Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1509/20.5T8VNF-A.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: INVENTÁRIO
DÍVIDA
REMESSA DAS PARTES PARA OS MEIOS COMUNS
RECURSO SUSPENSIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Por força do disposto no art. 123º,3 CPC, deve ser atribuído efeito suspensivo ao recurso interposto de uma decisão proferida num inventário para separação de meações, em que se remete a questão da existência de um crédito de um dos interessados sobre o outro para os meios comuns, pois a existir o crédito alegado ele deverá ser pago pela meação do outro interessado no património comum, e, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, deverá ser pago pelos bens próprios daquela, questões que deverão ser submetidos à conferência de interessados.
2. O regime processual do inventário para separação de meações tem de ser interpretado em conjugação com o regime substantivo, designadamente com as disposições dos artigos 1689 e 1697 CC.
3. A questão supra-referida não deve ser remetida para os meios comuns, pois é uma questão central do inventário, e, no caso concreto, não se vislumbram nenhuma das circunstâncias (dificuldade e complexidade probatórias acentuadas que possam reduzir as garantias das partes a uma boa decisão) em que a lei permite a remessa da mesma para os meios comuns.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Família e Menores ..., corre termos inventário para separação de meações, em que é Requerente AA e Cabeça de Casal BB.
Os interessados foram casados em regime de comunhão de adquiridos.
O casamento foi dissolvido por divórcio em 26.9.2013.
Nas suas declarações, o cabeça de casal afirmou que o património comum do seu dissolvido casamento é actualmente constituído por bens móveis e um veículo automóvel, e que existe passivo a relacionar.
Na relação de bens que apresentou o cabeça de casal fez constar, como passivo, 4 verbas correspondendo a dívidas emergentes de contratos de crédito contraídos pelo dissolvido casal junto da Banca.
A interessada respondeu dizendo que o valor das despesas materiais feitas pelo ex-casal com as ditas obras é igualmente um bem comum do mesmo, nos termos do disposto nos arts. 1724.º, al. b) e 1733.º, n.º 2 do CC, devendo, pois, ser relacionado como crédito do património comum sobre o cabeça-de-casal o montante de € 164.057,97.
Realizou-se perícia para determinar o valor do prédio em causa, bem como as obras que nele foram feitas. O relatório mostra-se junto a fls. 68 e seguintes do histórico.
Entretanto os interessados, juntando prova documental, chegaram a acordo em que o passivo do ex-casal foi todo pago e já não existe.
O cabeça de casal veio alegar que as dívidas do casal (as 4 verbas do passivo) foram integralmente pagas, em exclusivo, por si, pelo que ele passou a ser titular de um crédito, sob a Interessada AA, correspondente à metade do valor global do passivo comum, e que ascende a € 61.508,14.
E requer que o Tribunal determine que em substituição do passivo, seja relacionada uma dívida da Interessada AA ao aqui Interessado, no valor de € 61.508,14.
A interessada AA veio dizer que até .../.../2013, data do divórcio, as prestações relativas aos créditos contraídos foram sendo suportadas por ambos. E a partir dessa data o remanescente do valor dos créditos em causa (liquidado pelo requerido) não pode ser imputado à requerente, na proporção de metade ou qualquer outra, porquanto verificar-se-ia uma situação de enriquecimento sem causa. E termina dizendo que só os meios comuns serão a forma adequada para obter a decisão da causa.
Respondeu o cabeça de casal, chamando à colação Acórdão recente deste Tribunal da Relação de Guimarães, proferido em 27.01.2022 no processo n.º 4218/21...., e reafirmando que tendo o cabeça de casal, após o divórcio, pago o passivo comum mediante a alienação de bens próprios, tornou-se credor da Interessada AA pelo que pagou para além do que lhe competia, ou seja, na proporção de metade do passivo relacionado, sendo o inventário em consequência de divórcio, e não os meios comuns, o local próprio para liquidar definitivamente as responsabilidades entre os ex-cônjuges.
No dia 07.11.2022 teve lugar uma conferência de interessados, na qual, face à falta de acordo quanto à composição dos quinhões, nos termos do artigo 1113,1 do CPC, foi determinada a abertura de licitações.
Relativamente ao passivo e face à junção pela interessada de documentação bancária onde se atesta que os mútuos bancários elencados nas verbas 1 a 4 se encontram liquidados, deu-se a palavra ao cabeça de casal que reiterou a posição já vertida nos autos de que o passivo foi liquidado por si, entendendo existir neste momento um direito de crédito sobre a interessada AA.
Pelo Ilustre Mandatário da requerente foi dito que não aceita o passivo, face à absoluta inexistência de documento que suportem que o pagamento foi feito pelo cabeça de casal e que face a informação bancária da liquidação dos empréstimos deverá considerar-se que inexiste passivo, desconhecendo além do mais se o pagamento foi feito com verbas próprias ou comuns.
Pelo cabeça de casal foi referido que o pagamento dos créditos foi feito com o produto da venda do bem próprio onde foram incorporadas as benfeitorias.

