Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5157/21.4T8VNF-A.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
ARTº. 39º DO C.P.C.
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 - Cabe ao autor, antes de propor a ação, recolher os elementos que lhe permitam delimitar não só os factos relevantes, mas também os sujeitos que, na sua perspetiva, são titulares dos interesses em conflito, o que é uma consequência dos princípios do dispositivo e da autorresponsabilidade das partes.
2 – Não o conseguindo, pode fazer uso da pluralidade subjetiva subsidiária, prevista no artigo 39.º do CPC
3 - Este mecanismo do artigo 39.º do CPC pode também ser desencadeado supervenientemente, após a contestação do réu, através do incidente da intervenção principal provocada, no caso de se verificar uma situação de fundada dúvida sobre o elemento subjetivo.
4 – Não pode, contudo, a intervenção principal provocada servir para substituir o primitivo réu contra quem, por erro, se dirigiu a ação.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

J. A. deduziu ação declarativa contra A. G. e V. J. pedindo que o primeiro réu, ou o segundo réu, ou ambos os réus sejam condenados a indemnizar o autor de todos os danos sofridos em consequência do acidente que descreve, em valor a liquidar no decurso da ação, indemnização acrescida dos devidos juros legais, até efetivo e integral pagamento.

Alegou que, no dia 21/12/2016, quando conduzia o seu veículo ligeiro de mercadorias, que utilizava na sua atividade profissional de eletricista, se viu surpreendido pelo desprendimento de uma pedra de grandes dimensões, que se soltou de um muro para a estrada, e na qual veio a embater, o que lhe provocou danos no veículo e outros que descreve. Pensa que o muro de onde se desprendeu a pedra pertence ao primeiro réu, mas pode também pertencer ao segundo réu, uma vez que se encontra na confrontação de ambos os prédios. Já intentou ação pelos mesmos factos, mas só contra o primeiro réu, “onde não logrou fazer a prova dos factos narrados…os quais, na motivação foram considerados como condição de improcedência dessa ação”
Posteriormente, o autor requereu a desistência da instância relativamente ao réu V. J., tendo este dito que não se opunha a tal desistência e tendo a mesma sido homologada por sentença.
Logo de seguida, veio o autor requerer a intervenção principal provocada, para figurar na ação como segunda ré, de M. L., alegando que a chamada é proprietária do prédio que confina pelo lado sul com o prédio do primeiro réu, pelo que o interesse desta segunda ré é igual ao interesse do primeiro réu, conforme alegado na petição (por a pedra se ter desprendido do muro num local junto à confrontação do prédio do primeiro réu com o prédio situado a sul dele), tendo sido demandado, inicialmente, como segundo réu, outra pessoa que não a chamada, o que se ficou a dever a mero lapso, pelo que a intervenção desta segunda ré é necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.
O réu contestou, excecionando o caso julgado e pedindo a condenação do autor como litigante de má fé.
O réu pronunciou-se, também, quanto ao chamamento requerido, considerando que o mesmo deve ser indeferido.
Foi proferida decisão que indeferiu o requerido chamamento.

O autor interpôs recurso desta decisão, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

A No Douto Despacho sub judice o M.mo Juiz, conclui e decide conforme, por brevidade, aqui se transcreve:

“Assim, a intervenção principal provocada requerida não é admissível, porquanto o seu real propósito não se subsume aos requisitos legais que a enquadram e justificam.
Pelo exposto, indefere-se o requerido chamamento”.
B O Autor deduziu o chamamento da nova Ré, M. L., deduzindo a necessária intervenção principal provocada ao abrigo do disposto no artigo 316º, n.º 1 do CPC, fundamentando tal chamamento nos factos narrados nos artigos 3 e 4 da petição inicial, e cujo teor, para facilidade de análise, aqui se transcreve:
“3. A pedra de grandes dimensões desprendeu-se do muro do prédio rústico (bouça) que o Autor entende pertencer ao primeiro Réu, mas que, dado o local do desprendimento se situar junto à confrontação do prédio (bouça) do primeiro Réu com o prédio (bouça) do segundo Réu, situado a sul dele, admite a possibilidade de o prédio de cujo muro a pedra se desprendeu pertencer na realidade ao segundo Réu.
4. O primeiro Réu (ou o segundo Réu) não cuidavam de manter firmes as pedras de grandes dimensões que constituem o muro de divisão por forma a assegurar que as mesmas se não desprenderiam nem cairiam sobre a faixa de rodagem da estrada que marginaliza o referido prédio rústico (bouça)”.

