Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
83/14.6GAMCD.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MAUS TRATOS
PRESCRIÇÃO
RELATÓRIO SOCIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/09/2017
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - O vício de insuficiência da matéria de facto a que alude a alínea a) do art. 410º do CPP, necessariamente resultante do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, só ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se colher faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição.

II - Trata-se da formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada, sendo que esta tanto pode ser insuficiente quando não permite a subsunção efectuada em termos de imputação de determinado crime, como quando não permite uma opção fundamentada entre penas não privativas e privativas da liberdade, entre pena de prisão efectiva e penas de substituição desta ou um juízo inteiramente fundamentado sobre o doseamento da pena, devendo o Tribunal proceder à necessária indagação das condições económicas e sociais do arguido, sob pena de a decisão, nesta parte, padecer do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

III - A elaboração de relatório social, tendente à averiguação das condições pessoais do arguido, na perspectiva da determinação da sanção, apesar de não ser obrigatório, constitui um importante meio de auxílio para se aquilatar das condições socioeconómicas daquele, designadamente nos casos em que os mesmo seja julgado na sua ausência, sem esquecer que a maior parte das vezes, se tem que atender às declarações do próprio e aos depoimentos das testemunhas ditas abonatórias, embora, quase sempre, comprometidas com os interesses da defesa.

IV - Neste conspecto, entendemos que o Tribunal, em ordem à boa decisão da causa, não deve prescindir da elaboração do relatório social, a menos que esta se revele inviável ou demasiada morosa, retardando excessivamente o normal andamento do processo, o qual, não constituindo prova pericial, encontra-se sujeito à livre apreciação do Tribunal, nos termos do art. 127º do CPP.

V - Enquadrando-se o crime de violência doméstica, tal como o antecedente crime de maus tratos, na figura de crimes habituais, os mesmos também não podem deixar de se considerar que integram a categoria de crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, mas, para tal, tem-se exigido que se confirme uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, presididas por uma mesma unidade resolutiva criminosa desde o início assumida pelo agente. É essa unidade resolutiva, a par da homogeneidade de actuação, e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos actos de trato sucessivo num só crime.

VI - A conexão temporal é assim fundamental para aferição do critério de definição da unidade ou pluralidade de infracções e se entre os factos medeia um largo hiato temporal encontra-se comprometida a unificação das condutas.

VII – Sendo as condutas do arguido, concretizadas na factualidade provada, praticadas entre o segundo semestre do ano de 1986 e 7/04/2004 e, novamente, entre Maio de 2013 e o dia 13/3/2014, existe um longo hiato temporal no qual não se demonstraram quaisquer actos consistentes em maus tratos físicos e psíquicos no seio do casamento entre o arguido e a assistente, pelo que a interrupção dos actos criminosos durante mais de 9 anos não é conciliável com a unidade resolutiva imprescindível para a afirmação da compleição de um único crime.

VIII – A conduta delituosa em apreço, à data em que a mesma se consumou, ou seja, o dia da prática do último acto (7/04/2004), preenchia a previsão do crime de maus tratos contida no art. 152º do C. Penal, com a redacção então vigente, e era punível com pena de prisão de um a cinco anos, sendo, por isso, nos termos do disposto no art. 118.º, nº 1, al. b), do C. Penal, de 10 anos o prazo de prescrição do respectivo procedimento criminal, que se completou em 7/04/2014, sem que, no respectivo decurso, tenha ocorrido qualquer das suas causas de interrupção ou suspensão, previstas nos arts. 120º e 121º (nomeadamente, constituição de arguido e notificação da acusação) do C. Penal, pelo que se encontra extinto, por prescrição, o procedimento criminal por tais factos.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

No prpetência Genérica de Macedo de Cavaleiros, do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, o arguido A. M. foi julgado e condenado, por decisão proferida em 6/6/2017 e depositada na mesma data, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, a), e nº 2, do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143º e 145º/1, al. a) e 2, por referência às als. a) e h) do art. 132º, todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86°, nº 1, al. al. d) com referência ao artigo 2º, nº 3, als. g), j), p) e ad) da Lei n° 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 3 (três) meses de prisão e em cúmulo jurídico na pena única de 5 (cinco) anos de prisão.
Foi ainda o arguido condenado no pagamento à Unidade Hospitalar o montante de €138,11 [cento e trinta e oito euros e onze cêntimos]; à assistente/demandante civil I. M. o valor de €25.000 [vinte e cinco mil euros], e ao assistente/demandante civil V. M. o valor de € 6.026,65 [seis mil e vinte e seis euros e sessenta e cinco euros], acrescidos estes dois últimos pedidos dos juros de mora vencidos e vincendos desde a notificação de tais pedidos até integral pagamento.

Inconformado com a referida decisão, o arguido interpôs recurso formulando na sua extensa motivação as seguintes conclusões:
«1. O recorrente considera que o Tribunal incorreu nos vícios a que alude o artigo 410° n.° 2 alíneas a) e c) do Código de Processo Penal, agindo com insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada o que conduziu a um erro notório da apreciação da prova.
2. Desde logo, não pode o recorrente/arguido concordar com o teor dos Factos Provados 86 e 87, porquanto a prova documental e testemunhal produzida nos autos impõe decisão diversa.
3. O Tribunal a quo apenas deu como provado, vide A. Factos Provados da sentença, facto provado 86, que o “arguido iniciou uma nova relação afectiva, vivendo com a actual companheira em P.”, quando devia ter dado como provado que o arguido iniciou uma nova relação afectiva, há cerca de três anos, vivendo com a actual companheira em P., não sendo conhecidos quaisquer incidentes ou conflitos nesta relação.
4. Isto porque, resultou do depoimento desta testemunha o tempo durante o qual tem vivido em condições análogas às dos cônjuges com o arguido tendo explicado que o arguido “nunca a tratou mal” e “nunca ralhou comigo”, vide CD de Gravação da audiência, ficheiros 20170330143417_1791483 2870635, minutos 1.50 a 3.00, por referência à Ata de Audiência de Discussão e Julgamento, datada de 30/03/20 17.
5. Esta circunstância revela o comportamento posterior aos factos do arguido e surge forçosamente como uma atenuante, pelo que também tinha que ser dada como provada e ponderada.
6. Por outro lado, a douta sentença deu como provado que o arguido “Dedica-se à pastorícia e ao cultivo com habitantes na aldeia”— vide sentença facto provado 87 quando se impunha que desse como provado que o arguido se dedica à pastorícia e ao cultivo de alguns terrenos agrícolas”, bem como o seu dia-a-dia passa pelo “convívio com habitantes da aldeia, junto dos quais possui uma imagem positiva, contrariamente à imagem que possuía no anterior meio de residência”, conforme descrito no relatório social, vide 4.° parágrafo, página 5 do Relatório Social.
7. A douta sentença deveria ter dado como provado que o arguido está inserido socialmente, tem uma ocupação laboral e não está excluído da sociedade, sendo bem visto pelas pessoas que o rodeiam e que com ele convivem, pois tal resulta do mencionado relatório social, vide IV Conclusão, pág 7 do Relatório Social, e também dos depoimentos das testemunhas L. R., M . M. e M. H., vide respectivamente, CD de Gravação da audiência, ficheiros 2017033014341717914832870635, minutos 4.20 a 4.50, 20170330150033_1791483_2870635, minutos 1.45 a 3.32, 4.00 a 4.10, 2017033015145217914832870635, minutos 1.45 a 4.28, por referência à Ata de Audiência de Discussão e Julgamento, datada de 30/03/20 17.
8. Por outro lado, é visível que o Tribunal a quo não se preocupou com a história de vida do arguido nem com contexto económico e social que marcou a sua vivência, factos que, à luz das regras da experiência, são demonstrativos de falta de competências básicas para uma correcta percepção da ilicitude dos factos.
9. A verdade, é que resultou do Relatório Social que o arguido não ultrapassou o 1º ano de escolaridade, pelo que não sabe ler nem escrever, e possui uma história de vida marcada pelas carências económicas, o que lhe comprometeu a aquisição de competências básicas, vide Conclusão do Relatório Social, página 6 do mesmo.
10. Assim, o Tribunal devia ter dado como provados todos os factos constantes do Relatório Social, em relação às condições sócio económicas e de escolaridade do arguido pois trata-se de condições pessoais do arguido cuja ponderação é essencial para a determinação da medida da pena, não o fazendo está a violar o preceituado pelo art. 71.º do Código Penal, n.° 1 e n.° 2 alíneas d), e) e f).
11. É certo que, na senda da jurisprudência majoritária, o relatório social não é um elemento pericial todavia a douta sentença ao basear-se no relatório social junto aos autos para se fundamentar quanto às características pessoais do arguido e à sua falta de autocontrolo, forçosamente teria que ali recolher as demais características sociais e económicas do arguido, dando como provados os factos supra elencados.
12. Não dando aqueles factos como provados, o Tribunal incorreu em claro erro de apreciação da prova pois cai no equívoco de transformar os actos do arguido num contexto de violência gratuita resultante de impulsividade de actuação, quando estamos perante uma situação de falta de aquisição de competências pessoais básicas, quer pelo contexto cultural quer pelo contexto social e económico, para manter um ambiente familiar ajustado.
13. A alteração da matéria de facto que supra se propõe vai determinar a existência de várias circunstâncias atenuantes do comportamento do arguido, o que forçosamente determina a alteração das medidas das penas parcelares, com redução da pena resultante do cúmulo, e consequente ponderação da suspensão da execução da pena de prisão.
14. Ainda que não se aceite a alteração da matéria de facto dada como provada, é necessário analisar a circunstância de que a douta sentença recorrida baseou a condenação pelo crime de violência doméstica em factos que ocorreram entre os anos de 1986 e 2000, no ano de 2004 e entre o ano de 2013 e 2014, Vide A. Factos Provados n.° 6, 9, 13, 19, 32, e 57 a 61 da douta sentença.
15. Sucede que, salvo melhor entendimento, entende o recorrente que estes factos não podem ter a relevância jurídico penal que lhe foi atribuída nem poderiam ter sido unificados como o fez a douta sentença, porque não ficaram provados nos autos quaisquer factos ilícitos entre os anos de 2004 e 2013/20 14, Vide douta sentença A. factos Provados.
16. Apenas ficou provada uma continuidade de actos praticados pelo arguido entre os anos de 1990 e 2000, Vide douta sentença A. Factos Provados, facto n.° 19, existindo um hiato temporal entre os factos praticados e dados como provados no ano de 2004 e os factos praticados e dados como provados em 2013/2014 de cerca de dez anos, o que impede a unificação dos factos nos termos em que o fez a douta sentença do Tribunal a quo.
17. Os factos praticados entre os anos 1986 e 2004 não podiam ter relevância penal uma vez que ocorreu a prescrição quanto a estes nos termos do previsto no art. 118º n.° 1 al. b) do Código Penal.
18. O crime de violência doméstica constitui um crime habitual, entra na modalidade dos crimes prolongados, mas existe interrupção da actuação do arguido pelo período de cerca de dez anos e a renovação do seu desígnio em 2013 não autoriza que se considere ter ocorrido um único crime de violência doméstica.
19. Neste sentido tem vindo a jurisprudência superior a defender que a conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente é decisiva, cfr. Acórdão do STJ de 29 de novembro de 2012, (proc. n.° 862/11.6TAPFR.S1), Acórdão da Relação Porto de 21/12/2016 (Proc n.° 1150/14.1 GAMAI.P 1), disponíveis em http://www.dgsi.pt.
20. Neste mesmo sentido, se pronunciou recentemente o Supremo Tribunal de Justiça, ao considerar que «a interrupção dos atos criminosos durante um ano não autoriza a sua unificação», vide Ac. do STJ de 12.07.2006 (Proc. n° 1709/06-Y’), disponível em http://www.dgsi.pt.
21. Retirando a relevância jurídico-penal dos factos ocorridos entre o ano de 1986 e o ano de 2004, forçosamente a medida da pena a aplicar terá que ser bastante inferior à aplicada.
22. Passando a ser adequado e proporcional a aplicação de uma pena mais próxima dos limites mínimos legais aplicáveis ao crime de violência doméstica, o que implicaria uma redução da pena aplicada em cúmulo jurídico, sendo sempre de aplicar a suspensão da medida privativa de liberdade, nos termos do fixado nos artigos 40.°, 50., 71.° e 72.° do Código Penal, porquanto estariam reunidos todos os pressupostos legais para o efeito.
23. Tal alteração sempre determinaria ainda uma redução no quantum indemnizatório respeitante aos danos morais pelo menos para metade do valor da condenação para que a compensação aos ofendidos foste justa e adequada aos danos sofridos.
24. Mas ainda que assim não se entenda, sempre seria de suspender a pena de prisão aplicada ao arguido A. M., sob pena de se violar o estabelecido nos artigos 40.°, 50.° e 53.° do Código Penal.
25. Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo fundamentou-se, em desfavor do arguido para optar por aplicar uma pena de prisão efectiva essencialmente nas características de personalidade do arguido, designadamente na impulsividade, autoritarismo, irritabilidade e falta de autocontrolo, acreditando que existe sério perigo de repetição dos factos devido a estas características, Vide Ponto 4 da douta sentença.
26. Porém, mesmo não se alterando a matéria dada como provada quanto ao contexto social e económico do arguido, a verdade é que a sua personalidade não reflete um indivíduo completamente indiferente ao sistema de justiça e de difícil ressocialização
27. O arguido tem 51 anos, não tem antecedentes criminais, trabalha e está completamente inserido na sua comunidade mesmo que se possa pensar que as suas características de personalidade podem determinar nova prática de crime, parece-nos que todo o contexto de inserção social que o envolve atenua as exigências de prevenção especial que a sua falta de autocontrolo possa determinar.
28. Parece-nos que, atendendo à inexistência de passado criminal do arguido em conjugação com o facto de este ter refeito a sua vida com outra companheira, não existindo qualquer repetição de factos análogos até à data, a suspensão da execução da pena de prisão se revela adequada às exigências de prevenção geral e especial do caso em apreço.
29. O instituto da suspensão da execução da pena de prisão assenta num propósito de favorecimento de penas mais adequadas à prevenção especial positiva, à reinserção social ou não desinserção social do agente.
30. Salvo o devido respeito, parece-nos que, a aplicação da pena de prisão efectiva levará à desinserção social do arguido e não corrigirá as suas características impulsivas, o que viola claramente as finalidades da pena previstas no art. 40.° do Código Penal.
31. E de resto, as características de personalidade do arguido que determinam que o Tribunal não tenha um juízo de prognose favorável sobre o mesmo, são características que podem ser trabalhadas em sede de regime de prova.
32. Aliás, em sede de conclusão o Relatório Social do arguido refere que o arguido tem “condições objectivas para lhe ser aplicada uma medida de carácter probatório, sujeita a acompanhamento psicológico”, vide Relatório Social, último parágrafo página 7.
33. Salvo o devido respeito, a douta sentença não ponderou as condições de vida do arguido, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias contextuais do mesmo, violando o previsto no art. 50.° do Código Penal, pois se o fizesse veria que existe um juízo de prognose favorável ao arguido.
34. No caso em apreço, a suspensão da execução da pena de prisão sustenta e viabiliza os desígnios de prevenção especial - apoiando e promovendo a reinserção social do arguido, ainda que sujeita a regime de prova e ao pagamento da indemnização aos ofendidos.
35. Parece-nos que, dada a socialização do arguido e a inexistência de carreira criminosa, impõe-se dar-lhe uma oportunidade de moldar as suas características pessoais para evitar a prática de novos crimes, a simples ameaça de pena de prisão é o suficiente para que o arguido se afaste deste tipo de condutas.
36. Não nos parece que a suspensão da execução da pena de prisão no caso em apreço, com regime de prova e sob condição de pagamento da indemnização aos ofendidos, abale a consciência jurídica comunitária e a confiança no sistema, pois não se passa a imagem de impunidade do arguido.
37. Voltamos a insistir que, não tendo o arguido antecedentes criminais, não lhe sendo conhecidos comportamentos desviantes à vida em sociedade para além da violência exercida sobre os ofendidos, e não vivendo este já com a ofendida, entendemos que à luz de considerações de prevenção especial de socialização, de “prevenção da reincidência”, nada obsta à aplicação ao arguido da suspensão da execução da prisão.
38. Ainda que não tenha havido confissão nem manifestação de arrependimento do arguido, como se realça no acórdão do STJ de 11 de Outubro de 2006, é preciso atender a que a confissão do crime e as manifestações de arrependimento, são apenas uns entre outros elementos a que alude o art.50.°, n.°1 do Código Penal, a tomar em conta na ponderação da suspensão, e não uma condição sine qua non da suspensão da execução da pena de prisão, cfr. Acórdão STJ de 11/10/2006 (proc. n.° 06P2545), acessível www. dgsi. pt/jstj.
39. E não podemos descurar que se trata de uma suspensão da execução da pena de prisão, obrigatoriamente condicionada a um regime de prova, e por isso, ao mínimo sinal de que o arguido não cumpre o processo de socialização que lhe for determinado, tal suspensão é revogada.
40. Por outro lado, tem entendido a jurisprudência e a doutrina que a pena de prisão efectiva deve ser o último recurso do sistema penal sancionatório e no caso em apreço, não nos parece proporcionado e adequado às finalidades da pena que se utilize este último recurso.
41. Entendemos assim que o Tribunal “a quo” violou o disposto pelos artigos 40.°, 50.° e 70.° do Código Penal, que interpretou e aplicou incorrectamente, ao ter privilegiado in casu a aplicação da pena efectiva de prisão.
Nestes termos deverá ser reformulada a douta sentença em conformidade.».