Foi então proferido o seguinte despacho:

Face à informação bancária, o Tribunal verifica que o passivo relacionado se encontra liquidado.
A circunstância invocada pelo cabeça de casal de ter sido ele a liquidar os créditos é susceptível de consubstanciar um direito de crédito deste sobre a interessada, porém face à posição desta no sentido de desconhecer quem procedeu ao pagamento e, no caso de ter sido o cabeça de casal se foi com bens comuns ou próprios, estamos perante matéria controvertida que deverá ser apreciada em acção autónoma.
Com efeito os elementos constantes dos autos não nos permitem, com segurança, saber a que respeitam os créditos e que fundos foram usados para os liquidar, remetendo-se os interessados para os meios comuns a fim de discutirem tal questão, matéria que pela complexidade e prova a produzir não se compadece com caracter incidental dos presentes autos (cf. art 1106, n.º 3, do CPC, a contrario)”.

Inconformado com esta decisão, o cabeça de casal dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, a subir imediatamente em separado, com efeito suspensivo (arts. 1123º,1,2,b,3, artigo 644º,2,i e artigo 645º,2 todos do Código do Processo Civil e, nos termos do artigo 1123º,3 CPC.

Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

I. Vem o presente recurso interposto do despacho proferido na conferência de Interessados realizada no dia 07.11.2022 e que determinou a remessa dos Interessados para os meios comuns.
II. O recurso é admissível e deverá ser atribuído efeito suspensivo ao processo nos termos conjugados da alínea b), n.º 2, e n.º 3 do art.º 1123º do CPC.
III. O regime de recursos aplicável aos autos é o previsto no art.º 1123.º do CPC (cfr. n.º 2 do art.º 13.º da Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro), tendo o legislador garantido o direito ao recurso autónomo das decisões interlocutórias e prevenido a uniformidade do regime de recursos.
IV. O despacho recorrido, ao remeter os interessados para os meios comuns para dirimir o crédito do Recorrente/cabeça de casal sobre a Interessada AA, correspondente ao que aquele satisfez para além do que lhe competia satisfazer (art. 1697º, n.º 1, CC) no pagamento de dívidas da responsabilidade de ambos, constitui uma decisão de saneamento e de determinação dos bens a partilhar, pois exclui da partilha todo o passivo comum do casal, com evidente prejuízo para o Recorrente/cabeça de casal nos ulteriores termos do inventário, pois obsta a que aquele efectue, no próprio processo de inventário subsequente a divórcio, a compensação do seu crédito sobre a Interessada AA nas tornas que haveria de pagar a esta em face do resultado das licitações.
V.  É patente que a questão a apreciar e que constitui objecto do presente recurso é susceptível de afectar os ulteriores termos do processo de inventário, nomeadamente o mapa de partilha e a posição creditória ou debitória dos Interessados, pois na procedência do recurso o Recorrente/cabeça se casal passará a figurar como credor de tornas da Interessada AA, ao invés de devedor de tornas caso o processo não seja suspenso até à decisão do recurso.
VI. Termos em que deverá ser admitido o presente recurso e ser atribuído efeito suspensivo ao processo nos termos conjugados da alínea b), n.º 2, e n.º 3 do art.º 1123º do CPC.
Por outro lado:
VII. A discordância do Recorrente/cabeça de casal incide sobre o despacho do Tribunal a quo, proferido na conferência de Interessados realizada no dia 07.11.2022, mediante a qual remeteu os Interessados para os meios comuns para discutir quem pagou o passivo da responsabilidade de ambos os cônjuges e no caso de ter sido o cabeça de casal se foi com bens comuns ou próprios, não reconhecendo no próprio processo de inventário subsequente a divórcio o direito de crédito do Recorrente sobre a Interessada AA relativamente ao pagamento das dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges.
VIII. Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo olvidou e fez tábua rasa dos documentos e da posição das partes assumida nos autos, dos quais resulta demonstrado que foi o Recorrente/cabeça de casal quem liquidou o passivo da responsabilidade de ambos os cônjuges, e que liquidou esse passivo através de fundos próprios porque resultantes da alienação de bem imóvel próprio.
IX. Da posição assumida pelos Interessados na tramitação transcrita na alegação e dos documentos juntos, resulta pacífico que o ex-casal composto pelo Recorrente e pela Interessada AA, na pendência do casamento contraíram os créditos relacionados sobre as verbas n.º 1 a 4 do passivo constante da relação de bens apresentada em 12.05.2016.
X. Tanto assim é que, notificada da relação de bens, a Interessada AA apresentou a reclamação datada de 06.06.2016, na qual não só não impugnou o passivo comum relacionado, como confessou expressamente que o passivo das verbas n.º 1 a 4 da relação de bens constituía bens comuns nos termos do art. 1724º, alínea b), do CC – cfr. item 5º da reclamação contra a relação de bens de 06.06.2016.
XI. Resulta igualmente dos autos que o Recorrente, no seu requerimento de .../.../2022 destinado a dar forma à partilha, referiu que após o divórcio (26.09.2013) continuou a pagar sozinho as prestações referentes a todas as dívidas comuns do dissolvido casal e relacionadas sob as verbas n.º 1, 2, 3 e 4 do passivo da relação de bens, alegando ainda que na pendência do processo de Inventário, concretamente em 15.06.2018, procedeu à venda do imóvel que constituía bem próprio seu e com o produto da venda procedeu ao pagamento integral do remanescente do passivo relacionado sob as verbas n.º 1, 2 e 3 da relação de bens (dívidas à Banco 1...).
