Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3662/22.4T8VNF-A.G1
Relator: MARIA EUGÉNIA PEDRO
Descritores: INSOLVÊNCIA
PROCESSO CRIME
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
RECLAMAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. O titular de direito a indemnização civil emergente da prática de crime, não pode ver reconhecido o seu direito no âmbito do processo de insolvência.
2. É no processo penal que mercê princípio de adesão tem que deduzir o pedido de indemnização civil, nos termos dos arts 71º a 84º C.P.Penal.
3. Tal solução legal justifica-se por razões de ordem formal e material conexas com a relevância dos elementos penalmente típicos na quantificação da indemnização, sendo que tais elementos devem ser apurados à luz de princípios de direito e de prova próprios do direito processual penal.
4. Após a fixação da indemnização no processo crime, pode o credor reclamá-la no processo de insolvência e, caso se mostrem esgotados os prazos para o efeito, exigir o seu pagamento em processo autónomo.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

Nos autos principais de insolvência foi por sentença proferida em 22.6.2022 e transitada em julgado  declarada a insolvência de  AA e BB.
E em 16.9.2022 foi proferida decisão de encerramento do processo por  insuficiência de bens, nos termos  do art. 230, nº1, al d)  do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas( CIRE,  diploma ao qual pertencerão todos os  normativos indicados sem menção de origem) e, em 3.11.2022, foi admitido o pedido de exoneração do passivo restante dos  insolventes.
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Neste  apenso de reclamação de créditos,  em 16.8. 2022, o administrador judicial da insolvência  ( doravante AI) apresentou  a lista  dos  credores reconhecidos  e a lista dos credores não  reconhecidos, nos termos do art. 129º,   constando  nesta última  o credor  CC, com um crédito reclamado  no valor de  € 26.532,00,  não  reconhecido   por se reportar a um  contrato de compra e venda  celebrado com  a sociedade H..., Lda, e não com o insolvente.
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Em  29.8.2022,  DD veio impugnar a lista dos créditos  apresentada pelo AI,  requerendo  que  o crédito por si reclamado,  no valor de € 26.532,00, seja reconhecido e graduado  nos termos legais.

A fundamentar tal impugnação, alegou, em síntese:

