Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
249/19.2T8CBT.G1
Relator: MARIA DOS ANJOS NOGUEIRA
Descritores: CASO JULGADO MATERIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/30/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O caso julgado material ocorre quando a definição dada à relação controvertida se impõe a todos os tribunais quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação)., pois, todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão.
II – Tem por finalidade, obstar a decisões concretamente incompatíveis, que em novo processo o juiz possa validamente estatuir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por anterior decisão e, portanto, desconhecer no todo ou em parte o já reconhecido e tutelado.
III – O que importa não é saber a quem pertence o veículo, mas quem de facto o dirige e dele se aproveita, isto é, quem cria o risco , dado que a finalidade essencial do requisito da direcção efectiva do veículo é afastar a responsabilidade daqueles que, a qualquer título, não tenham o poder efectivo da direcção ou disposição do veículo e, por isso, não criem o risco especial derivado da sua utilização.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

F. M. intentou acção declarativa de condenação contra “Companhia de Seguros X, S.A.”, pedindo a condenação da ré no pagamento à autora da quantia de 5.200,00€ (valor necessário à substituição do veículo TJ), acrescida de juros moratórios calculados desde a citação até efectivo e integral pagamento, bem como a liquidação do valor diário de privação de uso, no montante que se vier a apurar e pelo período que também se apurar, em execução de sentença.

Para tanto, alegou a autora, em síntese que no dia 15 de Outubro de 2016, o seu veículo com matrícula TJ se encontrava parado na oficina denominada Auto C. M., sendo que por volta das 05h, ocorreu um incêndio nessa mesma oficina, com início no veículo Fiat Punto, matrícula MI, segurado na ré, e que, em consequência, o seu veículo no valor de €5.200,00 (cinco mil e duzentos euros), ficou totalmente destruído.
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A Ré contestou, alegando ter sido instaurado o processo n.º 449/18.2T8GMR no Juízo Central Cível de Guimarães, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no qual foram partes C. M. e a ré, em que se discutia, além do mais, a dinâmica e a respectiva responsabilidade pela produção do incêndio, e que, nesse processo, foi proferida sentença, ainda não transitada em julgado, da qual resultou que o veículo MI se encontrava no interior da oficina, na sua parte posterior, que havia sido colocado pelo seu proprietário para tratar de um problema na bomba de água, pelo que requereu a suspensão da instância ao abrigo do disposto no artigo 272.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Alegou, assim, que o proprietário do veículo com matrícula MI não possuía a direcção efectiva do mesmo, mais impugnando os montantes peticionados a título do valor do veículo e pela privação do uso.
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Por despacho proferido a 13.02.2020, foi determinada a suspensão do processo, ao abrigo do preceituado no artigo 272.º, n.º 1 e 3, 1.ª parte do Código de Processo Civil, até ser junta certidão do trânsito em julgado da sentença proferida no âmbito do processo n.º 449/18.2T8GMR.
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Junta a certidão do trânsito em julgado da sentença proferida no âmbito do processo n.º 449/18.2T8GMR e cessada a suspensão do processo, foi designada a realização da audiência prévia e aí considerada a desnecessidade de produção de prova e quanto aos factos alegados por se ter considerado que os que foram dados como não provados se mostram suficientes para apreciar os pedidos.

Assim, deu-se como não provado por força da exceção da autoridade do caso julgado que:
a)Não foi feito qualquer trabalho no veículo com matrícula MI, que se encontrava apenas parado na oficina (Ponto 10 da petição inicial).
b)Ficando o veículo com matrícula MI (segurado na ré) a pernoitar naquelas instalações apenas por mera cortesia do garagista e a pedido do seu proprietário, apenas porque lhe facilitaria a vida deixá-lo (já que a avaria era no depósito da água e teria de ser levado a outro local para reparação) (Ponto 12).