XII. Para prova do alegado o Recorrente juntou aos autos documentos, concretamente comprovativos do pagamento de todas as dívidas à Banco 1... (e que correspondem às relacionadas sob as verbas n.º 1, 2 e 3 do passivo) e escritura pública de compra e venda de bem imóvel próprio, de cuja alienação provieram os fundos utilizados para liquidar tais empréstimos comuns.
XIII. Da cláusula TERCEIRA do contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca celebrado em 15.06.2018 resulta que “o imóvel é vendido livre de quaisquer ónus ou encargos, ficando asseguradas o cancelamento das hipotecas registadas a favor da Banco 1..., S.A., pelas apresentações 33 de 2003/05/09, 10 de 2004/02/11 e 62 de 2007/10/30.”, as quais garantiam, precisamente, as dívidas relacionadas na relação de bens sob as verbas n.º 1, 2 e 3 do passivo.
XIV. Os documentos juntos (termo de autorização de venda de imóvel próprio, pedido de distrate de hipoteca, liquidação de empréstimos, e escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca), conjugados com a declaração da Banco 1... junta pela Interessada AA no seu requerimento de23.02.2022, e que atesta que o passivo relacionado sob as verbas n.º 1, 2 e 3 se encontra liquidado desde 15.06.2018, precisamente a mesma data em que foi celebrada a escritura de compra e venda do imóvel próprio, conduzem facilmente à conclusão de que o passivo em causa foi liquidado pelo Recorrente com recurso a bens próprios.
XV. Por outro lado, em face da junção aos autos dos documentos que antecedem, a Interessada AA tomou posição quanto aos mesmos através de requerimento de 10.03.2022, no qual referiu, de forma expressa que: “Os documentos juntos pelo requerido, nomeadamente, o contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca, termo de autorização e outra documentação emitida pela Banco 1..., corrobora o alegado pela requerente, isto é, a inexistência de passivo. De facto, conforme atesta o próprio requerido, este procedeu à venda do imóvel, tendo efectuado o pagamento do remanescente do valor dos créditos contraídos pelo ex-casal. Assim, até .../.../2013, data da dissolução do casamento por divórcio, as prestações relativas aos créditos contraídos foram sendo suportadas por ambos. A partir de Setembro de 2013, o remanescente do valor dos créditos em causa – liquidado pelo requerido – não pode ser imputado à requerente, na proporção de metade ou qualquer outra, porquanto, verificar-se-ia uma situação de enriquecimento sem causa.”
XVI. Através do requerimento apresentado nos autos em 10.03.2022 a Interessada AA admite e confessa expressamente que foi o Recorrente quem pagou o remanescente dos créditos contraídos pelo ex-casal e que o fez com recurso à venda do imóvel.
XVII. Os documentos juntos pelo Recorrente quanto ao pagamento do passivo comum, e a posição assumida pela Interessada, comprovam que foi o Recorrente quem procedeu ao pagamento do passivo comum, como ainda comprovam que a liquidação do passivo foi efectuada com recurso à alienação de bem imóvel próprio do Recorrente.
XVIII. Daí que, quando a Interessada AA, na conferência de interessados realizada em 07.11.2022, alegou desconhecer quem pagou o passivo comum, e que no caso de ter sido o cabeça de casal se foi com bens comuns ou próprios, tratou-se de uma alegação e posição contrária a uma sua anterior expressa nos autos, a qual não poderia ser atendida ou valorada.
XIX. Nesta temática, salienta-se, a Interessada não reclamou da relação de bens aduzindo que faltaria relacionar bens comuns dos cônjuges, como nunca identificou eventuais bens comuns que pudessem ter sido utilizados para liquidar o passivo comum. E nunca o fez pela simples razão de que todos os bens comuns foram relacionados pelo cabeça de casal, pelo que seria impossível que o pagamento do passivo comum tivesse sido à custa de bens comuns dos cônjuges.
XX. Em face do exposto, e contrariamente ao defendido no despacho recorrido, não podia o Tribunal a quo olvidar o teor dos documentos juntos e a posição das partes ao longo do processo, e determinar a remessa dos Interessados para os meios comuns só porque a Interessada AA, na conferência de interessados realizada em 07.11.2022, se lembrou então de referir não saber quem pagou as dívidas comuns e no caso de ter sido o Recorrente se o fez com recurso a bens próprios ou comuns, alegação essa que para além de constituir matéria nova, nunca antes invocada, se mostrou contrária à posição assumida pela mesma Interessada ao longo do processo, em especial no seu requerimento de 10.03.2022, no qual confessa que “a partir de .../.../2013, data da dissolução do casamento por divórcio, o remanescente do valor dos créditos em causa foi liquidado pelo requerido”.
XXI. Salvo o devido respeito, a questão em causa, de saber quem pagou o passivo comum, não justifica a remessa dos Interessados para os meios comuns, atenta a prova já junta aos autos quanto a essa matéria, além de que para eventual esclarecimento de dúvidas que pudessem subsistir não seria necessária extensa instrução probatória, bastando ao Tribunal ordenar oficiar as instituições bancárias indicadas como credoras para informar quem pagou tais dívidas e da origem dos fundos utilizados.
