rua ..., mais precisamente na esquina do prédio dos Réus descrito em 9) e do prédio da Autora descrito em 1), apresentando aí a largura de 3,50 metros, a qual se torna variável na restante extensão do mesmo, extensão essa não superior a 15 metros, terminando no portão colocado pelos Réus.
16 – A porta da habitação da Autora virada para o referido caminho situa-se a cerca de 5,30 metros da Rua ... e tem cerca de 60 centímetros de largura.
17 – Há mais de 20 anos, que a Autora e seus antepossuidores, usam o caminho descrito em 15) para aceder, a pé, à porta da habitação que deita para aquele.
18 – Os Réus deixaram, entre o final da barreira mencionada em 6) e o prédio da Autora, uma distância de passagem com cerca de um metro de largura.
19 – Há mais de 30 anos, que o caminho descrito em 15) é parte integrante do prédio mencionado em 9), sendo o único acesso para o prédio referido em 12) e para o quintal dos Réus, que se situa nas traseiras da habitação e que constitui o artigo rústico ..., onde estes cultivam as suas culturas e vinha.
20 – Desde tempos imemoriais que os antepassados dos Réus abriram na sua casa de habitação – artigo urbano ... - todas as janelas existentes pelo lado poente daquela, que deitam directamente sobre o caminho descrito em 15).
21 – Desde tempos imemoriais que o telhado da casa de habitação dos Réus – artigo urbano ... - despeja as suas águas sobre o caminho descrito em 15) e que o respectivo beiral ocupa parte do espaço aéreo deste.
22 – Há mais de 30 anos que os Réus e seus antepossuidores providenciam pela manutenção do caminho descrito em 15), cimentando-o, colocando portão sobre o mesmo, nivelando-o, reparando as suas anomalias, sempre a expensas suas, sem que nunca a Autora, por si e seus antepossuidores, os tenham interpelado para assim não agirem.
23 – Há mais de 30 anos que os Réus, por si e seus antepossuidores, vêm usando e fruindo o prédio enunciado em 9), habitando-o, liquidando os respectivos impostos, realizando no mesmo todas as obras de conservação, reparando muros, limpando e reparando os telhados e beirais, reparando, alisando e cimentando o caminho descrito em 15), que nele se encontra integrado, circulando a pé, de veículo automóvel, velocípede e ciclomotor pelo dito caminho, acedendo pelo mesmo quer às traseiras da sua casa de habitação, quer aos seus demais prédios – artigo rústico ... e urbano ... -, colocando portão no seus extremo sul.
24 – Isto de forma ininterrupta, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de serem titulares do respectivo direito de propriedade.
25 – Na presente data, o prédio descrito em 1) tem uma frente para a Rua ..., de extensão não concretamente apurada, apresentando uma entrada com largura superior à entrada lateral.
26 – Antes da sua remodelação, o prédio da Autora, descrito em 1), tinha duas entradas pela Rua ..., tendo aquela fechado uma delas.
27 – A entrada que a Autora fechou dava acesso directo a um quarto de dormir.

ii) julgou não provado que:

a) A Autora adquiriu o prédio descrito em 1) dos factos provados em 1994.
b) O caminho referido em 5) dos factos provados, desde o portão do prédio dos Réus até à Rua ..., tem o comprimento de 11,04 metros e largura variável, tendo 2,42 metros no início e 3,35 metros mais acima.
c) Os Réus, de há um ano para cá, no intuito de se apoderarem do caminho de servidão, estão a impedir a Autora de se servir livremente pela porta que deita para esse caminho.
d) A barreira referida em 6) dos factos provados foi colocada pelos Réus na via pública e atravessa na totalidade o caminho de servidão.
e) A Autora tem um obstáculo a transpor para aceder à porta lateral virada para o caminho de servidão e, quando necessita passar com compras ou outras necessidades para levar para a sua casa, esse obstáculo quase se torna impossível de ultrapassar.
f) O caminho para a casa de habitação e rossios pertencentes aos Réus era por debaixo da mesma, onde hoje se encontra um portão largo e alto.
g) Há bastante tempo, os Réus (seus antecessores) pediram aos então proprietários (também o então proprietário da casa da Autora), para o deixarem passar pelo caminho de servidão para aceder à moradia e rossios, pois dessa forma deixavam livre os baixos da casa para outra utilização.
h) Os então proprietários autorizaram os Réus (seus antecessores) a passar pelo caminho de servidão para a sua habitação e, depois de autorizados, na linha do seu prédio, os Réus colocaram um portão.
i) O prédio da Autora, sem a servidão que onera o prédio dos Réus, alcança, de igual modo, todas as utilidades que dele conseguia anteriormente retirar, já que a utilização da servidão em nada contribui para a melhoria das suas necessidades.
j) Os Réus só cimentaram o caminho há 3/4 anos atrás.
l) Os Réus unicamente foram autorizados a passar no caminho pelos então proprietários dos prédios, nomeadamente o proprietário do prédio da Autora, mas mantêm ainda a entrada a pé e com veículos por uma porta larga e alta no rés-do-chão do prédio identificado pelo artigo matricial ....
m) O limite poente do prédio urbano dos Réus identificado na matriz sob o artigo ... termina no caminho em discussão.
n) Há mais de 20 anos que a Autora, e antes dela os então proprietários, sempre acederam pelo caminho descrito em 5) com veículos para descarregar o que fosse necessário para a porta lateral sem nunca serem importunados por quem quer que fosse, nomeadamente os Réus depois de autorizados a passar no caminho.
o) Desde pelo menos 1937, que os anteriores proprietários do prédio da Autora acedem à porta lateral que dá para o caminho.
**
V.- Ainda que o não diga expressamente nas conclusões, conjugada a conclusão f) com os itens 2º e 3º das alegações, fica a convicção de a Apelante pretender impugnar a decisão da matéria de facto, nos segmentos fácticos transcritos nos n.os 19 e 20 a 23, mais concretamente o primeiro na parte em que julga provado que o caminho “é parte integrante” do prédio urbano (dos Apelados/Réus) descrito no n.º 9, defendendo tratar-se de “um caminho privado”, com o qual também confronta o seu próprio prédio, como resulta das certidões do registo predial, “identificadas por Doc. 1 e 2, juntos aos autos em 06/04/2018, na contestação dos recorridos”.
Isto considerado, haver-se-á de ter por cumpridos os ónus impostos pelo n.º 1 do art.º 640.º do C.P.C., já que estão identificados os pontos de facto impugnados, é apresentada a proposta de decisão, e são indicadas as provas (documentos) que impunham a decisão que propõe.
Na reapreciação da decisão da matéria de facto a Relação, enquanto instância de recurso, deve observar o disposto no art.º 662.º do C.P.C., impondo-se-lhe avaliar todas as provas carreadas para os autos, valorando-as e ponderando-as com recurso às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus conhecimentos das pessoas e das coisas, para formar a sua própria convicção.
Da argumentação da Apelante parece resultar que o cerne da sua oposição é a primeira parte do n.º 19, onde se diz que “Há mais de 30 anos que o caminho descrito em 15) é parte integrante do prédio mencionado em 9” (do qual os Apelados/Réus são possuidores), desvalorizando, como factos indiciadores da posse exclusiva, os constantes dos n.os 20 e 21 – abertura, desde tempos imemoriais, pelos antepassados dos Apelados/Réus, de “todas as janelas existentes do lado poente” da sua casa de habitação a “deitar ditectamente sobre o caminho”, e, também desde tempos imemoriais que “o telhado” da mesma casa “despeja as suas águas sobre o caminho”, ocupando o beiral “parte do espaço aéreo deste”.
E funda o seu dissenso no facto de também o seu próprio prédio urbano ter como estrema o caminho, e ainda na existência do portão colocado pelos Apelados/Réus no final do caminho, que, a seu ver, constitui presunção de que ele lhes não pertence porque “está fora dos portões”.
Ressalvado o respeito devido, tem de haver-se por inconsistente esta argumentação, atenta a debilidade das “provas” em que se sustenta.
Por um lado porque, como é pacífico, as descrições dos prédios que constam, quer da matriz, quer da Conservatória, não constituem prova suficiente da veracidade dos elementos que ali constam, designadamente que eles têm as confrontações que aí se fizeram constar, e por outro porque elas não infirmam os factos constantes do n.º 22: que “há mais de 30 anos que os Réus e seus antepossuidores providenciam pela manutenção do caminho, …cimentando-o, colocando portão sobre o mesmo, nivelando-o, reparando as suas anomalias, sempre a expensas suas, sem que nunca a Autora, por si e antepossuidores, os tenham interpelado para assim não agirem”, factos que consubstanciam actos normalmente praticados por quem é, ou se arroga, proprietário exclusivo – pelo comum do acontecer, se os Apelados e os antepossuidores considerassem o caminho como “de consortes” não deixariam de exigir da Apelante e antepossuidores a quota-parte do custo das obras, pelo menos no troço que serve também a sua casa de habitação.
Acresce que a colocação do portão não permite extrair a presunção que a Apelante dela pretende retirar. Posto que ela própria tem acesso por ali à sua casa, tendo-o também, como se afigura inequívoco, pessoas “estranhas” que, por autorização ou incumbência sua, aí se dirijam - e os Apelados/Réus não lhe recusam esse direito, ainda que o restrinjam à passagem a pé -, justifica-se o portão pela necessidade de obstaculizar a que pessoas e animais acedam também ao espaço que é exclusivamente deles.
De resto, a Meritíssima Juiz, a fls. 131 e v.º, deixa explicado de forma clarividente todo o processo de formação da sua convicção quanto aos apontados factos, que assentou em depoimentos testemunhais, que a Apelante não põe em causa (refira-se que pelo menos duas das testemunhas – A. M. e A. G. – já haviam sido fundantes da convicção do Tribunal, relativamente à veracidade de factos idênticos, no julgamento dos autos de procedimento cautelar não especificado n.º 340/14.1T8BCL, que a ora Apelante moveu aos ora Apelados/Réus – cfr. fls. 33 a 38, maxime 36 e v.º).
Não se vislumbra, pois, fundamento para alterar a decisão de facto.
**
VI.- Não tendo havido alteração da matéria de facto, adere-se integralmente à fundamentação de direito, não havendo necessidade de aqui a repetir nem se justifica acrescentar outros subsídios, doutrinais ou jurisprudenciais, a confirmá-la.
Pretende a Apelante que se decida pela remoção da barra oscilante que os Apelados/Réus colocaram à entrada do caminho, e “pela não posse dos recorridos sobre o caminho em causa”.
Este segundo segmento da pretensão recursiva deve ser liminarmente rejeitado porque o seu acolhimento pressupõe a total desconsideração dos factos provados, designadamente os que se considerou terem sido abrangidos pela impugnação acabada de julgar improcedente, e a consideração de factos que, sem impugnação, foram julgados não provados, v.g. os referidos sob as alíneas f) a h); j) e l); e ainda m) e n).
Já merece, porém, algumas considerações o segmento da remoção da barra oscilante, atento o primado das decisões materiais em detrimento das meramente formais, erigido em princípio orientador do actual C.P.C..
A Apelante defende a desnecessidade da referida barreira alegando que os Apelados têm “portões, que fecham sempre, à entrada das suas propriedades”, que impedem o acesso a qualquer intruso, e alegando ainda que a mesma barra (ou barreira) “a impede de aceder livremente à porta lateral” de sua casa, e que “as servidões devem estar de forma permanente livres e desimpedidas (cfr. conclusões b); c); e e)).

