Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4928/20.3T8GMR-A.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
NULIDADE DA SENTENÇA
LIVRANÇA EM BRANCO
PACTO DE PREENCHIMENTO
INSOLVÊNCIA
PRESCRIÇÃO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1) Só quando, no uso da autorização que concede o acordo de preenchimento, o possuidor do título o preenche, dotando-o de requisito próprios da letra, ou livrança, é que surge para aquele que entrega o título incompleto, a obrigação cambiária;
2) O início do prazo de prescrição previsto no artigo 70º nº 1 LULL (cfr. artigo 77º) afere-se em função da data do vencimento inscrito na livrança, independentemente da data em que tenha sido declarada a insolvência do obrigado, desde que não se mostre infringido o pacto de preenchimento.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A) Os executados F. M. e M. C. vieram deduzir oposição mediante embargos, por apenso à execução que lhes moveu X S T C, SA, onde concluem entendendo dever a presente oposição ser recebida e, a final, ser julgado procedente, por provado o alegado (nos embargos), devendo a execução ser julgada extinta.
Para tanto alegam, em síntese, que a exequente é parte ilegítima, não estando provada a invocada cessão de créditos, nem a mesma foi comunicada aos embargantes.
A subscritora da livrança, Y – Soluções Informáticas, Unipessoal, Lda, por sentença de 12/10/2009, foi declarada insolvente, pelo que se venceram todas as obrigações contraídas e o crédito prescreveu.
Acresce que a livrança é executada como mero quirógrafo, havendo violação do pacto de preenchimento da livrança que foi entregue assinada em branco pelos embargantes, sendo certo que prescreveu o aval, tendo em conta a data do incumprimento, que coincide com a data de declaração de insolvência da subscritora sociedade, os embargantes não foram interpelados entre a declaração da insolvência e o preenchimento da livrança, o que constitui abuso de direito.
Pela embargada e exequente X S T C, SA, foi apresentada contestação, onde conclui entendendo deverem os embargos ser julgados totalmente improcedentes, por não provados e, em consequência, prosseguir a execução contra os executados, com todas as legais consequências.
Alega, para tanto, em síntese, que constam dos autos documentos que provam a cessão, a qual foi comunicada aos embargantes conforme documentos que junta, não tendo ocorrido a prescrição, a livrança foi preenchida de acordo com o contrato e a convenção de preenchimento, não ocorreu prescrição do aval, tendo em conta a data do preenchimento da livrança e a data de instauração da execução, mais alegando ter agido em exercício legítimo dos seus direitos, inexistindo qualquer abuso.
*
B) Foi elaborado saneador-sentença, onde se decidiu julgar totalmente improcedentes os embargos de executado e determinar o prosseguimento da execução.
*
C) Inconformados com esta decisão, vieram os executados e embargantes F. M. e M. C. interpor recurso, que foi admitido como sendo de apelação, a subir nos próprios autos, com efeito devolutivo (fls. 117).
*
Nas alegações de recurso dos apelantes F. M. e M. C., são formuladas as seguintes conclusões:

1. A sentença recorrida padece de nulidade nos termos dos artigos 615º nº 1 al. d) e 640º, nº 1 al. b) do CPC porquanto teriam de considerar como provados os seguintes factos que foram alegados pelos embargantes e que não foram impugnados:
a) A subscritora da livrança, Y – Soluções Informáticas Unipessoal, Lda. foi declarada insolvente por sentença, já transitada em julgado, proferida em 12/10/2009, conforme documento junto.
b) A instituição bancária mutuante, Banco ... S. A., foi citada para aqueles autos de insolvência, conforme documento junto.
c) A instituição bancária mutuante não reclamou qualquer crédito nos autos de insolvência da subscritora da livrança.
d) A data de vencimento para pagamento da obrigação ocorreu na data da declaração da insolvência da subscritora da livrança, ou seja, em 12/10/2009.
2. A data de vencimento de qualquer obrigação ocorre no momento em que a mesma deveria ser cumprida e não o foi, ou seja, quando há falta do seu cumprimento.
3. No caso dos autos, mostra-se indiscutido que foi entregue ao Banco ... pela sociedade Y uma “livrança em branco” por si subscrita e avalizada pelos recorrentes.