O Ministério Público em 1ª instância apresentou resposta à motivação, pugnando pela improcedência do recurso, em suma, com os seguintes considerandos:
. O Tribunal “a quo” decidiu e bem dar como provados os factos que entendeu terem relevância para a verdade material e para a determinação concreta da pena a aplicar ao arguido.
. O Tribunal “a quo” não incorreu em qualquer erro na apreciação da prova, não se podendo aceitar que o grave e prolongado comportamento ilícito do arguido seja resultado da dificuldade de aquisição de competências básicas para manter um ambiente familiar ajustado, nem mesmo que tal facto possa ser atenuante, em mais medida do que já o foi, na determinação da medida da pena.
. Concorda-se com o entendimento do Tribunal “a quo” de que se tratou de um crime protelado no tempo, marcado por um conjunto de atitudes, ocorridas num contexto de vivência conjugal, numa sucessão de durante quase trinta anos, efectivamente constitutivas do crime de violência doméstica e bem tidos em conta, quer na factualidade provada, quer na medida concreta da pena.
. Perante as fortes exigências de prevenção geral e as apuradas características da personalidade do arguido, bem andou o Tribunal “a quo” ao não suspender a pena de prisão em que o condenou, não se podendo valorar a seu favor o facto de o mesmo não ter passado criminal, porque o crime de violência doméstica, pelo qual foi condenado, foi praticado durante mais de 30 anos, tendo cessado devido a uma acção da própria vítima.

Também a assistente apresentou resposta ao recurso, com um alcance idêntico à do Ministério Público.
Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu minucioso e muito bem fundamentado parecer, sustentando o inteiro acerto da decisão recorrida, quanto aos vários aspectos versados no recurso.

Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP.
Colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
*
Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (arts. 412º, nº 1, do CPP), sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, suscitam-se neste recurso as questões de saber se:
- A decisão sobre a matéria de facto sofre de insuficiência e de erro notório e incorreu em erro na apreciação da prova;
- O procedimento criminal mostra-se extinto, por prescrição, nos termos previstos no art. 118º n°1, al. b) do C. Penal, em relação aos factos ocorridos entre os anos 1986 e 2004;
- É excessiva a medida das penas parcelares e da pena única e esta deve ser suspensa na sua execução;
- O quantum da compensação aos ofendidos pelos danos não patrimoniais deve ser reduzido, pelo menos, para metade.

