Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
102/16.1TMR-A.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: ARRESTO
OPOSIÇÃO À DECISÃO
ARGUIÇÃO DE ILEGALIDADE
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
NULIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Os arrestados têm dois meios, em alternativa, para se oporem à decisão que decretou o arresto: recorrer da mesma ou deduzir oposição (art. 372.º, n.º 1, als. a) e b) do CPC).

II) Caso optem pela dedução de oposição não podem pedir que se proceda à reponderação da legalidade da decisão, já que o objetivo de tal meio é só o de permitir a alegação de factos ou apresentação de meios de prova com os quais o tribunal ainda não havia sido confrontado, que possam contrariar e mesmo afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução.

III) A arguição da ilegalidade da decisão com fundamento em que, ao invés de ter declarado a nulidade decorrente da ineptidão do requerimento inicial decretou o arresto, não é admissível na dedução de oposição.

IV) Aplicando às especificidades próprias de um procedimento de arresto preventivo o limite temporal estabelecido no art. 200.º, nº 2, do CPC para o conhecimento oficioso da nulidade principal decorrente da ineptidão da petição inicial, resulta que tal nulidade ficará precludida caso não seja interposto recurso do despacho que decreta o arresto, que é o único meio processual destinado a colocar em causa a legalidade daquela decisão.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção penal)

Relatora: Fátima Furtado; adjunta: Maria José Matos.

I. RELATÓRIO

No processo de arresto preventivo n.º 102/16.1T9MTR, do juízo de competência genérica de Montalegre, comarca de Vila Real, foi julgada improcedente a exceção dilatória de nulidade do processo por ineptidão da causa de pedir, invocada na oposição ao arresto pelos requeridos D. J., Ana e José, com os demais sinais dos autos, por despacho de 19 de junho de 2018, com o seguinte teor:

«Os requeridos D. J., Ana e José vieram deduzir oposição ao arresto, pugnando pela ineptidão do requerimento inicial.
Para tanto, alegam a falta de sentido, nexo e coerência da aludida peça processual.
Notificado, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da improcedência da invocada ineptidão.

Cumpre apreciar e decidir.

No plano do processo comum, o artigo 552º, nº1, alínea d) do CPC exige a indicação, na petição, da causa de pedir, ou seja, do ou dos factos jurídicos donde emerge a pretensão traduzida no pedido.

E conforme o artigo 186º, nº1, alínea a) quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, tem lugar ineptidão.

Uma das manifestações de falta de causa de pedir reside na indicação totalmente vaga ou genérica dos factos, pois que o julgador tem de saber o que está a ser julgado e tem de se saber, nomeadamente para efeitos de caso julgado, sobre o que versou a decisão: é o que se chama função de individualização da causa de pedir.

Se esta foi indicada de modo incompleto ou se não for idónea para ser almejado o efeito jurídico pretendido, não se verifica este vício (ver neste sentido, entre outros, Prof. Alberto dos Reis, Comentários ao Código de Processo Civil, 3º, 381), o que aliás se compreende, pois que a ineptidão determina a nulidade que veda o conhecimento da pretensão do autor e se se julgasse inepta uma petição com causa de pedir insuficiente ou inidónea para ser atingido o efeito jurídico pretendido, estar-se-ia a recusar ao autor a apreciação duma pretensão que ele defende e sobre a qual tem o direito de obtenção de decisão judicial.

Vertendo as considerações expendidas ao caso dos autos, cumpre começar por notar que o presente procedimento cautelar corre por apenso aos autos de processo comum com o n.º 102/16.1T9MTR.

Foi nesses autos que se determinou a extracção de certidão para organização do presente apenso de Procedimento Cautelar.

Ora, pela mera consulta daqueles autos, designadamente do despacho proferido a 11-07-2017, resulta que inexiste qualquer desconexão, incoerência ou ineptidão da petição inicial.

Como bem assinala a Digna Magistrada do Ministério Público, da mera observação da certidão que originou presentes autos verifica-se uma desordem na numeração das folhas, tendo sido agrupadas a páginas pares, desordem essa que se verifica apenas na certidão junta ao presente procedimento cautelar, o que é apreensível pela simples consulta do documento e que nada tem a ver com o teor da peça processual, mas antes com um lapso manifesto da secretaria na organização do processado, que obviamente não consubstancia qualquer ineptidão.

