Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
843/19.1GAVNF-A.G1
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: RECOLHA COATIVA SALIVA
DIREITO À NÃO INCRIMINAÇÃO
NÃO VIOLAÇÃO DESTE PRINCÍPIO
REGIME LEGAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Ainda que se admita que a colheita coativa de vestígios biológicos para posterior determinação de perfis de ADN, possa implicar uma afectação, limitação ou restrição de direitos fundamentais do indivíduo sujeito a tal colheita, o uso de tal meio de obtenção de prova terá de desenvolver-se em torno do conflito entre direitos fundamentais do arguido e as finalidades do processo penal, entre as quais a procura da verdade material e a realização da justiça.
II) A recolha coativa de saliva através de zaragatoa bucal, e posterior utilização do ADN, trata-se de um meio adequado para a descoberta da verdade material e prossecução da finalidade da realização da justiça – método pouco invasivo, inexistindo outro menos restritivo para alcançar o objectivo da comparação com os vestígios deixados no interior do veículo - não é excessivo nem desproporcional para obter a identidade do arguido, ou seja, os benefícios para a investigação criminal ultrapassam a ligeira compressão dos direitos fundamentais dos cidadãos.
III) Tal determinação coativa também não é suscetível de constituir uma violação do princípio nemo tenetur se isum accusare, no sentido de que não pode recair sobre o arguido o dever de se incriminar a si próprio.
IV) Para além do exame em causa não configurar qualquer declaração contrária à presunção da inocência, o seu resultado é incerto e independente da vontade do arguido, podendo acarretar a final tanto uma condenação, como uma absolvição.
V) Foi este o sentido do entendimento perfilhado no Acórdão do Tribunal Constitucional, nº 115/2007, de 2 de março de 2007, ai se tendo aduzido, no seguimento de jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) e de alguma doutrina citada a tal respeito, que “o direito à não auto-incriminação refere-se ao respeito pela vontade do arguido em não prestar declarações, não abrangendo (…) o uso, em processo penal, de elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos, mas que existam independentemente da vontade do sujeito, como é o caso, por exemplo e para o que agora nos importa considerar, da colheita da saliva para efeitos de realização de análises de ADN. Na verdade, essa colheita não constitui nenhuma declaração, pelo que não viola o direito de não declarar contra si mesmo e a não se confessar culpado. Constitui, ao invés, a base para uma mera perícia de resultado incerto, que independentemente de não requerer apenas um comportamento passivo, não se pode catalogar como obrigação de auto-incriminação (…)”.
Decisão Texto Integral:
Desembargadora Relatora: Cândida Martinho
Desembargador Adjunto: António Teixeira.

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. Relatório

1.
Nos presentes autos de inquérito (Atos Jurisdicionais), com o número 843/19.1GAVNF-A679/15.9GBVVD, que corre termos na comarca de Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo Local Criminal de Vila Nova de Famalicão - por despacho de 11/12/2020, foi decidido, ao abrigo do disposto nos artigos 154 n.°2 do CPP, com referência ao art.° 172 n.°s 1 e 2 do mesmo código, ordenar a colheita coativa de vestígios biológicos do arguido V. H., exclusivamente de saliva, com vista à comparação do seu perfil genético com os vestígios biológicos recolhidos no âmbito destes autos.

2.
Não se conformando com essa decisão veio o arguido recorrer do referido despacho, extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:

“1. A procuração a favor da mandatária signatária foi junta aos autos a 18 de março de 2020.
II. Todavia o mesmo até ao momento somente foi notificado para comparência na GNR para recolha de vestígios de ADN.
III. Salvo o devido respeito, foram violadas as garantias de defesa do arguido, consagrado no artigo 32.°, n.° 1 da Constituição da República; tendo sido violado o direito fundamental de acesso ao Direito consagrado no artigo 20º, n.° 1 da Constituição da República; e o princípio do devido processo legal, reconhecido no artigo 6.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no artigo 20.º, .n.º 4 da Constituição da República.
IV. A omissão de notificação ao arguido e à sua advogada constituída nos autos, dos despachos das diligências de inquérito, salvo o devido e douto entendimento mostram-se violadores daqueles princípios ora alegados.
V. Ora, não permitindo ao arguido aqui recorrente intervir no Processo, se pronunciar sobre e contribuir constitutivamente para co-determinar o objecto do inquérito e se defender, exercendo os direitos que a lei, nomeadamente no artigo 61.º, n.°1 do Código de Processo Penal, lhe reconhece.
VI. Sendo tais atos omissos, são impeditivas do exercício do contraditório e do direito de defesa à mesma reconhecidos legal e constitucionalmente e ocasionaram evidente prejuízo para a realização integral da justiça, dando causa às nulidades previstas no artigo 120.° do Código de Processo Penal.
VII. Tendo ainda incorrido em violação do direito fundamental de acesso ao Direito consagrado no artigo 20.º, n.°1 da Constituição da República, em violação do princípio do devido processo legal, reconhecido no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no artigo 20.º, n.°4 da Constituição da República e em violação das garantias de defesa dos arguidos, consagradas no artigo 32,º, n.°1 da Constituição da República, o que resulta da impossibilidade da Recorrente, totalmente inimputável a esta e provocada por erro grosseiro e indesculpável do Ministério Público, de ter intervindo na fase de inquérito, de ter estado presente em todos os actos processuais que diretamente lhe disseram respeito, de ter oferecido provas e requerido as diligências que se lhe afigurassem necessárias, de ter exercido eficazmente o seu direito de defesa e de ter contribuído para a descoberta da verdade.
VIII. O que desde já se requer e pugna.
IX. É inconstitucional, por violação do direito fundamental de acesso ao Direito consagrado no artigo 20.º, n.° 1 da Constituição da República, do principio do devido processo legal, reconhecido no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no artigo 20.°, n.° 4 da Constituição da República e ainda das garantias de defesa dos arguidos consagradas no artigo 32.°, n.° 1 da Lei Fundamental, quando interpretado no sentido de impedir que as nulidades de omissão, determinado ato contra a qual exista a suspeita de prática de crime, ou na pessoa da Ilustre Advogada nos autos possam ser arguidas a todo tempo, qualquer que seja a fase na qual se encontre o procedimento.
X. Demais, sempre se dirá que o meio de prova que ora se pretende obter mostra-se perante o nosso entendimento em relação à forma de recolha de zaragatoa bucal com utilização da força física, perante a inevitabilidade “prática” de como terá necessariamente de ocorrer, é essencial situar a questão, em nosso entender de forma clara, na cominação de nulidade prevista no artigo 126.º, n.° 1 do CPP e do artigo 32.º, n.°8 da CRP, alicerçada no facto de se tratar, no mínimo, de um tratamento cruel, desumano e degradante (vide artigo 25°, n.°2 da CRP, artigo 1.º da Convenção Contra a Tortura e Maus Tratos ou Penas Cruéis, Inumanas ou Degradantes, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 20 de Julho de 1988 artigo 5.º da DUDH e artigo 3.° da CEDH).
XI. Perante tal nulidade, a recolha do material biológico do arguido será considerado um ato nulo, tendo como consequência a invalidade do mesmo, conforme previsto no artigo 122.º do CPP.
XII. Perante esta factualidade, há que ponderar se a invalidade (por via da nulidade) da recolha de ADN, nas condições acima referidas, torna os posteriores atos de determinação de ADN e comparação com outros perfis, igualmente ato nulos, ou se, ao invés, os mesmos poderão ser aproveitados no processo.
XIII. É que a prossecução da Justiça através da descoberta da verdade material, não significa que se deva obter a verdade “a qualquer custo” e/ou por “quaisquer meios”. Por esse motivo, e tendo em conta o que consta da presente reflexão, e as sugestões que avançámos, impor-se-ão (provavelmente) à investigação criminal o desenvolvimento e investimento em formas alternativas e astuciosas (que não significam enganosas) de recolha de ADN a arguidos em processo-crime.
XIV. Assegurando assim que o arguido não seja reduzido a um mero objeto da atividade estadual.
XV. Nessa linha de raciocínio Vera Lúcia Raposo entende que a “liberdade individual de cada cidadão, liberdade esta que seria posta em causa caso o arguido fosse degradado a objeto e instrumentalizado a meio de prova contra si mesmo. Dai a importância de proteger o silêncio do arguido em processo criminal, providenciando para que nunca funcione contra si”,
XVI. Por conseguinte, as provas obtidas em violação do direito de proteção contra auto-incriminações deverão considerar-se nulas, por atentarem contra a integridade moral do arguido, ou mesmo por constituírem uma forma de tortura”.
XVII. Ora, o exame de recolha de saliva viola este princípio, devendo assim mais uma vez ser nula a prova obtida através da análise de recolha de saliva, pois este atenta de forma clara contra a integridade moral do aqui recorrente.
XVIII. Por tudo o exposto, entende-se que o resultado obtido através da análise de recolha de saliva não deve valor como prova, uma vez que o exame em questão envolve uma restrição de direitos e liberdades e garantias do aqui recorrente.
XIX. Assim como, deve ser revogado o despacho proferido pelo juiz a quo que autoriza e ordena a recolha de saliva através de zaragatoa bucal, mesmo que para isso seja realizada contra a vontade do arguido.
XX. Pois estamos perante uma obtenção clara de provas ilícitas.
XXI, Normas Jurídicas Violadas: Artigo 25.º, 26. e 32° todos da CRP; artigo 8.º da CEDH; artigo 12° da DUDH; os artigos 126° n.° 1 e 2 alíneas a) e c), bem como o artigo 172° n.°1 ambos do CPP.
XXII. Principio Jurídicos Violados: nemo tenetur se ipsum accusare”

Nestes termos e no mais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser reconhecida a nulidade nos termos e para os efeitos do artigo 120º do CCP bem como revogado o despacho que autoriza e ordena a recolha de saliva através de zaragatoa bucal, mesmo que para isso seja realizada contra a vontade do arguido. Fazendo-se, assim, a habitual e acostumada JUSTIÇA!!”.