- Em setembro de 2020, o Insolvente H..., através da sociedade H... LDA., NIPC ..., com sede na Rua ..., ... ..., celebrou com o ora impugnante um contrato de compra e venda de uma viatura usada, importada da ..., marca ..., modelo ... ... 220 ..., com o chassis n.º... e com registo inicial em 03 de maio de 2017 (cfr. documentos n.ºs ..., ..., ... e ... que ora se juntam e que, por motivos de brevidade aqui se consideram integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais).
- Nos termos do mencionado contrato, a sociedade H... LDA., através do seu gerente e ora Insolvente AA, comprometeu-se a entregar ao aqui Impugnante, CC, a viatura supra identificada, devidamente legalizada, isto é, com matrícula portuguesa.
-Tendo em vista o pagamento do preço da viatura, o ora Impugnante CC entregou ao Insolvente a quantia global de € 26.532,00, da seguinte forma:
- € 2.000,00 através da mãe do Impugnante EE, em 8 de setembro de 2020, por indicações do Insolvente AA, para a conta do seu filho FF, através de transferência multibanco efetuada para a conta deste último (cfr. documentos n.ºs ..., ... e ... que ora se juntam e que, por motivo de brevidade, aqui se consideram integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais);
- O pagamento do valor remanescente € 24.532,00, foi efetuado pelo Impugnante CC, em 18 de setembro de 2020, através de transferência bancária para a conta da sociedade H... LDA. (cfr. documentos n.ºs ... e ...0 que ora se juntam e que, por motivo de brevidade, aqui se consideram integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais).
- Para  pagamento do preço do veículo, o ora Impugnante CC recorreu a um financiamento bancário, tendo celebrado com a Banco 1..., S.A., em 17 de setembro de 2020, o contrato de mútuo com penhor n.º  ...84 (cfr. documento n.º ...1 que ora se junta e que, por motivos de brevidade aqui se considera integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).  E para garantia desse financiamento foi constituído penhor, até ao valor de € 20.200,00,  a favor da Banco 1..., S.A., sobre o crédito relativo à conta de depósito a prazo n.º  ...61, aberta em nome de EE, mãe do  impugnante CC (cfr. cláusula 23.ª, referente às “Garantias”, do contrato de mútuo com penhor n.º  ...84, já junto aos autos sob documento n.º ...1).
- A sociedade H... LDA. como garantia do cumprimento das suas obrigações entregou ao aqui Impugnante CC o cheque n.º ...23, sacado sobre o Banco 2..., em 14 de setembro de 2020, no valor de € 26.532,00 (cfr. documento n.º ...2 que ora se junta e que, por motivos de brevidade aqui se considera integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
- Em janeiro de 2021, o ora Impugnante CC apresentou a pagamento o cheque n.º ...23 supra mencionado, sendo o mesmo devolvido com a indicação de “cheque revogado – extravio” (cfr. documento n.º ...3 que ora se junta e que, por motivos de brevidade aqui se considera integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
-   O Insolvente, gerente da sociedade H... LDA. comunicou, falsamente, ao Banco 2... o extravio do cheque n.º ...23 supra mencionado e que havia entregue ao Credor, ora Impugnante, CC, como garantia do bom cumprimento das suas obrigações.
- o Insolvente AA nunca pretendeu celebrar qualquer contrato de compra e venda da viatura usada, importada da ..., marca ..., modelo ... ... 220 ..., com o chassis n.º... e com registo inicial em 03 de Maio de 2017 e portanto, nunca pretendeu entregar tal viatura ao ora Impugnante agiu apenas com a intenção de obter para si um enriquecimento ilegítimo, no valor de pelo menos € 26.532,00 (vinte e seis mil, quinhentos e trinta e dois euros), pretendendo com a sua conduta enganosa e astuciosa enganar o Credor e provocar-lhe prejuízo patrimonial de igual montante.
- Com a sua conduta astuciosa, o Insolvente AA manipulou a vontade do Credor CC, com a intenção de obter para si um enriquecimento ilegítimo, à custa do empobrecimento do património do credor e da sua mãe.
- Tanto assim que, decorridos quase dois anos desde a celebração do contrato de compra e venda, o Insolvente AA e a sociedade H... LDA. nem sequer iniciaram o processo de legalização da viatura importada na competente Alfândega.
- Com a sua conduta o insolvente locupletou-se  ilícita e dolosamente com a quantia de € 26.532,00 e  ao dar  instruções ao banco sacado para a revogação do referido cheque, comunicando-lhe que o mesmo havia sido extraviado, bem sabendo que  tal informação  não correspondia à verdade, quis, e alcançou que o  banco devolvesse o cheque com essa indicação,  pondo  em causa a segurança e a credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental .
