Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
181/19 0T8CBC-A.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: CONVOLAÇÃO DO PEDIDO
LAPSO DE ESCRITA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
.1- Para se classificar como lapso de escrita que permita a correspondente retificação, nos termos do artigo 249º do Código Civil, é mister que: a) que seja patente que o declarado não corresponde ao pretendido; b) que seja evidente aquilo que se quis afirmar; c) que essa desconformidade entre o declarado e o pretendido resulte da própria declaração ou das circunstâncias em que a mesma teve lugar.

2-Hoje predomina já a ideia que é possível convolar a qualificação da pretensão material deduzida ou a qualificação do pedido, atendendo ao efeito prático-jurídico que resulta do pedido, ao abrigo do artigo 293º do Código Civil, mas apenas se se mantiverem, pelo menos no essencial, os seus efeitos e fins, se se não se agravar a posição do demandado ou de terceiros e se se verificar coincidência entre os interesses tutelados por ambos os pedidos.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

Petição inicial

O Autor peticionou a prolação de sentença que:

a)- declare o Autor como dono e legítimo possuidor da raiz ou nua propriedade do prédio supra melhor descrito no art° 1 ° da petição inicial;
b)- declare o Autor proprietário e legítimo possuidor da água que nasce e que afluí à mina identificada nos art°s 150 a 18° desta p.i.;
c)- declare o Autor titular do direito de superfície da mesma mina, e do poço de vigia identificado nos art°s 15° a 18°, nos termos do art° 1524, nº 2, do C.C.;
d)- se condenem os Réus a reconhecer os direitos supra declarados e a reconstruir a galeria da mina e o poço de vigia;
e)- se condenem os Réus a absterem-se da prática de quaisquer atoas que perturbem os aludidos direito do A;

Invoca, para tanto e em síntese, que é proprietário de um prédio e para o regar e limar utiliza há mais de vinte anos, na totalidade, a água de uma mina que tem a nascente no prédio do Réu e o percorre pelo interior em galeria subterrânea, tendo boca de entrada e saída no prédio do Autor. Depois de sair da mina a água cai numa poça com lavadouro e pocinheiro; o Autor sempre usou a água e a mina à vista de todos, sem oposição nem interrupção, na convicção firme de que está no exercício do seu direito de propriedade, no pleno exercício de servidão de mina sob o solo do prédio do Réu e do poço de vigia, bem como da servidão de aceso ao poço de ar, luz e vigia, tendo adquirido por usucapião os direitos de água e servidões.

Contestação

Foi apresentada contestação, na qual, em síntese, os Réus impugnaram o invocado e apresentaram exceções, remetendo para a simulação, caso julgado e ilegitimidade.
Foi proferido despacho que convidou o Autor a pronunciar-se sobre a exceção dilatória de ineptidão parcial da petição inicial, por falta de falta de causa de pedir, explanando, em súmula, que o Autor pretende que seja declarado titular de um direito de superfície sobre a mina, mas defende nessa peça que é titular de um “direito de servidão de mina” sob o solo do prédio dos réus e do poço de vigia, assim como titular de um “direito de servidão de acesso ao poço de ar, luz e vigia para entrada e saída de pessoas, luz e ar”, direito que se não confunde com um direito de superfície.
O Autor respondeu aceitando, tudo em resumo, que “É incontornável de que, no pedido formulado sob a alínea c),o Autor faz uma infeliz e incorreta qualificação jurídica dos factos”, mas defendendo que o tribunal deve convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, porquanto tal não representa o julgamento de objeto diverso do peticionado.
Ao que o Réu respondeu, em esboço, que “os factos alegados não são os necessários e suficientes para, ainda que provados, serem reconhecidos tais direitos”.

Despacho saneador

Foi proferido despacho que, com fundamento no artigo 609º do Código de Processo Civil, concluiu que não é possível efetuar a convolação peticionada, por o tribunal não poder proceder ao reconhecimento de um direito que não é sequer pedido pelo autor e em consequência declarou “a ineptidão parcial da petição inicial, mais concretamente na parte relativa aos pedidos c), d) e e), sendo que em relação a estes dois últimos só na parte relativa ao pedido de condenação dos réus no reconhecimento da titularidade, da parte do autor, de um direito de superfície da mina e do poço de vigia identificado nos artigos 15.º a 18.º da petição inicial e de se absterem da prática de quaisquer atos que perturbem tal direito e, em consequência, decide-se absolver parcialmente os réus da presente instância, mais concretamente em relação a tais segmentos do pedido formulado na petição inicial”.
É desta decisão que o Recorrente apela, pugnando para que se revogue o despacho recorrido, ordenando a prossecução dos autos para apreciação integral dos pedidos formulados nas alíneas c), d) e e) e respetiva causa de pedir, apresentando as seguintes

conclusões:

1. Ao abrigo do art.º 644.º, n.º 1, al. b) do CPC, vem o presente recurso interposto do douto despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, declarou a ineptidão parcial da petição inicial, na parte relativa aos pedidos c), d) e e), sendo que em relação a estes dois últimos só na parte relativa ao pedido de condenação dos réus no reconhecimento da titularidade, da parte do autor, de um direito de superfície da mina e do poço de vigia identificado nos artigos 15.º a 18.º da petição inicial e de se absterem da prática de quaisquer actos que perturbem tal direito e, em consequência, absolveu parcialmente os réus da instância;
2. O que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objecto diverso do peticionado;
3. No caso dos autos é ainda patente que o pedido formulado na alínea c)enferma de manifesto lapso de escrita, em que o A. escreve uma coisa mas claramente quis escrever outra, uma vez que nos artigos 24.º, 25.º e 26.º da petição inicial (na sequência do alegado nos artigos 18.º a 23.º), expressamente alega que está “24.º - (…) no pleno exercício do direito de servidão de mina sob o solo do prédio dos RR. e do poço de vigia”, e “25.º - Bem como da servidão de acesso ao poço de ar, luz e vigia, para entrada e saída de pessoas, luz e ar, concluindo até que “26.º - (…) adquiriu, há muito, tais direitos de água e servidões, por usucapião, que expressamente invoca”;
4. O que está verdadeiramente em causa nos autos é a questão de saber se o Tribunal está, ou não, vinculado à subsunção jurídica que o A. verte no pedido formulado na petição inicial sob a alínea c), em face do alegado nos artigos 18.º a 26.º da petição inicial;
5. O art.º 5.º, n.º 3 do CPC responde à questão negativamente;
6. Ao julgar verificada a exceção dilatória de ineptidão da petição inicial e ao absolver os RR. dos pedidos formulados nas alíneas c), d) e e) da petição inicial, o douto despacho recorrido viola os art.os 5.º, n.º 3 do CPC e 249.º do Código Civil.

II- Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas forem de conhecimento oficioso ou se tornarem relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.
É certo que o Recorrente apresenta como traves mestras do seu recurso fundamentos que são entre si incompatíveis: ou bem que ocorreu lapso de escrita, facilmente sanável e não há qualquer necessidade de convolar o pedido, ou bem que não ocorreu tal lapso, justificando-se então discutir se o tribunal pode proceder à convolação requerida. No entanto, é ainda possível entender que a segunda questão é invocada como subsidiária da primeira.

Assim, são as seguintes as questões a apreciar:

.1- se ocorreu lapso de escrita patente na petição inicial que permita a sua correção e em caso negativo,
.2- se se pode convolar o pedido formulado de reconhecimento do direito de superfície para o reconhecimento de um direito de servidão.

III- Fundamentação de Facto

A matéria de facto relevante para a decisão já se encontra relatada supra, visto que tem natureza meramente processual.

IV- Fundamentação de Direito

.1- se ocorreu lapso de escrita patente na petição inicial que permita a sua correção