Acrescentando-se que, ainda que resultassem provados os demais factos alegados pela autora, a pretensão da autora seria sempre improcedente, nos termos em que o explanou, julgando verificada a excepção da autoridade de caso julgado material quanto à totalidade dos pedidos formulados pela autora, por força da decisão transitada em julgado no processo n.º 449/18.2T8GMR, que correu termos no Juízo Central Cível de Guimarães – Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, absolvendo a ré da totalidade dos pedidos formulados pela autora.
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II-Objecto do recurso

Não se conformando com a decisão proferida, veio a A. interpor recurso, juntando, para o efeito, as suas alegações, e apresentando, a final, as seguintes conclusões:

1.Não foi produzida qualquer prova testemunhal, pelo que não podia o Tribunal ter dado como não provados os factos sob as alíneas a) e b) do despacho saneador.
2.A falta da produção de prova impede a Recorrente na impugnação da mesma.
3.Logo, a sentença proferida pelo Tribunal à quo padece nulidade, a qual deve ser declarada e a decisão revogada.
4.Quanto ao conhecimento da exceção de autoridade de caso julgado, julgando-a procedente, o Tribunal à quo violou a lei, nomeadamente os artigos 23.º e 6.º do DL 291/2007 de 21 de agosto.
5.De facto, a inexistência de seguro de garagista concede à A. o direito de ser ressarcida pela seguradora contratada pelo proprietário, pois o seguro do proprietário responde sempre na falta dos demais, tal como decorre do disposto nos artigos 23.º e 6.º da Lei do Seguro Automóvel.
6.Perante terceiros lesados (como é precisamente o caso dos autos), o seguro de responsabilidade civil emergente de circulação automóvel responde sempre na falta de seguro do garagista (artigos 23.º e 6.º da Lei do Seguro Automóvel – DL 291/2007).
7.Por natureza, o seguro obrigatório garante inequivocamente a responsabilidade não só do tomador do seguro, como de todo e qualquer legítimo condutor do veículo.
8.Nos termos do artigo 23.º do DL 291/2007 de 21 de agosto, havendo vários contratos de seguro com referência ao mesmo veículo, nos termos do 6.º do DL 291/2007 de 21 de agosto, prevalecerá em primeiro lugar o referido no n.º 3 (o garagista), em segundo lugar o n.º 4 (seguro de automobilista) e só se não existir qualquer daqueles o previsto no n.º 1 do citado artigo 6.º (seguro do veículo).
9.O seguro de responsabilidade civil obrigatória do próprio veículo (contratado pelo proprietário do mesmo) manteve-se sempre em vigor.
10. Nessa medida, mesmo que se considere provada a direção efetiva por parte da oficina, bem como a sua obrigação de segurar, a decisão proferida no processo 449/18.2T8GMR, que correu termos no Juízo Central de Guimarães – Juiz 4, do Tribunal da Comarca de Braga, não pode constituir exceção de autoridade de caso julgado, porque a lei acautela de forma inequívoca o direito à reparação dos danos produzidos pelo risco de circulação de veículo, mesmo quando este tenha sido depositado em oficina para reparação e a mesma não detenha seguro de garagista, respondendo sempre de forma residual o seguro do próprio veículo que causou o dano (cfr. artigo 23.º e 6.º do DL 291/2007 de 21 de agosto).
11. Pelo que, concedido provimento ao presente recurso, deve a decisão proferida pelo Tribunal à quo ser revogada e os presentes autos seguir os seus termos, para apuramento dos danos e condenação da Ré na indemnização devida à A.
Termos em que, decidindo em conformidade, farão V. Exas., Venerandos Desembargadores, a costumada JUSTIÇA!