4. Através desta garantia, a entidade bancária, além de poder satisfazer o seu crédito através do património da sociedade, pode, ainda, satisfazê-lo através do património pessoal dos sócios avalistas (cfr. artigos 32º, 47º e 77º, da LULL), aumentando, pois, a garantia patrimonial do seu crédito (artigo 601º, do Cód. Civil).
5. Uma livrança em branco corresponde ao documento (sujeito ao modelo normalizado de livrança) que, não contendo todas as menções obrigatórias essenciais previstas nos artigos 1º ou 75º da LULL, possua a assinatura de, pelo menos, um dos signatários cambiários (com consciência e intenção de assumir uma vinculação cambiária), acompanhado de um acordo ou pacto de preenchimento futuro das menções em falta.
6. Este pacto de preenchimento pode designar-se como o ato pelo qual as partes no negócio cambiário ajustam os termos ou as condições em que deve vir a ser posteriormente completado o título de crédito, definindo a obrigação cambiária, ou seja as condições relativas ao seu conteúdo, como seja o montante, o vencimento, o lugar de pagamento, etc.
7. Quanto a este preenchimento e aos seus termos, o que parece resultar do citado artigo 10º da LULL é que, ainda que o mesmo corresponda ao exercício de um poder atribuído pela LULL ao portador do título a quem o mesmo foi entregue voluntaria e conscientemente incompleto, o exercício desse poder de preenchimento do título há-de ser conforme à vontade que presidiu à assinatura do título em branco, seja essa vontade expressa e corporizada no pacto escrito de preenchimento ou tácita ou implícita.
8. Como salienta o Ilustre Professor Ferrer Correia, “ninguém subscreve um documento em branco para que a pessoa a quem o transmite faça dele o uso que lhe aprouver; quem emite uma letra ou livrança em branco atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher sob certos e determinados termos”.
9. O que releva, assim, para efeitos de se poder afirmar que a autorização para o preenchimento foi dada é, segundo cremos, que o interveniente que assinou um título em branco tenha ou deva ter a consciência de aquele documento que assinou (como subscritor ou avalista) se destina a assegurar o cumprimento de uma obrigação pecuniária, que em algum momento a pessoa que o recebeu poderá estar em condições de exigir esse cumprimento e poderá preencher o título para essa finalidade e nos termos dessa finalidade.
10. Ora, o artigo 91º do CIRE determina que a declaração de insolvência gera o vencimento antecipado das obrigações da insolvente, no caso, a subscritora da livrança.
11. Este é o entendimento que se afigura conforme à Lei (artº 91º do CIRE) e que, além do mais, acautela a posição dos avalistas, que gozam de um prazo legal mais curto (3 anos) para invocar a prescrição da ação cambiária em contraponto com o prazo geral de 20 anos da prescrição ordinária.
12. O vencimento antecipado das obrigações do insolvente determinado pelo art 91º do CIRE não pode ser afastado pela vontade das partes ainda que contratualmente as partes o tenham convencionado.
13. A decorrência da imperatividade do vencimento antecipado da obrigação, implica que a data em que tal venha a acontecer se transfere para a data de vencimento da obrigação cambiária, não podendo ser afastada pelo convencionado no pacto de preenchimento.
14. Só assim se cumpre com a Lei e se salvaguarda a posição do avalista que se não for acionado cambiariamente nos 3 anos seguintes ao vencimento da obrigação pode opor a prescrição, nos termos do art 70º da LULL.
15. Assim sendo, a data de declaração de insolvência da Y – 12/10/2009 - projeta-se/transporta-se de imediato para a data de vencimento do título cambiário.
16. Tal está em conformidade com o direito cambiário que, no art 43º da LULL, estabelece que a declaração de insolvência confere ao portador da letra o poder de exercer de imediato os seus direitos cambiários contra todos os obrigados cambiários – conforme art 43º e 44º LULL, aplicáveis à livrança por força do 77º LULL.