O Tribunal a quo não acolheu o pedido de remoção da referida barra (ou “barreira automática oscilante”, como vem descrita no ponto de facto n.º 6) deixando referido que:

Apesar de convidada a aperfeiçoar a sua petição, a Autora não o fez de molde a alegar todos os factos essenciais para a procedência dos pedidos supra referidos, já que se limitou a referir que o caminho em questão é de servidão pois serve três prédios.
É certo que resulta da alegação feita pelos Réus – Reconvintes que estes aceitam que o caminho a que a Autora se refere é de servidão. Contudo, na perspetiva dos Réus, que não é coincidente com a da Autora, tal servidão é apenas pedonal, onera o prédio dos Réus e beneficia o da Autora, o que esta não aceita, já que sustenta que os Réus só têm passagem pelo dito caminho, a qual lhes foi autorizada
Ora, desconhece o Tribunal, porque tal não foi alegado, apesar do convite ao aperfeiçoamento, em que moldes surgiu tal servidão, ou seja, qual a forma de constituição da alegada servidão de passagem, facto essencial para a procedência do peticionado pela Autora.
Assim sendo, terão os pedidos supra enunciados formulados pela Autora (pedidos de remoção da barra e de condenação dos Réus a reconhecerem que só têm passagem pelo caminho de servidão que lhes foi autorizada), de improceder, porquanto, relativamente aos mesmos, apenas se apurou nos autos a seguinte factualidade:

- A Autora acede à habitação mencionada em 1) por uma porta que deita para a Rua ... e outra virada a nascente para um caminho;
- Em data não concretamente apurada, os Réus colocaram no início do caminho referido em 5) e já dentro deste, imediatamente a seguir à Rua ..., uma barreira automática oscilante, que permite o seu levantamento;
– Quando a Autora precisa de descarregar lenha ou batatas, tem que fazer o seu transporte para casa à mão, passando pela barreira referida em 6);
– Há mais de 20 anos, que a Autora e seus antepossuidores, usam o caminho descrito em 15) para aceder, a pé, à porta da habitação que deita para aquele.
– Os Réus deixaram, entre o final da barreira mencionada em 6) e o prédio da Autora, uma distância de passagem com cerca de um metro de largura.”.

Os Apelados/Réus reconhecem estar constituída, pelo caminho acima referido, onerando o seu prédio e a favorecer o prédio da Apelante/Autora, uma servidão de passagem a pé (cfr. itens 50.º e 51.º da contestação/reconvenção), e pedem que se declare extinta esta servidão, pedido que foi julgado improcedente.
Esta realidade jurídica trazida para o processo não pode ser ignorada, aproveitando à ora Apelante, que apela ao princípio do desimpedimento das servidões (conclusão e)).
Tendo-se, pois, por assente que se encontra estabelecida uma servidão de passagem a pé, pelo leito do caminho objecto do presente litígio, para se saber da sua extensão e modo como deve ser exercida há que recorrer aos princípios estabelecidos nos art.os 1564.º e 1565.º, n.º 2 do Código Civil (C.C.).
E assim, sendo o título constitutivo da servidão que regula a sua extensão e o modo como deve ser exercida, em caso de dúvida deve entender-se constituída por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o menor prejuízo para o prédio serviente.
Na situação sub judicio as necessidades normais consubstanciam-se no trânsito de pessoas a pé, sendo previsível que tais pessoas transportem carga que consigam suportar – v.g., vulgares sacos de compras, braçados de legumes e plantas, etc. – tendo ainda de se admitir que usem um carrinho de mão como auxiliar no transporte dos volumes mais pesados – v.g., lenha, sacos de batatas, etc.
Destarte, o espaço que tem de lhes ser disponibilizado não pode reduzir-se àquele que ocupa o corpo de uma pessoa, nem é curial que se tome por referência apenas a largura da porta.
Assiste aos Apelados/Réus o direito de tapagem do seu prédio – cfr. art.º 1356.º do C.C. – o que legitima a colocação da barreira, obstaculizando o acesso a veículos automóveis, pelo que a sua remoção só poderia ser-lhes imposta se impedisse a passagem à Apelante.
Ora, ficou provado que os Apelados/Réus deixaram livre (entre a parede do prédio da Apelante e a extremidade da barreira) uma passagem com cerca de um metro (facto n.º 18).
E foi julgado não provado que a ora Apelante “quando necessita passar com compras ou outras necessidades para levar para sua casa, esse obstáculo (a dita barreira) quase se torna impossível de ultrapassar” (2.ª parte da alínea e)).
A Apelante nunca refere a exiguidade do espaço que lhe foi deixado livre e o certo é não haverem razões para presumir que seja insuficiente o espaço de um metro.

Termos em que se impõe concluir desmerecer provimento a pretensão da Apelante, de remoção da barreira ou, na forma mais mitigada, de redução da sua extensão.
**
C) DECISÃO

Nos termos que se deixam expostos, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o presente recurso de apelação, consequentemente, confirmando a mantendo a decisão impugnada.
Custas da apelação pela Apelante, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido.
Guimarães, 30/01/2020

Fernando Fernandes Freitas
Alexandra Rolim Mendes
Maria Purificação Carvalho