Importa apreciar tais questões e decidir. Para tanto, deve considerar-se como pertinente ao conhecimento do objecto do recurso a decisão recorrida sobre a matéria de facto que a seguir se transcreve e respectiva motivação.
- Factos provados:
«1) O arguido contraiu casamento católico com I. M., melhor id. a fls. 113, a 13 de dezembro de 1984.
2) Tal casamento católico foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 26-02-2014, transitada em julgado a 2-04-2014.
3) Na constância de tal casamento, nasceram quatro filhos, a saber, V. M., nascido a 18-02-1986, V. L., nascida a 05-02-1987, J. M., nascida a 19-09-1993,e M. J., nascido a 06-11-1997.
4) Desde que contraíram casamento até ao ano de 2013, o arguido e aquela I. M. viveram numa habitação, sita em … M..
5) Desde data não concretamente apurada do segundo semestre do ano de 1986 que o arguido agredia física e verbalmente aquela I. M., sua mulher, inclusive no interior da habitação comum do casal e na presença dos seus filhos menores.
6) Assim, em dia não concretamente apurado do mês de abril ou maio do ano de 1986, depois do almoço, quando aquela I. M. se encontrava no seu quarto a mudar a fralda ao seu filho V. M., o arguido dirigiu-se à mesma, e sem que nada o fizesse prever, puxou-lhe os cabelos e desferiu-lhe várias bofetadas na cara, em número não concretamente apurado e, ato contínuo, atirou aquela sua mulher ao chão desferindo-lhe, de seguida, vários pontapés em várias zonas do corpo, por onde a apanhava.
7) Após, o arguido retirou o cinto que trazia preso na cintura e com o mesmo desferiu várias chicotadas, em número não concretamente apurado, no corpo daquela I. M., por onde a apanhava, ausentando-se de seguida daquela habitação, só regressando no final do dia, altura em que se dirigiu àquela I. M. e lhe pediu desculpa pelo sucedido sem contudo lhe dar qualquer justificação para o seu comportamento.
8) Desde então, até ao ano de 1990, todos os dias o arguido discutia com aquela I. M., discussões essas sem motivo aparente, mas que a assistente julgava serem motivadas pelos ciúmes sentidos pelo arguido.
9) No dia 22 de julho de 1990, ao final da tarde, o arguido iniciou nova discussão com aquela I. M. por a mesma ter estado o dia fora de casa a ajudar a limpar a casa de uma senhora da sua aldeia (que era sua tia-avó) e que falecera naquele dia, altura em que a acusou de abandonar os filhos, mais a apelidando de “puta do caralho”.
10) Nesse mesmo dia, à noite, como aquela I. M. foi para o mortório juntamente com uma sua vizinha, de nome L. C., melhor id. a fls. 145, mesmo depois da discussão que o arguido havia mantido consigo, o arguido, por vingança e com o propósito de maltratar aquela sua mulher, fechou a porta da residência comum do casal à chave de modo a impedir que aquela I. M. entrasse em casa quando chegasse, obrigando-a a dormir na rua.
11) Assim, quando aquela I. M. chegou a casa por volta da meia noite, encontrou a porta da sua residência fechada à chave, tendo chamado insistentemente o arguido para que este lhe abrisse a porta, o que o arguido não fez.
12) Como consequência da conduta do arguido supra descrita, a sua vizinha L. C. ofereceu guarida a I. M., para esta não dormir ao relento.
13) Em data não concretamente apurada do verão de 1994/1995, indivíduos cuja identidade concreta não foi possível apurar, deslocaram-se à aldeia para entregarem uns aparelhos que se assemelhavam a uns binóculos para as pessoas poderem ver as estrelas naquela noite.
14) Nessa noite, depois do jantar, após a dita I. M. ter pedido ao arguido para irem “ver as estrelas” com os ditos “binóculos”, tal como as demais pessoas da sua aldeia, o arguido negou de imediato dizendo: “as estrelas vejo-as eu todos os dias, basta olhar para o céu”.
15) Ainda assim, a dita I. M. resolveu ir ver as estrelas juntamente com os seus três filhos, tendo para o efeito se dirigido em direção à porta da sua habitação, sendo que no momento em que se preparava para sair de casa o arguido dirigiu-se a si e, sem que nada o fizesse prever, e na presença dos três filhos do casal, desferiu dois murros na zona ocular daquela sua mulher, dizendo-lhe de seguida: “agora já podes ir ver as estrelas que já tens os binóculos”.
16) De imediato, os seus filhos, menores de idade, começaram a chorar agarrando-se àquela I. M., tendo esta ido com os mesmos para o quarto a chorar.
17) Como consequência direta e imediata da conduta do arguido supra descrita, sofreu aquela I. M. dois hematomas na zona ocular, não tendo contudo recebido tratamento médico.
18) A partir do ano de 1986 o arguido discutia com aquela sua mulher, com uma frequência pelo menos semanal, por motivos não concretamente apurados, alturas em que aquele a apelidava de “puta”, “égua”, “alma do diabo”, “maldita”, “excomungada” e “vaca” e lhe desferia murros, pontapés e bofetadas por onde a apanhava.
19) Concomitantemente, em datas não concretamente apuradas mas situadas entre o ano de 1990 e o ano de 2000, em inúmeras ocasiões, ocorridas com uma frequência não concretamente apurada mas pelo menos uma vez por semana, o arguido desferiu beliscões, apertões, chapadas e chicotadas nos filhos menores do casal, indo de imediato aquela I. M. em defesa dos mesmos, ao que o arguido reagia, nomeadamente, empurrando ou desferindo bofetadas na face daquela I. M., ao mesmo tempo que a apelidava, em voz alta, com foros de seriedade e na presença dos filhos, de “puta do caralho”.
20) Como consequência direta e imediata das condutas do arguido supra descritas sofreu aquela I. M., em todas essas ocasiões, dores na face e profunda vergonha e tristeza.
21) Assim, em data não concretamente apurada do ano de 1990/1991, o arguido, em circunstâncias não concretamente apuradas, muniu-se de uma machada e dirigiu-se àquela I. M., perseguindo-a pelo interior da residência comum do casal e na presença dos filhos menores, V. M. e V. L., à data com 5 e 4 anos de idade, o que fez com o intuito de molestar fisicamente aquela I. M. com o dito objeto,
22) Não tendo contudo o arguido logrado concretizar o seu propósito por motivos alheios à sua vontade, nomeadamente, por aquela I. M. ter fugido para casa de uma vizinha, de nome L. C., melhor id. a fls. 145, levando consigo os seus filhos menores, V. M. e V. L..
23) Noutra ocasião, em data não concretamente apurada, mas situada no verão do ano de 91, quando a dita I. M. chegou a casa por volta das 10h00m, juntamente com a sua vizinha L. C., o arguido começou a discutir com aquela sua mulher em virtude de a mesma ter ido arranjar um poço de água juntamente com outras pessoas da sua aldeia, entre elas um senhor com o qual o arguido não falava, altura em que a apelidou de “puta”.
24) Nesse momento, como a sua vizinha L. C., ao ouvir o arguido a discutir com aquela I. M., foi em defesa daquela I. M. dizendo para o arguido que se não queria que aquela sua mulher tivesse ido compor o poço de água “que tivesse ido ele a fazer tal trabalho”, o arguido ficou ainda mais exaltado,
25) tendo aquele, quando já se encontravam no interior da residência comum, se dirigido àquela sua mulher no intuito de a molestar fisicamente nos termos habituais, o que só não logrou conseguir em virtude de a mesma ter fugido de casa.
26) Passados alguns minutos, quando aquela I. M. regressou a casa, o arguido sem que nada o fizesse prever, empurrou aquela sua mulher pelas escadas abaixo.
27) De seguida, encontrando-se aquela ainda caída ao fundo das escadas, o arguido pisou-a deliberadamente colocando um pé em cima do peito e outro em cima das pernas daquela I. M., após o que o arguido, tendo saído de cima do corpo da esposa, desferiu vários pontapés por onde quer que a apanhava e bofetadas.
28) Ato contínuo, o arguido, munido de um machado, içou-o ao ar, em direção àquela I. M., tendo nesse momento aparecido L. C. e um outro habitante da aldeia, já falecido, que de imediato agarraram o arguido, impedindo-o assim de desferir uma machadada no corpo daquela I. M..
29) Como consequência direta e imediata da conduta do arguido supra descrita, sofreu aquela I. M. dores e vários hematomas por todo o corpo, não tendo contudo recebido tratamento médico.
30) Noutra ocasião, cuja data concreta não foi possível apurar, quando aquela I. M. se encontrava junto ao rebanho de ovelhas pertencente ao casal, o arguido, munido de um pau, e sem que nada o fizesse prever, desferiu uma paulada num dos ombros daquela sua mulher, deslocando o dito ombro.
31) Como consequência direta e imediata da conduta do arguido supra descrita, sofreu aquela I. M. dores no ombro atingido, não tendo contudo recebido tratamento médico, tendo sido uns amigos, habitantes da aldeia, que lhe compuseram o dito ombro.
32) No dia 5 de abril de 2004, o arguido começou a discutir com I. M., acusando-a, em tom sério, de ter metido a irmã do arguido, de nome MS, debaixo do sobrinho, A. G., e de os ter juntado e acrescentando ainda que fodia aquela sua mulher I. M..
33) No dia seguinte, aquele sobrinho da dita I. M., dirigiu-se a sua casa a fim de falar com o arguido, dando-lhe a conhecer os seus sentimentos e intenções em relação à irmã do arguido, de nome MS, tendo aquele começado a discutir violentamente com o mesmo por ser contra aquele relacionamento, chamando aquele A. G. de “cabrão”, “filho da puta” e dizendo-lhe “fodo-te” e “atrás de ti vai a tua tia”, referindo-se a I. M., e colocando-o fora da sua casa. Ato contínuo, o arguido munido de uma caçadeira que na altura possuía e guardava na habitação, disse àquele A. G. que quando ele fosse buscar a sua mota, ele e quantos viessem ali haviam de “cair como um coelho”,
34) tendo, nesse momento, se dirigido para aquela I. M. e seus filhos, munido da dita caçadeira, dizendo-lhes: “e vós se puserdes um pé fora da porta ficais aí estendidos.”
35) Como consequência direta e imediata da conduta do arguido supra descrita, sentiu aquela I. M. medo, angústia, inquietação e receio pela sua integridade física e pela sua vida, bem como pela vida dos seus filhos.
36) No dia 7 de abril de 2004, quando o arguido se encontrava com o seu filho junto ao campo de futebol da aldeia, aquela I. M. ao ouvir o arguido a tentar convencer o seu filho, V. M., a apresentar queixa na GNR contra aquele A. G., de imediato manifestou o seu desacordo, tendo o arguido lhe puxado os cabelos, atirando-a para o chão e, ato contínuo, estando aquela caída no chão, arrastou-a pelos cabelos, desferindo-lhe, de seguida, vários pontapés e bofetões pelo corpo, por onde a apanhava, ao mesmo tempo que a apelidava de “puta” e “vaca”, dizia “já o mandaste ir ter contigo junto às cabras…andas tu metida com ele”, e, referindo-se à ofendida e às irmãs, mencionava “tão putas sois umas como as outras”, “sois todas umas putas”.
37) Após aquela I. M. se ter levantado o arguido ainda tirou o cinto das calças que trazia vestidas e, ato contínuo, desferiu várias chicotadas com o dito cinto, pelo lado da fivela, no corpo daquela I. M., acabando por lhe acertar também no olho direito.
38) Após, o arguido ausentou-se do local regressando alguns minutos depois, altura em que disse para aquela sua mulher, em tom irónico e com foros de seriedade: “já estás bem acomodada ou ainda queres mais?”
39) Como consequência direta e imediata da conduta do arguido supra descrita, sofreu aquela I. M. muitas dores no corpo, na face e no couro cabeludo, bem como hematomas e um ferimento no olho direito, tendo horas mais tarde recebido tratamento médico no Hospital, só tendo regressado a casa no dia seguinte.
40) Após a conduta do arguido descrita em 35) a 37), o arguido fechou-se no interior da sua habitação com os seus filhos e na manhã seguinte, antes de aquela I. M. ter regressado do Hospital, ausentou-se para parte incerta de França, onde permaneceu durante cerca de quinze dias, sem contudo disso dar conhecimento quer aos filhos, quer àquela I. M..
41) Ao fim daqueles quinze dias em França, o arguido regressou novamente à residência comum do casal, altura em que aquela I. M. lhe comunicou que “não o queria mais em casa”.
42) Perante tal, o arguido ainda tentou suicidar-se por enforcamento, o que só não logrou concretizar em virtude de ter conseguido chegar com a ponta dos pés ao chão, tendo sido aquela I. M. quem ainda o auxiliou no momento da execução do dito suicídio, cortando-lhe a corda que o prendia, evitando assim que o arguido se enforcasse.
43) Após o descrito supra, a ofendida permitiu que o arguido regressasse à residência comum do casal.
44) Porém, logo cerca de uma semana após o regresso do arguido à residência do casal, aquele recomeçou novamente a maltratar verbalmente aquela sua mulher, I. M., apelidando-a, em voz alta e em tom sério, no interior da residência de ambos e na presença dos filhos, de “puta”.
45) Como consequência direta e imediata da conduta do arguido supra descrita, sentiu-se aquela I. M. triste e angustiada.
46) Em data não concretamente apurada do mês de maio de 2013, quando aquela I. M. se encontrava no interior da sua residência a fazer queijo, o arguido entrou em casa e, dirigindo-se àquela sua mulher, começou de imediato a apalpá-la nas nádegas e na vagina tendo aquela I. M. o chamado à atenção pelo facto de o arguido estar sujo e ter palha na roupa que poderia cair para o queijo.
47) Ante essa atitude da esposa, o arguido chamou aquela I. M. de “puta” e “vaca”, ao que o filho M. J., que ali se encontrava, partindo em defesa da mãe, pediu ao arguido para parar com a sua conduta, tendo este se dirigido ao menor, dizendo-lhe “filho da puta”… “cabrão”… “calo-te eu já”, “a ti calo-te eu a boca e até te arranco a boca se possível”, e, após, dirigiu-se-lhe com as mãos aos órgãos genitais, apertando-os.
48) Desde então, o comportamento do arguido em relação àquela I. M. agravou-se em termos de intensidade e frequência, passando o arguido a maltratá-la verbalmente com uma regularidade quase diária, sem qualquer motivo aparente, apelidando-a de “puta”, “vaca” e “puta do caralho”, mais lhe dizendo, com foros de seriedade: “fodo-te já os cornos”, “mato-vos a todos” e “eu posso ir lá para dentro, sou sustentado à conta do Estado, mas vós não ficais cá para contar a história”, referindo-se àquela I. M. e seus filhos.
49) Como consequência direta e imediata da conduta do arguido supra descrita, sentiu aquela I. M., medo, angústia, inquietação e receio pela sua integridade física e pela sua vida, bem como pela vida dos seus filhos.
50) Em virtude do comportamento cada vez mais agressivo do arguido aquela I. M. viu-se obrigada, nas duas primeiras semanas de setembro de 2013, a ir dormir a casa da sua mãe, por não se sentir segura em casa sozinha com o arguido, o qual chegou a dizer àquela, com foros de seriedade, que não aceitava o divórcio, que era uma mulher morta e que “se não era dele não era de mais ninguém”.
51) Como consequência direta e imediata das expressões assim proferidas pelo arguido sentiu aquela I. M. medo, angústia, inquietação e receio que o arguido atentasse contra a sua integridade física e contra a sua vida.
52) Em data não concretamente apurada do mês de outubro de 2013, à hora do jantar, o arguido pegou num frasco de herbicida e arremessou-o ao chão atingindo aquela sua mulher com o dito herbicida.
53) Ato contínuo, o arguido disse para a dita I. M., com foros de seriedade, que se aquela ligasse para a GNR ou para os Bombeiros que ele dizia que tinha sido ela que o tinha tentado matar.
54) Como consequência direta e imediata da conduta supra referida sentiu aquela I. M., medo, angústia, inquietação e receio pela sua integridade física e pela sua vida.
55) Durante período não concretamente determinado, mas, pelo menos, até ao dia 14/3/2014, data em que saiu da residência comum do casal, o arguido tinha guardados e em seu poder, acondicionados num saco de viagem, os seguintes objetos:
a. 19 cartuchos, de calibre 12., de diversas marcas, prontos a serem usados, e melhor retratados na fotografia de fls. 225 dos autos, que aqui se dá por reproduzida;
b. 5 cartuchos de cor preta, de marca Miratiro Rochet34, de calibre 12., em bom estado de conservação e prontos a serem usados, melhor retratados na fotografia de fls. 225 dos autos, que aqui se dá por reproduzida;
c. 1 cartucho de cor vermelho claro, de marca Gilinho 5, de calibre 12., em bom estado de conservação e pronto a ser usado, melhor retratado na fotografia de fls. 226 dos autos, que aqui se dá por reproduzida;
d. 1 cartucho de cor de vinho, de marca Mira 2000 4, de calibre 12., em bom estado de conservação e pronto a ser usado, melhor retratados na fotografia de fls. 226 dos autos, que aqui se dá por reproduzida;
e. 1 cartucho de cor laranja, sem marca, de calibre 12., em bom estado de conservação e pronto a ser usado, melhor retratado na fotografia de fls. 226 dos autos, que aqui se dá por reproduzida;
f. 1 cartucho, de cor azul, de marca Rio20, de calibre 12., em bom estado de conservação e pronto a ser usado, melhor retratado na fotografia de fls. 227 dos autos, que aqui se dá por reproduzida;
g. 10 cartuchos, de cor branca/transparente com inscrições a vermelho e preto, de calibre 12, em bom estado de conservação e prontos a serem usados, melhor retratados na fotografia de fls. 227 dos autos, que aqui se dá por reproduzida;
h. 1 cartucho, de cor verde, sem marca, do tipo “zagalotes”, de calibre 12., em bom estado de conservação e pronto a ser usado, melhor retratado na fotografia de fls. 227 dos autos, que aqui se dá por reproduzida;
i. 3 cartuchos, de cor de vinho e branco/transparente, de calibre 12., em bom estado de conservação e prontos a serem usados, melhor retratados na fotografia de fls. 228 dos autos, que aqui se dá por reproduzida; e
j. 50 munições de cor prateada com a ponta (projétil) dourado, de marca Stinger 22 EX LR, de calibre .22, em bom estado de conservação e prontas a serem usadas, melhor retratadas na fotografia de fls. 228 dos autos, que aqui se dá por reproduzida.
56) Os sobreditos cartuchos e munições atrás mencionados eram pertença do arguido.
57) Em 24/10/2013, o arguido abandonou a residência comum do casal, tendo o divórcio sido decretado por sentença de 26-02-2014, transitada em julgado no dia 02-04-2014.
58) Contudo, entre os dias 7 e 8 do mês de fevereiro de 2014, o arguido queixou-se àquela I. M. que a sua mãe o tinha posto fora de casa.
59) Nessa sequência, o arguido foi viver para o carreto dos animais, próximo da habitação daquela I. M., tendo passado a fazer as refeições em casa, na condição de ser ele a cozinhar para si.
60) No dia 13 de março de 2014, encontrando-se já nesta altura o filho mais velho do casal, V. M. a residir temporariamente com a sua mãe, I. M., o arguido, após o jantar, sem o conhecimento e contra a vontade daquela I. M. deslocou-se para o quarto e deitou-se na cama.
61) No dia seguinte, 14/3/2014, por volta das 16h00m, aquela I. M. encontrava-se a tirar umas mangueiras de uma horta existente perto do local onde se encontrava o arguido com o rebanho, tendo a dado momento se dirigido a casa no intuito de ir buscar uma tesoura para cortar as ervas e silvas que estavam a prender as ditas mangueiras, tendo nessa altura ouvido o arguido a dizer para A. C., melhor id. a fls. 105, que ali se encontrava para carregar as ovelhas, que aquela I. M. “era uma puta”, que “escolheu ficar com os irmãos”, mais o tendo ouvido dizer: “aquela puta anda a dar a cona aos irmãos” e, ainda, “mais lhe fodam a cona bem fodida”.
62) Ao ouvir o arguido dizer as expressões sobreditas ao referido A. C., a dita I. M. chamou-o de imediato à atenção, dizendo-lhe que lhe estava a faltar ao respeito, mais lhe perguntando se não se envergonhava de estar ali com aquela conversa para o dito A. C..
63) De imediato, o arguido repetiu as sobreditas expressões em voz alta e com foros de seriedade, o que foi ouvido pelo filho comum do casal, o dito V. M., o qual, de imediato, disse para o arguido: “atenção, tu não tens o direito de falar assim da minha mãe”, “da minha mãe não falas assim, vamos lá ver se guardas respeito”.
64) Ato contínuo, aquela I. M. e o seu filho V. M. viraram as costas para o arguido, tendo nessa altura o arguido dito para aquele V. M.: “ó meu filho da puta, cabrão do caralho, a ti fodo-te já eu”, ao mesmo tempo que se dirigia aceleradamente para o dito V. M. empunhando um pau de gado, mais concretamente, uma vara de freixo com um ferro na ponta, com o propósito de o agredir fisicamente com o dito objeto.
65) De imediato, ao aperceber-se da intenção do arguido e da agressão iminente, aquele V. M. levantou ambos os braços a fim de proteger a zona da cabeça, tendo nesse momento o arguido desferido várias pauladas com a referida vara, em número não concretamente apurado mas não nunca inferior a três, atingindo aquele seu filho na zona da cabeça e em ambos os braços,
66) Nessa altura, o referido A. C. tentou agarrar de imediato o arguido a fim de evitar que o mesmo continuasse a desferir pauladas no corpo daquele V. M. com a vara supra referida, tendo conseguido retirar a vara que tinha nas mãos.
67) Após, o arguido agarrou numa pedra de média dimensão, erguendo-a no ar com ambas as mãos e indo logo em direção àquele V. M. com o propósito de o agredir fisicamente mais uma vez, o que só não logrou conseguir por motivos alheios à sua vontade, em virtude de ter sido impedido por A. C., que de imediato agarrou o arguido pelas pernas fazendo-o cair com o ventre para o chão e com a dita pedra nas mãos.
68) Como consequência direta e imediata da conduta do arguido supra descrita, sofreu aquele V. M. edema ligeiro na região parietal direita, doloroso à palpação, fratura da diáfise do osso cúbito direito, o qual ficou imobilizado com tala gessada do braço ao punho e, ainda, escoriação no antebraço esquerdo, de coloração avermelhada, com crosta, com 1cm por 0,2cm de maiores dimensões, para além das dores,
69) lesões estas que lhe determinaram 92 dias de doença, com afetação da capacidade de trabalho geral (de 92 dias) e com afetação da capacidade de trabalho profissional (de 92 dias),
70) apenas tendo tido alta clínica no dia 14-06-2014.
71) Após os factos descritos supra, aquela I. M. e o seu filho V. M. foram viver para casa de V. L., filha e irmã daqueles, respetivamente, tendo aí permanecido durante duas semanas, tendo ao final desse tempo ido viver para Mirandela, para casa de J. M., melhor id. a fls. 331, tudo em virtude do medo e inquietação que sentiram e sentem por recearem que o arguido atente contra a sua integridade física e a sua vida.
72) Em todas as circunstâncias supra descritas, o arguido agiu sempre com o propósito concretizado de maltratar aquela I. M., à data, sua mulher, e de lhe causar sofrimento físico e psíquico, ofendendo-a na sua integridade física, honra, consideração e bom-nome, provocando-lhe dores e sentimentos de vergonha, humilhação, angústia, medo e inquietação, fazendo-a recear pela sua integridade física,
73) Bem sabendo que as expressões por si referidas e melhor descritas supra, nas circunstâncias em que foram proferidas, eram idóneas a causar, como causaram, receio àquela sua mulher de que viesse a ser alvo de atos atentatórios contra a sua integridade física e contra a sua vida, bem como dos seus filhos,
74) Assim como sabia também que, em virtude da relação de casamento que os unia, estava obrigado a especiais deveres de respeito para com aquela I. M..
75) Ao praticar os factos descritos em 64) a 70), o arguido agiu com o propósito concretizado de molestar fisicamente aquele V. M., bem sabendo que este último era seu filho e que por via disso lhe estava obrigado a especiais deveres de cuidado, proteção e assistência que um pai deve ter para com o respetivo filho.
76) Em todas as circunstâncias supra mencionadas agiu ainda o arguido de modo voluntário, livre e consciente, com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde do seu filho V. M., e de lhe produzir as lesões verificadas, resultado que representou e quis, indiferente à relação familiar que os unia, não ignorando que naquelas circunstâncias os objetos empregues (vara de freixo com um ferro na ponta e uma pedra), pelas suas características de natureza contundente, eram idóneos a provocar lesões corporais, potencialmente graves e profundas quando utilizados contra a vida ou integridade física de um ser humano e, apesar disso, não se absteve de praticar os factos acima descritos.
77) O arguido bem sabia que a vara de freixo com um ferro na ponta com que atingiu o seu filho V. M. e na zona em que o tentou atingir inicialmente, e atingiu mesmo – zona do crânio e dos braços que se encontravam levantados de modo a proteger a cabeça –, era suscetível de provocar naquele lesões graves e até possivelmente letais, o que o arguido representou e quis.
78) O arguido não possuía qualquer autorização ou documento legal que lhe permitisse deter ou guardar os supra referidos cartuchos e munições.
79) O arguido conhecia as características dos sobreditos cartuchos e munições por si detidos e guardados no interior da sua casa de habitação, bem sabendo que não os podia deter, guardar, comprar, transportar ou utilizar.
80) O arguido deteve os sobreditos cartuchos e munições acima referidos, em plena consciência de que o fazia em infração à lei, pois que não tinha a necessária autorização de aquisição, licença de uso e porte de arma ou de detenção no domicílio válidas, condições que sabia indispensáveis, como toda a gente sabe, para que pudesse guardá-los, tê-los consigo ou usá-los.
81) Em todas as circunstâncias supra descritas, agiu o arguido de forma livre, voluntária e esclarecida, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
82) O arguido não tem antecedentes criminais.
83) Começou por exercer o direito ao silêncio, mas, na sequência das declarações da assistente, prestou declarações referindo que foi esta quem entregou as armas, justificando que se o filho V. M. era maltratado era por causa de roubo ou de droga e que a assistente o desprezava mais do que se despreza um cão, pois que, desde fevereiro até maio que estava a viver num curral de ovelhas.
84) Acrescentou que nesse período em que dormia no curral, a assistente o chamava para ir dormir com ela de noite.
85) Ao longo das declarações prestadas por I. M. manteve um sorriso na face e interrompeu-a, pelo menos, duas vezes.
86) O arguido iniciou uma nova relação afetiva, vivendo com a atual companheira em Pereiros.
87) Dedica-se à pastorícia e ao cultivo com habitantes da aldeia.
88) O arguido manifesta dificuldades em descentrar-se e fraca capacidade de autocrítica e rigidez de pensamento.
89) Mais revela impulsividade, dificuldades de autocontrolo e irritabilidade.
90) Considera que os outros é que devem adaptar-se e respeitar a sua personalidade.
91) Após a primeira sessão da audiência de julgamento, à semelhança do que havia feito após o divórcio, voltou a telefonar à assistente,
92) Tendo esta atendido uma dessas chamadas por engano, ao que o arguido lhe disse “então já estás contente… satisfeita… queres ver-me atrás das grades, mas ainda há muito para ver e ouvir”.
93) Como consequência da conduta do arguido, a assistente I. M. perdeu ainda a alegria de viver e a autoestima e ficou dominada por um sentimento de injustiça e ingratidão.
94) Viveu ainda durante cerca de vinte e sete anos num estado permanente de terror, angústia, inquietação e extremo receio pela sua vida e integridade física.
95) As condutas do arguido fizeram ainda que a assistente ficasse envergonhada e entristecida.
96) Em virtude da agressão do arguido a V. M., este foi assistido na ULSNE, que prestou a este cuidados de saúde no valor de €138, 11.
97) Por força dessa assistência, V. M. pagou €15,5 a título de taxa moderadora e €2,2 por conta de meios complementares de diagnóstico.
98) Em 9/4/2014 e ainda como consequência da conduta do arguido, V. M. foi a uma consulta externa no hospital tendo pago €7,75 com taxa moderadora e €1,2 em meios complementares de diagnóstico.
99) No dia 15/3/2014 o assistente V. M. iria para França, para uma campanha agrícola de cerca de quatro meses, indo auferir o rendimento líquido de €1.000,00 mensais.
100) Em virtude da conduta do arguido e da incapacidade para o trabalho que da mesma resultou, o assistente deixou de auferir a quantia de €4.000,00.
101) Ainda em consequência da conduta do arguido, o assistente V. M. continua a padecer de dores, nomeadamente, quando há mudança de tempo, e sofreu humilhação, vergonha, angústia, ansiedade, tristeza, revolta, stress, nervosismo e inquietação.