17. E sendo “o dador de aval responsável da mesma forma que a pessoa por ele afiançada” (artº 32º LULL), não pode deixar de se considerar que o avalista está na mesma posição que o avalizado (subscritor da livrança), sendo que o disposto nos artº 70º e 32º LULL se aplica à livrança por força do artº 77º primeiro e último parágrafos da LULL.
18. Assim, não tendo o portador da livrança exercido o seu direito cambiário até 11.10.2012 prescreveu o seu direito nos termos do art.70º LULL.
19. Inserir uma data diferente de 12/10/2009 equivale a uma violação do pacto de preenchimento, a um preenchimento abusivo da livrança.
20. Na verdade, e como já se alegou segundo o disposto no artigo 91º, nº 1, do CIRE “A declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva. “
21. Por outro lado, ainda, a própria LULL prevê no seu artigo 43º, 2º que “(O) portador de uma letra (ou livrança – cfr. artigo 77º, 1, da ULL) pode exercer os seus direitos de ação contra os endossantes, sacador e outros coobrigados, mesmo antes do vencimento, nos casos de falência do sacador, quer ele tenha aceite, quer não, de suspensão de pagamentos do mesmo, ainda que não constatada por sentença, ou de ter sido promovida, sem resultado, execução dos seus bens.”
22. E, ainda, no artigo 44º, 6º, se consigna que “(n)o caso de falência declarada do sacado, quer seja aceitante, quer não, bem como no caso de falência declarada do sacador de uma letra não aceitável, a apresentação da sentença de declaração de falência é suficiente para que o portador da letra possa exercer o seu direito de ação. “
23. Em suma, como resulta, de forma clara, da conjugação dos normativos vindos de citar, a declaração de insolvência importa o imediato vencimento da obrigação a cargo do devedor/insolvente, ou seja, a sua imediata exigibilidade.
24. Daí que o aval prestado pelos recorrentes esteja prescrito.
25. Também não andou bem o Tribunal a quo violando a lei substantiva por errada interpretação da norma aplicável pois a verdade é que se verificam factos consubstanciadores do abuso de direito e que impõe a aplicação do artigo 334º do Código Civil.
26. Passaram mais de 11 anos desde a data da declaração de insolvência da subscritora da livrança até ao momento em que este título foi dado à execução.
27. O portador da livrança (Banco ...) foi citado como um dos cinco maiores credores da insolvente.
28. No entanto, não reclamou qualquer crédito nem no processo de insolvência nem aos avalistas, aqui recorrentes.
29. Tudo isto criou uma situação de confiança e verificou-se uma justificação para essa confiança, pelo que estamos perante um não exercício do direito durante um lapso de tempo de tal forma longo, que foi suscetível de criar nos recorrentes a representação de que esse direito não mais seria exercido, conduzindo o exercício tardio a uma desvantagem injustificada para estes, ou seja, estamos perante uma manifestação do abuso de direito que também se pode subsumir à figura da supressio, a qual, segundo António Menezes Cordeiro se destina a proteger a confiança de um beneficiário.
30. Quase doze anos depois de ter sido aposto o aval dos embargantes numa livrança em branco, subscrita pela sociedade subscritora, entretanto declarada insolvente, é que portadora da livrança leva conhecimento dos embargantes o seu preenchimento, o seu valor e sua data de vencimento.
31. Perante o decurso de tão dilatado lapso de tempo, era mais do que natural que se tivesse instalado nos embargantes a convicção de que a responsabilidade assumida pelo aval prestado jamais lhe seria exigida.
32. Este lapso de tempo não pode ser desvalorizado, pois trata-se de um período de tempo consideravelmente longo, que é suscetível de criar na parte a convicção de que o crédito estava prescrito e já não seria peticionado.
33. A portadora da livrança, ao deduzir processo executivo contra os avalistas duma livrança em branco, onze e tal anos depois, sendo do conhecimento desses avalistas que a sociedade subscritora já havia sido declarada insolvente e que o titular do aval não reclamou qualquer crédito, age com manifesto abuso de direito, na modalidade da supressio.
34. A douta sentença violou as normas dos artigos 334º do Código Civil, 91º do CIRE, 10º, 43º, 44º, 77º, ex vi do 70º e 32º todas da LULL.