XXII. O inventário subsequente ao divórcio destina-se a pôr termo à comunhão de bens resultante do casamento, a relacionar os bens que integram o património conjugal e a servir de base à respectiva liquidação, tendo em vista a data em que cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges (cfr. artigos 1404.º, n.º 1, e 1326.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e artigos 1688.º e 1789.º Código Civil).
XXIII. Nessa partilha, em que se dividem os patrimónios de cada cônjuge e os bens comuns (em regra de acordo com o regime de bens que vigorou durante o casamento, com as excepções previstas nos artigos 1719.º e 1790.º do Código Civil), tem-se como objectivo essencial obter um equilíbrio entre os diversos patrimónios, de modo a que não haja enriquecimento de um deles à custa do outro.
XXIV. O processo especial de inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento destina-se não só a dividir os bens do casal, mas a liquidar as responsabilidades mútuas e as dívidas do casal.
XXV. As compensações dão-se só nos regimes de comunhão e verificam-se quando há movimentos entre o património comum e os patrimónios próprios dos cônjuges: quando um destes patrimónios (um património próprio ou o património comum) responde por dívidas de outro património (o comum, se o que respondeu foi um património próprio, ou um património próprio se o que respondeu foi o património comum). Exemplo mais comum é o do caso em que um dos cônjuges responde por dívidas que a ambos responsabilizava: este tem direito a ser reembolsado de metade do montante global de tais pagamentos, surgindo um crédito de compensação a seu favor, o qual só é exigível no momento da partilha dos bens do casal; esta compensação tem lugar preferencialmente na meação do cônjuge devedor no património comum (artigos 1697º nº 1 e 2, 1730.º, 524.º e 1697.º e 1689º nº 3 do Código Civil).
XXVI. É pacífico que nos termos do artigo 1691.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, se ambos os cônjuges, no decurso do casamento, contraem um empréstimo, a obrigação de reembolso de tal empréstimo responsabiliza ambos os cônjuges. Se um dos cônjuges suporta essa dívida tem direito a ver reposto no seu património o que pagou em excesso em benefício do património comum; é uma típica dívida de compensação.
XXVII. Nestes casos, em que se impõe uma compensação stricto sensu, mesmo que o pagamento ocorra depois da data em que a terminaram as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, desde que a dívida tenha sido contraída no decurso da comunhão e a ambos responsabilize, deve ser atendida no inventário, sem necessidade de recorrer a acção autónoma. (neste sentido cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09/03/2017 no processo 5208/14.9T8ALM-B.L1 e Cristina M. Araújo Dias, obra citada, 585).
XXVIII. Cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges pela dissolução do casamento – art. 1688º do Código Civil (CCiv.) –, recebem estes os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património – art. 1689º, nº 1, do CCiv.
XXIX. A par dessa reposição do que cada um dos cônjuges estiver a dever ao património comum, havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum, e só depois as restantes – art. 1689º, nº 1 – e o passivo comum, que onera o património comum, da responsabilidade de ambos os cônjuges, é apurado nos termos dos artigos 1691º, 1693º, nº 2, e 1694º, nºs 1 e 2.
XXX. Mas a lei definiu igualmente que a partilha envolve a satisfação dos créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro e regulou a forma como são satisfeitos: o nº 3 do artigo 1689º estabelece que são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.
XXXI. Releva ainda o artigo 1697º, nº 1, do CC, segundo o qual, quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer. Portanto, um tal crédito deve ser pago nos termos regulados no nº 3 do artigo 1689º do CC.
XXXII. No caso dos autos, tendo o casamento sido sujeito ao regime da comunhão de adquiridos, a partilha é feita em consonância com o aludido regime e as normas legais que o norteiam, sendo que, nos termos do artigo 1730º, nº 1, os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão.
XXXIII. Os Interessados aceitam, de forma pacífica, que o passivo inicialmente relacionado sob as verbas n.º 1 a 4 da relação de bens constituem dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges. Veja-se a este respeito a posição assumida pela Interessada AA na reclamação contra a relação de bens e o teor do seu requerimento de 10.03.2022.
XXXIV. Tendo sido essas dívidas pagas por um dos cônjuges - no caso o Recorrente - após a cessação das relações pessoais e patrimoniais entre eles, o que a solveu torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer, sendo este crédito exigível no momento da partilha dos bens do casal e, consequentemente, pago pela meação do cônjuge devedor no património comum, nos termos do disposto no citado artigo 1689º, nº 3, do CC.
XXXV. Dito isto, o pagamento de dívidas comuns do casal por um dos cônjuges, com recurso a bens próprios seus, posteriormente à data da cessação dos efeitos patrimoniais do casamento, dá origem a um crédito do cônjuge pagador sobre o outro cônjuge, que deve ser relacionado no processo de inventário instaurado em consequência do divórcio.
XXXVI. A partilha de bens subsequente ao divórcio pressupõe a liquidação do património comum, com a contabilização de dívidas a terceiros e cálculo de compensações, partilhando-se depois apenas o activo comum líquido.