- Factos não provados:
a) o arguido, nas circunstâncias referidas em 9), mais disse a I. M. que nada lhe garantia que aquela sua mulher tinha ido mesmo ajudar a limpar a casa da falecida e que a mesma fazia o que queria e lhe apetecia;
b) nas circunstâncias referidas em 11) o arguido tivesse ouvido os pedidos insistentes de I. M. e pudesse aceder aos mesmos;
c) tivesse sido I. M. a pedir guarida à vizinha L. C.;
d) tivesse havido várias insistências por parte daquela I. M. para irem os dois, juntamente com os seus três filhos já nascidos, verem as estrelas com recurso aos ditos binóculos;
e) as discussões entre 86 e 2004 se dessem por motivos relacionados com ciúmes do arguido para com aquela sua mulher ou sempre que esta manifestava a sua discordância relativamente a algum negócio feito pelo arguido;
f) nas circunstâncias aludidas em 27) o arguido tenha desferido vários murros à assistente;
g) o arguido no dia 5/4/2004 tenha-se dirigido à assistente I. M., referindo-lhe que também ela “andava metida” com o sobrinho A. G., ao mesmo tempo que a apelidava de “puta do caralho”, “puta” e “alma do diabo”;
h) O arguido, no dia 7/4/2004, desferiu bengaladas no corpo daquela sua mulher, usando para o efeito uma bengala de junco;
i) O arguido tivesse pedido desculpas àquela sua mulher, I. M. após a alegada tentativa de suicídio;
j) O arguido tivesse dito que não chegaria ao fundo das escadas, que “caída redonda”, aquando do aludido em 53);
k) O arguido em fevereiro de 2014 tivesse pedido a I. M. que o deixasse ficar em sua casa, tendo aquela negado tal pedido, encontrando-se na altura a viver sozinha;
l) O arguido tivesse ido viver para o estábulo de animais que fica a 150 a 200 metros da habitação e pedisse à assistente para passar a fazer as refeições em casa;
m) No dia 13/3/2014, o arguido, aproveitando o facto de aquela I. M. se encontrar ausente da sua habitação por estar a tomar conta da sua mãe, em casa desta, entrou na residência daquela I. M. tendo aí pernoitado;
n) No dia seguinte, dia 14 de março de 2014, de manhã, aquela I. M. disse ao arguido para sair do interior da sua habitação pois que ela e o seu filho, V. M., queriam ir às compras a Macedo de Cavaleiros e queriam fechar a porta da residência, visto o mesmo não residir lá, o que aquele fez.
o) O arguido após ter agredido o filho V. M., tivesse apelidado I. M., em voz alta e com foros de seriedade, de “puta” – art 66.º da acusação.
p) Como consequência direta e imediata de ter chamado a assistente de puta nos termos descritos no art. 66º. da acusação, sentiu-se aquela I. M. profundamente vexada e humilhada, tanto mais que aquela expressão foi ouvida pelo seu filho, V. M., bem como pelo referido A. C..
q) A. C. não tivesse conseguido suster o arguido e que, entretanto, tivesse aparecido no local R. C., melhor id. a fls. 101, o qual conseguiu segurar no arguido com a ajuda de A. C., no momento em que aquela I. M. e o seu filho V. M. já vinham embora em direção à sua habitação..».