Termina entendendo que deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, declarar-se nula a sentença recorrida e, em consequência, procedentes os embargos de executado.
*
Pelo apelado e embargado não foi apresentada resposta.
*
D) Foram colhidos os vistos legais.
E) As questões a decidir no recurso são as de saber se:
1) A sentença enferma de nulidade;
2) Deverá ser alterada a matéria de facto;
3) Se verifica a invocada prescrição;
4) Existe abuso de direito;
5) Deverá ser alterada a decisão que julgou a oposição à execução improcedente e determinou o prosseguimento da execução.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Resultou provada a seguinte matéria de facto:
a) Foi dado à execução o escrito no valor de €31.060,81, emitido em Guimarães aos 2778/2008, com data de vencimento de 14/9/2020 e no qual consta, ao lado dos dizeres “Assinatura(s) do(s) subscritor(es)”, a assinatura do nome “M. C.” e o carimbo com os dizeres “Y Soluções Informáticas Unipessoal, Lda A Gerência”.
b) Do escrito referido em a) consta “No seu vencimento pagarei(emos) por esta única via de livrança à Banco ... ou à sua ordem, a quantia de trinta e um mil sessenta euros e oitenta e um cêntimos”.
c) No verso do escrito constam os dizeres “Dou o meu aval ao subscritor” e, por baixo, a assinatura dos nomes dos embargantes, apostas pelos punhos dos mesmos.
d) Mediante Contrato de Cessão de Créditos celebrado em 02/11/2017, a instituição bancária CAIXA ... (doravante CAIXA ...), cedeu à X STC, S.A um conjunto de créditos vencidos de que era titular e que havia adquirido ao Banco ..., SA.
e) Dos créditos objeto da cessão consta o crédito antes detido pela CAIXA ... sobre os executados, nos presentes autos: Empréstimo nº ............185.
f) Em 27/08/2008, por documento particular, foi celebrado entre o Exequente e a Sociedade Y - Soluc. Informáticas Unip. Lda., Contrato de Mútuo, no montante de €27.000,00 (vinte sete mil euros), montante de que esta se confessou devedor, nos termos constantes do documento junto à contestação como doc. 5 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
g) Para garantia do pagamento dos valores que se mostrassem em dívida ao Banco, foi subscrita e entregue o escrito referido em a).
h) Do aludido Contrato, consta o respetivo pacto de preenchimento, o qual autoriza o exequente a preencher o título quanto à data de vencimento, local de pagamento, e ao valor em dívida, que corresponderá aos valores que forem devidos à data da sua utilização.
i) A mutuária utilizou a totalidade do crédito que lhe foi concedido, contudo não cumpriu a mesma o Contrato que havia celebrado, tendo incumprido o pagamento das prestações.
j) A cedente Banco … Geral remeteu aos executados, as cartas juntas à contestação, dando conta da cessão de créditos, em como documentos 3 a 6 (fls. 21 a 29), em 2/11/2017.
k) A execução foi intentada em 14/10/2020.
l) A subscritora da livrança, Y – Soluções Informáticas Unipessoal, Lda. foi declarada insolvente por sentença, já transitada em julgado, proferida em 12/10/2009.
m) A instituição bancária mutuante, Banco ... S. A., foi citada para aqueles autos de insolvência, em 05/10/2009.
*
B) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras (artigos 608º nº 2, 635º nº 2 e 3 e 639º nº 1 e 2, todos do NCPC).
*
C) Os apelantes alegam que a sentença proferida teria de considerar como provados os seguintes factos que foram alegados pelos embargantes e que não foram impugnados:
a) A subscritora da livrança, Y – Soluções Informáticas Unipessoal, Lda. foi declarada insolvente por sentença, já transitada em julgado, proferida em 12/10/2009, conforme documento junto.
b) A instituição bancária mutuante, Banco ... S. A., foi citada para aqueles autos de insolvência, conforme documento junto.
c) A instituição bancária mutuante não reclamou qualquer crédito nos autos de insolvência da subscritora da livrança.
d) A data de vencimento para pagamento da obrigação ocorreu na data da declaração da insolvência da subscritora da livrança, ou seja, em 12/10/2009.