XXXVII. Por conseguinte, na parte que releva para o objecto deste recurso, no inventário competirá relacionar o passivo, desde logo, o que onera o património comum, da responsabilidade de ambos os cônjuges (a apurar nos termos dos arts. 1691º, 1693º, nº 2, e 1694º, nºs 1 e 2, do CCiv.), mas também as dívidas do património comum a cada um dos cônjuges e, segundo a maioria da jurisprudência e da doutrina, os créditos de compensação, dos cônjuges entre si, emergentes do pagamento de dívidas comuns com bens próprios.
XXXVIII. O conteúdo do processo de inventário não deve ser determinado por um eventual arquétipo técnico desligado da realidade, mas sim, norteado pelas normas que sobre o mesmo, directa ou reflexamente, dispõem, conformado em ordem a satisfazer os direitos e interesses das pessoas que nele são parte.
XXXIX. O objectivo que preside a todas as operações de liquidação e partilha do património comum é conseguir um efectivo equilíbrio no rateio final, o que se consegue se o património individual de cada um dos cônjuges não ficar nem beneficiado nem prejudicado em relação ao do outro.
XL. Por outro lado, há ainda um objectivo complementar, qual seja o de procurar resolver todas as questões atinentes ao património comum no inventário, para que os interessados não se vejam posteriormente na necessidade de recorrer a tribunal com a finalidade de sanar conflitos que nem sequer se suscitariam se o inventário tivesse sido exaustivo e completo.
XLI. É que se verificará no caso concreto se se mantiver o despacho recorrido, pois em termos práticos, ao remeter os Interessados para os meios comuns para dirimir o crédito emergente do pagamento com bens próprios de dívidas comuns, transverterá o Recorrente em devedor de tornas ou invés de credor, e impondo-lhe o ónus de instaurar nova acção judicial para dirimir uma questão facilmente resolúvel neste inventário.
XLII. Não é curial que, se um dos cônjuges pagou dívidas da responsabilidade ambos, a liquidação das dívidas origine um problema somente daquele que as satisfez e que este se veja na contingência de diligenciar pelo respectivo ressarcimento fora do âmbito do inventário, através de um outro processo judicial, penalizando quem cumpriu com as suas obrigações e deveres, e premiando quem não os cumpriu. É esta a situação que, tal e qual, se verifica nos autos por força da prolação do despacho recorrido.
XLIII. No caso dos autos o activo relacionado só existe porque o casal, na pendência do casamento, contraiu passivo, que investiu na realização de benfeitorias (realizadas, é certo, em imóvel próprio do Recorrente, vide verba 1 do activo), adquiriu o mobiliário relacionado, veículos, etc. Ora, tendo o Recorrente liquidado todo o passivo comum, a Interessada AA terá direito a metade do valor do activo, o que é profundamente injusto, tendo de haver, no próprio processo de inventário, uma compensação entre o património comum e o património do que pagou a dívida.
XLIV. O crédito do cônjuge que pagou uma dívida comum não é uma questão estranha à matéria que se discute no inventário. É um assunto que releva para efeitos de partilha do património comum, pois, aquando desta o referido crédito deve ser considerado para ser satisfeito pela meação do cônjuge devedor.
XLV. Como no inventário devem ser solucionadas todas as questões emergentes da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges com influência na partilha do património comum, designadamente as que respeitam à liquidação das compensações devidas pelo pagamento de dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges suportado apenas por um deles, é adequado, com vista à oportuna dilucidação de tal questão, que o crédito seja relacionado, o que permite estabilizar o objecto da partilha, alcançar o mencionado objectivo e garantir uma partilha completa.
XLVI. Em resumo, está comprovado nos autos que foi o Recorrente que pagou, após o divórcio, as dívidas comuns relacionadas com bens próprios, tendo por isso direito a obter o pagamento desse crédito sobre o outro cônjuge no momento da partilha através da meação deste no património comum.
XLVII. Termos em que deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que reconheça que está comprovado nos autos, com suficiente segurança, que foi o Recorrente quem pagou o passivo relacionado e que responsabilizava ambos os Interessados e que o fez com recurso a bens próprios, tendo por isso direito a ser reembolsado, nos presentes autos de inventário, de metade do montante global de tais pagamentos, havendo um crédito de compensação a seu favor, com inerente anulação e repetição de todos os actos posteriores que sejam afectados pela procedência do recurso,
XLVIII. Ou, se porventura se entender que tal questão carece de prévia relacionação do crédito do Recorrente sobre a Interessada AA e produção de prova suplementar, e uma vez que ao Recorrente/cabeça de casal nunca foi concedida oportunidade de eliminar da relação de bens o passivo, atento o seu pagamento em momento posterior, e relacionar, em sua substituição, o crédito sobre a Interessada AA relativo ao que pagou para além do que lhe competia pagar no passivo comum,
XLIX. Deverá neste caso o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine a notificação do cabeça de casal para que proceda ao relacionamento do indicado crédito em substituição do passivo inicialmente relacionado, seguindo-se os ulteriores termos legais e determinando-se a revogação de todos os actos subsequentes afectados por essa decisão.