- Fundamentação da matéria de facto:
«A nossa convicção quanto aos factos assentou na leitura crítica e conjunta de toda a prova produzida nestes autos, documental, testemunhal, pericial, relatório social e declarações do arguido e dos assistentes que foi produzida em estrita obediência aos princípios do contraditório, imediação e oralidade e analisada de forma articulada com as regras da experiência e de senso comum.
De referir, a título genérico, que o arguido não negou os factos indicados na acusação. Optou por exercer o direito ao silêncio. Apenas após o assistente V. M. ter prestado declarações e ainda no decurso das declarações de I. M. é que desejou falar ao tribunal, sem, no entanto, contrariar o teor do libelo acusatório. Na verdade, limitou-se a atacar o facto de a assistente ter entregue as armas, culpou o filho V. M. pelos “maus-tratos”, aludindo a roubos e a drogas, vitimizou-se e ainda procurou denegrir a imagem da assistente, referindo que ela é que o maltratou, tendo-o expulsado de casa e insinuando que ela o procurava para manterem relações sexuais. Tais declarações, de resto, foram contempladas nos factos provados.
Para além do mais, a matéria relativa à relação matrimonial entre o arguido e a assistente, ao seu termo, aos filhos de ambos mostra-se suportada por documentos com força probatória plena, em particular, pelos assentos de nascimento da assistente I. M. e dos quatro filhos, respetivamente, a fls. 181 e 340 a 347. De referir que a sentença que decretou o divórcio mostra-se junta a fls. 127 a 130 dos autos. Da análise, em particular, do assento de nascimento de I. M. e dos averbamentos efetuados, revelou-se a existência de dois lapsos na acusação, um no que toca à data do casamento [que se deu em 13/4 e não em 14/4 como se diz no libelo – cfr. fls. 181, verso] e outro relativo à data do trânsito em julgado da sentença de divórcio [ocorrido em 2/4/2014 e não em 26/3/2014, como se escreveu no libelo – cfr. fls. 181, verso]. Tratam-se de meros lapsos de escrita, sem qualquer repercussão na decisão da causa, que foram corrigidos pelo Tribunal, tendo-se dado conhecimento dos mesmos, assim como da sua correção aos ilustres sujeitos processuais.
A residência do arguido e da assistente em Soutelo Mourisco foi confirmada pela assistente e pelo teor do relatório social. Toda a demais prova produzida, em particular, a testemunhal e as declarações do assistente V. M. convergiram neste particular.
Ora, a matéria que demos como provada contendente com o crime de violência doméstica propriamente dito foi narrada de forma extremamente genuína, sentida e espontânea pela assistente I. M.. Foram de tal modo pormenorizadas e expressivas as suas declarações que delas não se levanta qualquer margem para dúvidas quanto à credibilidade que merece a assistente. Esta, de forma coerente e coesa, situou temporalmente os factos, contextualizou-os, narrou-os, aludiu, até, por vezes, de forma crítica, aos pensamentos e sentimentos que a avassalaram ao longo dos anos na sequência dos comportamentos contínuos do arguido. Em suma, confirmou o grosso do libelo acusatório. As suas declarações conseguiram retratar de forma ainda mais nítida e completa do que a própria acusação [o que não era propriamente fácil, atendendo à completude e clareza desta peça processual], o terror, a subjugação, a humilhação, a crueldade, a violência atroz a que ela e os seus filhos foram sujeitos ao longo dos anos, do mesmo modo que permitem desenhar o arguido como uma pessoa extremamente violenta e imprevisível, sem capacidade de autodomínio, nem evidência dos mínimos sentimentos de afeto, de amor ou de respeito pelos seus filhos e esposa, pessoas que se mostraram mais frágeis, nomeadamente ao nível físico, e sem capacidade de defesa perante as suas investidas. De resto, do alegado pela assistente e pelos próprios filhos, nomeadamente, pelo mais velho, V. M., fica a clara noção de que a peça acusatória, não obstante a sua invulgar extensão, não exaure todos os episódios de violência ocorridos durante o casamento do arguido e da assistente.
Refira-se ainda que a falta de capacidade de autocrítica do arguido, a que também se aludiu no relatório social, ficou igualmente patente na sua postura em audiência, já que não denotou arrependimento, mínimo sequer, tendo, ademais, ouvido as declarações da esposa e do filho ostentando no rosto um sorriso aparentemente trocista e não se tendo, inclusive, abstido de interromper, por mais de uma vez, as declarações de I. M.. E não são apenas os filhos V. M. e M. J. a conferir ainda mais verosimilhança às declarações da assistente, quando aludem aos comportamentos do pai. A própria irmã do arguido, MS e a atual companheira, M. L., não conseguiram deixar de confirmar tais traços de personalidade, ainda que rejeitando timidamente, mas sem merecerem credibilidade, que o arguido partisse para as agressões físicas.
A primeira, embora nunca tenha coabitado com o irmão, por força da diferença de idades e dado que, à data do seu nascimento, o arguido já estava casado, disse expressamente que o arguido é nervoso […] exalta-se com toda a gente. É agressivo verbalmente.
A segunda aludiu às crises de nervos e às alterações do humor do arguido. Deixou escapar, no seu contido e nervoso depoimento, que a melhor solução para lidar com ele e evitar problemas, problemas esses que não concretizou, pese embora as perguntas efetuadas com vista à dilucidação de tal questão, era virar costas. Segundo M. L., é uma questão de deixar o arguido à vontade, que ele acalma.
Em síntese, as declarações da assistente revelaram-se um meio probatório essencial, atendendo a que, não raras vezes, os factos não foram presenciados por mais alguém além da vítima, do arguido e, por vezes, dos filhos, embora estes, em algumas das ocasiões narradas na acusação, fossem muito novos para terem registado nitidamente e memorizado os acontecimentos. Mas, para além deste conhecimento direto, privilegiado e, por vezes, quase exclusivo dos factos, as declarações da assistente, gozaram de particular credibilidade não só lidas, no seu todo e de forma isolada, como também conjuntamente com a demais prova produzida e com a postura do arguido em audiência.
Ora, como dissemos, a assistente confirmou, no seu grande essencial, o teor do libelo acusatório. Apenas assim não sucedeu em pontos específicos e de menor relevância, o que, igualmente refletimos na seleção da matéria de facto, nomeadamente, quando as suas declarações não foram contrariadas por prova mais forte. Sem prejuízo dessas ligeiras divergências, o que é certo é que a assistente confirmou a essencialidade dos factos contemplados na acusação.
Em concreto, a assistente afastou-se da acusação, complementou-a ou pormenorizou-a nestes pontos:
a) – art. 6.º, situou os factos dois ou três meses após o nascimento do filho V. M., o que nos reconduz a abril e maio de 1986, sendo que na acusação se referiu maio e junho de 1986 – comunicámos essa divergência não essencial em relação à matéria vertida na acusação;
b) - art. 7.º, referiu que o arguido terá regressado a casa ainda no mesmo dia, ainda que tarde, mas antes da meia noite, quando na acusação se escreveu que o regresso se deu no dia seguinte, o que igualmente comunicámos;
c) – art. 8.º, a assistente expôs a sua dúvida quanto à motivação do arguido, não tendo encontrado justificação para o seu comportamento. Deduziu que poderiam ser ciúmes e admitiu que o marido poderia ter um problema psicológico. No entanto, não encontrou razão para as condutas do arguido. Impôs-se, aqui, uma mera precisão ao mencionado na acusação quanto à concreta motivação do arguido, sublinhando-se que o ciúme é uma mera explicação aventada pela assistente;
d) art. 9.º, das palavras indicadas, a assistente apenas confirmou as injuriosas, o que, na ausência de prova complementar, motivou a não prova das restantes;
e) arts. 11.º e 12.º, a assistente declarou que não sabia se o arguido estava em casa ou não e mencionou que foi L. C. a oferecer-lhe dormida em sua casa, o que motivou que tivéssemos corrigido a matéria indicada em 12) da acusação, comunicado tal correção para efeitos de alteração não substancial dos factos e, finalmente, plasmado nos factos não provados a última parte do art. 11) da acusação;
f) art. 13.º, a assistente situou temporalmente os factos no mês de agosto de 94 ou de 95, tendo depois precisado que a J. M. teria perto de dezoito meses e que os factos se deram antes desta ter sido operada, o que sucedera antes de a menor ter dois anos, o que nos reconduz ao verão de 94/95; aqui, de resto, há um lapso manifesto da acusação, já que, na narração do evento, alude aos três filhos nascidos, o que afastava a possibilidade de os factos terem ocorrido em 1985/1986, já que em 85 nenhum filho era nascido e que V. M. foi o único nascido em 86;
g) 15.º, a assistente rejeita a existência de várias insistências para irem ver o espetáculo, o que refletimos nos factos não provados, e mencionou que, tão simplesmente, interpretou que o arguido não os queria acompanhar, mas não os havia proibido de o ir ver;
h) art. 18.º, a assistente circunscreveu temporalmente as ofensas físicas verbais e físicas, com período, pelo menos, semanal, embora referindo que, por vezes, as discussões e agressões ocorriam todos os dias, outras, dia sim dia não, ao longo do período entre 86 a 2004. Mais completou os nomes que lhe eram dirigidos, o que igualmente contemplámos nos factos provados, mas sem deixarmos de previamente termos comunicado tal aditamento para efeitos de alteração não substancial dos factos. Particularizamos que, pese embora a dureza e a ofensividade das palavras indicadas na acusação, a assistente declarou que o que mais lhe doía era ouvir o arguido a chamar-lhe “maldita” e “excomungada”, o que não admira, se atentarmos o catolicismo ainda vincado e praticado na Comarca, acrescentando que o arguido sabia disso e fazia questão de chamar-lhe essas palavras. Mais aludiu que não as tinha referido antes, nomeadamente, na fase do inquérito, precisamente porque não conseguiu dizê-las, na sua ótica fere muito ouvi-las, quanto mais pronunciá-las; de referir igualmente que a assistente não soube justificar o comportamento do arguido, o que bem se entende, posto que ele, é de todo o modo, injustificável. Mas, ainda assim, das suas declarações parece não resultar motivo aparente. Segundo a assistente, havia dias em que o arguido já acordava mal humorado e os problemas sucediam-se; daí termos dado como não provada a matéria referente à motivação aludida na acusação;
i) art. 28.º, a assistente refere que o arguido lhe deu “chapadas” e não murros; precisou que este, entretanto, saiu de cima do seu corpo para a agredir dessa forma;
j) art. 32.º, a assistente rejeita os nomes indicados na acusação, tendo referido, sim, que o arguido a acusava de ter juntado a irmã com o sobrinho, o que refletimos nos factos provados e não provados;
k) art. 33.º, a assistente concretizou, em relação ao referido na acusação, a discussão violenta a que se alude na acusação, o que plasmámos nos factos provados e comunicámos para efeitos de alteração não substancial;
l) art. 34.º, embora, na sua essência, a expressão seja equivalente, tendo idêntico significado, plasmámos nos factos provados as palavras que a assistente referiu em audiência, tendo-a comunicado;
m) art. 36.º, a ofendida negou que o arguido, naquele circunstancialismo, tivesse usado da bengala de junco – o recurso à bengala terá sido noutra ocasião - e aludiu a bofetões, ao invés de murros, acrescentando ainda os nomes que lhe foram chamados e as palavras que o arguido referia, o que refletimos nos factos provados - tendo comunicado os factos novos complementares para efeitos de uma alteração não substancial, e não provados;
n) art. 43.º, nada foi referido quanto a um eventual pedido de desculpas, decorrendo das declarações da ofendida que ela voluntariamente permitiu que o arguido regressasse;
o) art. 44.º, a assistente circunscreveu temporalmente os factos a “passado coisa de uma semana”, o que igualmente refletimos nos factos provados, tendo-se comunicado a este propósito uma alteração não substancial;
p) art. 46.º, a assistente pôs o assento tónico, não na presença do filho mais novo, mas no facto de o arguido estar sujo e de a palha que trazia na roupa poder cair para o queijo. O que refletimos nos factos provados e comunicámos para contextualizar a atuação do arguido. Sem prejuízo, a assistente aludiu a nomes que o arguido lhe chamou, assim como reportou a sua conduta para com o filho M. J., o que plasmámos nos factos provados e comunicámos para efeitos de uma alteração não substancial;
q) art. 52.º, a assistente não se recorda se a expressão imputada na parte final deste artigo se reporta àquele concreto evento, o que, na ausência de prova complementar, motivou a não prova de tal factualidade;
r) art. 56.º, a assistente concretizou a data em que o arguido saiu de casa, o que motivou a alteração da factualidade indicada na acusação, devidamente comunicada; diga-se que a assistente não foi contrariada por qualquer prova produzida;
s) arts. 57.º e 58.º, das declarações da assistente retira-se que os factos se deram entre os dias 7/8 de fevereiro, tendo esta tido por referência a data do aniversário da filha. Acrescentou que não houve insistências diretas do arguido e que não ele quem lhe pediu para o deixar ficar em casa; a assistente relatou um único telefonema do arguido, embora acrescente um outro feito pela irmã deste, a chorar e a solicitar-lhe que lhe ligasse; mais afirmou que foram os filhos que insistiram com ela para que o ajudasse e permitisse que ele fizesse as refeições em casa; mais precisou que o arguido passou a dormir, não propriamente num estábulo, mas num carreto; novamente, diga-se que as declarações da assistente não foram contrariadas por nenhuma prova e foram refletidas nos factos provados e não provados; as alterações na matéria de facto foram comunicadas;
t) art. 60.º, a versão da assistente não coincide com o alegado na acusação, o que motivou a sua não prova;
u) art. 61.º, a assistente confirmou as expressões plasmadas na acusação, embora tendo divergido do timing em que a maioria delas foi proferida, aludindo a que estas terão sido já proferidas depois da agressão ao filho; sem prejuízo, confirmou que o arguido estava a insinuar para A. C. que ela se relacionava sexualmente com os irmãos, o que se coaduna com as expressões indicadas na acusação; também V. M. confirmou que o arguido estava a “difamar” a mãe e confirmou as expressões indicadas na acusação, em particular o “puta”, “escolheu ficar com os irmãos”, que dava a cona aos irmãos; consideramos que a versão narrada por V. M., em sentido idêntico à da acusação é a que faz mais sentido, atendendo à dinâmica dos acontecimentos e ao facto de o foco da atenção do arguido, posteriormente, ter sido o filho V. M., deixando de ser a assistente; nessa medida, pese embora encaremos com naturalidade estes desfasamentos de pormenores entre versões, atendendo à falibilidade da memória, vertemos nos factos provados a versão deste último;
v) art. 66.º, a assistente rejeitou que o arguido lhe tivesse chamado diretamente puta, o que abona no sentido da conclusão retirada no ponto anterior; acresce que não houve prova complementar nesse sentido, o que motivou a não prova dessa factualidade; o que prejudica a demonstração do teor do art. 74.º da acusação, relativa aos sentimentos decorrentes da prolação de tal palavra;
w) arts. 67.º a 69.º, a assistente não confirmou integralmente a matéria indicada na acusação, decorrendo das suas declarações que A. C. conseguiu suster o arguido e retirar-lhe a Vara, o que, de resto, acaba por estar em consonância com o depoimento de A. C.. Daí a não prova do alegado a esse propósito e a alteração dos factos indicados na acusação, devidamente comunicada;
A assistente ainda aludiu aos contatos telefónicos que o arguido efetuou depois do divórcio e, com maior relevância, aos mais recentes contatos, após o início do julgamento. Exibiu-nos, de resto, o seu telemóvel, tendo nós conferido e dado a oportunidade aos demais sujeitos processuais para conferirem também, a existência de tais contatos, as suas datas e o número de telemóvel de onde provieram as chamadas. E confrontado com todos esses elementos, o arguido nada disse ou contrariou.
Ainda a propósito dos factos indicados na acusação cabe-nos sublinhar melhor a prova complementar produzida em relação às declarações da assistente e que têm como virtualidade, não apenas reforça-las, mas também aperfeiçoa-las em pontos determinados.
As declarações do assistente V. M. Martins, filho do casal, mostraram-se credíveis, partidárias da espontaneidade e genuinidade que detetámos nas declarações da sua mãe, sendo notória a credibilidade que mereceram, pela sinceridade manifestada, pelos pormenores revelados e pela autenticidade da dor que logrou transmitir ao Tribunal.
O assistente começou por reportar-se ao episódio de 14/3/2014 e confirmou a matéria indicada na acusação, em particular, as palavras proferidas pelo arguido, o ataque de que foi vítima pelas costas e o segundo ataque, já com uma pedra. Reportou-se ainda à intervenção de A. C. para fazer o arguido parar.
Mais confirmou que, nessa sequência, foi, primeiro, para casa da irmã V. L. e, posteriormente, para a casa da irmã J. M., aludindo também ao medo sentido do arguido, que o ameaçou de morte.
As declarações do assistente, à semelhança do que já resultava das prestadas pela sua mãe, permitiram ilustrar-nos a série de episódios de violência grave que foram vivenciados, não só pela assistente, como pelos seus filhos.
O assistente confirmou também o episódio ocorrido no dia 7/4/2004. Diferentemente da assistente, aludiu a um espancamento com um cajado. A desconformidade existente entre as duas declarações não teve grande relevância. Acreditamos piamente que quer a assistente, quer o seu filho estão crentes de que falaram a verdade ao Tribunal. Simplesmente, o tempo decorrido e o número de agressões por ambos vivenciadas durante um período tão elevado são fatores que não auxiliam a rigorosa revivescência dos factos através da falível memória humana. Ante tal desconformidade e na dúvida, acabámos por dar como demonstrada a versão trazida pela própria vítima, por ser esta a pessoa que vivenciou de forma mais direta e imediata o acontecimento e por ter revelado, ao longo das suas declarações, boa memória e clareza na perceção dos acontecimentos.
O assistente aludiu às contínuas agressões e palavras a que foi assistindo até 2004, altura em que saiu de casa.
Mais fez referência ao episódio com o primo A. M., contextualizando-o, e aludindo à atuação do arguido.
L. C., vizinha do arguido e da assistente, apesar da sua respeitável idade de noventa e quatro anos, teve um depoimento relevante por conferir verosimilhança às declarações dos assistentes. Trata-se de uma testemunha que não revelou qualquer partidarismo por um dos sujeitos processuais, ao contrário do que sucedeu com A. C. e R. C.. Apesar das lacunas de que padeceu o seu depoimento, fruto, desde logo, da sua idade, conseguiu dar um lamiré geral da personalidade do arguido e dos seus comportamentos. Confirmou que a assistente dormiu uma noite em sua casa. Mencionou e repetiu, por mais do que uma vez, que o arguido era “muito furioso” e que batia à mulher e aos filhos. Segundo a testemunha, “era pancada e só pancada”. Mais mencionou que a assistente era maltratada, que uma vez até foi para o hospital e ele fugiu para França. Disse que a assistente andava pisada, com os olhos maçados, aludiu às palavras que o arguido referia e aos nomes que lhe chamava e confirma o medo que a assistente tinha do marido, apesar de sublinhar que esta se abria pouco. Portanto, neste depoimento podem retirar-se as alusões aos episódios narrados na acusação e a frequência das agressões, em confirmação da versão da assistente. Do seu depoimento ficou inda clara a tristeza sentida pela assistente, referenciando a testemunha vezes que a viu a chorar.
M. J., o mais novo dos filhos, prestou igualmente um depoimento sereno, credível, apesar de a testemunha ter denotado desconhecimento sobre a maioria dos factos, alguns ocorridos quando nem sequer era nascido, outros ocorridos sem ser na sua presença.
Também nos parece que a testemunha procurou esquecer e de não reter os episódios de violência ocorridos no seio da família, tendo falado, grosso modo, de forma genérica e denotado dificuldades em pormenorizar e situar episódios concretos, ao contrário do que sucedeu com o irmão V. M.. Mas o certo é que do seu depoimento decorre que esses episódios existiam e eram graves, pois que a testemunha começou por dizer que decidiu sair de casa aos quinze anos por conta dos problemas familiares que o estavam a prejudicar no estudo, aludindo genericamente a discussões, a acusações que a mãe traía o pai e a agressões.
Dos episódios concretos indicados na acusação, mencionou muito vagamente o ocorrido com o primo A. M. e referiu que a mãe terá sido assistida uma vez no hospital de Mirandela com um golpe na cabeça. Confirmou ainda que viu o irmão com gesso no braço.
Ainda no mesmo sentido das declarações prestadas pela mãe, reportou-se aos telefonemas efetuadas pelo arguido à mãe e a si próprio, neste último caso, perguntando-lhe onde estava a mãe e, inclusivamente, querendo “discutir” consigo.
Os depoimentos de A. C. e R. C., circunscritos ao episódio de 14/3/2014 tiveram pouca relevância, desde logo por nos terem suscitado sérias reservas, ante o nítido comprometimento que revelaram e o intuito claro de revelarem o mínimo possível ao Tribunal que pudesse incriminar o arguido. De modo que A. C., logo no início do seu depoimento, para além do pouco que começou por narrar, teve a preocupação de ressalvar que o filho R. C. ainda viu menos do que ele. Assim, como é óbvio, tais testemunhas não merecem particular credibilidade e o seu depoimento em nada prejudicaria a demais prova produzida pela acusação, bem mais fiável e confiável. Sem prejuízo, diga-se que o certo é que, ainda que resistindo e a contragosto, ao longo do depoimento, quer A. C., quer o filho, este após lhe terem sido lidas as suas declarações prestadas no decurso do inquérito, foram revelando factos que conferem verosimilhança à tese da acusação.
Sublinhamos que, dos depoimentos das citadas testemunhas, resulta que o arguido se encontrava nervoso e exaltado. Ademais, confirmam a presença de um pau no local, embora rejeitando terem visto qualquer agressão com o mesmo, o que se mostra inverosímil, nomeadamente, porque pelo menos A. C. assistiu aos factos, encontrava-se no local com o arguido antes da chegada da esposa e do filho. Por outro lado, não se alcança que outro motivo pudesse existir, que não a utilização desse concreto instrumento como meio de agressão, para levar a testemunha a reter a presença do aludido “pau” no local.
Acresce A. C. confirma que foi ele que agarrou no arguido e que este deixou cair a pedra e também caiu. Questionado para que é que o arguido teria a pedra, que disse ser de quatro ou cinco quilos, respondeu que “para coisa boa não foi”.
Os depoimentos das testemunhas apresentadas pela defesa, L. R., M. L., MS, M. H. e F. M. não tiveram grande relevância ao nível da confirmação ou negação diretas dos factos indicados na acusação, porquanto nenhuma delas revelou conhecimento da vivência familiar do arguido. Muito pelo contrário. Em traços gerais, as testemunhas demarcaram-se de tocar esse assunto de forma cabal.
A nível documental, o documento de fls. 126, proveniente do Hospital, permite aferir da data dos factos alegados em 32 a 35 e vai no sentido das declarações da assistente quanto às agressões e ao tratamento hospitalar.
Temos ainda relativamente à agressão perpetrada contra o V. M. e suas consequências, os registos clínicos/relatórios de urgência de fls. 100, 212 a 217, 438 a 442 .
A este propósito, dando-nos conta ainda das consequências praticadas, revelou ainda a prova pericial produzida, cujos relatórios se encontram a fls. 35 a 37, 360 e sgs..
No que toca ao crime de detenção de arma proibida, importa ainda atentar no auto de apreensão de fls. 46, nas folhas de suporte de fls. 48 e 49 e no auto de exame direto das armas de fls. 224 e sgs.. A falta das condições legalmente prescritas para deter os objetos em causa encontra-se plasmada nas informações de fls. 45, 58 210.
Acresce que os dois assistentes confirmam que o arguido detinha armas e respetivas munições, até porque caçava. Temos, inclusive, a fls. 19 uma licença para uso e porte de arma, válida para os anos de 94 a 98, emitida em nome do arguido. O interesse daquele por armas é igualmente confirmado, ainda que de forma não intencional, por L. R.. O arguido não negou a posse das armas. Pelo contrário, como referimos, insurgiu-se contra as declarações da assistente após se tocar nesse assunto, mas não para desmentir que as tivesse em seu poder – assim como às munições concretamente entregues. Limitou-se a acusar a assistente de ter entregue as armas a terceiros.
Decorre, inclusivamente, das declarações da assistente e de V. M. e de M. J. que, à data da apreensão, nenhum dos filhos vivia na habitação. A assistente também rejeitou indiretamente que as munições lhe pertencessem, tanto que decorre da informação de fls. 45 que foi ela a entrega-las às autoridades policiais. Acresce que não foi levantada qualquer dúvida quanto à propriedade de tais munições pelo arguido, sendo esta, de resto, a única conclusão plausível ante a prova produzida e as considerações supra tecidas.
Mas o mesmo não se pode dizer relativamente ao período temporal em que as mesmas estiveram no poder do arguido, havendo, nesta parte dúvidas, quanto à matéria indicada na acusação, que redundam na não prova do referido a esse propósito. É que, se é certo que a assistente declarou que o arguido sempre teve armas e munições consigo, não se pode retirar que possuísse concretamente as armas e munições encontradas em seu poder à data da apreensão. Assim, apenas se pode retirar que o arguido teve tais munições em seu poder até à data em que abandonou a residência conjugal, em 14/3/2014, segundo a assistente. Na verdade, tendo o arguido saído de casa e deixado lá as munições, é plausível concluir que se desvinculou do domínio sobre as mesmas. Posições essas que refletimos nos factos provados e não provados.
Os elementos concernentes com o tipo subjetivo dos ilícitos decorrem da análise objetiva dos factos dados como provados, crítica e conjuntamente com as regras da experiência e do senso comum, já que é notória a intencionalidade subjacente às condutas do arguido, assim como ficaram demonstrados os efeitos nefastos advenientes de tais condutas, os quais, de resto, são perfeitamente previsíveis e típicos para um homem comum colocado na posição da vítima daquelas, ante a gravidade e violência das mesmas. Ademais, todos os comportamentos descritos mostram-se incompatíveis com uma atuação negligente ou desconhecedora do respetivo carácter legalmente proibido, estando imbricada na comunidade o sentido de desvalor ínsito a todos os ilícitos.
Os antecedentes criminais do arguido mostram-se plasmados no certificado do registo criminal do arguido de fls. 578.
Ativemo-nos nas declarações do arguido e na sua postura em audiência para aferir de 83) a 85) dos factos provados.
As suas circunstâncias pessoais e socioeconómicas radicam essencialmente na análise do relatório social elaborado na fase de julgamento e examinado em audiência.
Esse relatório social vinca as caraterísticas de personalidade do arguido e o que aí é escrito a esse propósito vai ao encontro do declarado pelas pessoas mais próximas do arguido, não apenas pelos assistentes, mas também pelo filho M. J., pela irmã do arguido, MS e pela atual companheira, M. L.. De resto, a postura adotada em audiência corrobora tais traços de personalidade. Neste ponto, a imediação foi particularmente útil, já que o arguido não os escondeu. Sublinhamos a resistência em responder ao Tribunal às perguntas feitas sobre a sua identidade, o sorriso de desdém e trocista que manteve praticamente ao longo de todo o julgamento, o tom de voz e olhar agressivos utilizados quando optou por prestar declarações sobre pontos de facto totalmente irrelevantes, denotando total falta de autocrítica, e as interrupções às declarações da assistente, reveladoras da sua impulsividade e falta de autocontrolo.
Como já referimos supra, a assistente aludiu aos contatos telefónicos do arguido e seu teor, tendo exibido o seu telefone, facultando-nos a possibilidade de conferirmos as datas das chamadas e até a sua duração. Como dissemos também, o filho M. J. também aludira que, antes, o arguido telefonava à mãe e a si próprio para saber da mãe, o que ajuda a corroborar as declarações da progenitora.
Os danos não patrimoniais sofridos por cada um dos assistentes resultaram, desde logo, inequívocos das declarações prestadas por cada um, não apenas em relação a si próprios, como também em relação ao outro assistente, já que foram mutuamente suportadas.
Foi, efetivamente, confrangedor ouvir I. M. e V. M., visto que das suas declarações resultou de forma extremamente sentida o sofrimento e sentimentos negativos que experimentaram por conta da atuação do arguido e ficou por demais patente que tal ferida ainda se encontra aberta, não sarou.
O depoimento de M. J., filho e irmão, embora não tão relevante e completo, acaba por corroborar, no essencial, a matéria a propósito demonstrada.
No que toca a I. M., as informações clínicas de fls. 489 a 496, 503 a 508, nomeadamente, na parte em que documenta o nervosismo da paciente, o seu choro fácil e humor depressivo também ajudam a sustentar os danos não patrimoniais dados como não provados, os quais, de resto, como já se disse, se mostram consentâneos com os maus tratos a que foi sujeita a assistente.
As despesas hospitalares decorrentes das ofensas corporais ao assistente V. M. decorreram da análise dos documentos de fls. 525 a 528. De referir igualmente que estes documentos foram lidos articuladamente com os relatórios de urgência relativos ao evento, sendo certo igualmente que do documento de fls. 216 e 217 resulta a segunda consulta efetuada, em 9/4/2014, ainda em consequência do mesmo.
Os assistentes V. M. e I. M., assim como o filho M. J. confirmaram a campanha em França e o rendimento que o assistente deixou de auferir por conta da agressão sofrida. Ademais, não há dúvidas, ante o período de incapacidade para o trabalho atestado no relatório pericial, que o assistente não pôde ir fazer tal campanha.
As despesas suportadas pela ULS resultantes dos cuidados de saúde prestados a V. M. são suportadas pela fatura que juntou, a fls. 679.».
*
1. A impugnação da matéria de facto.