3.
O Exmo Procurador da República junto da primeira instância respondeu ao recurso, concluindo nos seguintes termos (transcrição):

“1. O despacho sob recurso visa a recolha de coativa, através de zaragatoa bocal, de material biológico ao arguido, exclusivamente saliva, com vista à comparação do seu perfil genético com vestígios biológicos recolhidos nos autos;
2. A recolha de ADN para fins de investigação criminal é permitida pelo artigo 42, n.º 1 e 3, da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro (Lei relativa à BASE DE DADOS DE PERFIS DE ADN PARA FINS DE IDENTIFICAÇÃO CIVIL E CRIMINAL);
3. E, consequentemente, a prova resultante da recolha e ulterior comparação do ADN com o contido nas amostras de material biológico encontrado no veículo automóvel usado no cometimento dos crimes em causa nos autos, é, na aceção do artigo 125º do CPP, legal, e, portanto, válida;
4. É, por outro lado, manifesta a utilidade e a imprescindibilidade da perícia a realizar, já que poderá levar à determinação de qual dos dois ocupantes do automóvel o conduzia aquando da prática dos crimes que se investigam - que se traduziram, para além do mais, no atropelamento dos dois ofendidos com subsequente fuga do autor ou autores;
5. A recolha de saliva através de zaragatoa bucal, não atinge a integridade moral e física do arguido, protegida pelo seu n.º 1, do artigo 25.º da CRP, e não pode ser tida como tortura ou trato cruel, degradante ou desumano, constitucionalmente proibidos no seu n.º 2;
6. É que se o arguido, discordando da decisão e do seu caráter compulsivo, recusar, por isso mesmo, a prestação de qualquer cooperação positiva sem, todavia, resistir pela força à sua execução, seguramente não ocorrerá qualquer agressão ou mau-trato capaz de prejudicar o seu bem-estar físico de uma forma não insignificante;
7. Opondo-se o arguido pela força à execução da diligência, uma eventual lesão à sua integridade física radicará na sua decisão livre e não na pretensão do Estado em fazer legitimamente cumprir a legalidade democrática;
8. A ocorrer uma tal lesão na integridade física do recorrente será em tal caso autoinfligida;
9. Seja como for, ainda que assim se não considere, admitindo que as normas contidas 4.º, n.º 1 e 3, da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro, e 172, n.º 1, do CPP, afligiam de modo insuportável direitos e garantias fundamentais do recorrente, sempre se imporia o recurso ao mecanismo de concordância prática de direitos fundamentais, previsto no artigo 18, n.º 2, do CRP;
10. E, nessa perspetiva, é legal o despacho que determinou a perícia e a consequente recolha forçada (por recusa do arguido) já que respeita a concordância prática entre as finalidades da realização da justiça e de descoberta da verdade material e de proteção dos direitos fundamentais das pessoas;
11. Não se prefigura, pois, qualquer possível ofensa da integridade física ou moral do recorrente por via da execução da decisão, nomeadamente por perturbação da sua liberdade de vontade ou de decisão por via de maus-tratos e ofensas corporais que sobre ele possam ser ilicitamente perpetradas;
12. E, se a obtenção do resultado pretendido se não fará à custa de qualquer lesão na integridade física ou moral do recorrente, obviamente que em caso algum se poderá dizer que possa vir a resultar de tortura;
13. Daí que, como procurou evidenciar-se, ao contrário do que é pretendido no recurso, não está suposta a utilização da força fora de caso e nos limites permitidos pela lei;
14. Donde que a prova emergente da perícia que se pretende realizar não será nula, posto que não ocorre qualquer violação do artigo 126º, 1 e 2, do CPP.
Porém, Vossas Excelências, doutamente suprindo, farão, como habitualmente, justiça”.

4.
Neste Tribunal da Relação, o Exmo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo pela improcedência do recurso.

5.
Cumprido o art. 417º,nº2, do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.

6.
Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art.419º,nº3,al.c), do diploma citado.