- Visou  e consegui impedir o pagamento da quantia titulada nesse cheque pelo Banco sacado, com a intenção de alcançar benefício para si e para a sua representada, causando –lhe um prejuízo patrimonial de, pelo menos, montante igual a  € 26.532,00  constante do referido cheque, acrescido das despesas com a devolução do mesmo e os juros legais.
- Com a descrita conduta  o ora Insolvente AA e a sociedade H... LDA., um crime público de falsificação de documentos, em concurso real, com um crime de burla qualificada, previsto e punido, respetivamente, no n.º 1, do artigo 14.º, na alínea a), do artigo 255.º, nas alíneas d), e) e f), do n.º 1, do artigo 256.º e na alínea b), do artigo 202.º, no n.º 1, do artigo 217.º, na alínea a), do n.º 2,do artigo 218.º, todos do Código Penal.
- O Credor, ora Impugnante, CC e a sua mãe EE apresentaram, em 13 de dezembro de 2021, denúncia crime contra o Insolvente AA e contra a sociedade H... LDA. pelos factos ilícitos culposos por estes praticados, ... que corre presentemente os seus termos no Departamento de Investigação e Ação Penal ..., Procuradoria da República da Comarca ..., do Ministério Público - Processo n.º 2916/21.....
- Não correspondem à verdade os motivos invocados pelo Insolvente na petição inicial de apresentação à Insolvência, nomeadamente quando aí se menciona  o furto de viaturas em finais de 2019.
 - O crédito reclamado é um crédito indemnizatório que se destina a indemnizar o Credor/Impugnante CC por prejuízos sofridos em consequência direta e necessária de conduta ilícita e dolosa praticada pelo Devedor/Insolvente AA, conduta essa que o afetou danosamente, com amplo proveito do Devedor/ Insolvente AA.
- Com todo o respeito, constata-se que o Sr. Administrador da Insolvência não compreendeu a reclamação do ora Credor quando sustenta que “a reclamação de crédito assenta na relação jurídica firmada com a entidade H..., Lda,  o que está em causa é um crédito indemnizatório, por factos ilícitos e culposos do Insolvente AA, que revestem  natureza criminal e    não  apenas   o contrato de compra e venda que a sociedade não cumpriu.
- O Insolvente AA nunca pretendeu entregar o veículo ao Impugnante, tendo o suposto contrato de compra e venda do veículo sido um mero ardil para se locupletar à custa do Impugnante  com a quantia de € 26.532,00, chegando ao ponto de falsificar  um documento, comunicando a revogação do cheque emitido  sob  um falso pretexto.
- E  conforme determina o n.º 7, do artigo 11.º do Código Penal, a responsabilidade das pessoas coletivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respetivos agentes nem depende da responsabilização destes, sendo  o Insolvente também civilmente responsável pelos factos ilícitos que praticou,  solidariamente com a sociedade,  conforme resulta do n.º 1, do artigo 497.º do Código Civil.
- Acresce que o facto de o Insolvente utilizar a referida sociedade como um mero veículo para a sua atividade ilícita, sem respeito pela esfera jurídicas e patrimonial de tal sociedade, tendo, nomeadamente, solicitado e recebido pagamentos na conta do seu filho, ocorrendo uma mistura e confusão do património pessoal do insolvente e da sociedade, o que implica a desconsideração da personalidade jurídica de tal sociedade, sendo o Insolvente, também por esse motivo, responsável perante o ora Impugnante.
-  E o  próprio Insolvente reconheceu/confessou ser devedor do ora Impugnante quer na petição inicial (lista dos seus cinco maiores credores), quer na lista de créditos que juntou com a mesma.
 Terminou, requerendo  a procedência da impugnação e  a inclusão do  seu crédito, no valor de € 26.532,00,   na lista dos créditos reconhecidos.
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O Administrador da Insolvência respondeu à impugnação, sustentando que o crédito não deve ser reconhecido porque se fundamenta num contrato de compra e venda que foi celebrado com o sociedade H... Lda. (vendedor), para aquisição de viatura usada importada da ..., no valor de 26.532,00€, entidade esta juridicamente distinta da pessoa singular AA, aqui insolvente, referindo-se à dita sociedade toda a documentação apresentada com  a reclamação de crédito. Acrescentou ainda que  um eventual crédito indemnizatório  a  que o credor alude na impugnação carece de decisão  judicial que determine tal indemnização.
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 Foi designado o dia 6.10.2022 para  uma tentativa de conciliação.