Pelo exposto, inexistindo qualquer desconexão ou incoerência, julga-se suficientemente concretizada a causa de pedir invocada e em conformidade improcedente a invocada excepção dilatória de nulidade do processo por ineptidão da causa de pedir.
Custas pelos oponentes.
Valor da acção: 577.964, 96€
Registe e notifique.»
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Inconformados, os requeridos D. J., Ana e José interpuseram recurso, apresentando a competente motivação que rematam com as seguintes conclusões:

«A. O presente recurso vem interposto da sentença proferida pelo tribunal a quo que julgou improcedente a oposição ao arresto ancorada na ineptidão da petição inicial;
B. Anteriormente tinha sido declarada a nulidade de citação (reconhecida em sede de recurso por este Tribunal da Relação) – na altura os requeridos supunham que faltavam páginas ao referido articulado (e também os documentos que tinham servido para fundamentar a decisão de arresto).
C. Na verdade, não obstante a numeração de folhas manuscrita e informática se encontrar aparentemente correcta, certo é que, a falta de sentido, nexo e de coerência do texto (requerimento do Ministério Público) eram notórios e incontestáveis.
D. Não obstante o acórdão deste tribunal da Relação ter declarado a nulidade da citação e consequentemente ordenado a repetição das citações de acordo com as formalidades prescritas na lei, certo é que as mesmíssimas vicissitudes se mantêm.
E. Aliás, o próprio tribunal a quo não põe em causa tal factualidade;
F. Assim, um declaratário normal entenderia aquilo que os recorrentes entenderam: o “vício” não foi suprido após a repetição das citações porque não era suprível.
G) Tanto mais que todas as páginas objecto da citação ora em crise vêm numeradas informaticamente de 1 até 52 e também porque as páginas do próprio requerimento de arresto do MP vêm correctamente numeradas (sequencialmente) de forma manuscrita.
H) Aliás, admitir-se o contrário seria aceitar que o tribunal a quo pudesse ter feito tábua rasa do superiormente decidido de forma fragorosa!
I) O tribunal a quo não poderia (nem pode) andar a repetir citações ad aeternum a seu bel-prazer.
J) Os recorrentes têm os seus bens arrestados há quase 1 ano sem que tenham tido possibilidade de exercer o seu direito de defesa, com todos os danos e vicissitudes que tal despoletou.
K) Os erros da secretaria não podem prejudicar, em caso algum, as partes;
L) Foram violados: artigos 3º n.º 3, 4º, 157º n.º 6, 186º n.º 1 e 2, 576º n.º 2 e 577º b) CPC e 4º CPP.»
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães, com os efeitos e regime próprios.
Respondeu o Ministério Público defendendo a improcedência do recurso.
Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral adjunto emitiu douto parecer no qual sustenta igualmente o não provimento do recurso.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, na sequência do que os recorrentes responderam reafirmando os argumentos já anteriormente invocados no recurso.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (1).

1. Questão a decidir

Face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, a questão a decidir é a de saber se a oposição ao arresto com fundamento na ineptidão do requerimento inicial deverá, ou não, proceder.
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2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Por despacho judicial de 12 de julho de 2017 foi decretado, sem audiência da parte contrária, o arresto preventivo (a que alude o artigo 228.º do Código de Processo Penal) de vários bens móveis e imóveis na esfera patrimonial dos recorrentes D. J., Ana e José, que havia sido requerido pelo Ministério Público.

Foram em seguida os recorrentes notificados dessa decisão, abrindo-se a fase do contraditório.

Nesta fase, os arrestados têm dois meios, em alternativa, para se oporem à decisão que decretou o arresto: recorrer da mesma ou deduzir oposição, como estabelece o artigo 372.º, n.º 1, als. a) e b) do Código de Processo Civil.

O recurso do despacho que decretou o arresto destina-se a colocar em causa a legalidade da decisão por falta dos necessários requisitos de direito.

A oposição ao despacho que decretou o arresto destina-se à alegação de factos ou produção de meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução.

No caso em apreço, os recorrentes optaram manifestamente por esta última via, reagindo ao arresto com apresentação de oposição, perante o mesmo tribunal que o havia decretado.

Porém, na oposição que deduziram, em momento algum põem em causa a factualidade em que se fundamentou o decretamento do arresto, contrapondo-lhe factos capazes de abalar esses fundamentos, antes se limitando-se a alegar a falta de sentido, nexo e coerência do requerimento inicial do Ministério Público, o que enquadram na figura da ineptidão, por falta de causa de pedir. Assentando a sua divergência exclusivamente na arguição da nulidade daí decorrente, ou seja, na ilegalidade da decisão que, ao invés de ter declarado aquele vício, decretou o arresto.