II. Fundamentação

A) Delimitação do Objeto do Recurso

Como é consensual, quer na doutrina quer na jurisprudência, são as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação, sintetizando as razões do pedido, que definem e determinam o âmbito do recurso e os seus fundamentos, delimitando para o tribunal superior as questões a decidir e as razões por que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certos vícios e nulidades, ainda que não invocados ou arguidas pelos sujeitos processuais.
Todavia, no caso vertente, impõe-se apreciar uma questão prévia, a qual se prende com o indeferimento do recurso no segmento em que apontam as conclusões elencadas nos pontos I a IX.
Como resulta do princípio geral estatuído no artigo 399º do Código de Processo Penal, a interposição de um qualquer recurso pressupõe, por um lado, a existência de um acórdão, uma sentença ou um despacho, sem o qual inexiste objeto para se recorrer, e por outro, a sua recorribilidade, sendo este o princípio geral.
No caso vertente, o ora recorrente, pese embora venha invocar que no inquérito foram violadas as suas garantias de defesa, o seu direito de acesso ao direito e a um processo equitativo, violações que foram impeditivas do exercício do contraditório, consubstanciando nulidades previstas no artigo 120º do C.Processo Penal, não alega a existência de qualquer ato decisório que em primeira instância se tenha pronunciado sobre tais questões.
Ora, inexistindo qualquer ato decisório que tivesse versado sobre eventuais violações e consequentes nulidades cometidas em inquérito, e estando vedado a este tribunal ad quem conhecer em primeira linha de questões que não foram objecto de pronúncia em primeira instância, impõe-se rejeitar neste segmento o recurso, por falta de objeto.
Posto isto, atenta a conformação das conclusões formuladas pelos recorrentes, bem como a inadmissibilidade do recurso no segmento referido, a única questão que importa conhecer prende-se em saber se o despacho recorrido ao determinar a colheita coativa de saliva viola, nomeadamente, direitos fundamentais do arguido e o princípio da proibição da auto-incriminação, constituindo, nessa medida, um método de prova proibido.

B) Despacho Recorrido

"Nos presentes autos o Ministério Público promove que o arguido V. H. seja submetido a recolha coerciva de ADN através de zaragatoa bocal para recolha de saliva.
Está em causa um acidente de viação, que ocorreu em 23-10-2019, cerca das 20 horas, na Rua …, freguesia de …, deste concelho de Vila Nova de Famalicão, e cujo veículo atropelou duas pessoas ali identificadas, que circulavam pela passadeira, pondo-se em fuga.
Efectuaram-se diligências junto das testemunhas e averiguou-se que a viatura atropelante seria um Audi A3 de cor preta, que deixou um rasto intenso de fumo negro, cuja matricula tinha a letras T e N.
Foi chamada a brigada do NICAV ao local, que efectuou a recolha de vestígios e indícios encontrados e que apreendeu (v. fls. 18/19).
O departamento comunicou no dia seguinte que tinha encontrado a viatura – tratando-se de um veículo de marca Audi, modelo A3, matrícula n°. TN — e que o suspeito A. C. lhes referiu que não era o condutor, embora estivesse dentro do veículo na altura dos factos; mais comunicou que o condutor era o V. H..
Este informou a GNR que também estava dentro do veículo, mas que o condutor era o A. C..
O veículo foi apreendido e, para além de outras diligências documentadas nos autos, foram recolhidos vestígios biológicos do interior do veículo e que contendem com o lugar do condutor, além do mais.
Há necessidade de fazer exames de comparação, para determinar com segurança quem era o condutor do veículo, responsável pelo acidente e pela prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário p. e p. pelo art°. 293°., n°. 1-al. b), do CP (em concurso ideal com dois crimes de ofensa à integridade física por negligência) — v. fls. 87.
Os suspeitos foram constituídos arguidos e interrogados como tais (v. autos de fis. 71 e 84)
Nos vestígios recolhidos no veículo é possível, segundo informação do LPC recolher ADN (v. fls. 58).
O Ministério Público entende que existe necessidade de efectuar uma comparação entre a análise de ADN recolhida dos referidos vestígios e o ADN do arguido acima identificado V. H. com vista a apurar quem era o condutor da viatura no dia em questão.
O arguido recusou-se submeter-se a tal recolha — declaração expressa junta aos autos a 28.09.2020.