Em 4.10.2022, foi proferido o seguinte
Despacho
«Req 27-9: Sem efeito a tentativa de conciliação designada.
Melhor compulsados os autos, verifico que o impugnante veio invocar e pedir o reconhecimento de um crédito indemnizatório por factos ilícitos e culposos do insolvente AA.
Contudo, este não é o meio para o realizar pois tem de aguardar por sentença condenatória do insolvente em processo crime para poder pedir nos autos de insolvência o reconhecimento do crédito em ação de verificação ulterior de créditos.
Neste momento o impugnante não tem título que declare a existência de qualquer crédito sobre o insolvente. Pelo que tem necessariamente de improceder a impugnação deduzida.
Notifique».
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Inconformado com o decidido o credor DD interpôs o presente recurso, terminando as suas alegações, com as seguintes  conclusões:

1.ª – O Recorrente entende, respeitosamente, que o Tribunal a quo antes de se pronunciar sobre a questão de saber se a reclamação de créditos de processo crime pode ser realizada no processo de insolvência, deveria ter permitido ao Recorrente pronunciar-se sobre tal questão.
2.ª – Ao não ter concedido ao Recorrente tal possibilidade – que corresponde a formalidade que a lei prescreve (cfr. n.º 3, do artigo 3.º, do Código de Processo Civil) – verificou-se nulidade processual que influiu no exame ou na decisão da causa e que expressamente se invoca (cfr. n.º 1, do artigo 195.º do Código de Processo Civil).
3.ª – Nulidade que deve ser reconhecida e ser anulada a decisão recorrida, determinando-se a notificação do Recorrente para exercer o referido contraditório.
4.ª – Com todo o respeito, o Apelante não pode concordar com o decidido no despacho de que ora se recorre.
5.ª – O Tribunal da Relação de Coimbra esclarece que “A intervenção, na insolvência, dos credores do insolvente, se não restringe àqueles que se encontram munidos de título executivo, antes se encontra aberta a todos os credores, seja qual for a natureza ou fundamento do seu crédito (artºs 128º nºs 1 e 3 e 129 nº 1 do CIRE)” e que “No processo de insolvência, não constitui pressuposto da intervenção dos credores do insolvente a existência de um título executivo” – in Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15 de janeiro de 2013, processo n.º 511/10.0TBSEI-E.C1, acessível in www.dgsi.pt.
6.ª – Na mesma senda o Tribunal da Relação de Coimbra esclarece que “(…) o credor que disponha de um qualquer crédito relativamente ao devedor, ainda que não reconhecido judicialmente, não está impedido de o reclamar no respetivo processo de insolvência. É apenas aqui que, perante o universo dos credores sobre a insolvência, o crédito deve ser reclamado, discutido e, se for caso disso, declarado/verificado com vista à sua graduação e pagamento. Não se podendo então falar de sentença condenatória, cuja exigência só faz sentido no processo executivo para a obtenção de um título com força executiva (…)” – in Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7 de setembro de 2021, processo n.º 544/15.0T8ACB-E.C1, acessível  in www.dgsi.pt.
7.ª – O Impugnante, ora Recorrente, CC, em tempo e com legitimidade para tal, reclamou o seu crédito juntando os documentos e restante prova de que dispunha.
8.ª – O Impugnante, ora Apelante, CC e a sua mãe EE apresentaram, em 13 de dezembro de 2021, denuncia crime contra o Insolvente AA e contra a sociedade H... LDA. pelos factos ilícitos culposos poe estes praticados.