1.1 A insuficiência e o erro notório.
Incide o recurso sobre a matéria de facto, sustentando o arguido/recorrente que a sentença de 1ª instância não contemplou todos os factos atinentes às suas condições pessoais, mormente aqueles que resultam do relatório social junto aos autos, verificando-se, assim, o vício de insuficiência da matéria de facto, bem como o de erro notório, a que aludem as alínea a) e c) do art. 410º do CPP.
Como vem sendo unanimemente defendido na jurisprudência a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: através do âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o art. 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma.
O eventual erro (de julgamento) na apreciação da prova não se identifica nem, por regra, emerge como a errónea construção de silogismo judiciário (contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão) ou qualquer outro dos vícios a que alude o art. 410º, nº 2, do CPP (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou erro notório), necessariamente resultantes do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
O que significa que só assumem tal natureza os erros constatáveis pela simples leitura do teor da própria decisão da matéria de facto, como resulta do citado normativo, não sendo admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para os fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (1). Apenas será de admitir a conveniência ou a cautela de, ainda assim, sindicar a fundamentação que haja sido feita sobre os factos provados e não provados, para se fazer uma avaliação correcta e poder concluir se, afinal, para um facto em aparente contradição com a lógica mais elementar e as regras da experiência comum, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, não foi fornecida naquela fundamentação um qualquer esclarecimento que torne compreensível o julgamento efectuado: por exemplo, se um facto dado como provado (ou não provado) contraria o senso comum, ou seja, a normal e corrente compreensão e interpretação das situações da vida, só a clara explicitação do percurso trilhado para a formação da respectiva convicção e a razoabilidade desta poderão legitimar a sua aquisição processual.
Assim, apenas existe erro notório na apreciação da prova quando, de acordo com o texto da sentença, o tribunal a valorou contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (2). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, traduzido, basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (3) ou dar-se como não provado o que não pode ter deixado de ter acontecido. Com efeito, a jurisprudência tem considerado tais vícios apenas como os erros que, ponderados os factos provados e não provados, advêm de o tribunal ter retirado uma conclusão ilógica ou arbitrária, à margem duma análise racional ou em violação das regras de experiência comum, e que, por isso, não escapa à análise do homem médio (4).
Identicamente, o vício atinente à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, só ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se colher faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada (5). Porém, este vício também não deve ser confundido com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, enquanto questão do âmbito da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP) (6).
Em suma, os vícios ora defrontados, apreciados nesta vertente que não na da adequação da decisão proferida, visam o erro na construção do silogismo judiciário, não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, ou a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável (7).
Neste caso, o que está verdadeira e unicamente em causa no recurso é que o recorrente não se conforma com o facto de ter sido condenado numa pena que reputa de excessiva e por esta não ter sido suspensa na sua execução, alegando que não foram considerados todos os factos relativos à sua condição pessoal, aí fazendo radicar os aludidos vícios que expressamente apodou de erro notório e de insuficiência da matéria de facto.
A questão assim colocada traduzir-se-á, na circunstância de o tribunal de 1ª instância ter determinado a medida das penas parcelares e da pena única que impôs ao recorrente com omissão de factualidade inerente às suas condições pessoais, sendo que, segundo o mesmo defende, estas assumiriam particular relevância para eventual suspensão da pena aplicada.
Concretizando.
Como se disse, verifica-se o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando esta seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão, sendo que esta tanto pode ser insuficiente quando não permite a subsunção efectuada em termos de imputação de determinado crime, como quando não permite uma opção fundamentada entre penas não privativas e privativas da liberdade, entre pena de prisão efectiva e penas de substituição desta ou um juízo inteiramente fundamentado sobre o doseamento da pena.
E só releva se resultar do texto da decisão recorrida apreciado na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, pois é um vício da decisão, não do julgamento, como enfatiza Maria João Antunes, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro/Março de 1994, página 121 [citada no Ac. da RL de 10-09-2013 (P. 58/12.0PJSNT.L1)].
Não tendo o Tribunal de 1ª instância procedido à indagação necessária das condições económicas e social do arguido, como podia e devia ter feito, a sentença enfermaria, nesta parte, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (8).
Por força do disposto no art. 71º, nº 2, do C. Penal, na determinação da medida da pena o tribunal está vinculado à apreciação de todas as circunstâncias que, não fazendo parte do crime, deponham a favor do agente ou contra ele, aí se incluindo as condições pessoais e a sua situação económica e financeira (al. d)), a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime (al. e), e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto (al. f).
Analisemos, então, se no caso concreto existe a falada insuficiência da matéria de facto quanto à situação pessoal do recorrente, na vertente por si enunciada.
Oficiosamente o Tribunal recorrido ordenou, e bem, a elaboração de relatório social acerca das condições pessoais do arguido.
A elaboração de relatório social, tendente à averiguação das condições pessoais do arguido, na perspectiva da determinação da sanção, encontra-se prevista no art. 370º do CPP.
E, apesar de não ser obrigatório, constituí um importante meio de auxílio para se aquilatar das condições socio- económicas dos arguidos, designadamente nos casos em que os mesmos são julgados na sua ausência, sem esquecer que a maior parte das vezes, se tem que atender às declarações dos próprios e aos depoimentos das chamadas testemunhas abonatórias, que, quase sempre, estão comprometidas com os interesses da defesa.
Neste conspecto, entendemos que o Tribunal, em ordem à boa decisão da causa, não deve prescindir da elaboração do relatório social, a menos que esta se revele inviável ou demasiado morosa, retardando excessivamente o normal andamento do processo, o qual não constitui prova pericial e encontra-se sujeito à livre apreciação do Tribunal, nos termos do art. 127º do CPP.
A insatisfação do recorrente prende-se com a redacção conferida aos pontos 86 e 87 dos factos provados onde se consignou que o «arguido iniciou uma nova relação afectiva, vivendo com a actual companheira» e «Dedica-se à pastorícia e ao cultivo com habitantes da aldeia».
O arguido pretende que se dê como provado que iniciou uma nova relação afectiva, há cerca de três anos, vivendo com a actual companheira, não sendo conhecidos quaisquer incidentes ou conflitos nesta relação, passa o seu dia-a-dia no «convívio com habitantes da aldeia, junto dos quais possui uma imagem positiva, contrariamente à imagem que possuía no anterior meio de residência», está inserido socialmente, tem uma ocupação laboral e não está excluído da sociedade, sendo bem visto pelas pessoas que o rodeiam e que com ele convivem. Aduz ainda que resulta do relatório Social que não ultrapassou o 1º ano de escolaridade, pelo que não sabe ler nem escrever, e possui uma história de vida marcada pelas carências económicas, o que lhe comprometeu a aquisição de competências básicas.
Ora, não se constatam pela simples leitura do teor da decisão recorrida os vícios que o recorrente lhe assaca, com os mencionados contornos que a lei lhe oferece, aliás, incompatíveis com os próprios termos do arrazoado recursivo, pois, da mesma resulta uma congruência racional e lógica ao nível dos factos provados e não provados, espelhada na própria fundamentação: como se disse, os vícios a que se vem aludindo só existem quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo Tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito, o que não sucede.
Destarte, é forçoso concluir, face à concreta argumentação expendida nas conclusões de recurso, complementadas com a respectiva motivação, que o recorrente invoca a existência destes vícios fora das analisadas condições legais, pois que se limita a extrair as ilações que tem por pertinentes da prova produzida, que contrapõem às da Julgadora, sem que logre demonstrar, através da análise estribada apenas na leitura do próprio texto da decisão recorrida, a existência de qualquer insuficiência ou conclusão contrária à lógica das coisas, ao alcance, pela sua evidência, do homem comum.

1.2. - O erro na apreciação da prova.
Em suma, concluiu-se que o recorrente questiona, não o texto da sentença, mas o modo como o Tribunal procedeu à apreciação da prova, atacando a decisão, não no plano dos aludidos vícios, mas no da violação do princípio da livre apreciação da prova.
Para tanto, invoca o erro na apreciação das provas produzidas, escudando-se no teor do relatório social e dos depoimentos prestados em audiência pelas testemunhas de defesa, designadamente pela sua actual companheira.
Como em geral sucede, esta tarefa é norteada pela ideia de que a apreciação da prova, segundo o grau de confirmação que os enunciados de facto obtêm a partir dos elementos disponíveis, está vinculada a um conceito ou a um critério de probabilidade lógica preponderante e, especificamente, face a uma eventual divergência inconciliável de depoimentos, produzidos por pessoas dotadas de uma razão de ciência sensivelmente homótropa, prevalecerão os contributos colhidos por essa via, que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum.
É ponto assente na doutrina e na jurisprudência que na fundamentação da matéria de facto, como já se salientou, se hão-de indicar as razões porque se atribui credibilidade a certos meios de prova, incluindo naturalmente os depoimentos prestados, e a explicação das razões porque se não confere essa credibilidade a outras provas que hajam sido produzidas e que apontem em sinal contrário. O que implica, claro está, que todos os meios de prova sejam escrutinados quanto ao seu interesse e ao seu valor. Sabendo-se que as provas são, em princípio, apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º CPP) é necessário que o processo de formação dessa convicção seja explicado, esclarecendo-se nomeadamente porque se entende que ele se encontra em conformidade com as regras da experiência. Isto significa que não basta afirmar que certo depoimento, onde se abordaram determinados pontos está de acordo com as regras da experiência e, por isso, é credível; é preciso esclarecer de forma raciocinada a compatibilidade do seu teor com as tais regras da experiência, tanto mais detalhadamente quanto a decisão esteja em aparente desconformidade com essas regras.
Com efeito, não podemos olvidar que de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal, orientado pela descoberta da verdade material, aprecia livremente a prova e não está inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária ou indirecta. Como é evidente, tais princípios não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjectivas incontroláveis, antes têm, sempre, de nos remeter, objectiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente, inalcançável, fruto de especulação projectada para fora do domínio da racionalidade prática, sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos (9).
É segundo esta perspectiva que hão-de ser apreciados os factos provados e a fundamentação que o tribunal recorrido levou a efeito para sustentar a sua convicção acerca deles, ou seja, o processo avaliativo que o tribunal levou a cabo de modo a que se possa dizer com segurança se houve ou não uma errada apreciação da prova produzida.
Ora, para além de o invocado relatório social estar sujeito à livre apreciação do Tribunal, a matéria consignada nos pontos em questão corresponde ao que dele consta e do mesmo não se colhe a data a partir da qual estabeleceu o seu “novo afecto” e passou a viver com a actual companheira. As demais pretensões encerram meras conclusões a extrair dos factos: se o arguido se dedica à pastorícia e trabalha em terrenos agrícolas com habitantes da aldeia, o mesmo tem uma ocupação laboral e não se encontra excluído da sociedade, antes se encontra inserido no meio social em que vive.
O único aspecto focado no recurso não aludido na decisão é o facto de o arguido não saber ler nem escrever. Contudo, no contexto dos factos em apreço, ou seja, no exame sobre o enquadramento jurídico desses factos e sobre as consequências dos crimes que os mesmos são, em abstracto, idóneos a integrar o que poderá relevar para a decisão não é o grau de literacia de que o arguido (não) é possuidor mas os traços que a sua formação deixaram vincados na sua personalidade, como são as dificuldades que o mesmo manifesta em descentrar-se e a fraca capacidade de autocrítica e rigidez de pensamento, detalhes da sua personalidade, já espelhados no item 88 da matéria assente, a par dos plasmados nos subsequentes pontos 89 e 90.
Acresce que, parecendo-nos, salvo melhor entendimento, serem coerentes e lógicas as explicitações mediante as quais a Senhora Juíza, em resultado da prova produzida, teve como provado o comportamento protagonizado pelo arguido e o respectivo enquadramento quanto às condições pessoais e sociais do mesmo, não vem minimamente concretizado no recurso o putativo erro da decisão e respectiva motivação, nesse conspecto: a Senhora Juíza indicou cabalmente os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção e as razões pelas quais relevaram os meios de prova de que se socorreu e obtiveram credibilidade no seu espírito. E o exame dos aludidos elementos, incluindo os documentais e os segmentos não referenciados pelo recorrente, devidamente ponderados segundo as regras da lógica e da experiência comum, permite que se retire a conclusão de que a decisão impugnada não merece qualquer censura, pois procedeu a uma correcta e devida ponderação de todos os meios de prova produzidos.
Assim, perante a prova produzida, pensamos que não se detecta qualquer pontual e concreto erro de julgamento ou patente irrazoabilidade na convicção probatória formada pela Julgadora (com imediação (10)).

Por conseguinte, improcede na sua totalidade a impugnação da matéria de facto.

2. A prescrição.
Defende o recorrente que o procedimento criminal se mostra extinto, por prescrição, nos termos previstos no art. 118º n°1, al. b) do C. Penal, em relação aos factos ocorridos entre os anos 1986 e 2004.
Vejamos.
Por factos praticados entre o ano de 1986 e 2014, o arguido foi condenado como autor material de um único crime de violência doméstica, p. p. pelo art. al. a) do nº 1 e nº 2 do art. 152º do C. Penal.
O C. Penal de 1982 previu e puniu, pela primeira vez, o “crime de maus-tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cônjuges”, então com natureza pública e circunscrito a condutas referentes a maus-tratos físicos.
A reforma penal do Código de 95 (operada pelo Dec. Lei nº 48/95 de 15/3) introduziu significativas alterações neste domínio dos maus-tratos conjugais, enfrentando a importância crescente de agressões, humilhações, vexames, insultos e outros actos que acontecem, designadamente, no âmbito familiar e conjugal. A necessidade de criminalização de tais condutas adveio da progressiva consciencialização acerca da gravidade de um fenómeno social altamente lesivo e de proporções alarmantes, apesar de encapotadas, e com repercussões ao nível da formação individual e da integridade do próprio tecido social. Fenómeno esse do qual são vítimas pessoas particularmente vulneráveis e indefesas em razão dos vínculos, nomeadamente de natureza familiar ou análoga, que as ligam às pessoas dos seus agressores e em resultado dos quais se estabelecem entre estes e aquelas relações de subordinação ou de domínio de facto, que as colocam em situação de dependência económica e/ou emocional.
Assim, com a reforma de 95, o normativo (então artigo 152º), além do mais, passou a contemplar na conduta punível também os maus-tratos psíquicos, foi alargada a qualidade de sujeito passivo do crime às pessoas equiparadas aos cônjuges, modificou a moldura da pena, que passou a ser a de prisão de 1 a 5 anos, e passou a fazer depender de queixa o respectivo procedimento criminal.
Com a Lei 65/98 de 2/9, mantendo-se a disciplina relativa ao crime de maus-tratos quanto à definição do tipo legal e medida da pena, foi, todavia, introduzida uma alteração de relevo relativa à natureza do crime que passou a ser “quase público”, uma vez que sendo o procedimento criminal dependente de queixa, se conferiu legitimidade ao Ministério Público para o iniciar sempre que (e desde que) considerasse que o interesse da vítima o impunha, e até à dedução da acusação o ofendido não manifestasse a sua oposição.
Com a publicação da Lei nº 7/00 de 27/5, o regime penal do crime de maus-tratos sofreu novas alterações, passando a prever a punibilidade com pena de prisão de 1 a 5 anos de quem infligisse ao cônjuge, ou a quem com ele convivesse em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou psíquicos, acrescentando, a essa pena principal, uma pena acessória de proibição de contactos com a vítima, incluindo o afastamento da residência desta, por um período máximo de 2 anos (nº 6). Contudo, a principal modificação foi a referente à natureza do crime, a que, de novo, foi atribuído o carácter público.
E assim se manteve, no essencial, tal enquadramento entre 2000 e a vigência da actual redacção conferida àquele artigo 152º pela Lei 59/2007, de 4/9 (11):
«1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
(…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
(…) 4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância (…)».