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A ré veio apresentar as suas contra-alegações, concluindo nos seguintes termos:

a) AlegaaRecorrente que asentençaé nula,porquanto não foi produzida prova suficiente para que o Tribunal se pudesse pronunciar com segurança sobre os factos, dando como não provado que “[a]cresce que, não foi feito qualquer trabalho no veículo com matrícula MI, que se encontrava apenas parado na oficina. (Ponto 10 da petição inicial)” e “[f]icando o veículo com matrícula MI (segurado na ré) a pernoitar naquelas instalações apenas por mera cortesia do garagista e a pedido do seu proprietário, apenas porque lhe facilitaria a vida deixá-lo (já que a avaria era no depósito da água e teria de ser levado a outro local para reparação). (Ponto 12)”.
b) Apesar de invocar a nulidade da sentença, não indica, a(s) norma(s) jurídica(s) violadas, tal como lhe era imposto pelo artigo 639.º, n.º 2, do CPC;
c) Sucede que,a factualidadenão provada supra resulta por força da excepção da autoridade do caso julgado.
d) Na autoridade de caso julgado material o objecto da acção julgada em primeiro lugar constitui pressuposto necessário da decisão de mérito da acção a julgar posteriormente.
e) Ora, o objecto da acção n.º 449/18.2T8GMR prendia-se com o mesmo incêndio em causa nos presentes autos e com a responsabilidade da obrigação de indemnizar do mesmo.
f) In casu, “o efeito da autoridade do caso julgado material resultante no não reconhecimento da direcção efectiva do veículo com matrícula MI pelo seu proprietário, atenta a factualidade provada no âmbito do processo n.º 449/18.2T8GMR, produz efeitos quer quanto à matéria de facto nos presentes autos (e, por isso, se considerou a matéria alegada supra como não provada), quer a nível da interpretação do próprio direito, que acaba por afastar o pressuposto necessário para que pudesse ocorrer a obrigação de indemnizar por parte da ré. Neste sentido, não podia o Tribunal a quo ignorar o alcance dos efeitos prático jurídicos da decisão proferida no processo n.º 449/18.2T8GMR no mérito dos presentes autos. A excepção da autoridade do caso julgado material consubstancia, no caso, uma excepção perentória, de conhecimento oficioso, obstando a que o tribunal conheça do mérito da causa e, por conseguinte, dá lugar à absolvição dos pedidos formulados pela autora (cfr. artigo 576.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil)”, pelo que a decisão em crise não padece de nulidade.
g) Por outro lado, alega a Recorrente que não andou bem o Tribunal ao julgar como verificada a excepção da autoridade de caso julgado material quanto à totalidade dos pedidos formulados pela autora e absolver a ré da totalidade dos pedidos formulados pela autora, porquanto a inexistência de seguro de garagista concede à A. o direito de ser ressarcida pela seguradora contratada pelo proprietário, pois o seguro do proprietário responde sempre na falta dos demais, tal como decorre do disposto nos artigos 23.º e 6.º da Lei do Seguro Automóvel.
h) Sucede que, a causa de pedir e pedido relativamente à ré fundam-se exclusivamente na responsabilidade civil da ré e não na responsabilidade de terceiro, que estando obrigado a contratar seguro, nos termos do art.º 4º, 6º e 7º do Decreto-Lei 291/2007, o não tenha feito.
i) Decidido que a ré não é civilmente responsável pelos danos decorrentes do sinistro (incêndio), não cumpre nesta acção analisar se existia ou não seguro de garagista.
j) Para que a ré pudesse ser condenada a pagar à autora os danos sofridos em consequência do incêndio, teria a autora que alegar e provar a responsabilidade do seu segurado, pelo menos que o mesmo detinha a direcção efectiva do veículo e que não existia seguro obrigatório de garagista, assim como a inexistência, relativamente àquele veículo, de qualquer outro seguro contratado, para além do seguro do proprietário.
k) Por isso, a alegação e prova da inexistência de seguro de garagista é facto essencial que competiria à autora alegar e provar com vista a ser ressarcida pela ré, com base nos citados normativos, como aliás decorre do disposto no art.º 23º do citado diploma, pois o seguro do proprietário só responde na falta dos demais.