9.ª – Queixa-crime que corre os seus termos sob o processo n.º 2916/21...., no Departamento de Investigação e Ação Penal ..., Procuradoria da República da Comarca ..., do Ministério Público, no âmbito do qual foi proferida acusação crime contra o Insolvente.
10.ª – Em 2 de outubro de 2022, o Impugnante/Apelante juntou aos autos de Reclamação de Créditos, instaurados por apenso aos autos de processo de insolvência, o douto despacho de acusação pública contra o Arguido AA e contra a sociedade arguida H..., LDA.
11.ª – Não se podendo concordar com o exposto pelo Tribunal a quo na decisão recorrida quando sustenta que o crédito do Recorrente depende de prévia sentença judicial.
12.ª – No processo de insolvência, podem ser reclamados todos os créditos sobre o Insolvente.
13.ª – A alínea b), do n.º 2, do artigo 245.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas afasta da extinção os créditos relativos a indemnizações por factos ilícitos do devedor.
14.ª – A formulação ampla da lei compreende tanto os ilícitos contratuais como extracontratuais e nem sequer se exige que os ilícitos tenham que ter relevância criminal.
15.ª – Mesmo no caso em que os ilícitos tenham natureza criminal não seria obrigatória a apresentação da respetiva queixa-crime para o credor poder acionar a responsabilidade civil pelos mesmos. Como, também, não é necessário numa ação declarativa fora do processo de insolvência.
16.ª – Com todo o respeito, não faria sentido que, estando o Insolvente acusado de crimes graves, como falsificação de documentos e burla qualificada, os factos que deram origem à acusação do Ministério Público não fossem considerados, não só no âmbito da qualificação da insolvência, mas também no que se refere ao incidente da exoneração do passivo restante.
17.ª – Conforme resulta da petição de reclamação de créditos do ora Recorrente, os factos que originam o seu crédito são anteriores à sentença de declaração de insolvência.
18.ª – Tais factos devem ser tidos em conta no âmbito do processo de insolvência, para todos os efeitos jurídicos, nomeadamente: para o reconhecimento do crédito pelos danos deles resultantes; para qualificação de insolvência como culposa; e para o indeferimento do incidente de exoneração do passivo restante, atenta a sua elevadíssima culpa e ilicitude.
19.ª – O crédito reclamado é um crédito indemnizatório que se destina a indemnizar o Impugnante/Apelante GG por prejuízos sofridos em consequência direta e necessária da conduta ilícita e dolosa praticada pelo Devedor/Insolvente AA.
20.ª – Crédito que o próprio Insolvente reconheceu/confessou, quer na petição inicial de apresentação à insolvência (lista dos cinco maiores credores), quer na lista de créditos que juntou com a mesma, ser devedor ao Impugnante, ora Apelante, do valor global de € 26.532,00.
21.ª – Assim, sem prescindir do supra exposto (no que se refere à nulidade processual), deve o presente recurso ser considerado procedente, revogando-se o despacho de que ora se recorre, por ilegal, e substituindo-o por decisão que determine o prosseguimento do processo (apenso de reclamação de créditos), nomeadamente, no que se refere ao crédito do credor ora Recorrente.
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Não houve  contra-alegações.
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Fixado o valor do recurso em € 26.532,00, foi o mesmo admitido como apelação, com subida imediata nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.                                                       
Foram colhidos os vistos legais.
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Nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II. Delimitação do objecto do recurso
     