Cumpre apreciar:

O tribunal da Relação do Porto, em aresto datado de 08.05.2019, disponível em www.dgsi.pt, pronunciou-se sobre esta questão nos seguintes termos:
“Visa o processo penal a aplicação do direito penal substantivo, mediante exercício de atividade probatória que se destina a convencer da existência ou não dos factos penalmente relevantes, fazendo-se a distinção entre meios de obtenção de prova e meios de prova.
Entre aqueles contam-se os exames.
“A colheita de vestígios biológicos (saliva) através de uma zaragatoa bucal constitui um exame.
A colheita de vestígios biológicos para posterior determinação de perfis de ADN, em caso de falta de consentimento do visado, é da competência reservada do juiz, que decide, após ponderação, da necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado e as necessidades da Justiça.
Do artigo 18° da CRP resulta que os direitos fundamentais e as liberdades públicas podem ser comprimidos, desde que se respeite o princípio da legalidade, da intervenção mínima e da proporcionalidade.
A propósito da recolha de material biológico a arguido, pronunciou-se o Tribunal Constitucional referindo que a Constituição não proíbe, em absoluto, a recolha coativa de material biológico de um arguido (designadamente de saliva, através da utilização da técnica da zaragatoa bucal) e a sua posterior análise, não consentida, para fins de investigação criminal.
Quer a Convenção Europeia dos Direitos Humanos quer a Declaração Universal dos Direitos Humanos apresentam também instrumentos de harmonização e concordância prática em tudo semelhantes aos constantes do artigo 18° da CRP.
É legal o despacho que determinou o exame respeitando a concordância prática entre as finalidades da realização da justiça e de descoberta da verdade material e de proteção dos direitos fundamentais das pessoas.”
No mesmo sentido existe inúmera e rica jurisprudência.
No caso concreto não existe qualquer dúvida de que a realização do exame é um meio de prova fundamental para a descoberta da verdade material dos factos. Existem indícios probatórios sólidos que apontam para a intervenção do arguido na prática dos factos.
Por outro lado, estão em causa crimes graves que impõem a submissão da reserva do arguida e da sua integridade pessoal face à necessidade imperiosa de realização do exame.
Assim, nos termos do art.° 154 n.° 2 do CPP, com referência ao art.° 172 n.°s 1 e 2 do mesmo código, decido ordenar a colheita coativa de vestígios biológicos do arguido V. H., exclusivamente de saliva, com vista à comparação do seu perfil genético com os vestígios biológicos recolhidos no âmbito destes autos.
Tal exame será feito através de zaragota bocal e nos termos e condições a definir pelo Ministério Público”.