O tipo de ilícito em apreço, integrado no título dedicado aos crimes contra as pessoas e, dentro deste, no capítulo relativo aos crimes contra a integridade física, visam tutelar, não a comunidade familiar e conjugal, mas sim a pessoa individual na sua dignidade humana, abarcando, por isso, os comportamentos que lesam esta dignidade (12).
O bem jurídico protegido por este tipo de crime – a saúde física, psíquica e mental – é complexo e pode ser afectado por todos os comportamentos que ou que afectem a dignidade pessoal do cônjuge (13).
O preenchimento do tipo legal não se basta com qualquer ofensa à saúde física, psíquica e emocional ou moral da vítima: «O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus tratos» (14).
Por outro lado, tal crime pode unificar, através do elemento da reiteração – embora este seja hoje um requisito, não imprescindível –, uma multiplicidade de condutas que, consideradas isoladamente, poderiam integrar vários tipos legais de crime, mas que, pela subsunção a uma única previsão legal, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma.
A unidade de acção típica não é excluída pela realização repetida de actos parciais, quer estes actos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime. O tipo legal inclui na descrição da acção uma pluralidade indeterminada de actos parciais. Trata-se do que, na doutrina, é designado por realização repetida do tipo (15). Há crimes que se consumam por actos sucessivos ou reiterados, como se expressa no artigo 19º, nº 2 do CPP, mas que são um só crime; não há pluralidade de crimes, mas pluralidade no modo de execução do crime.
Este crime «persiste enquanto durarem os actos lesivos da saúde física (que podem ser simples ofensas corporais) e psíquica e mental da vítima (humilhando-a, por exemplo) e a relação de convivência que faz dele um crime de vinculação pessoal persistente» (16).
Muito embora, em princípio, o preenchimento do tipo não se baste com uma acção isolada do agente (tão-pouco com vários actos temporalmente muito distanciados entre si), já vinha sendo entendido pela jurisprudência que, em certos casos, uma só conduta, pela sua excepcional violência e gravidade, basta para considerar preenchida a previsão legal (17).
A entrada em vigor da Lei nº 59/2007 de 4/9 introduziu as aludidas alterações a tal ilícito, mas, no essencial e para o que aqui interessa, continua a ser punível, e em termos idênticos, a conduta do agente que inflija maus tratos físicos ou psíquicos à pessoa do seu cônjuge (ou companheiro), esclarecendo-se agora expressamente que tal actuação pode ser “de modo reiterado ou não” e que aqueles maus tratos incluem “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”.
Todavia, no que respeita ao segundo dos elementos mencionados e tendo presente apenas o conceito de “maus tratos físicos”, há que atentar em que não basta para o seu preenchimento que o agente pratique factos que se subsumam na previsão do art. 143 nº 1 (ofensas à integridade física simples). É, também, necessário, que a actuação atinja o bem jurídico tutelado com a incriminação em apreço, ou seja que lese a dignidade, enquanto pessoa, da vítima (18). E para tal, não basta a simples e/ou isolada agressão ao cônjuge.
Necessário é que a conduta do agente, nesse particular conspecto, seja ofensiva do bem-estar da vítima, considerado, quer numa perspectiva física, quer numa vertente psíquica e mental. Por outro lado, por regra, relevam as condutas que se traduzam na prática reiterada de agressões a tal bem jurídico (19). Em caso de agressão isolada, por regra, estar-se-á apenas diante da possibilidade de verificação de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelos arts. 143º e ss.
Importa, assim, analisar e caracterizar se o quadro global da agressão de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, o que por si mesmo, constitui, nas palavras de Nuno Brandão (20), «um risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima», e impõe a condenação pelo crime de violência doméstica.
O que releva é saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma é susceptível de se classificar como “maus tratos”. Conforme se escreveu no Ac. da RE de 30-06-2015 (21), «essa conduta deverá revelar ainda um “plus” de danosidade, quando, face ao restante entorno factual se pode concluir pela sua adequação a afectar a dignidade pessoal do outro elemento do casal». Esta decisão foi sintetizada pelo seguinte modo: «A imagem global do facto e a apreensão/percepção de todo o episódio de vida em apreciação relevam na delimitação da fronteira entre condutas que têm dignidade punitiva à luz do tipo de crime de violência doméstica e aquelas que não devem relevar para o direito penal, aqui. Condição necessária para a intervenção penal é sempre a ofensa efectiva de um bem jurídico (digno de protecção penal). A ratio do tipo “violência doméstica” não reside, na protecção da família, mas na protecção da pessoa individual na família, na tutela da sua dignidade, protegendo-a de um abuso de poder na relação afectiva. Ocorrendo os factos provados num quadro de relacionamento conjugal deteriorado, mas em que, apesar dessa degradação, os cônjuges se foram mantendo livremente no casamento, sem posições de dominância de um sobre o outro, interagindo sempre em condições de paridade e igualdade conjugal, uma agressão isolada e pouco intensa, que atingiu a integridade física da assistente, e outras ofensas pontuais ao seu bom nome, embora merecedoras de censura penal, não encontram tutela à luz do art. 152º do CP, e sim dos arts 143º, nº 1 do CP e 181º, nº1 do CP.».
Ou, ainda, como se salientou, duma forma, porventura mais impressiva, no sumário do Ac. deste Tribunal de 15-10-2012 (22): «A delimitação dos casos de violência doméstica daqueles em que a ação apenas preenche a previsão de outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou o sequestro, deve fazer-se com recurso ao conceito de “maus tratos”, sejam eles físicos ou psíquicos. Há “maus tratos”quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima».
Se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos, nos moldes e com os referidos contornos, que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa e que de outra forma seriam consumidos por aquele.
Doutrinalmente, o crime de violência doméstica, tem sido definido, de forma pacífica, como crime habitual.
«Crimes habituais são aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual» (23).
Como se asseverou no acórdão da RP de 21/12/2016 (24), citando Lobo Moutinho, in “Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português”, p. 620, nota 1854, «O crime habitual, no sentido que à expressão confere a actual legislação, é um crime em que a consumação se protrai no tempo (dura) por força da prática de uma multiplicidade de actos “reiterados”. Que a persistência temporal na consumação se não dá mediante a prática de um só acto, mas de uma multiplicidade deles - eis o que distingue o crime habitual do crime permanente; que os actos que vão consumando o crime são, não sucessivos, mas reiterados - eis o que distingue o crime habitual do crime contínuo. O ponto central da definição do crime habitual é, por isso, o que deve entender-se por “actos reiterados”. (...) Apenas se pode admitir a “consumação por actos reiterados” (um crime habitual) em casos especiais – o mesmo é dizer, nos casos e termos em que isso é expressamente possibilitado pelo tipo de crime. (...) Como a doutrina indica, os crimes “habituais” (seja qual for o entendimento a dar à “habitualidade” do crime, o mesmo é dizer, à “reiteração” dos actos de que se compõe) correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se apresenta ou, pelo menos, pode apresentar mais complexa do que habitualmente sucede e se desdobra numa multiplicidade de actos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediante intervalos entre eles».
Por outro lado, a distinção entre unidade e pluralidade de crimes é determinante para as consequências jurídicas do facto, ou seja, para a punição do agente. A regra é a de que, sendo vários os preceitos violados, ou sendo o mesmo preceito objecto de plúrimas violações, haja uma pluralidade de crimes. Esta pluralidade só fica afastada no caso de concurso aparente, ou nas formas de unificação de condutas como crime continuado, como um único crime ou como crime de trato sucessivo.
Dispõe o nº 1 do art. 30º que «O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».
Enquadrando-se o crime de violência doméstica, tal como o antecedente crime de maus tratos, a que vimos aludindo na figura de crimes habituais, os mesmos também não podem deixar de se considerar que integram a categoria de crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, mas, para tal, tem-se exigido que se confirme uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, presididas por uma mesma unidade resolutiva criminosa desde o início assumida pelo agente. É essa unidade resolutiva, a par da homogeneidade de actuação, e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos actos de tratos sucessivos num só crime.
A conexão temporal é assim fundamental para aferição do critério de definição da unidade ou pluralidade de infracções e, se entre os factos medeia um largo espaço de tempo, um hiato temporal, encontra-se comprometida a unificação das condutas. Foi o que se afirmou no acórdão do STJ de 29-11-2012 (25), citado pelo recorrente: «(…) O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque)” (26).
Por outro lado, nos termos do art. 119º, nº 1 do C. Penal, o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado, estabelecendo o nº 2, a) e b), do preceito que, nos crimes permanentes, continuados e habituais, tal se verifica no dia da prática do último acto (27).
Ora, as condutas do arguido concretizadas na factualidade provada foram praticadas entre o segundo semestre do ano de 1986 e 7 de Abril de 2004 e, novamente, entre Maio de 2013 e o dia 13 de Março de 2014. Assim, segundo os indicadores fornecidos pelo processo, existiu um longo hiato temporal, no qual, em conformidade com a matéria assente, não se verificaram os actos consistentes em maus tratos físicos e psíquicos no seio do casamento entre o arguido e a assistente.
Sufragando a exposta orientação do nosso mais alto Tribunal, salvo o devido respeito pelas opiniões contrárias manifestadas nos autos, essa interrupção não é conciliável com a unidade resolutiva imprescindível para a afirmação da compleição de um único crime: os factos ilícitos praticados pelo arguido não podem ser reconduzidos a um único crime de violência doméstica, devendo, antes, concluir-se que, em 2013, o mesmo renovou a resolução criminosa.
Com efeito, a interrupção dos actos criminosos durante mais de 9 anos (de 2004 a 2013) não autoriza a sua unificação e, consequentemente, que se considere por verificado um único crime, daí que haja a necessidade de extrair as devidas consequências quanto ao decurso do tempo sobre os actos que decorreram entre 1986 e 7 Abril de 2004.
A conduta delituosa em apreço, à data em que a mesma se consumou, ou seja, o dia da prática do último acto (7/04/2004), preenchia a previsão do crime de maus tratos contida no art. 152º do C. Penal, com a redacção então vigente (28) e era punível com pena de prisão de um a cinco anos, sendo, por isso, nos termos do disposto no art. 118.º, nº 1, al. b), do C. Penal, de 10 anos o prazo de prescrição do respectivo procedimento criminal.
Esse prazo, tendo-se iniciado, como se disse, em 7/04/2004, completou-se em 7/04/2014, sem que, no respectivo decurso, tenha ocorrido qualquer das suas causas de interrupção ou suspensão, previstas nos arts. 120º e 121º (nomeadamente, constituição de arguido e notificação da acusação) do C. Penal, na medida em que, tendo o processo sido instaurado em 14/03/2014, o arguido apenas veio a ser constituído como tal em 30/06/2014.
Portanto, encontrando-se extinto, por prescrição, o procedimento criminal pelos factos imputados ao arguido no período compreendido entre 1986 e Abril de 2004, subsiste apenas a responsabilidade penal do mesmo pelos factos assentes por ele cometidos entre Maio de 2013 e o dia 13 de Março de 2014, que, como já se evidenciou, preenchem todos os elementos típicos do mencionado crime de violência doméstica, previsto na actual redacção daquele artigo 152º, nºs 1 e 2, e punível com pena de prisão de dois a cinco anos, o que, aliás, não é adversado no recurso.

3. A medida da pena e a suspensão da sua execução.

3.1 No recurso é suscitada a questão da (in)adequação da medida da pena imposta ao arguido/recorrente em face da desconsideração dos factos ocorridos no período compreendido entre 1986 e 2004, devendo a medida da pena que lhe foi aplicada quanto ao crime de violência doméstica, ser alterada, fixando-se uma pena mais próxima dos limites mínimos legais aplicáveis a tal crime.
Impõe-se, pois, que nos debrucemos sobre a medida concreta da pena a impor ao recorrente.
No que concerne às finalidades das penas dispõe o artigo 40º, do C. Penal, que a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente.
Este preceito indica-nos que o escopo que subjaz à aplicação da pena se reconduz, por um lado, a reforçar a confiança da comunidade na norma violada e, por outro lado, à ressocialização do delinquente.
Em consonância com o estipulado no nº 1, do art. 71º, do C. Penal, a medida da pena é determinada, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa, conforme prescreve o art. 40º, nº 2, do mesmo Código.
Na determinação concreta da pena, há, assim, que atender às circunstâncias do facto, que deponham a favor ou contra o agente, nomeadamente ao grau de ilicitude, e a outros factores ligados à execução do crime, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins e motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior ao crime (art. 71º, nº 2, do C. Penal).
Dito por outras palavras, na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção, quer de ordem geral – com o objectivo de confirmar os bens jurídicos violados –, quer de ordem especial – tendo em vista gerar condições para a readaptação do agente do crime, de modo a evitar que este volte a violar tais bens –, mas sem se perder de vista a culpa do agente – com atendimento das circunstâncias estranhas à tipicidade –, que a medida da pena tem como base e limite.
Como se disse, a finalidade essencial da aplicação da pena, para além da prevenção especial – encarada como a necessidade de socialização do agente, no sentido de o preparar para no futuro não cometer outros crimes – reside na prevenção geral, o que significa «que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto … alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada...». «É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma “moldura” de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas – até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica» (29). «Resta acrescentar que, também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas...» (30). «Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado» (31).
Em suma, a pena concreta será limitada, no seu máximo, pela culpa do arguido. O princípio da culpa dispõe que «não há pena sem culpa e a medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa» (cfr. art. 40º, nº 2, do C. Penal).
Deve ponderar-se, tal como na decisão recorrida, depois de descontada a actuação do arguido concretizada no largo período temporal já aludido e cujo procedimento criminal foi considerado extinto por prescrição, o modo e a enorme gravidade com que decorreram as ofensas, o seu cometimento com dolo directo, a personalidade do mesmo e a ausência de arrependimento e autocrítica da sua parte, tudo a reclamar elevadas exigências de prevenção geral e especial. Ora, tendo em conta as prementes exigências de prevenção geral que, no caso, se fazem sentir relativamente ao crime de violência doméstica – que continua a grassar na nossa sociedade –, a par das também elevadas exigências de prevenção especial impostas pela atitude e personalidade do arguido – com irritabilidade, impulsividade, dificuldades de autocontrolo e em descentrar-se, com rigidez de pensamento e, sobretudo, fraca capacidade de autocrítica – e sopesando também as circunstâncias que depõem a seu favor, designadamente a de não ter sido anteriormente sujeito a qualquer condenação penal e a de, segundo tudo indica, ter melhorado a sua integração no meio social em que actualmente se insere, concluímos que a imposição da pena de 3 anos e 6 meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica – correspondente à média da moldura abstracta deste – assegura adequadamente tais necessidades, sem exceder a culpa do arguido.
Quanto às demais penas de prisão aplicadas ao arguido, este não concretizou minimamente nas conclusões delimitadoras do objecto do recurso os termos da sua discordância e, não vislumbrando nós quaisquer razões para a sua alteração, entendemos, tal como a 1ª instância, que são as adequadas.
Como estatui o art. 77º do C. Penal, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena, sendo considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente na respectiva medida, que terá como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (não podendo ultrapassar 25 anos) e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Assim, considerando as penas parcelares impostas – 3 anos e 6 meses, 2 anos e 2 meses e 3 meses –, a pena única a impor ao arguido, com base numa avaliação conjunta dos factos e da personalidade do mesmo neles reflectida, há-de situar-se entre o mínimo de 3 anos e 6 meses e o máximo de 5 anos e 11 meses.
No conjunto dos factos em apreço, os atinentes ao mencionado crime de violência doméstica cometido pelo arguido assumem uma especial relevância, por razões imediatamente perceptíveis. Mas, todos os factos apurados, atendendo à natureza dos valores imprescindíveis à vida em comunidade atingidos pelo arguido com as suas condutas, no contexto relacional em que foram praticadas, e as consequentes exigências de prevenção já salientadas, constituem condições, à luz das expendidas ponderações, que acentuam, de forma significativa, a respectiva culpa e que permitem concluir que se mostra claramente exacerbada a necessidade (também) da pena única. Por conseguinte, a pena única a aplicar deverá situar-se em 4 anos de prisão, por se mostrar ajustada nesse patamar.