“O simples erro de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito a retificação desta”, reza o artigo 249º do Código Civil.
Este princípio também opera para as peças processuais, nomeadamente para as sentenças e despachos, não obstante a força que o caso julgado lhes concede. Assim, o disposto no artigo 613º nº 1 a 3 do Código de Processo Civil é manifestação da necessidade de se proceder a uma leitura corretiva do que foi escrito, quando da declaração ou suas circunstâncias se revele manifesto o que se pretendia dizer. (1)
Desta forma e por maioria de razão, tem também aplicação para as demais peças processuais.
Com efeito, dúvidas não há na jurisprudência e na doutrina que também as peças processuais apresentadas pelas partes devem ser lidas na sua substância, quando delas ou das suas circunstâncias resulta evidente que a sua forma não corresponde ao que se quis expressar e se compreende o que se quis dizer. Quando tal ocorra não se está a violar o princípio da preclusão ou da estabilidade da instância, por resultar do expresso na peça que padece do lapso o que se pretendia afirmar.
Importa, pois, esmiuçar um pouco os pressupostos para que ocorra tal correção, para se verificar se os mesmos se preencheram, sendo que esta questão se mostra simples, por consensual na doutrina e jurisprudência.
Em primeiro lugar, é necessário que seja patente que ocorreu lapso na declaração, que o declarado não correspondia ao pretendido.
Em segundo lugar, é necessário que seja evidente aquilo que se quis afirmar.
O erro material é, pois, tratado como uma sub-espécie de erro-obstáculo, que terá de ser constituído por um lapso ostensivo, não podendo existir fundada dúvida sobre o que se quis declarar”. (2)
Em terceiro lugar é necessário que essa desconformidade entre o declarado e o pretendido declarar resulte da própria declaração ou das circunstâncias em que a mesma teve lugar.
Como se explanou no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, de 05/24/2005, no processo 480/05, (sendo este e todos os demais acórdãos citados sem menção de fonte, consultados in dgsi.pt com a data na forma ali indicada: mês/dia/ano): “De entre as diversas modalidades de erro apenas interessa para o caso, o chamado erro de escrita em que há, na verdade, uma divergência entre o que se quer e o que se diz. Esse erro é corrigível em face do contexto ou das circunstâncias da declaração: ao ler o texto logo se vê que há erro e logo se entende o que o interessado queria dizer. Essa modalidade de erro respeita à interpretação e daí que o acto devidamente interpretado em função do seu contexto (elemento sistemático) e circunstâncias (elementos extraliterais) deva permanecer válido com o sentido de que, afinal, é portador. Em tais casos, o acto vale, com o seu verdadeiro sentido, sendo irrelevante o erro material Cfr. J. Dias Marques, Noções Elementares de Direito Civil, 1977, págs. 82 e 83.De qualquer modo tal erro só pode ser rectificado se for ostensivo, evidente e devido a lapso manifesto Cfr., neste sentido, Antunes Varela, Cód. Civil, anotado, 1ª edição, I Volume, pág. 161, Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1973, pág. 563, e Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 1ª edição, pág. 35, e Heiriich Ewald Horster, A Parte Geral do Cód. Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, 1992, pág. 566..
Façamos, pois, uma análise da petição inicial e do seu contexto, a fim de se perceber se ocorreu ou não o invocado lapso manifesto.
Na petição inicial pediu-se, além do mais, que se declarasse “o A. titular do direito se superfície da mina e do poço de vigia identificado nos artigos 15 a 18º, nos termos do art.1524,nº 2 do CC.”
E na restante petição inicial, sobre esta matéria, o Autor nunca mencionou qualquer direito de superfície, antes escreveu, reproduzindo-se apenas o essencial, relativo a esta mina e poço: “Encontrando-se a mina feita em galeria térrea, no subsolo do prédio doso RR., com um poço de limpeza, vigia e ar, que se destina à necessária vigia” (artigo 18ºda petição inicial). “Toda a água que nasce e afluiu à dita mina, está na posse, uso e fruição do A. e seus antecessores, que sempre a usaram para regar as culturas no verão e para limar as ervas, de inverno, no prédio identificado no art° 1°, há mais de 15 e 20” (artigo 19º da petição inicial). “Bem como, há mais de 15 e 20 anos sempre usaram a galeria da mina, para recolher e derivar tal água;” (artigo 20º da petição inicial), “Limpando a mina de terras e pedras caídas, desobstruindo a nascente, acompanhando e limpando o caminho da água, quer através do poço de vigia, quer através da entrada e saída da boca da mina.” (artigo 22º da petição inicial)

E conclui:

“Assim, o A. sempre usou a referida água e a referida mina, à vista de toda a gente, com conhecimento de todos, sem oposição nem interrupção, na convicção firme de que está, como sempre esteve, bem como todas a gente, no exercício pleno e exclusivo do seu direito de propriedade sobre tal água;
E no pleno exercício do direito de servidão de mina sob o solo do prédio dos RR., e do poço de vigia”; (artigo 23º e 24º da petição inicial).
“Bem como da servidão de acesso ao poço de ar, luz e vigia, para entrada e saída de pessoas, luz e ar.
Assim, já adquiriu, há muito tais direitos de água e servidões, por usucapião, que expressamente invoca”(artigo 24º e 25º da petição inicial).
Desta forma, é evidente que o Autor ao longo de toda a petição inicial (com exceção da alínea do pedido que pretende seja corrigido) afirma, reafirma e reitera que o seu direito sobre a mina e poço é um direito de servidão. Mais é patente que em nenhum artigo da petição inicial direta ou indiretamente aflora qualquer direito de superfície, sendo tal palavra omissa, bem como a referência ao seu conteúdo.
Como tão se descreveu no despacho recorrido “Todavia, certo é que, ao longo da petição inicial, mais concretamente de toda a causa de pedir, não é referido expressamente o peticionado direito de superfície, nem é alegada qualquer factualidade que suporte tal pedido. A verdade é que o autor alega, ao invés, ser titular de um “direito de servidão de mina” sob o solo do prédio dos réus e do poço de vigia, assim como titular de um “direito de servidão de acesso ao poço de ar, luz e vigia para entrada e saída de pessoas, luz e ar”, sustentando que adquiriu tais direitos, para além do direito de propriedade sobre a água, por usucapião, praticando actos de posse na convicção de que exercia “um direito de servidão de mina sob o solo do prédio dos réus e do poço de vigia” (artigo 24.º da petição inicial).”
Poderia entender-se que o facto de ambas as palavras se iniciarem com a mesma letra e a clareza na discrepância em que incorre o pedido face ao invocado no restante articulado, aconselhariam a que se entendesse que se estaria perante um simples lapso de escrita.
No entanto, logo se realça que no requerimento que foi convidado a apresentar sobre esta matéria o Autor nem sequer referiu a existência de tal lapso, assumindo que fez “uma infeliz e incorreta qualificação jurídica dos factos”
Por outro lado, a consideração de se estar perante um simples lapso de escrita no petitório tem que ser afastada, perentoriamente, face à própria reiteração dessa discrepância, desta vez por ali se ter também incluído remissão para norma respeitante ao direito de superfície (o artigo 1524º do Código Civil).
Assim, impossível é atribuir a menção de um direito de superfície, no petitório, a um simples lapso de escrita, visto que este foi reiterado, na sua indicação, pela menção de artigo a ele respeitante, sendo certo ainda, que o seu Autor, chamado a pronunciar-se sobre essa desconformidade, aceitou-a como de sua vontade, pedindo apenas a sua convolação.