C) Apreciação do Recurso

Insurge-se o recorrente com o facto do despacho recorrido ter determinado, contra a sua vontade, que lhe fosse feita colheita de zaragota bucal com vista à recolha de vestígios biológicos para extracção do seu ADN, com vista à sua posterior comparação com o que vier a ser obtido dos vestígios biológicos recolhidos nos autos, na medida em que tal viola as normas Jurídicas dos artigos 25.º, 26º e 32° da Constituição da República Portuguesa, o artigo 8.º da CEDH, o artigo 12° da DUDH, os artigos 126° n.°1 e 2 alíneas a) e c) e 172° n.°1, do CPP e o princípio “nemo tenetur se ipsum accusare”.
Entre os meios de obtenção de prova previstos no nosso sistema processual penal contam-se, entre outros, os exames, dispondo o artigo171º, nº1,do C.P.P., que “Por meio de exames das pessoas, dos lugares e das coisas, inspeccionam-se os vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticado, às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido”.
O exame de ADN, implicando a prévia recolha de amostras biológicas do arguido, a partir das quais se obtém a informação genética do indivíduo, tendo como objectivo compará-la com o perfil genético obtido através de amostras biológicas recolhidas na vítima ou no local do crime, constitui um meio de obtenção de prova.
Dispõe o artigo 172º, nº1 do C.P.P., sob a epígrafe “Sujeição a Exame” que “Se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada, pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente.”
Acrescenta o nº2 que é correspondentemente aplicável o disposto nos nº3 do artigo 154º e 6 e 7 do artigo 156º.
De acordo com o citado art.154º,nº3, “quando se tratar de perícia sobre as características físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado o consentimento, o despacho previsto no número anterior é da competência do juiz, que pondera a necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado”.
Estando em causa a colheita coativa de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético, porquanto não foi dado o consentimento para a sua realização, deve a mesma ser determinada por um juiz, não podendo ser valorada se for obtida de outro modo, após ponderação da necessidade dessa colheita, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado (arts. 172,nº1 e 269º,nº1,alb), ambos do C.P.P. e 8º,nº1, da Lei 5/2008, de 12/2), colheita essa que de acordo com o nº6 do citado art.156º deve ser realizada por médico ou outra pessoa legalmente autorizada, não podendo criar perigo para a saúde do visado.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª Ed., 2011, pág.463, “ a nova Lei 5/2008, de 12/2, aprovou a criação de uma base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e criminal . O seu artigo 8º,nº1, prevê a recolha de amostras em processo criminal a pedido do arguido ou ordenada, oficiosamente ou a requerimento, por despacho do juiz, a partir da constituição de arguido, ao abrigo do disposto no artigo 172º do C.P.P. Isto é, verificados os requisitos do exame previstos no artigo 171º, pode ser ordenada pelo juiz a recolha de amostra destinada a análise de ADN, se necessário, com o uso da força, desde que esta intervenção seja proporcional”.
Consagra-se agora na referida lei que “as finalidades de investigação são prosseguidas através da comparação de perfis de ADN, relativos a amostras de material biológico colhidas em locais de crimes com os das pessoas que, direta ou indirectamente a eles possas estar associadas, com vista à identificação dos respectivos agentes, e com os perfis existentes na base de dados de perfis de ADN”.
Já no artigo 5º identifica-se as entidades competentes para a realização da análise da amostra, sendo elas o Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária e o Instituto Nacional de Medicina Legal. No artigo 9º é assegurado o direito à informação sobre o destino e natureza dos dados extraídos da amostra, ou seja, o perfil de ADN.
Quanto ao modo de recolha, estatui o artigo 10º que “ a recolha de amostras em pessoas é realizada através de método não invasivo, que respeite a dignidade humana e a integridade física e moral individual, designadamente pela colheita de células da mucosa bucal ou outro equivalente, no estrito cumprimento dos princípios e regime do Código de Processo penal.
A respeito da preservação das amostras, dispõe o artigo 11º, que “salvo em casos de manifesta impossibilidade, é preservada uma parte bastante e suficiente da amostra para a realização da contra-análise”, regulando o artigo 12º que o âmbito da análise da amostra restringe-se apenas àqueles marcadores de ADN que sejam absolutamente necessários à identificação do seu titular para os fins da presente lei”.
Pese embora antes da entrada em vigor da referida lei a questão da admissibilidade ou não da recolha coativa de material biológico para posterior análise de ADN tivesse gerado alguma discussão no nosso ordenamento jurídico-penal português, face à ausência de uma lei que expressamente regulasse a sua admissibilidade, já era admissível a colheita coativa de material biológico ao arguido no que diz respeito à determinação do seu perfil genético para posterior comparação com outros vestígios biológicos encontrados no local do crime ou na vítima, pela simples razão de que o interesse comunitário e do Estado na administração da justiça não podia ser esquecido.