E alegando no seu requerimento para intervenção principal provocada, ainda o seguinte, que para facilidade se transcreve:

“- A ora chamada é a proprietária do prédio (bouça) que confina pelo lado sul com o prédio (bouça) do primeiro Réu;
- Pelo que o interesse desta segunda ré é igual ao interesse do primeiro Réu conforme alegado nos artigos 3.º e 4.º da Petição Inicial.
- Pelo que a intervenção desta segunda Ré é necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal (artigo 33.º n.º 2 do C.P.C.).
- Por mero lapso o Autor indicou como segundo Réu (litisconsorte do primeiro Réu) outra pessoa que não a verdadeira proprietária do prédio (bouça) que confronta com o prédio (bouça) do primeiro Réu -razão porque a ora chamada não foi demandada inicialmente, (artigo 316.º n.º 2, 1.º segmento do C.P.C.).
- O chamamento funda-se assim no disposto nos artigos 311.º, 316.º n.º 1 e 2 (1.º segmento) e 33.º n.º 2, todos do C.P.C.”.
C E assim, o chamamento tem por base e fundamento o litisconsórcio necessário previsto no artigo 33º do CPC, face nomeadamente aos indicados factos narrados nos artigos 3 e 4 da petição inicial, e ao referido teor do requerimento para intervenção provocada.
D Trata-se assim de um caso de litisconsórcio necessário previsto no artigo 33º do CPC, pelo que podia o Autor, como veio a fazer, requerer a intervenção principal provocada da nova Ré, M. L., ao abrigo do disposto no artigo 316º, n.º 1 do CPC, por ter na causa um interesse igual ao do primitivo Réu e por ser esta a proprietária do prédio (bouça) de onde se desprendeu a pedra que rolou para a estrada e causou o acidente dos autos, e para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.
E Foi violado o disposto nos artigos 33º e 316º n.º 1 do CPC. Tais disposições deveriam ter sido aplicadas e com o sentido de que a intervenção principal provocada da chamada, M. L. como proprietária do prédio (bouça) do qual se desprendeu a pedra que rolou para a estrada e causou o acidente, é permitida e necessária, pela própria natureza da relação jurídica, (vide artigos 3 e 4 da petição inicial), e para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.
Termos em que pede a procedência do Recurso, e seja determinado o chamamento para intervenção principal da nova Ré, M. L., como proprietária do prédio de cujo muro se desprendeu a pedra que rolou para a estrada e causou o acidente dos autos, por ter na causa um interesse igual ao primitivo Réu, A. G., e assim a realização de JUSTIÇA.

O réu contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir em separado e com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

A única questão a resolver prende-se com a admissibilidade da intervenção principal provocada requerida pelo autor.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Os factos a considerar são os constantes do relatório supra.