l) Acresce que, a jurisprudência vem afirmando que a Lei do Seguro obrigatório não derroga os princípios gerais da responsabilidade civil.
m) Se não impende sobre a o proprietário do veículo a obrigação de indemnizar, por não ter a direcção efectiva do veículo, também não impende sobre a ré a obrigação de indemnizar os danos causados a terceiros por aquele veículo, salvo nos casos excepcionalmente previstos no art.º 15º nº 2 da referida Lei, por específicas razões de protecção à vítima, que aqui não aproveitam.
n) Pois que, o seguro de garagista como decorre dos artºs 4º, 6º, 7º e especialmente do art.º 11º nº 1 al. a) da Lei do Seguro Automóvel, cobre “a obrigação de indemnizar estabelecida na Lei Civil” e, consequentemente, a obrigação de indemnizar com base no risco.
o) Acresce que, no caso em apreço, não se provou que a actuação da garagista foi totalmente alheia à ocorrência do sinistro, uma vez que tal questão também não estava aqui em apreciação, pois não era causa de pedir na presente acção.
p) Destarte, nenhum reparo merece a decisão ora colocada em crise, pelo que deverá a mesma ser mantida na integra.

Termos em que:
Atentos os fundamentos de facto e de direito constantes supra descritos, deverá o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
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O recurso foi recebido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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III - O Direito

Como resulta do disposto nos artos. 608º., nº. 2, ex vi do artº. 663º., nº. 2, 635º., nº. 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem das conclusões que definem, assim, o âmbito e objecto do recurso.
Deste modo, e tendo em consideração as conclusões acima transcritas cumpre, para além da apreciação da nulidade arguida, decidir sobre a excepção de autoridade do caso julgado, se se verifica e se é aplicável no caso dos autos.
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A - Fundamentação de facto

- a materialidade jurídico-processual constante do relatório desenvolvido no ponto I.
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B – Fudamentação Jurídica

Começa a A./Recorrente por defender que o tribunal a quo não podia ter dado como não provados os factos elencados nas alíneas a) e b), impedindo a falta de produção de prova a sua impugnação, pelo que conclui padecer a sentença de nulidade.
Contrapõe a parte contrária que não foi indicada a norma jurídica violada, como o impõe o art. 639.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil.
Ora, como se dispõe nesse preceito, sob a alínea a), ‘versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar as normas jurídicas violadas’.
Pese embora seja possível sanar essa omissão por via da faculdade concedida no n.º 3, desse preceito, o facto é que só se estaria impedido de impugnar a decisão relativa à matéria de facto, caso esta tivesse sido fixado com recurso à produção de prova, o que não se verificou.
Na verdade, na decisão proferida considerou-se a matéria de facto alegada no proc. 449/18.2T8GMR que não se logrou provar e que na presente acção servia de base à causa de pedir invocada para fundamentar o direito considerado aplicável, mais se apontando a circunstância de a demais factualidade não ser suficiente para julgar procedente o pedido.
É isso precisamente que importa decidir em primeira linha, ou seja, saber quais os efeitos a esse nível resultantes do trânsito em julgado da referida decisão quanto a tais factos, por forma a apurar se se torna, ou não, despicienda a produção de prova e bem assim se é possível, ou não, sem mais, apreciar a acção como o fez o tribunal a quo.
De qualquer das formas, o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC.
Reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC.
Segundo o ensinamento de Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1981, pp. 144-146, «(…) quando o juiz tome conhecimento de factos de que não pode servir-se…não comete necessariamente a nulidade da 2.ª parte do art. 668.º. Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão (…) uma coisa é o erro de julgamento, por a sentença se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se, outra a nulidade de conhecer questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento. Por a sentença tomar em consideração factos não articulados, contra o disposto no art. 664.º, não se segue, como já foi observado, que tenha conhecido de questão de facto de que lhe era vedado conhecer».