A recorrida contra-alegou, dizendo em síntese que:

- deve ser rejeitado o recurso, perante a sua falta de fundamento.
- só por mera cautela e dever de ofício, deve atribuir-se ao recurso efeito devolutivo, caso fosse deferido.
- e o recurso ser julgado totalmente improcedente.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir consistem em saber:

a) se foi correctamente fixado o efeito do recurso;
b) se foi correcta a decisão de remeter as partes para os meios comuns quanto ao alegado crédito invocado pelo cabeça de casal, sobre a interessada ou se tal matéria deve ser decidida nos autos de inventário.

III
A tramitação dos autos é a que supra ficou exposta no relatório, e é com base nela que temos de procurar a solução a dar ao recurso.

O Tribunal a quo fixou ao recurso efeito suspensivo do andamento do processo, invocando o disposto no art. 1123º,3 CPC, com o argumento que a questão a ser apreciada afectará inelutavelmente a utilidade prática das diligências a levar a cabo na conferência de interessados.

Com efeito, a norma citada dispõe que o juiz pode atribuir efeito suspensivo do processo ao recurso interposto nos termos da alínea b) do número anterior, se a questão a ser apreciada puder afectar a utilidade prática das diligências que devam ser realizadas na conferência de interessados.
O recurso em causa é o de apelação autónoma das decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha.
Vamos deixar desde já claro que consideramos que o efeito suspensivo foi bem fixado pela primeira instância, como veremos supra, pois tal questão está umbilicalmente ligada com a questão central do recurso.

Vejamos então ao pormenor.

O processo de inventário existe para cumprir, entre outras, as funções de partilhar bens comuns do casal (art. 1082º,c, na redacção da Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, com entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2020).
Ou seja, o processo de inventário existe e destina-se a pôr um fim à comunhão de bens conjugal (arts, 1721º e ss. e 1732º e ss CC).
Porém, como é óbvio e tem sido repetidas vezes lembrado pela jurisprudência dos Tribunais superiores (v. g. Acórdãos TRL de 28.6.2007 e 274.10.2016 - João Miguel Mourão Vaz Gomes), o regime processual do inventário para separação de meações tem de ser interpretado em conjugação com o regime substantivo, designadamente com as disposições dos artigos 1689 e 1697 CC.

O artigo 1689º (Partilha do casal - Pagamento de dívidas) dispõe:

1. Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património.
2. Havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum, e só depois as restantes.
3. Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.

E resulta do artigo 1697º:

1. Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação.
2. Sempre que por dívidas da exclusiva responsabilidade de um só dos cônjuges tenham respondido bens comuns, é a respectiva importância levada a crédito do património comum no momento da partilha.

Para bem entender estes dois artigos, vamos recorrer ao auxílio dos Clássicos. Assim, no CC anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao artigo 1689º, pode ler-se: “A partilha dos bens do casal e o pagamento das dívidas, como consequência da cessação das relações patrimoniais entre os casados constituem matérias comuns a todos os regimes de bens, sejam quais forem as normas reguladoras da aquisição dos bens e da responsabilidade assumida por cada um dos cônjuges. (…) A partilha do casal desdobra-se em três operações distintas: a) a entrega dos bens próprios; b) a conferência das dívidas dos cônjuges à massa comum; c) a partilha dos bens comuns. As operações devem mesmo processar-se segundo a ordem  por que acabam de ser discriminadas.
Primeiro, devem ser entregues a cada um dos cônjuges (no caso de divórcio, declaração de nulidade ou anulação do casamento, ou de separação judicial de pessoas e bens) ou a um deles e aos herdeiros do outro (no caso de dissolução por morte), os seus bens próprios.
Depois, cada um deles há-de conferir ao património comum o que lhe dever, em virtude dos pagamentos que por esse património tenham sido efectuados, de dívidas da exclusiva responsabilidade do cônjuge devedor (art. 1697º,2).
Feita a conferência dos bens devidos à massa comum, é o momento de proceder à divisão desta, entregando a cada um dos seus titulares a respectiva meação. A meação pode não ser igual a metade do património comum, por não serem forçosamente iguais as partes de cada um dos cônjuges. (…) As dívidas dos cônjuges entre si são pagas em princípio, pela meação do cônjuge devedor no património comum. Na falta ou insuficiência desta meação, responderão os bens próprios do mesmo cônjuge.
As dívidas dos cônjuges entre si resultam, as mais das vezes, do facto previsto no nº 1 do art. 1697º: o de terem sido pagas com bens próprios de um deles dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges. Quando assim seja, o conjuge à custa do qual o pagamento se efectuou, torna-se credor do outro por tudo quanto pagou além do que lhe cumpria”.
E em anotação ao art. 1697º, pode ler-se: “São dois os princípios consagrados no art. 1697º: o de que é devida compensação, quando as dívidas comuns forem pagas com bens próprios de um dos cônjuges, e o de que igualmente compensação é devida, quando as dívidas de um só dos cônjuges forem pagas com bens comuns. Na base da primeira solução, e em parte, também da segunda, está a ideia de que cada um dos cônjuges deve ser compensado de tudo quanto tenha pago à custa dos seus bens, além do que rigorosamente lhe cumpria subscrever, no plano das relações internas”.
Também a mesma ideia é frisada por Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (Curso de Direito da Família, vol. I, 4ª edição, fls. 428): “a partilha, numa acepção ampla, compõe-se de três operações básicas: a separação de bens próprios, como operação ideal preliminar; a liquidação do património comum, destinada a apurar o valor do activo comum líquido, através do cálculo das compensações e da contabilização das dívidas a terceiros e entre os cônjuges; e a partilha propriamente dita”.
Sobre as compensações, explicam os mesmos autores: “durante o casamento operam-se transferências de valores entre os patrimónios – o património comum e os dois patrimónios próprios dos cônjuges- quer porque se utilizam verbas comuns para financiar obras num imóvel próprio, para pagar uma dívida da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges, quer porque se adquire a casa de morada da família com capital próprio de um dos cônjuges sem se formalizar a sub-rogação real, ou porque se paga uma dívida de ambos com capital de um dos cônjuges, etc. Estes movimentos de capital, estes financiamentos sem prazos e sem juros, representados com mais ou menos rigor pelos intervenientes, são mais característicos da comunhão conjugal do que de outra sociedade ou de outra qualquer reunião de patrimónios. É assim que se forma uma espécie de conta corrente entre o património comum e os patrimónios próprios, uma conta que se fecha apenas no momento da partilha. No momento da partilha pode verificar-se que os movimentos de capital não se equilibraram espontaneamente e que algum património ficou enriquecido enquanto outro ficou correlativamente empobrecido. A técnica das compensações visa restabelecer as forças dos patrimónios, reconstituir o seu valor, corrigindo os desequilíbrios da conta corrente através do reconhecimento de créditos de compensação em favor de cada património empobrecido”.
E quanto ao pagamento de dívidas, escrevem: “quanto às dívidas dos cônjuges um ao outro, são pagas em primeiro lugar pela meação do cônjuge devedor no património comum e, não havendo bens comuns ou sendo estes insuficientes, pelos bens próprios do cônjuge devedor (art. 1689º,3). Estas dívidas podem nascer, designadamente, da responsabilidade civil por administração de bens do outro cônjuge, intencionalmente prejudicial (art. 1681º,1) ou abusiva (art. 1681º,3). Ou porque o património de um cônjuge pagou dívidas que cabiam a ambos; a lei, neste caso, reconhece um crédito do cônjuge prejudicado sobre o outro, pelo valor que o primeiro pagou além do que lhe competia (art. 167º,1)”.
E podemos parar por aqui com as citações, pois pensamos que o que ficou dito já basta para dar total razão ao recorrente.
Já vimos que existe acordo entre as partes quanto a que o passivo comum foi todo pago e já não existe.
Porém, o cabeça de casal veio alegar justamente uma das situações que acabámos de descrever como dando origem a compensação: disse ele que as dívidas do casal (as 4 verbas do passivo) foram integralmente pagas por si, pelo que ele passou a ser credor da interessada AA, por metade do valor global do passivo comum.
Na conferência de interessados, como vimos, o Tribunal a quo decidiu que esta questão, de saber se existe o alegado direito de crédito do cabeça de casal sobre a interessada AA, sendo controvertida, deverá ser apreciada em acção autónoma.