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do  recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a  não ser que as mesmas  sejam de conhecimento oficioso- cfr. arts 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 e 2 do CPC.

Assim,  considerando as conclusões  do recorrente as questões  a decidir, são:

- Saber  se  foi violado  o princípio do contraditório,  ocorrendo uma  nulidade  processual que  deve determinar  a anulação da decisão.
- Saber  se  o crédito reclamado pelo recorrente  deve ser  reconhecido nestes autos ou se é necessária sentença condenatória prévia em processo penal.

III.Fundamentos
A- De  Facto

Os factos relevantes para a decisão são os elencados  no antecedente relatório, a que acrescem os seguintes resultantes dos documentos juntos aos autos:

1. A sociedade H..., Lda, foi declarada insolvente no dia 17.6.2022, no âmbito do  processo nº 3677/22.... que corre os seus termos no Juízo do Comércio ....
2. Em 20.9.2022, foi proferido despacho de acusação  contra o insolvente  AA pela prática,  em autoria material, de um crime de burla qualificada em concurso real com um crime de falsificação ou contrafacção de documento, sendo à sociedade H..., Lda, imputada a responsabilidade  pelos mesmos crimes, nos termos do art. 11º, nº2, als a) e e) do Código Penal.

B-  De Direito

- Da nulidade  processual  por violação do princípio do contraditório

Sustenta o recorrente  que o Tribunal a quo  antes de  se pronunciar sobre a questão de saber se a reclamação de créditos  de processo crime pode ser realizada no processo de insolvência, deveria ter-lhe  permitido pronunciar-se sobre tal questão e que não o tendo feito foi omitida uma formalidade que a lei prescreve( cfr.  nº3 do art.3º C.P.Civil) susceptível de influir no exame e decisão da causa, verificando-se uma nulidade  processual, nos termos do art. 195º, nº1 do C.P.Civil, que  deve  ser  declarada,   anulando-se a decisão e determinando-se a sua  notificação  para  exercer o  contraditório.
A  decisão recorrida insere-se no apenso de reclamação de créditos do processo de insolvência, cuja tramitação  está regulada nos artigos 128º a 140º  do CIRE.
Cotejando a tramitação aí prevista com a tramitação seguida não descortinamos que tenha sido omitida qualquer formalidade legalmente prevista.

Senão vejamos:

O administrador judicial apresentou a lista dos créditos reconhecidos e não reconhecidos, nos termos do art. 129º, justificando o motivo do não reconhecimento do crédito do  recorrente como, impõe o nº3 do mesmo  preceito legal.
De seguida, o recorrente apresentou a sua  impugnação, nos termos do art. 130º,  na qual  alegou  os fundamentos de facto e de direito  pelos quais, em seu entender, o crédito  por si  reclamado devia  ser  reconhecido nestes autos. E o  administrador judicial respondeu, como prevê o art. 131º, nº1.
Foi, portanto, observada a tramitação legal, não tendo sido omitida qualquer formalidade prescrita por lei.

Invoca o recorrente, a norma  do nº3  do art.3º do CPCivil que consagra o princípio geral do contraditório que decorre da  proibição da indefesa, em função da qual nenhuma decisão deve ser tomada pelo tribunal, sem que, previamente, tenha sido dada às partes  a possibilidade de a discutir, visando evitar as decisões surpresa.
Porém, como se refere no Ac. do STJ de 12-07-2018, proc. 177/15.0T8CPV-A.P1.S1.( Relator Helder Roque) disponível in www.dgsi.pt, «a decisão-surpresa que a lei pretende afastar contende com a solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, para evitar que sejam confrontadas com decisões com que não poderiam contar e não com os fundamentos não expectáveis de decisões que já eram previsíveis, não se confundindo a decisão-surpresa com a suposição que as partes possam ter concebido quanto ao destino final do pleito, nem com a expectativa que possam ter realizado quanto à decisão, quer de facto, quer de direito, sendo certo que, pelo menos, de modo implícito, a poderiam ou tiveram em conta.»

Ora, o recorrente perante o não reconhecimento do seu crédito pelo administrador judicial  na impugnação aduziu as razões que no seu entendimento impunham decisão diversa,  pelo que foi observado o princípio do contraditório, não se verificando a nulidade processual arguida, o que se declara.
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- Da  necessidade ou desnecessidade de  sentença penal condenatória   prévia
Como vimos,  o recorrente  defende   a desnecessidade  de  uma sentença  penal que condene o insolvente pelos ilícitos criminais que lhe  são imputados para reclamar  nestes autos  a indemnização civil emergente  da prática de  tais   ilícitos.
E sustenta a sua posição no  disposto no nº5 do art .128º do CIRE que preceitua « A verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo  o credor que tenha  o seu crédito  reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência se nele quiser obter pagamento.»
 Na verdade, com base neste normativo  e também  no art. 90º  é posição unânime  da doutrina e da jurisprudência que  todos os credores  da insolvência  para obterem o pagamento dos seus créditos, seja qual for a  sua  proveniência,  têm que  reclamar  os seus créditos no processo de  insolvência  e para tal  não carecem  de  título executivo, sendo perante o universo dos credores que o crédito  tem ser reclamado e  verificado com vista à sua graduação e pagamento, ainda que  já se  encontre reconhecido por sentença.
Maria do Rosário Epifânio, in Manual de Direito da Insolvência , Almedina, 7ª ed., p.268, refere  a este propósito que «  Desde logo são reclamáveis todos os créditos sobre  a insolvência, qualquer que seja  a sua natureza, desde que respeitantes a prestações  patrimoniais, estão em consequência excluídos os direitos pessoais e os direitos potestativos ( como por exemplo, o direito à anulação ou resolução de um negócio jurídico) e as obrigações naturais.  Em segundo lugar, os créditos suscetíveis de averiguação no processo de  verificação dos créditos devem ser  certos,  líquidos e exigíveis.»
Tal regime tem subjacente o princípio da par conditio creditorum  que enforma  todo o processo de insolvência e visa  impedir que credor algum possa obter, por via distinta do processo de insolvência, uma satisfação mais rápida ou mais completa, em prejuízo dos restantes credores. E, por isso,  o art. 85.º, n.º 1, do CIRE, sob a epígrafe “efeitos sobre as acções pendentes”,  determina que   «Declarada a insolvência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as acções de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo”, acrescentando o  art. 89.º, n.º 2, do CIRE que  « As acções, incluindo as executivas, relativas às dívidas da massa insolvente correm por apenso ao processo de insolvência, com excepção das execuções por dívidas de natureza tributária.»