Perante o exposto, julgamos, pois, não se verificar a intitulada nulidade arguida pela A./Recorrente.
No que respeita ao conteúdo e alcance do caso julgado, estabelece o art. 619.º, n.º 1 do C. P. Civil que: «Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida de mérito da causa, a decisão sobre a relação jurídica material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º ».
Segundo a noção dada por Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, 304, o caso julgado material, «consiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão».
É imposto por razões de certeza do direito, mas, sobretudo, de segurança das relações jurídicas.
Tem por finalidade, obstar a decisões concretamente incompatíveis (que não possam executar-se ambas sem detrimento de alguma delas), a que em novo processo o juiz possa validamente estatuir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por anterior decisão e, portanto, desconhecer no todo ou em parte os bens por ela reconhecidos e tutelados.
E, enquanto a excepção do caso julgado constitui a sua vertente negativa, obstando a que se discuta no processo o que já foi antes decidido, a autoridade do caso julgado encerra a vertente positiva, determinando que no segundo processo se acate o que foi decidido no primeiro.
Acontece que, enquanto que alguns doutrinadores, designadamente para Alberto dos Reis (Código de Processo Civil, Anotado, Vol. III, 3ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, pág. 139), para Lebre de Freitas (“Revista da Ordem dos Advogados”, n.º 66, Dezembro de 2006, pág. 1514) e para Remédio Marques (“Acção Declarativa à Luz do Código Revisto”, Coimbra Editora, 2007, pág. 447), defendem que o caso julgado, só se forma, em princípio, sobre a decisão contida na sentença, outros há, como Castro Mendes (“Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil”, pág. 152 e segs.) e Miguel Teixeira de Sousa (“Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, págs. 578 e 579), que defendem uma concepção mais ampla do caso julgado.
Na esteira desta última doutrina, afirmou-se, no acórdão do STJ, de 22.02.2018 (revista n.º 3747/13.8T2SNT.L1.S1, acessível na dgsi), que “a autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em acção anterior cujo objecto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objecto de uma acção posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa» e abrange, «para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado».
É também este o entendimento seguido pela nossa jurisprudência, conforme decorre do Acórdão do STJ, de 02.03.2010 (revista nº 690/09.9YFLSB), onde se afirma que «a problemática do respeito pelo caso julgado coloca-se, sobretudo, a nível da decisão, da sentença propriamente dita e, quando muito, dos fundamentos que a determinaram, quando acoplados àquela», pelo que «os fundamentos de facto, nunca por nunca, formam, por si só, caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente».
Entendimento este perfilhado no Ac. do STJ, respeitante ao Proc. 3811/13.3TBPRD.P1.S1, de 17-05-2018, ao concluir que o caso julgado resultante do trânsito em julgado da sentença não se estende aos factos aí dados como provados para efeito desses mesmos factos poderem ser invocados, isoladamente, da decisão a que serviram de base.
Como bem se explica nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa In “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, págs. 580, «os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado», porquanto «esses fundamentos não valem por si mesmos, isto é, não são vinculativos quando desligados da respectiva decisão, pelo que eles valem apenas enquanto fundamentos da decisão e em conjunto com esta».
Pela decisão exclui-se as situações contraditórias com a que por ela são definidas, não sendo, assim, admissível acção que possa levar a solução incompatível.
Como tal, a reapreciação, no essencial, do mesmo conjunto de factos concretos trazidos ao tribunal numa segunda acção não pode ter lugar quando a apreciação das questões preliminares que constituem antecedente lógico necessário da parte dispositiva da decisão tenham sido já alvo de apreciação anterior já transitada em julgado.