Não obstante decorrer expressamente da lei (2) que o objetivo do meio de defesa escolhido pelos recorrentes (oposição) não é o de se proceder à reponderação da legalidade da decisão, mas tão só o de permitir a alegação de factos ou apresentação de meios de prova com os quais o tribunal ainda não havia sido confrontado, que possam contrariar e mesmo afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução.

Só assim se compreendendo, aliás, que a oposição seja apreciada pelo mesmo tribunal que decretou a providência, que perante aqueles elementos novos terá oportunidade de, se for caso disso, alterar a sua decisão inicial.

Já o recurso, ao colocar em causa a decisão que decretou o arresto, mas com fundamento nos próprios elementos dela constantes ou, pelo menos, já constantes dos autos na altura da sua prolação e que, por isso, nela poderiam ter sido atendidos e valorados, destina-se naturalmente a ser apreciado por outro tribunal, hierarquicamente superior.

Vemos, pois, que a razão invocada pelos recorrentes na oposição ao despacho que decretou o arresto – que se circunscreve à alegada ineptidão do requerimento inicial – ajusta-se unicamente ao recurso e não à forma que foi escolhida para se oporem àquele despacho.

Daí decorrendo que, se bem que não exatamente pelos motivos constantes do despacho recorrido, mas antes pela total omissão de alegação de factos suscetíveis de integrarem os fundamentos legais da oposição a que alude a al. b), do n.º 1, do artigo 372.º do Código de Processo Civil, sempre teria que ser considerada improcedente a oposição deduzida pelos recorrentes ao despacho que decretou o arresto.

Por outro lado, e embora o vício de ineptidão da petição inicial se traduza numa nulidade insanável de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 196.º do Código de Processo Civil, afigura-se-nos que a alegada ineptidão do requerimento em que foi pedido o arresto já não pode ser apreciada no recurso do despacho que julgou improcedente a oposição ao arresto decretado, como é o caso do presente recurso.

Não podemos esquecer que a ineptidão é um vício específico da petição inicial e que a sua aplicação ao requerimento de arresto preventivo resulta da aplicação analógica das correspondentes normas processuais.

Ora, o artigo 200.º, nº 2, do Código de Processo Civil estabelece um limite temporal ao conhecimento da nulidade principal decorrente da ineptidão da petição inicial, prevista no artigo 186.º do mesmo diploma, prescrevendo a sua apreciação no despacho saneador, se o não tiver sido antes, podendo conhecer-se dela até à sentença final, se o processo não comportar despacho saneador.

Aplicando tal norma às especificidades próprias de um procedimento de arresto preventivo, resulta que a nulidade por ineptidão da petição inicial ficará irremediavelmente precludida caso não seja interposto recurso do despacho que decreta o arresto, que é o único meio processual destinado a colocar em causa a legalidade daquela decisão.

É que se o Tribunal, ao decretar o arresto, demonstrou ter conseguido compreender perfeitamente o requerimento inicial em que essa providência era solicitada, também os arrestados, não colocando em causa a legalidade dessa decisão através da interposição de recurso e optando por deduzir oposição, é porque compreenderam igualmente o sentido essencial da factualidade alegada.

Como já se referiu, a oposição destina-se exclusivamente à alegação de factos ou produção de meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução, o que implica, naturalmente, a compreensão do requerimento inicial.

Não podendo também um eventual uso indevido pelos arrestados dos meios processuais ao seu dispor para se oporem ao despacho que decretou o arresto – como sucedeu no caso em apreço – redundar em seu favor, determinando um limite temporal diverso para conhecimento da nulidade decorrente da ineptidão. Tendo aqui aplicação a velha máxima latina sibi imputet, si, quod saepius cogitare poterat et evitare, non fecit [Que se culpe a si mesmo, se não fez o que poderia prever e evitar] (3).

Naufragando o recurso.
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III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto por D. J., Ana e José.
Vão os recorrentes condenados em custas, fixando-se em 4 (quatro) Ucs a taxa de justiça.
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Guimarães, 22 de outubro de 2018
(Elaborado e revisto pela relatora)


1. Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
2. Cf. al. b), do n.º 1, do artigo 372.º do Código de Processo Civil.
3. In Codex Iustiniani 4.29.22.1.