Em suma, uma vez declarada a insolvência do devedor é no processo de insolvência que devem ser apreciadas e decididas todas as questões de  natureza patrimonial  atinentes à sua esfera jurídica do mesmo.
Daí que,  nas   acções  declarativas  pendentes que  não sejam  apensadas  ao processo de insolvência, deva  ser declarada a  inutilidade superveniente da lide   conforme  se decidiu   no acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 1/2014, in DR, 1ª série-A, de 25.2.2014, p.1642 e ss., com o seguinte dispositivo “ transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º, do C.P.C.” (o atual art. 277.º al. e), na versão do CPC de 2013).”
Porém, tendo-se verificado divergências jurisprudenciais quanto à aplicação deste AUJ à acção cível enxertada no processo penal para apuramento da responsabilidade civil emergente da prática dos ilícitos  criminais, o Acórdão de  uniformização de jurisprudência  nº  5/2018, in DR, 1ª série,  nº209, de 30.10.2018, p. 5116 e ss   veio   fixar a seguinte jurisprudência  obrigatória «  a insolvência do lesante não  determina a inutilidade da lide do pedido de indemnização civil deduzido em  processo penal » com fundamento  essencialmente no princípio da adesão obrigatória do pedido de indemnização civil fundado em crime ao processo penal respectivo,  consagrado no art. 71º do C.P.Penal,   e por se considerar  inaceitável  a  prova do   ilícito criminal  no  processo de insolvência, cujas regras  são   muito distintas das do processo penal.
Concluiu-se  assim  neste   AUJ 5/2018 « Por força do princípio de adesão, o titular do direito a indemnização, fundada na prática de crime, apenas no processo penal pode ver reconhecido o seu direito a ser indemnizado e determinado o quantitativo da indemnização pelos prejuízos causados (nos termos do disposto nos arts. 71.º a 84.º, do CPP). Só após o reconhecimento do direito e a determinação do quantitativo indemnizatório é que se torna claro qual o crédito de que emerge a obrigação de indemnizar. E somente quando não ocorra o cumprimento desta obrigação e após o vencimento da dívida [isto é, tratando-se de obrigação resultante de ato ilícito, como tal não sujeita a interpelação, o vencimento do obrigação só se dá quando o crédito se torna líquido, o que pressupõe que o pedido de indemnização seja julgado procedente pela sentença condenatória, pelo que o vencimento da obrigação ocorre, neste caso, a partir da citação, data a partir da qual o devedor se constitui em mora (artigo 805.º, n.º 3, do Código Civil) (cf. Inocêncio Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7.ª ed., 2010, Coimbra: Coimbra Editora, p. 256-7)] assiste ao credor o direito intervir no processo de insolvência para obter o pagamento da dívida pelo produto da liquidação dos bens do devedor. Deverá, então, ser reclamado o crédito no processo de insolvência no prazo fixado ou posteriormente até ao encerramento do processo de insolvência (cf. arts. 1.º, 3.º, 47.º, 90.º, 128.º, 146.º, n.º 1, e 230.º, do CIRE). A declaração de insolvência do responsável civil não tem por efeito a apensação do processo penal ao processo de insolvência, a qual se limita às ações mencionadas nos arts. 85.º e 86.º, do CIRE, para julgamento pelo tribunal da insolvência, cuja competência nunca se estende ao processo penal. O pedido de indemnização civil deduzido em processo penal, cujo conhecimento é da competência do tribunal penal, não se confunde com uma ação declarativa para reconhecimento de crédito, a que se refere o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 1/2014. Na falta de composição extrajudicial do litígio, sendo o processo penal o único meio de o lesado ver reconhecido o seu direito a indemnização, a declaração de insolvência do demandado não constitui motivo gerador de inutilidade superveniente da ação civil “enxertada” naquele processo.”
Destarte,  alicerçando o recorrente  a sua reclamação de  créditos    na  prática de  factos ilícitos criminais pelo insolvente, não restam dúvidas  de que  é no processo penal que tem de formular o  respectivo pedido de  indemnização civil e só depois de naquele  processo ser  apurada a responsabilidade penal  do insolvente e fixada a indemnização  devida é que o recorrente pode  reclamar o seu  crédito nestes  autos de insolvência ou, mostrando-se  já esgotados  os prazos legais  para esse efeito,  exigir o respectivo pagamento em  acção própria.