Ora, no presente caso, na anterior acção proposta pela pessoa que explora a oficina de automóveis contra a Companhia de Seguros X, S.A., para quem o proprietário da viatura MI havia transferido a sua responsabilidade civil, em que se pedia a condenação desta a ressarci-la dos danos resultantes do incêndio ocorrido na dita oficina devido ao curto-circuito verificado na referida viatura que se encontrava aí estacionada, julgou-se a mesma improcedente, por, em suma, se ter considerado que era o garagista que detinha sobre a referida viatura os poderes de facto e direcção efectiva da mesma, inexistindo entre o dono e o garagista uma relação de dependência ou de comitente/comissário, o que afastava a imputação da responsabilidade do dono do veículo e, consequentemente, da seguradora.

Para assim se decidir teve-se em conta o facto de se ter logrado provar, entre o mais, que:
- ‘No dia 15 de Outubro de 2016, pelas 05:00, ocorreu um incêndio na oficina referida em 1), que resultou na respectiva destruição’ (facto 2);
- ‘No interior da oficina, estacionado na sua parte posterior, encontrava-se o veículo Fiat Punto com a matrícula MI, que havia ali sido colocado pelo seu proprietário para tratar de um problema na bomba de água’ (facto3);
- ‘À chegada dos Bombeiros Voluntários, a oficina encontrava-se completamente tomada pelas chamas, que deflagravam no seu interior, devido às viaturas e aos produtos inflamáveis (pneus, óleos) que se encontravam também no interior? (facto 4);
- ‘O incêndio adveio de sobrecarga eléctrica ocorrida no interior do veículo Fiat Punto referido em 3)’ (facto 14).
Daqui decorre, à semelhança do que foi referido, não se encontrar o veículo de matrícula MI, apenas parado na oficina por mera cortesia do garagista e a pedido do seu proprietário, apenas porque lhe facilitaria a vida deixá-lo aí, já que a avaria era no depósito da água e teria de ser levado a outro local para reparação.
De qualquer das formas, ainda que tal fosse o caso, sempre se colocaria a questão que foi suscitada no anterior processo e aí decidida sobre quem detinha o poder de facto e direcção efectiva da viatura.
Neste sentido, não podia o Tribunal ignorar o alcance dos efeitos prático-jurídicos da decisão proferida no processo n.º 449/18.2T8GMR no mérito dos presentes autos.
Ao assim ter decidido entende a recorrente que o tribunal a quo violou o disposto nos arts. 23.º e 6.º do DL 291/2007, de 21/8, por entender que a inexistência de seguro de garagista lhe concede o direito de ser ressarcida pela seguradora contratada pelo proprietário do veículo.
O art. 6.º, do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, respeitante aos sujeitos da obrigação de segurar, refere no seu n.º 1, como princípio, que a obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, acrescentando-se, no seu n.º 3, que estão ainda obrigados a segurar os garagistas, bem como quaisquer pessoas ou entidades que habitualmente exercem a actividade de fabrico, montagem ou transformação, de compra e ou venda, de reparação, de desempanagem ou de controlo do bom funcionamento de veículos, a segurar a responsabilidade civil em que incorrem quando utilizem, por virtude das suas funções, os referidos veículos no âmbito da sua actividade profissional.
Por sua vez, no art.23.º, desse mesmo diploma, a que alude a recorrente, respeitante a uma situação de pluralidade de seguros, dipõe-se que “n[N]o caso de, relativamente ao mesmo veículo, existirem vários seguros, efectuados ao abrigo do artigo 6.º, responde, para todos os efeitos legais, o seguro referido no n.º 5, ou, em caso de inexistência deste, o referido no n.º 3, ou, em caso de inexistência destes dois, o referido no n.º 4, ou, em caso de inexistência destes três, o referido no n.º 2 do mesmo artigo, ou, em caso de inexistência destes quatro, o referido no n.º 1 do mesmo artigo”.