Para alguns a base legal era o artigo 172º,nº1 do C.P.P, para outros faziam-na assentar no art.61º,nº3,al.d), do C.P.Penal que dispõe recaírem sobre o arguido os deveres especiais de “sujeitar-se a diligências de prova (…) especificadas na lei e ordenadas efectuadas por entidade competente” e, por fim, outros baseavam-se na Lei 45/2004, atinente ao regime jurídico das perícias médico-legais e forenses, mais concretamente no disposto no seu artigo 6º, de acordo com o qual, “ninguém pode eximir-se a ser submetido a qualquer exame médico-legal quando este se mostrar necessário ao inquérito ou à instrução de qualquer processo e desde que ordenado pela autoridade judiciária competente nos termos da Lei”.
É certo que o art.30, desta Lei nº45/04, dispõe que “o acesso à informação genética ou biológica bem como o tratamento dos respectivos dados são regulados em legislação específica que salvaguarde os direitos fundamentais das pessoas, nos termos da Constituição e do direito internacional aplicável”.
Contudo, como refere o Tribunal Constitucional no acórdão nº 115/2007, de 2 de março de 2007, publicado no DR, 2ªSérie, 10/4/2007 «esse preceito legal, inserido nas disposições finais e transitórias do diploma, apenas se refere a dois dos aspectos que se relacionam com os exames médico-legais e perícias no âmbito da genética, para os remeter para legislação específica: o do “acesso à informação genética” e o do “tratamento de dados”, entendendo o legislador que, determinada a realização do exame que se mostrar necessário ao inquérito ou à instrução do concreto processo em causa e efectuado o mesmo - trata-se de disposição final e transitória - há tão somente dois aspectos do regime desse exame que ficam sujeitos a legislação específica: o acesso à informação recolhida no exame, nomeadamente por terceiros e já necessariamente fora do contexto da sua realização e do inquérito ou processo em causa, e o tratamento dos dados obtidos, nomeadamente no quadro de criação de uma eventual base dos mesmos.
Que o legislador não pretendeu excluir os exames genéticos do âmbito de aplicação daquele diploma, revela-o a existência no diploma de uma Secção - a IV - dedicada aos “exames e perícias no âmbito da genética, biologia e toxicologia forense».
Existia assim já suporte legal para a realização do exame em causa como foi reconhecido pelo citado acórdão do Tribunal Constitucional.
Nos presentes autos, está em causa um acidente de viação cujo veículo interveniente atropelou duas pessoas que circulavam pela passadeira, pondo-se em fuga.
Tendo sido identificado e apreendido o veículo automóvel, foram recolhidos vestígios biológicos no seu interior que contendem com o lugar do condutor, sendo possível através dos mesmos recolher ADN.
Os dois suspeitos possíveis condutores do mesmo foram constituídos arguidos e interrogados, tendo o titular do inquérito entendido haver necessidade de fazer exames de comparação entre a análise de ADN recolhida dos referidos vestígios e o ADN do arguido V. H., com vista a apurar quem era o condutor da viatura no dia em questão.
Perante a recusa do arguido em realizar o exame, o Mmo Juiz, a solicitação do Ministério Público, determinou a colheita coativa de vestígios biológicos (saliva), por, no seu entender, a realização de tal exame ser um meio de prova fundamental para a descoberta da verdade material dos factos, face à existência de indícios probatórios sólidos que apontam para a intervenção do arguido na prática dos factos, para além de que estando em causa crimes graves os mesmos impõem a submissão da reserva do arguido e da sua integridade pessoal face à necessidade imperiosa de realização do exame.
Aqui chegados podemos já concluir que o despacho recorrido mostra-se em conformidade com as disposições legais citadas.
Com efeito, sendo a referida colheita legalmente admissível, mas tendo-se a ela oposto o arguido, porquanto não deu o seu consentimento, a mesma foi determinada por despacho judicial, no âmbito do qual, no equilíbrio entre a protecção dos direitos à integridade pessoal e à reserva da intimidade do arguido, por um lado, e a descoberta da verdade da verdade material dos factos, por outro lado, se concluiu pela necessidade da realização do exame.
Sustenta o recorrente que tal despacho, nos termos em que o foi, viola direitos fundamentais - artigos 25.º, 26º e 32° da Constituição da República Portuguesa, o artigo 8.º da CEDH, artigo 12° da DUDH - pondo ainda em causa o princípio da proibição da auto-incriminação, pelo que tratando tal meio de obtenção de prova proibido, nula é também a prova assim obtida e proibida a sua utilização nos termos do artigo 126º do C.P.P..
Adiantando a nossa conclusão, não cremos que lhe assista qualquer razão.