Porém, não o podemos acompanhar.
O argumento usado, recordemos, foi o de que “os elementos constantes dos autos não nos permitem, com segurança, saber a que respeitam os créditos e que fundos foram usados para os liquidar, remetendo-se os interessados para os meios comuns a fim de discutirem tal questão, matéria que pela complexidade e prova a produzir não se compadece com caracter incidental dos presentes autos (cf. art 1106, n.º 3, do CPC, a contrario)”.
Em primeiro lugar, esta é uma questão central do presente inventário, pois, como também já vimos, por força do art. 1689º,3 CC, a existir o crédito alegado pelo cabeça de casal, ele deverá ser pago pela meação da interessada AA no património comum; e não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, deverá ser pago pelos bens próprios daquela.
E este será necessariamente, um dos assuntos que deverão ser submetidos à conferência de interessados (art. 1111º CPC).
Daí que a questão que foi trazida a esta Relação tenha, e bem, levado o Tribunal recorrido a fixar efeito suspensivo ao recurso, pois, por força do art. 1123º,3 CPC, a questão a ser apreciada afectará inelutavelmente a utilidade prática das diligências a levar a cabo na conferência de interessados, podendo e devendo a mesma ser reaberta, se necessário for.

Em segundo lugar, vejamos a lógica de retirar um aspecto central ao presente inventário e relegá-lo para os meios comuns.

Primeiro, o regime legal.

Como se pode ler em “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, de Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, “o novo modelo do processo de inventário continua a prever a remessa das partes para os meios comuns quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão prejudicial não se compatibilize com a sua apreciação incidental (arts. 1092º,1,b, 1093º,1 e 1095º,1), nomeadamente porque as limitações decorrentes do disposto nos arts. 292º a 295º (aplicáveis ex vi do art. 1091º) afectariam as garantias das partes. A necessidade desta remessa para os meios comuns é consequência, sob um ponto de vista formal, da estrutura do processo de inventário, e da resolução de inúmeras questões controvertidas em incidentes nominados ou inominados e, sob uma perspectiva substancial, do tipo de questões prejudiciais que podem surgir no processo de inventário (como as respeitantes à interpretação ou validade de um testamento ou à indignidade sucessória de um herdeiro). Estas questões podem ser complexas em matéria de facto, mas o que realmente justifica a remessa dos interessados para os meios comuns não é tanto esta complexidade, mas muito mais a garantia de um processo equitativo a esses interessados”.
A sede legal do regime consta dos arts. 1092º e 1093º CPC, aditados pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, com entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2020.

Os autores supracitados escrevem: “os arts. 1092º e 1093º contêm regras verdadeiramente nucleares do regime do inventário, pois que é do disposto neles que depende o que pode ser decidido e o que, apesar de ser relevante para a realização da partilha, não vai ser decidido no processo de inventário. A diferença entre o art. 1092º e o art. 1093º é a seguinte:

-o art. 1092º refere-se às questões prejudiciais essenciais, que são aquelas que respeitam à admissibilidade do inventário e à definição dos direitos dos interessados na partilha (cf. art. 1092º,1,b);
-o art. 1093º respeita às questões prejudiciais não essenciais, isto é, àquelas que se referem à determinação do activo e do passivo do património a partilhar (cf. art. 1093º,1);

No caso destes autos estamos perante situação que se subsume a este art. 1093º.
O nº 1 dispõe: “se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados directos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns”.