Referem ainda os apelantes que a omissão daqueles factos afeta a validade da decisão jurídica, havendo clara violação do preceituado na alínea d) do nº 1 do artigo 615º e na alínea b) do nº 1 do artigo 640º do CPC.
Daqui se conclui que os apelantes entendem que a não consideração como provados dos referidos factos inquina a sentença de nulidade, nos termos do disposto no artigo 615º nº 1 alínea d) e 640º nº 1 alínea b) NCPC.
Mas não têm razão.
Quanto a este último normativo (artigo 640º nº 1 alínea b) NCPC), não traduz qualquer nulidade antes especifica a consequência da omissão da indicação dos concretos meios probatórios que imponham decisão diversa dos pontos da matéria de facto impugnada, que é a rejeição do recurso, pelo que improcede a pretensão.
Estabelece o artigo 615º nº 1 alínea d) NCPC que é nula a sentença quando ( … ) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
No que se refere à nulidade constante da alínea b) do mesmo artigo e diploma, conforme se refere no Código de Processo Civil anotado, Volume 2º, 3ª Edição, dos Drs. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, a páginas 735 e segs, “ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão (artigo 607º/3). Há nulidade (no sentido lato de invalidade, usado pela lei) quando falte, em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão (Ac. STJ de 17/10/90, Roberto Valente, AJ, 12, página 20: constitui nulidade a falta de discriminação dos factos provados). Não a constitui a mera deficiência de fundamentação (ac. TRP de 06/01/94, CJ, 1984, I, página 197: a simples indicação do preceito legal aplicável constitui fundamentação suficiente da decisão de condenação da parte como litigante de má-fé).”
A propósito da alínea d), conforme se refere no Código de Processo Civil anotado, Volume 2º, 3ª Edição, dos Drs. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, a páginas 737 que, “devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (artigo 608º nº 2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado.”
O que está em causa é uma divergência quanto ao entendimento sobre a matéria de facto e não qualquer omissão de pronúncia do tribunal sobre questões que devesse apreciar ou o conhecimento de questões que lhe estavam vedadas, pelo que inexiste qualquer nulidade que, assim, improcede.
*
Entendem os apelantes que os quatros factos que indica, atrás transcritos deveriam ser considerados como provados.
E a propósito dos referidos pontos da matéria de facto importa notar que os pontos a) e b) constam do artigo 12º da PI e não foram impugnados e os pontos c) e d) não foram, sequer alegados nos articulados, sendo certo que o ponto d) contém matéria conclusiva e de direito.

Assim sendo, aditar-se-ão à matéria de facto provada os pontos a) e b), sob as alíneas l) e m), com a seguinte formulação:
l) A subscritora da livrança, Y – Soluções Informáticas Unipessoal, Lda. foi declarada insolvente por sentença, já transitada em julgado, proferida em 12/10/2009.
m) A instituição bancária mutuante, Banco ... S. A., foi citada para aqueles autos de insolvência, em 05/10/2009.
*
Importa notar que se provou que em 27/08/2008, por documento particular, foi celebrado entre o exequente e a Sociedade Y - Soluc. Informáticas Unip. Lda., Contrato de Mútuo, no montante de €27.000,00 (vinte sete mil euros), montante de que esta se confessou devedor e, para garantia do pagamento dos valores que se mostrassem em dívida ao Banco, foi subscrita e entregue a livrança referenciada nos autos.
Por Contrato de Cessão de Créditos celebrado em 02/11/2017, a Caixa ... (Caixa ...), cedeu à X STC, S.A um conjunto de créditos vencidos de que era titular e que havia adquirido ao Banco ..., SA, onde consta o crédito antes detido pela Caixa ... sobre os executados, nos presentes autos: Empréstimo nº ............185.
Do aludido contrato, consta o respetivo pacto de preenchimento, o qual autoriza o exequente a preencher o título quanto à data de vencimento, local de pagamento, e ao valor em dívida, que corresponderá aos valores que forem devidos à data da sua utilização.