Como se expressou no Acórdão do STJ, de 21.04. 2009 (proc. nº. 1550/06.0TBMTJ.S1), publicado in www, dgsi.pt., o legislador entendeu equiparar o trânsito do veículo quando utilizado no desempenho das actividades profissionais contempladas no nº 3 do anterior art. 2.º, do DL 522/85, de 31/12, a que corresponde o actual art. 6.º citado, ao da circulação em circunstâncias normais, obrigando o pontual detentor da direção efectiva ao mesmo regime de seguro obrigatório do proprietário.
O que tudo significa, que a obrigação de efectuar e manter em vigor um contrato de seguro de responsabilidade civil não tem que recair necessariamente sobre o proprietário do veículo, pois como refere Vaz Serra, in estudo publicado no BMJ, nº 90, «o que importa não é saber a quem pertence o veículo, mas quem de facto o dirige e dele se aproveita, isto é, quem cria o risco », salientando que «a finalidade essencial do requisito da direcção efectiva do artigo 503.º, n.º 1 do C. C, é afastar a responsabilidade daqueles que, a qualquer título, não tenham o poder efectivo da direcção ou disposição do veículo e, por isso, não criem o risco especial derivado da sua utilização» - cfr. In, RLJ, ano 109, pág. 163.
No mesmo sentido, ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, in, Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª edição revista e actualizada, pág. 486, que « a fórmula (…) usada na lei - ter a direcção efectiva do veículo – destina-se a abranger todos aqueles casos em que, com ou sem domínio jurídico, parece justo impor a responsabilidade objectiva, por se tratar das pessoas a quem especialmente incumbe, pela situação de facto em que se encontram investidas, tomar as providências para que o veículo funcione sem causar danos a terceiros. A direcção efectiva do veículo é o poder real (de facto) sobre o veículo e constitui elemento comum a todas as situações referidas, sendo a falta dele que explica, em alguns dos casos, a exclusão da responsabilidade do proprietário».
De igual modo, vem sendo entendido pela jurisprudência dos nossos tribunais que a «direcção efectiva de um veículo não depende do domínio jurídico sobre este, podendo existir sem esse domínio, da mesma forma que tal domínio pode existir sem ela, pois essa direcção, intencional e expressamente qualificada pela lei como efectiva, se identifica com o poder real (de facto) sobre o veículo em causa» - Cfr., entre muitos outros o Ac. STJ, de 28.09.2004 (proc. 04A2445), publicado in wwwdgsi.pt.
Daí afirmar-se, no supra citado Acórdão do STJ, de 21.04. 2009, que «tudo está, pois, em saber quem tinha a direcção efectiva do veículo aquando do embate – se o proprietário; se o garagista».
O que acaba por levar precisamente à questão apreciada e decidida na anterior acção (processo n.º 449/18.2T8GMR, que correu termos no Juízo Central Cível de Guimarães – Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga) sobre quem tinha a direcção efectiva do veículo, abrangida pela força da autoridade de caso julgado material.
Acresce que o facto de existir um seguro, por não celebrado um outro pelas entidades obrigadas a tal nos termos da lei, não origina automaticamente, sem mais, a sua responsabilização, sem a verificação dos respectivos pressupostos, que sustentem a obrigação de indemnizar.
Assim, por se ter já decidido que o proprietário do veículo com matrícula MI não tinha a direcção efectiva do mesmo, tem de se manter a decisão proferida, dado que, caso assim não se entendesse, correr-se-ia o risco, que se pretende afastar por via da excepção apreciada, de proferir uma segunda decisão contrária à já proferida, com trânsito em julgado.
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IV- DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os Juízes na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar o recurso improcedente, mantendo, em consequência, a decisão proferida.
Custas pela A./Recorrente.
Registe e notifique.
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Guimarães, 30.9.2021
(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária sem observância do novo acordo ortográfico, a não ser nas transcrições efectuadas, e é por todos assinado electronicamente)

Maria dos Anjos S. Melo Nogueira
Desembargador José Carlos Dias Cravo
Desembargador António Manuel Antunes Figueiredo de Almeida