Como se escreve no CPC anotado de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “este artigo (1092º) cura da interferência na marcha do inventário de acções pendentes e da necessidade de suspender a instância com fundamento na discussão externa de questões prejudiciais respeitantes à admissibilidade do inventário ou à definição de direitos de interessados directos na partilha. Fora deste círculo (e da eventualidade de haver nascituros interessados, nos termos do nº 1, alínea c)), em que se verifica uma prejudicialidade forte, tendo em conta o reflexo que a decisão a proferir noutra acção é susceptível de produzir no processo de inventário, é de aplicar o regime do art. 1093º”.
E acrescentam: “A conexão com o art. 1093º permite concluir que qualquer questão relacionada com a admissibilidade do processo de inventário ou com a definição de direitos de interessados directos na partilha terá de ser decidida no próprio processo, não podendo os interessados ser remetidos para os meios comuns. A lei apenas concede a possibilidade de suspensão da instância do inventário, aguardando o que, com reflexos na resolução de tais questões, esteja sob discussão noutra acção pendente ou não deva ser incidentalmente decidido no inventário”.
E ainda, em anotação ao art. 1093º,1 CPC, “qualquer questão relacionada com a admissibilidade do processo de inventário ou com a definição de direitos de interessados directos na partilha terá de ser decidida no próprio processo. Embora deva ou possa ser determinada a suspensão da instância, nos termos do art. 1092º, os interessados não podem ser remetidos para os meios comuns quanto a tais questões, que são imanentes ao próprio processo de inventário”.
Esta é a regra.
Mas como sempre no mundo do Direito, não há regra sem excepções.
E os mesmos autores explicam: “todavia, podem suscitar-se no âmbito do processo de inventário questões de outra natureza, designadamente conexas com os bens relacionados e/ou com direitos de terceiros para cuja resolução se revelem inadequados os constrangimentos inerentes ao processo de inventário (cfr. art. 1091º,1, quando remete para o regime dos incidentes da instância), cuja tramitação difere substancialmente da prevista para o processo comum ou para outros processos especiais. Nestas situações, embora a apreciação de tais questões não seja excluída em absoluto do processo de inventário, segundo a regra geral do art. 91º,1, o litígio pode envolver larga indagação fáctica ou a produção demorada de meios de prova, podendo justificar a remessa dos interessados para os meios comuns. Destacam-se os casos em que para a apreciação das questões se revele inadequada a tramitação do processo de inventário para assegurar as garantias dos interessados, tendo em conta designadamente as restrições probatórias ou a menor solenidade associada a uma tramitação de cariz incidental. Tal poderá ocorrer, por exemplo, quando esteja em discussão a área ou os limites de um imóvel envolvendo divergências com terceiros, a arguição da invalidade da venda de bens relacionados no processo de inventário, a invocação por parte de terceiro ou de um herdeiro, da aquisição por usucapião de um bem relacionado (cf. nº 5 do art. 1105º), a alegação da acessão industrial imobiliária sobre um imóvel relacionado (cf. art. 1339º CC) ou a dedução de um crédito ou de uma dívida da herança relacionada  com a realização de benfeitorias”.
E, mais adiante: “a opção de remessa para os meios comuns não pode ser orientada por meras razões de comodidade ou de facilitismos, apenas se justifica quando, estando unicamente em causa a complexidade da matéria de facto, a tramitação do inventário se revele inadequada, por implicar, designadamente, uma efectiva redução das garantias dos interessados, por comparação com o que pode ser alcançado através dos meios comuns”.
Este é o quadro legal.
E a esta luz, não vemos que se justifique, no caso concreto, a remessa para os meios comuns.
A questão controvertida consiste em saber quem liquidou o montante em dívida dos empréstimos contraídos junto da Banca pelo casal. Ora, pela própria natureza dos factos em apreciação, não vemos qual seja a dificuldade probatória que possa surgir. Supomos que a prova documental, já produzida ou a produzir, seja suficiente para permitir apurar esse único facto ainda em falta. E se mesmo assim a questão não ficar resolvida, é sempre possível o recurso a outros meios de prova. Recordemos que Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, na obra supra citada, fls. 12, afirmam o seguinte: “muito relevante no processo de inventário pode ser o uso pelo juiz dos poderes inquisitórios em matéria probatória (art. 411º). Assim, as diligências probatórias a realizar no processo poderão não ser apenas as que tenham sido requeridas pelas partes, dado que o juiz deve exercer os seus poderes inquisitórios em matéria probatória de modo a decidir, com o indispensável rigor e ponderação, todas as questões controvertidas. Através destes poderes inquisitórios podem ser superadas as limitações que constam do art. 293º,1, aplicáveis aos incidentes do processo de inventário por força do disposto no art. 1091º,1”.
Assim, em conclusão, não se pode manter a decisão que remeteu as partes para os meios comuns quanto à questão controvertida supra identificada, porque tal questão pode e deve ser apreciada dentro dos autos de inventário. Assim, o Tribunal recorrido deverá decidir a mesma, se considerar que todos os elementos probatórios já se encontram nos autos, ou então convidar as partes a apresentar mais prova, se assim o entender.

IV- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso procedente, e em consequência revoga o despacho recorrido, determinando que a questão em causa seja apreciada e decidida nos próprios autos, podendo ser produzida a prova que for considerada necessária.

Custas pela recorrida (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 9.3.2023

Relator (Afonso Cabral de Andrade)

1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)