Isto dito, no que respeita à questão da prescrição, refere-se no Acórdão do STJ de 04/07/2019, no processo 4762/16.5T8CBR-A.C1.S1, relatado pela Conselheira Maria da Graça Trigo, disponível na Base de Dados do CSM, em ECLI:PT:STJ:2019:4762.16.5T8CBR.A.C1.S1.E6, que “nas palavras do acórdão deste Supremo Tribunal de 20/10/2015 (proc. nº 60/10.6TBMTS.P1.S1), consultável em www.dgsi.pt:
“A livrança em branco, deverá ser entregue pelo subscritor, ao credor, dando-lhe a autorização para a preencher. O preenchimento da livrança (letra) incompleta é uma condição imprescindível para que o título possa produzir os efeitos como livrança (letra). Esse preenchimento deverá ser efetuado segundo o acordo ou contrato de preenchimento. Este concretizará os termos em que a obrigação cambiária se deverá constituir (indicação do montante, do tempo de vencimento, do lugar do pagamento, da estipulação de juros etc.). Só quando, no uso da autorização que concede o acordo de preenchimento, o possuidor do título o preenche, dotando-o de requisito próprios da letra, “é que surge para o primeiro signatário, para aquele que entrega o título incompleto, a obrigação cambiária” [Pinto Coelho Lições de Direito Comercial, 2º Vol., Fascículo II, 2ª parte, pág. 33].”
( … )
“A questão de saber se o início da contagem do prazo de prescrição de três anos, previsto no art. 70º, nº 1, da LULL (aplicável ex vi art. 77º da LULL) se afere ou não em função da data de vencimento inscrita na livrança tem sido respondida em sentido afirmativo pela jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal [cfr. entre muitos outros, os acórdãos de 12/11/2002 (proc. nº 3366/02), de 30/09/2003 (proc. n.º 2113/03), de 29/11/2005 (proc. nº 3179/05), de 09/02/2012 (proc. n.º 27951/06.6YYLSB-A.L1.S1), de 19/10/2017 (proc. n.º 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt; no mesmo sentido, cfr. também o recente acórdão proferido, em 19/06/2019, nesta mesma 2ª Secção, proc. nº 1025/18.5T8PRT.P1.S1, ainda não publicada], não havendo razões justificativas para nos afastarmos desta orientação consolidada.”
Conforme se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de 05/05/2020, no processo 6645/17.2T8FNC-A.L1-7, em www.dgsi.pt, relatado pelo Desembargador José Capacete, que se acompanha de perto, também aí, tal como sucede nos presentes autos, houve declaração de insolvência, sustentando o recorrente por força do disposto no art. 91º, nº 1, do CIRE, que a declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente.
Tratava-se, portanto de analisar esta questão, no sentido de saber se deveria o portador da livrança em branco, tê-la preenchido, no que à sua data de vendimento diz respeito, dentro dos três anos subsequentes à data em que o título cambiário se tornou exigível (à luz do estatuído no art. 91º, nº 1, do CIRE, e também dos arts. 43º, II e 44º, VI, da LULL), ou seja, da data em que a respetiva subscritora foi declarada insolvente, sob pena de, não o tendo feito, não o poder fazer através da ação executiva de que os presentes autos são apenso, por se encontrar prescrito o seu direito de ação cambiária.

Dispõe:
- o art. 91º, nº 1, o CIRE, que «a declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva.»
- o art. 43º, II, da LULL, que «o portador de uma letra [ou livrança, nos termos do art. 77º, 1, da LULL] pode exercer os seus direitos de ação contra os endossantes, sacador e outros coobrigados:
(...)
Mesmo antes do vencimento:
(...)
Nos casos de falência do sacado, quer ele tenha aceite, quer não, de suspensão de pagamentos do mesmo, ainda que não contestada por sentença, ou de ter sido promovida, sem resultado, execução dos seus bens.»
- o art. 44º, VI, que «no caso de falência declarada do sacado, quer seja aceitante, quer não, bem como no caso de falência declarada do sacador de uma letra [ou livrança] não aceitável, a apresentação da sentença de declaração de falência é suficiente para que o portador da letra possa exercer o seu direito de ação.»
Assim, tal como conjugadamente resulta dos citados preceitos legais, a declaração de insolvência importa o imediato vencimento da obrigação a cargo do devedor/insolvente, o mesmo é dizer, a sua imediata (prematura) exigibilidade.