Vejamos.

Dispõe o artigo 126.º, sob a epigrafe “Métodos proibidos de prova”, nos seus nºs 1 e 2, al.s a) e c), do CPP que:

“1 – São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coação ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
2 – São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;…
(…)
c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei (…)”.

Assumindo uma configuração de verdadeiras “garantias de processo criminal” as denominadas “proibições de prova” constituem concretizações processuais de direitos fundamentais, como o direito à integridade pessoal, o direito à reserva da intimidade privada e familiar e o direito à liberdade, consagrados nos artigos 25º,nº1,26º,nº1 e 27º,nº1 da Constituição da República Portuguesa.

Dispõem os citados artigos 25º e 26º, respectivamente:

Artigo 25º:
1.“A integridade moral e física das pessoas é inviolável.
2. Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis ou desumanos”.
Artigo 26º
“1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.”

Por seu turno, prescreve ainda o artigo 32º,nº8, da C.R.P. que “são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”, princípio que encontra consagração nos textos do direito internacional, nomeadamente nos artigos 12º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, arts.3º e 8º da Convenção Europeia dos Direito do Homem e artigo 7º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.
Estatuindo o artigo 16º,nº1, da CRP que “Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional”, dispõe o artigo 12.º da DUDH, que “Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação…” proclamando ainda o artigo 8.º,nº1, da CEDU, o direito de qualquer pessoa pelo respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.
Ora, ainda que se admita que a colheita coativa de vestígios biológicos para posterior determinação de perfis de ADN, possa implicar uma afectação, limitação ou restrição de direitos fundamentais do indivíduo sujeito a tal colheita, o uso de tal meio de obtenção de prova terá de desenvolver-se em torno do conflito entre direitos fundamentais do arguido e as finalidades do processo penal, entre as quais a procura da verdade material e a realização da justiça.
Com efeito, pese embora o artigo 18.º,nº2, da CRP, estatua que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, “deve o mesmo ser interpretado no sentido de que apenas é ilegítima toda a restrição que atinja o conteúdo essencial de cada um dos direitos subjectivos individuais, isto é, que atente contra as exigências (mínimas) de valor que, por serem de projecção da ideia de dignidade humana, constituem o fundamento (a essência) de cada preceito constitucional nesta matéria.
(…) Daí que o nosso ordenamento jurídico preveja várias situações em que o direito à integridade corporal e o direito à autodeterminação corporal cedem face a interesses comunitários e sociais preponderantes, quer na área da saúde pública, quer na área da defesa nacional, quer na área da justiça, quer noutras áreas. Assim sucede quando se impõem certas condutas corporais como a vacinação obrigatória, os radiorrastreios, o tratamento obrigatório de certas doenças contagiosas, a proibição de dopagem dos praticantes desportivos, o serviço militar obrigatório ou a prestação de serviço cívico e a realização de perícia psiquiátrica e de perícia sobre a personalidade. (Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no recurso nº3261/01, relatado pelo Juiz Conselheiro Dr Oliveira Mendes, citado no Ac. da Relação do Porto de 3 de maio de 2006, recurso 6541/05.4).
Em consonância com o citado artigo 18º da C.R.P e acrescentando o artigo 16º, nº2, do mesmo diploma, que “Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem”, importa também trazer à liça o artigo 29º desta DUDH, o qual permite que o legislador estabeleça limites aos direitos fundamentais para assegurar o reconhecimento ou respeito dos valores enunciados: «direitos e liberdades de outrem», «justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar geral duma sociedade democrática».
De salientar que igualmente o citado artigo 8º da CEDH, admite, no seu nº2, restrições ao direito previsto no nº1, sempre que a ingerência esteja prevista na lei e constitua uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção de infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou à protecção dos direitos e liberdades de outrem.
Ou seja, tais instrumentos internacionais admitem também que os referidos direitos fundamentais não são absolutos, podendo ceder nas respectivas situações previstas.
No caso vertente, cremos que a decisão recorrida mostra-se acertada, reflectindo uma ponderação equilibrada entre a protecção dos direitos fundamentais do arguido, por um lado, e o interesse comunitário e o do Estado na administração da justiça penal, por outro lado, atento o tipo de crimes em apreço e a necessidade do exame ordenado para a descoberta da verdade dos factos e realização da justiça.
Acresce que, estando em causa, na colheita ordenada, a recolha de saliva através de zaragatoa bucal, em conformidade com o estatuído no artigo 10º da Lei 5/2008 (método não invasivo), nem sequer pode considerar-se susceptível de ofender o direito à integridade corporal do recorrente, mas tão só o direito à autodeterminação corporal, e em grau ou medida que nos parece irrelevante.
Neste conspecto, tendo presente que o exame ordenado tem em vista a procura da verdade material para administração da justiça penal, o que constitui uma exigência da ordem pública e do bem-estar geral, bem como um dos pilares do Estado de direito, há que concluir que a sua realização compulsiva mostra-se justificada e legitimada a significar que a decisão impugnada não viola as normas invocadas ao determinar o exame e perícia mediante extracção de saliva por via de zaragatoa bucal, dado que a mesma apenas é susceptível de ofender o direito à autodeterminação corporal do recorrente em medida irrelevante.
A recolha coativa de saliva através de zaragatoa bucal e posterior utilização do ADN, trata-se assim de um meio adequado para a descoberta da verdade material e prossecução da finalidade da realização da justiça – método pouco invasivo, não existindo outro menos restritivo para alcançar o objectivo da comparação com os vestígios deixados no interior do veículo - não é excessivo nem desproporcional para obter a identidade do arguido, ou seja, os benefícios para a investigação criminal ultrapassam a ligeira compressão dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Por fim, sustenta também o recorrente que a determinação coativa da colheita em apreço e a utilização do ADN viola o princípio nemo tenetur se isum accusare, com consagração nos artigos 2º,26º,32º,nº2 e 4, da Constituição da República Portuguesa e 6º da CEDH.
Pretende-se com tal princípio, que poderá colher o seu fundamento nos valores da dignidade humana e da presunção da inocência do arguido, exprimir a ideia de que não pode recair sobre o arguido o dever de se incriminar a si próprio.
Não podemos concordar com o recorrente.
Desde logo, para além do exame em causa não configurar qualquer declaração contrária à presunção da inocência, o seu resultado é incerto e independente da vontade do arguido, podendo acarretar a final tanto uma condenação, como uma absolvição.
Foi este o sentido do entendimento perfilhado no citado acórdão do Tribunal Constitucional, ai se tendo aduzido no seguimento de jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) e de alguma doutrina citada a tal respeito, que “o direito à não auto-incriminação refere-se ao respeito pela vontade do arguido em não prestar declarações, não abrangendo (…) o uso, em processo penal, de elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos, mas que existam independentemente da vontade do sujeito, como é o caso, por exemplo e para o que agora nos importa considerar, da colheita da saliva para efeitos de realização de análises de ADN. Na verdade, essa colheita não constitui nenhuma declaração, pelo que não viola o direito de não declarar contra si mesmo e a não se confessar culpado. Constitui, ao invés, a base para uma mera perícia de resultado incerto, que independentemente de não requerer apenas um comportamento passivo, não se pode catalogar como obrigação de auto-incriminação (…)”.
Por tudo o exposto, não padecendo o despacho recorrido de qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade, impõe-se a improcedência do presente recurso.

III. Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4UC.

(Texto elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários – art.94º,nº2, do C.P.P.)
Guimarães, 26 de abril de 2021