Neste sentido  decidiu o Ac. R.L. de 04-05-2022, proc. 1152/10.7TAOER.1L1-3( Relatora Maria Elisa Marques) assim sumariado:

 “I–O titular do direito a indemnização, fundada na prática de crime, não pode ver reconhecido o direito a ser indemnizado no âmbito do processo de insolvência.
II–Só no processo penal pode ver reconhecido o seu direito a ser indemnizado e determinado o quantitativo da indemnização pelos prejuízos causados (nos termos do disposto nos art.ºs 71.º a 84.º, do CPP).
III–Uma vez reconhecido pode ser reclamado no processo de insolvência no prazo fixado ou posteriormente até ao encerramento do processo de insolvência.
IV–Não há não há qualquer razão – nem qualquer previsão legal – para que os credores que não tenham exercido os seus direitos no processo de insolvência o não possam fazer, depois de encerrado o processo de insolvência, em acção própria – como é o caso.”

Em suma, antes de apurada a  responsabilidade criminal do insolvente no processo penal,  no qual  o recorrente deve deduziu o respectivo  pedido de indemnização civil,  este  não é titular de  qualquer crédito indemnizatório emergente  da prática de ilícitos criminais que possa reclamar do insolvente. 
E tendo o contrato de compra e venda do veículo automóvel usado a importar da ... e a legalizar  sido  celebrado com a sociedade  H...,  Lda, que recebeu o preço e emitiu  o cheque de “ “garantia”,   qualquer crédito por incumprimento contratual  é  no processo de insolvência de  tal sociedade que deve ser reclamado pelo recorrente.
Pelo exposto,  nenhuma censura merece a decisão recorrida que , não obstante a exiguidade da fundamentação se mostra  correcta, impondo-se a improcedência do recurso.
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IV–DECISÃO

Pelo exposto, os Juízes desta Secção Cível da Relação de Guimarães, acordam  em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida
Custas pelo recorrente- art. 527º nº 1 e 2 do C.P.Civil
Notifique                                                       
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Guimarães, 11 de Maio de 2023

Os Juízes Desembargadores
Relatora: Maria Eugénia Pedro
1º Adjunto:  Pedro Maurício
2º Adjunto: José Carlos Duarte