Na decisão recorrida considerou-se que: “os incidentes de intervenção de terceiros foram estruturados na base dos vários tipos de interesse na intervenção e das várias ligações entre esse interesse, que deve ser invocado como fundamento da legitimidade do interveniente, e da relação material controvertida desenvolvida entre as partes primitivas, estando para tal afastada a possibilidade do recurso ao incidente por parte do autor a fim de possibilitar a substituição do réu, contra quem, por erro, ou opção, dirigiu a ação [V. Salvador da Costa in Os Incidentes da Instância, 3.ª edição, 78-79.]
Pois bem, volvendo ao caso concreto, logo se constata que a dedução do incidente de intervenção principal por parte do autor não serviu o estrito propósito de sanar a ilegitimidade de uma das partes no processo, concretamente, do réu, mas antes teve a intenção de substituir a parte primitiva- o 2.º réu contra quem intentou a ação -, amplitude que este instituto não tem.
No quadro em apreço, assoma evidente que o autor pretende fazer intervir a chamada em substituição daquele primitivo réu, já que o mesmo, por não ser proprietário do prédio confinante com o do 1.º réu, não detém legitimidade, tal como a pretensão se encontra fundamentada e deduzida.
Todavia, como supra se referiu, não pode a intervenção principal operar como um expediente do autor com vista à substituição do réu contra quem, por erro, ou opção, dirigiu a presente ação.
Em síntese, o ora autor não pretende salvaguardar nenhuma situação de litisconsórcio passivo, antes pretendendo sim que ocorra uma substituição passiva, já que o eventual responsável ou co-responsável pela alegada omissão do dever de vigilância do muro que alegadamente suportava a pedra que atingiu o seu veículo, em cujo pedido de responsabilidade civil se funda, não seria o réu V. J., mas a terceira que pretende chamar.
Assim, a intervenção principal provocada requerida não é admissível, porquanto o seu real propósito não se subsume aos requisitos legais que a enquadram e justificam”
Entende o apelante que foi violado o disposto nos artigos 316.º, n.º 1 e 33.º do CPC, uma vez que a intervenção da chamada, como proprietária do prédio do qual se desprendeu a pedra que rolou para a estrada e causou o acidente, é permitida e necessária, pela própria natureza da relação jurídica e para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.
Vejamos.
A intervenção provocada existe para que o chamado, como parte principal, faça valer um interesse próprio, paralelo ao do autor ou ao do réu.
O n.º 1 do artigo 316.º do CPC cobre a situação de ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário, caso em que qualquer das partes primitivas pode chamar um terceiro que se associe a si ou à parte contrária para assegurar a legitimidade.
Já o n.º 2 do mesmo artigo visa promover o chamamento de um terceiro litisconsorte do réu inicialmente demandado, isto é “de alguém que é titular passivo da mesma relação jurídica que está na base da demanda do primitivo réu e que, por isso mesmo, poderia ter sido desde logo demandado juntamente com aquele” ou constituir pluralidade subjetiva subsidiária passiva, nos termos do artigo 39.º - cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, CPC anotado, vol. I, pág. 367.
Ora, o autor fundamenta o seu requerimento, exatamente, na dúvida sobre a propriedade do muro do qual se desprendeu a pedra que terá provocado o acidente, o que nos reconduziria ao disposto no artigo 39.º do CPC quanto à “dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação controvertida”
Sobre este normativo – artigo 39.º do CPC – deve dizer-se que cabe ao autor, antes de propor a ação, recolher os elementos que lhe permitam delimitar não só os factos relevantes, mas também os sujeitos que, na sua perspetiva, são titulares dos interesses em conflito, o que é uma consequência dos princípios do dispositivo e da autorresponsabilidade das partes. Não o conseguindo, pode o mecanismo do artigo 39.º ser desencadeado supervenientemente, após a contestação do réu, através do incidente da intervenção principal provocada. Contudo, tal dependerá, como resulta do texto do normativo em questão, da verificação de uma situação de fundada dúvida sobre o elemento subjetivo. Ou seja, não pode ser feito um uso abusivo desta hipótese de demanda – cfr. Autores e obra citada, pág. 71 – tem que existir “uma dúvida objetiva, que não podendo ser imediata e seguramente ultrapassada, colida com a definição dos sujeitos da relação material controvertida, o que é bem diverso de uma dúvida meramente subjetiva ou emergente do incumprimento do dever de diligência investigatória que deve proceder a instauração de qualquer ação judicial”
No caso dos autos, o autor, logo de início (talvez porque já tinha anteriormente proposto uma ação em tudo idêntica contra o primeiro réu, que veio a ser julgada improcedente, com a absolvição desse réu), considerou que deveria intentar a ação contra os proprietários de ambos os prédios confinantes, por ter dúvida quanto ao local do muro de onde se teria desprendido a pedra que teria invadido a estrada. Contudo, por algum motivo que se desconhece, terá identificado mal o segundo réu e veio logo desistir da instância quanto a ele e, ato contínuo, requerer a intervenção principal provocada de uma terceira que, alega (não juntando qualquer documento comprovativo), ser a verdadeira proprietária do dito prédio. Ou seja, não cumpriu aquele dever de diligência investigatória prévia à instauração de qualquer ação e, como muito bem se refere no despacho recorrido, deve considerar-se afastada a possibilidade do recurso ao incidente de intervenção principal por parte do autor a fim de possibilitar a substituição do réu, contra quem, por erro, ou opção, dirigiu a ação.
Deve, ainda dizer-se que, ao contrário do que sustenta o apelante, a intervenção desta chamada não é necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil nomal – artigo 33.º, n.º 2 do CPC.
No caso concreto, a sentença que venha a ser proferida pode regular definitivamente a situação concreta dos interessados intervenientes na lide – autor e réu – com independência relativamente aos não intervenientes, uma vez que o caso julgado apenas vincula os sujeitos intervenientes. Ou seja, não estamos perante uma relação jurídica que envolva a necessidade de intervenção na causa de todos os interessados, para que a decisão judicial a proferir possa produzir o seu efeito útil normal, motivo pelo qual não será de aplicar o disposto no artigo 33.º, n.º 2 do CPC.
Não servindo a requerida intervenção para sanar qualquer ilegitimidade do réu, nem manifestando o autor uma dúvida fundamentada na propositura da ação ou após a contestação, quanto ao sujeito da relação controvertida, mas apenas tendo a intenção de substituir a parte primitiva que indicou como réu, por outra pessoa, não é adequada a intervenção principal para esse efeito, tanto mais que, como vimos, a intervenção desta não é necessária para que a decisão a proferir produza o seu efeito útil normal.
Daí que improceda a apelação sendo de confirmar a decisão recorrida.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
***
Guimarães, 30 de junho de 2022

Ana Cristina Duarte
Alexandra Rolim Mendes
Maria dos Anjos Melo Nogueira