3.2 O recorrente defende, ainda, que a simples ameaça de pena de prisão é suficiente para que ele se afaste do tipo de condutas pelas quais vai condenado, por se encontrar devidamente inserido na comunidade onde agora reside e não ter uma carreira criminosa, devendo a pena aplicada ser suspensa na sua execução, embora tal suspensão deva ser obrigatoriamente sujeita a um regime de prova – que apoie e promova a sua reinserção social, dando-se-lhe a oportunidade de moldar as suas características pessoais para evitar a prática de novos crimes –, bem como ser condicionada ao pagamento da indemnização aos ofendidos.
Conforme impõe o art. 50º do C. Penal, a questão da suspensão (ou não) dessa pena, aplicada em medida inferior a cinco anos, tem que ser obrigatoriamente abordada, importando averiguar se a prognose de ressocialização é favorável. Com efeito, a execução da pena de prisão aplicada deve ser suspensa se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste o tribunal concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Considerando essa norma a possibilidade de suspensão de execução da pena impõe-se averiguar se é possível, ou não, fazer um prognóstico favorável. A prognose de ressocialização tem por parâmetros a ideia de que, por um lado, a reclusão constitui a última ratio da política criminal, mas, por outro, a de que a comunidade persegue a garantia, a protecção e a promoção dos direitos das pessoas, sem o sentido de missão socializadora através de métodos de coacção próprios do controlo social.
O que significa que deve negar-se a possibilidade de suspensão se os factos provados justificarem sérias dúvidas sobre a capacidade do condenado para compreender a oportunidade de reinserção que a sociedade lhe oferece, ou seja, se o juiz não estiver convicto desse prognóstico (favorável) (32).
Tal como entendeu o Acórdão da Relação do Porto de 25/10/2006 (33), «impõe-se averiguar se é possível, ou não, fazer um prognóstico favorável. Só o prognóstico favorável permite a suspensão da execução da pena de prisão. Não estando quanto a ele convicto o julgador falhará uma exigência legal devendo negar-se a possibilidade de suspensão. Esse é o caso das situações de non liquet».
Não é o que sucede na situação em apreço:
Não se pode abstrair da muito grave e censurável conduta que o arguido adoptou. Também nada nos factos apurados indica que o mesmo, não obstante a moderada posição jurídica adoptada no recurso, tenha já, efectivamente, assumido um sentido autocrítico interiorizado o desvalor das condutas pelas quais vai condenado. Mas, o certo é que, para além de ter, entretanto, decorrido um período considerável desde a prática dos factos, o arguido não vive já com os ofendidos – ponto em que merece especial realce a sua ex-mulher –, não tem antecedentes criminais, encontra-se laboralmente activo e normalmente inserido no meio onde agora reside, mantendo um relacionamento com uma outra mulher.
Ora, a par da ausência de anteriores condenações penais, deve salientar-se que as circunstâncias por último enunciadas têm um significativo peso porque, segundo tudo indica, são importantes condições para o sucesso da sua almejada reinserção, por constituírem estímulos suplementares ao não cumprimento efectivo da pena em que o arguido vai condenado, desde que, tendo em conta a gravidade dos factos em apreço, bem como as consequências sofridas, quer pelos próprios lesados, quer pela comunidade, designadamente com os custos inerentes a este processo, assuma a responsabilidade pelos seus actos, através da reparação dessas consequências, e fique sujeito a regime de prova. Uma vez observados estes desígnios do legislador, também entendemos, tal como o recorrente, que a confiança no sistema ou a consciência jurídica da comunidade não ficarão abaladas com a suspensão da execução da pena de prisão.
Todavia, embora as referenciadas circunstâncias levem a crer que o arguido dispõe, à partida, de algumas condições pessoais essenciais ao êxito do seu processo de reinserção social em liberdade e que as suas apuradas condutas poderão constituir um incidente do seu passado, não fornecendo a sua personalidade uma séria contra-indicação à suspensão da execução da pena, esta dependerá, como se disse, da criação de condições que facultem ao arguido a oportunidade de moldar as suas características pessoais para evitar a prática de novos crimes e da assunção das suas responsabilidades, pela compensação dos danos causados.
Assim, tendo em conta que a medida da pena aplicada ao arguido é superior a três anos, como impõe o nº 3 do art. 53º do C. Penal, deve a suspensão ser acompanhada de regime de prova que desenvolva o respectivo sentido de responsabilidade e facilite a sua reintegração, através da reunião, durante o tempo de duração da suspensão, dos necessários meios de vigilância ao seu comportamento e de apoio, com a principal finalidade de o recuperar, ao nível da sua impulsividade, autocontrolo e irritabilidade. Com efeito, torna-se essencial tal trabalho da comunidade no sentido de o estimular a não recair em comportamentos desviantes. Além disso, nos termos do art. 51º do C. Penal, a suspensão ficará condicionada ao pagamento das quantias reparadoras dos danos patrimoniais e não patrimoniais provocados aos demandantes cíveis, que mencionaremos infra.
Segundo pensamos só o cumprimento de tais condições permitirá fundear o vaticínio de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição, porque, a par dos demais, completam os requisitos para a suspensão da execução da pena, que se prolongará pelo período da mesma, contado desde o trânsito em julgado desta decisão (34).

4. - O quantum da compensação pelos danos não patrimoniais.
O arguido/recorrente também veio pedir uma redução das quantias indemnizatórias por foi condenado, na parte respeitante aos danos não patrimoniais.
A decisão recorrida fixou em € 25.000, o valor dos danos não patrimoniais sofridos pela demandante I. M. em resultado da conduta ilícita do arguido, realçando que, em função desta, a demandante sofreu danos físicos, como hematomas, ferimento no olho direito, que demandou assistência médica, e dores, mas também psíquicos, como vergonha, tristeza, humilhação, angústia, medo, inquietação, receio pela integridade física e pela vida, assim como pela vida dos filhos, sentindo-se ainda dominada por um sentimento de injustiça e de ingratidão, perdendo a alegria de viver e a auto-estima.
Ora, em face da extrema violência utilizada pelo arguido contra o corpo da ofendida e o desrespeito e rebaixamento pela sua pessoa, inclusivamente, perante os filhos e terceiros, manifestados nos factos, a situação económica do arguido, marcada pela prática da pastorícia e da agricultura, fixa-se a reparação dos mesmos no montante de € 20.000 (35).
No que concerne ao montante dos danos fixados ao demandante V. M., dado que a decisão recorrida os fixou no montante de € 2.000, correspondente ao valor do pedido, este Tribunal não pode tomar conhecimento de tal pretensão recursiva. Com efeito, prescreve o art. 400º, nº 2, do C. P. Penal, que «o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada». Ora, o artigo 44º, nº 1, da LOSJ (36), fixou a alçada dos tribunais de primeira instância em € 5.000, estatuindo o disposto no nº 3 da mesma norma legal que a admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção (37).
Consequentemente, impõe-se concluir que, no caso vertente, não pode este Tribunal conhecer do recurso sobre a decisão quanto ao pedido cível, com autonomia relativamente ao recurso relativo à decisão da matéria penal (art. 403º, nºs 1 e 2, als. a) e b), do C.P. Penal), por não se verificarem preenchidos os pressupostos cumulativamente exigidos pelo citado art. 400º, desde logo porque o valor do pedido não ultrapassa a alçada do tribunal recorrido.
*
Decisão:

Nos termos expostos, não se conhece do recurso interposto pelo arguido A. M. na parte relativa ao pedido de indemnização civil formulado pelo demandante V. M. e, julgando-se o recurso, no demais, parcialmente procedente, revoga-se em parte a decisão recorrida e, por consequência:
a) Declara-se extinto, por prescrição, o procedimento criminal respeitante aos factos praticados pelo arguido no período compreendido entre 1986 e 7 de Abril de 2004;
b) Condena-se o arguido, como autor material de um crime de violência doméstica, p. p. pelo art. 152º nº 1, al. a), e nº 2 do C. Penal, na pena de três anos e seis meses de prisão;
c) Em cúmulo jurídico da pena parcelar referida em b) com as demais impostas ao arguido (dois anos e dois meses de prisão e de três meses de prisão), condena-se o mesmo na pena única de quatro anos de prisão;
d) Suspende-se a execução dessa pena única pelo período da respectiva duração, contado desde o trânsito em julgado desta decisão, sendo a suspensão acompanhada de regime de prova e condicionada ao cumprimento da medida de acompanhamento, com os necessários meios de vigilância ao comportamento do arguido e de apoio, com a principal finalidade de o recuperar, ao nível da sua impulsividade, autocontrolo e irritabilidade; para o efeito, deverá a DGRSP fazer juntar aos autos o relatório respeitante a tal acompanhamento com a periodicidade de seis meses; a suspensão fica também condicionada ao pagamento pelo arguido aos demandantes cíveis, no prazo de um ano a contar da data do trânsito desta decisão, dos seguintes montantes: €138,11 (cento e trinta e oito euros e onze cêntimos) à uls, € 20.000 (vinte mil euros) a I. M. e € 6.026,65 (seis mil e vinte e seis euros e sessenta e cinco euros) a V. M.;
e) Mantém-se, no demais, a decisão recorrida.

Sem tributação.
Guimarães, 9/10/2017

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado

1 - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2.ª ed., p. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 8ª Edição, pp. 73 e ss.
2 - Cfr. Germano Marques da Silva, loc. e p. cit..
3 - Cfr. Simas Santos e Leal Henriques, loc. cit., p. p. 80.
4 - Cfr. v. g., o Ac. STJ de 2/2/2011 (p. 308/08.7ECLSB.S1 - Maia Costa): «O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Porém, o vício, terá de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito».
5 - Como assinalam os já mencionados autores Simas Santos e Leal Henriques, (ob. cit., p. 74) este vício existe quando a factualidade dada como provada na sentença é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final ou, por outras palavras, quando a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito (cf. também Germano Marques da Silva, ob. cit., p. 340).
Também o Supremo Tribunal de Justiça vem considerando que o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena e circunstâncias relevantes para a determinação desta -, e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão (entre outros, cfr. Acs sumariados em Sumários de Acórdãos do STJ - Secções Criminais de: 4/10/2006, Proc. n.º 06P2678, em www.dgsi.pt; de 5/9/2007, Proc. n.º 2078/07; e de 14/11/2007, Proc. n.º3249/07).
6 - Cfr. Acs. do STJ de 7/1/2004, Proc. n.º 3213/03, e de 29/4/1992, Proc. n.º 42535.
7 - Nada tem a ver com qualquer de tais vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar o objecto em apreço. Poder-se-á discordar da decisão, como, aliás, o recorrente demonstra ser o caso, mas não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados. A arguição de tais vícios não procede quando fundada em divergências com o decidido, sendo distintos do erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei.
8 - No mesmo sentido se pronunciaram, entre outros, o Ac. do STJ de 06/11/2003 (P. 03P3370), Ac. RL de 10/02/2010 (P. 372/07.6GTALQ.L1-3), Acs. desta Relação de 05/06/2006 (P. 765/05-1) e de 11/06/2012 (P. 317/11.9GTVCT.G1), Acs. da RC de 05/11/2008 (P. 268/08.4GELSB.C1), de 23/02/2011 (P. 83/09.8PTCTB.C1), de 23-01-2013 (P. 18/09.8TAMMV.C1) e, mais recentemente, de 21-11-2016 (P. 247/038PBBGC.G1), Acs. da RP de 18/11/2009 (P. 12/08.6GDMTS.P1) de 02/12/2010 (P. 397/10.4PBVRL.P1) e de 02/12/2010), Acs. da RE de 11/09/ 2012 (P. 109/12.8PALGS.E1) e de 20/11/2012 (P. 186/09.9GELL.E1).
9 - A óbvia vinculação dessa liberdade às regras fundamentais de um estado-de-direito democrático, sobretudo as vertidas na lei fundamental e na do processo penal, não obsta à busca da verdade material. Por ser condição da realização da justiça e da sua própria subsistência, não pode a concretização dessa tarefa, embora exercida com exigência e rigor, tropeçar em exagero ou comodismos, travestidos de juízos matematicamente infalíveis ou de argumentos especulativos e transcendentes, sob pena de essencialmente deixar de o ser e de o julgamento passar à margem da verdadeira, fundamental e íntima convicção dos juízes, com o risco indesejável de, assim, o tribunal abdicar da sua soberana função de julgar em nome da comunidade (cfr. Ac. STJ de 15/6/2000, in CJ(S), 2º/228, sobre a questão da livre convicção).
Mas, ainda a propósito da livre apreciação da prova, convém lembrar o que refere o Prof. F. Dias: «(…) o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida». E acrescenta que tal discricionaridade tem limites inultrapassáveis: «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» – , de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo». E continua: «a «livre» ou «íntima» convicção do juiz ... não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável». Embora não se busque o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, nem por isso o caminho há-de ser o da pura convicção subjectiva. E «Se a verdade que se procura é...uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impôr-se aos outros». E conclui: «Uma tal convicção existirá quando e só quando ... o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável», isto é, «quando o tribunal ... tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse» - Direito Proc. Penal, 1º. Vol., pp. 203/205.
10 - Devendo anotar-se que a falta dessa imediação, sempre imporia a este Tribunal de recurso alguma cautela na afirmação de tal irrazoabilidade. Como se sabe, apesar de as palavras serem importantes, só uma percentagem da nossa comunicação é feita verbalmente. Ora o simples registo audiofónico da prova não permite interpretar, na sua plenitude, as emoções reflectidas nos sinais não-verbais (movimentos corporais ou expressões faciais), designadamente os involuntários e inconscientes, dos depoentes e demais intervenientes. Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, in “Princípios Gerais do Processo Penal”, p. 160, só a oralidade e a imediação permitem o indispensável contacto vivo com o arguido e a recolha deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por um lado, avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabelece-se com o tribunal de 1ª instância, e daí que a alteração da matéria de facto fixada deverá ter como pressuposto a existência de elemento que pela sua irrefutabilidade, não possa ser afectado pelo princípio da imediação.
11 - Posteriormente, também a Lei 19/2013, de 21/02, introduziu novas especificações atinentes ao (mesmo) sexo do “outro”, a relações de namoro, a particularidades da indefesa da vítima e à fiscalização da pena acessória de proibição de contactos e de afastamento da residência.
12 - Como refere Taipa de Carvalho in Comentário Conimbricense, I, pp. 329 a 339.
13 - V. Ac. da RP de 31/1/2001, p. 0041056-in dgsi.pt.
14 - Plácido Conde Fernandes, “Violência Doméstica – novo quadro penal e processual penal”, Revista do CEJ, nº 8, p. 305.
15 - Cfr., designadamente, Hans-Heinrich, Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, Volume II, Bosch, Casa Editorial, S.A., pp. 998-999, e Manuel Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral, I, Editorial Verbo, 1992, pp. 546-547.
16 - J. M. Tamarit Sumalla, in Comentários a la Parte Especial del Derecho Penal, 1996, p. 100.
17 - V., entre outros, os Acs. do STJ 14/11/97, CJ 3º/235, de 5/4/06 (p. 06P468) e de 6/4/06 (p. 06P1167) e da RE de 29/11/05 (p. nº 1653/05-1).
18 - Cfr. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense, p. 332.
19 - Cfr., neste sentido, o Ac. da RC de 3/11/1999, CJ, 5º/123.
20 - In “Tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010.
21 - P. 1340/14.7TAPTM.E1, relatora Ana Brito.
22 - P. 639/08.6GBFLG.G1, relator Fernando Monterroso.
23 - Cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2ª ed., Coimbra Editora, p. 314.
24 - P. 1150/14.1GAMAI.P1- Eduarda Lobo.
25 - P. 862/11.6TAPFR.S1- Santos Carvalho.
26 - No mesmo sentido, o Ac. do STJ de 12-07-2006 (p. 06P1709-Armindo Monteiro), de cujo sumário se extraem os seguintes trechos: «O crime exaurido é uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução, independentemente de corresponderem a uma execução completa do facto, e em que a imputação dos actos múltiplos e sequentes é imputada a uma realização única. Mas a incidência do tempo naquela unicidade não pode deixar de se tomar em apreço, e até comprometê-la mesmo, se decorrer um largo hiato de tempo entre as múltiplas condutas; não já se interceder um momento volitivo a despoletá-las todas, que aglutine as primeiras e subsequentes, ainda dentro daquela volição, hipótese que exclui o concurso real de infracções, nos termos do art. 30.º, n.º 1, do CP. (…) é fundamental discernir se entre os actos (…) é detectável um qualquer elo de ligação objectiva e subjectiva, sob a forma de resolução única que possa unificá-los na mesma conduta. A pluralidade de actos só não determina uma pluralidade de acções típicas na medida em que cada uma delas exprime um puro explodir ou déclancher, mais ou menos automático, da carga volitiva correspondente ao projecto criminoso inicial, ensinando as regras da psicologia que se entre os factos medeia um largo espaço de tempo os últimos da cadeia respectiva já não são a mera descarga dos primeiros, exigindo um novo processo deliberativo.».
27 - Também o nº 3 do artigo 19º do CPP alude aos crimes que se consumam por actos sucessivos ou reiterados, também designados por crimes prolongados, de trato sucessivo ou exauridos.
28 - Conferida, como se disse, pela Lei nº 7/00 de 27/5.
29 - Anabela Miranda Rodrigues, “A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade”, Coimbra Editora, p. 570 e s.
30 - Ibidem, p. 575.
31 - Ibidem, p. 558.
32 - Como realça F. Dias (Direito Penal Português, as consequências jurídicas do crime, p. 344), o que está em causa não é qualquer certeza, mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda, devendo o tribunal estar disposto a correr um certo risco fundado e calculado – sobre a manutenção do agente em liberdade. Só havendo sérias razões para duvidar da capacidade do arguido de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, é que o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada.
33 - Proferido nos autos PCC nº 623/05.1PBMTS.
34 - Cfr. art. 50º nº 5 do C Penal.
35 - A decisão recorrida arbitrou juros contados desde a data da notificação do pedido respectivo, sem esclarecer a data a que o montante da quantia fixada se reportava, para os efeitos previstos no AUJ do STJ nº 4/02, publicado no DR série I-A de 27/6/2002. Todavia, as conclusões delimitadoras do objecto do recurso não incidiram sobre esta particular questão, pelo que a decisão, nesta vertente, terá de ser mantida.
36 - Lei de Organização do Sistema Judiciário aprovada Lei nº 62/2013, de 26/8, em vigor desde 1/09/2014.
37 - Neste caso, em que foi deduzido o pedido cível.