O objetivo das citadas normas contidas nos arts. 43º e 44º da LULL é, como se afigura evidente, permitir ao credor, uma vez confrontado com a insolvência do devedor ou com esse risco iminente, declarar vencida e exigível a dívida que, em circunstâncias normais, não estaria ainda em condições de ser exigida, por não se mostrar vencida; ou seja, caso o credor tivesse que aguardar o decurso do prazo de vencimento da obrigação, correria o risco de, vencida a dívida no devido tempo, não lograr a satisfação do seu crédito por falta de bens no património do devedor. Trata-se da consagração no domínio do direito cambiário do mesmo princípio que se mostra consagrado no domínio da responsabilidade contratual no artigo 780º, do Cód. Civil (perda do benefício do prazo) [Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II Volume, Coimbra Editora, 3ª Edição, 1986, p. 29-31].
No que tange ao art. 91º, nº 1, do CIRE, além de lhe estarem subjacentes aquelas mesmas razões, persegue um outro objetivo, qual seja o de permitir ao credor do devedor insolvente reclamar no próprio processo de insolvência esse seu crédito ainda não vencido, sendo certo que, como é consabido, por força do princípio da par conditio creditorum, os credores da insolvência terão, forçosamente, como resulta do art. 90º do CIRE, de exercer os seus direitos em conformidade com os termos previstos neste código e durante a pendência do processo, sob pena de a satisfação dos mesmos se mostrar prejudicada [cfr. Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2ª Edição, Almedina, 2017, pp. 162-164, e Luís de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 8ª Edição, 2018, pp. 181-182].
Assim sendo, o decretamento da insolvência da subscritora da livrança emitida em branco, ou seja, da obrigada principal, da sociedade avalizada, importa o imediato vencimento da obrigação que para a mesma emergia da relação subjacente perante o credor/financiador, o que permitia a este exigir, desde logo, a respetiva obrigação cambiária, procedendo, na data, ao preenchimento do título para tal fim, designadamente apondo-lhe como data de vencimento a data daquela declaração.
E afirma o referido aresto que o legislador português, contrariamente ao que ocorre noutros ordenamentos jurídicos, não fixou um limite temporal ao preenchimento da livrança em branco.
Por isso, tal como referido, a jurisprudência portuguesa depois de numa primeira fase ter perfilhado o entendimento de que a ausência de previsão legal quanto a tal limitação implicava a estrita validade da data de vencimento que o portador viesse a incluir no título, tem vindo a perfilhar, de forma que se crê ser unânime, conforme acima referido, o entendimento de que o prazo prescricional previsto no artigo 70º da LULL corre a partir do dia do vencimento inscrito pelo portador desde que não se mostre infringido o pacto de preenchimento.
Tal como se decidiu no Ac. da R.P. de 07.01.2019, Proc. n.º 1025/18.5T8PRT.P1 (Jorge Seabra), in www.dgsi.pt, que, aliás, temos vindo a acompanhar de perto, a emissão de um título em branco (cujo vencimento virá a ocorrer em momento posterior e não determinado à partida) não é equiparável à emissão de um título completo quanto aos seus elementos essenciais, nomeadamente quanto à data do seu vencimento.
O preenchimento da data de vencimento não pode prescindir do que foi pactuado entre as partes e do que ambas (obrigado e credor que intervieram no acordo) podiam objetivamente deduzir ou interpretar a partir do assim pactuado, o que há-de resultar da aplicação ao pacto outorgado das regras de interpretação previstas no artigo 236º do Cód. Civil.
Isto porque é, precisamente, o pacto de preenchimento que confere força e eficácia cambiária ao título emitido em branco, sendo essa a base (quando exista) para a reconstituição da vontade dos que nele intervieram, sem prejuízo do eventual recurso à própria relação subjacente.
Daqui resulta, tal como sustenta o citado, que o prazo da prescrição a que se refere o artigo 70º da LULL corre a partir do dia do vencimento inscrito pelo portador, desde que não se mostre infringido o pacto de preenchimento, cujo ónus da prova incidia sobre os apelantes.
Tendo em conta que a livrança em apreço tem a data de vencimento de 14/9/2020 e que a execução foi intentada em 14/10/2020, não decorreu o prazo prescricional, pelo que improcede a pretensão dos apelantes.
*
Referem ainda os apelantes que se verifica uma situação de abuso de direito.
Conforme escrevemos no Acórdão desta Relação de Guimarães de 12/07/2010, na Apelação 8331/07.2TBBRG-A.G1, “a este propósito importa ter em conta o disposto no artigo 334º do Código Civil, onde se estabelece que ”é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Conforme se pode ler no Acórdão do STJ de 02/07/96, no site da DGSI, no endereço www.dgsi.pt, “segundo o artigo 334º do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico dum direito.
Esta complexa figura do abuso de direito é uma válvula de segurança, uma das cláusulas gerais, de janelas por onde podem circular lufadas de ar fresco, com que o julgador pode obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido (Manuel Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 1958, 63 e seguintes; Almeida Costa Direito das Obrigações, 3ª edição, 60 e seguintes; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 4ª edição, 299; Antunes Varela, Comunicação à Assembleia Nacional em 26 de novembro de 1966).
Manuel de Andrade acrescentou ainda “grosso modo” existirá tal abuso quando, admitido um certo direito como válido, isto é, não só legal, mas também legítimo e razoável, em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito (loc. cit.).
Por sua vez, Antunes Varela esclareceu que o abuso de direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjetivo e que se designa por abuso de direito o exercício de um poder formal realmente conferido pela ordem jurídica a certa pessoa, mas em absoluta contradição seja com o fim (económico ou social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa-fé e bons costumes) que, em cada época histórica, envolve o seu conhecimento (R.L.J. 114, página 75) e, por outro lado, não se esqueceu de salientar que a condenação do abuso de direito, a ajuizar pelos termos do dito artigo 334º, “aponta de modo inequívoco para as situações concretas em que é clamorosa, sensível, evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjetivo, de carga essencialmente formal, e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou, pelo menos, dos direitos de certo tipo” (R.L.J. 128, página 241).
E há que ter presente que o atual Código Civil consagrou a conceção objetivista do abuso de direito e por isso não é necessário a consciência malévola, a consciência de se excederem, com o abuso de direito, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, bastando que sejam excedidos esses limites, muito embora a intenção com que o titular do direito tenha agido não deixa de contribuir para a questão de saber se há ou não abuso de direito (Almeida Costa, loc. cit., Pires de Lima e Antunes Varela, loc. cit.).”
Ora, se analisarmos a matéria de facto apurada resulta claramente que não há qualquer excesso, menos ainda, manifesto, dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, não sendo lícito pretenderem invocar como relevante o decurso de um período de tempo que não tem em conta os elementos temporais que atrás se referencia e que são os juridicamente relevantes para apreciação da alegada questão da prescrição, pelo que não há qualquer abuso de direito, invocação essa que, assim, improcede.
Não se verifica, assim, a violação de qualquer das normas invocadas pelos recorrentes.
E, face ao exposto, resulta que a apelação terá de ser julgada improcedente e, em consequência, confirmada a douta sentença proferida.
Face ao total decaimento da sua pretensão, os apelantes terão de suportar o pagamento das custas (artigo 527º nº 1 e 2 NCPC).
*
D) Em conclusão:

1) Só quando, no uso da autorização que concede o acordo de preenchimento, o possuidor do título o preenche, dotando-o de requisito próprios da letra, ou livrança, é que surge para aquele que entrega o título incompleto, a obrigação cambiária;
2) O início do prazo de prescrição previsto no artigo 70º nº 1 LULL (cfr. artigo 77º) afere-se em função da data do vencimento inscrito na livrança, independentemente da data em que tenha sido declarada a insolvência do obrigado, desde que não se mostre infringido o pacto de preenchimento.
*
III. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a douta decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
Notifique.
*
Guimarães, 16/12/2021

1 Relator: António Figueiredo de Almeida
1ª Adjunta: Desembargadora Maria Cristina Cerdeira
2ª Adjunta: Desembargadora Raquel Baptista Tavares