.2- se se pode convolar o pedido formulado de reconhecimento do direito de superfície para o reconhecimento de um direito de servidão

A questão da possibilidade de alteração do pedido, tendo em conta a pretensão material pretendida pela parte, tem sido muito discutida no âmbito dos poderes oficiosos do tribunal. Sobre este tipo de convolação foram já proferidos dois acórdãos que visaram definir uma posição uniforme da jurisprudência, sobre duas questões concretas, bem dissemelhantes da presente. O mais recente atribui ao juiz o dever de corrigir oficiosamente o erro de qualificação jurídica das consequências da procedência da impugnação pauliana, convolando o pedido de declaração de nulidade ou a anulação do ato jurídico impugnado para a declaração de ineficácia (Acórdão Uniformizador 3/2001, proferido em 2001/01/23, no âmbito do processo nº 994/98, publicado no Diário da República n.º 34/2001, Série I-A de 2001-02-09) e o menos recente ( o Assento n.º 4/95, Diário da República n.º 114/1995, Série I-A de 1995-05-17) determina que a parte seja condenada na restituição do objeto do pedido, com base no conhecimento oficioso da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade.
No entanto, daqui não se pode encontrar como regra a possibilidade de se proceder a uma alteração da pretensão expressa pelas partes no âmbito do processo, mesmo que a seu pedido, mas sem o acordo de ambas.
Como é consabido, a alteração do pedido na falta de acordo só é admissível para os casos e m que o autor pretenda reduzir o pedido ou ampliá-lo (até ao encerramento da discussão em 1.ª instância), se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo, nos termos do artigo 265º do Código de Processo Civil, sendo claro para todos que o presente caso não se engloba em qualquer uma destas duas circunstâncias.
É certo que se tem defendido que os princípios que enformam o Código de Processo Civil, como princípio do pedido, se têm que aplicar com alguma flexibilidade (sem se afastar o devido rigor). (3) Mesmo o princípio da gestão processual, com consagração expressa no art.º 6.º do Código de Processo Civil, o qual se concretiza como um poder-dever do juiz, permitindo maior flexibilização do processo, ainda tem no Código de Processo Civil como fronteira o princípio do dispositivo, como decorre do teor desta norma (“sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes”).
O princípio do dispositivo não pode ser totalmente ignorado, porque central no Código de Processo Civil, tendo em conta que o mesmo é elemento preponderante no nosso sistema jurídico, intimamente ligado ao direito fundamental da autonomia privada, direito à ação e ao contraditório.
O princípio da estabilidade da instância, negando que o pedido seja alterado sem limites, protege o respeito pelo contraditório, impedindo que a parte contrária seja surpreendida com pretensões com que não contava, nem podia contar e para as quais não teve a possibilidade de se pronunciar e apresentar elementos probatórios. Ora, o princípio do contraditório é também base no âmbito de um Estado de Direito Democrático, como resulta dos artigos 20º e 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa.
Tem-se, no entanto, como se viu, vindo a aceitar que é possível a alteração formal do pedido, desde que se respeite o seu cerne substancial, porquanto se deve dar prevalência, sempre que possível, à justiça material sob uma justiça formal (sem descurar, obviamente, que a forma é relevante para a alcançar, visto que trazem limitações à desestabilização do processo e as regras que visam trazer segurança aos intervenientes quanto ao processado muito relevantes ao sistema, o que se acabou de exemplificar ).
Mas tornou-se hoje já maioritariamente aceite, na senda dos citados acórdãos, a que acresce diversa jurisprudência e doutrina, que tem a nossa adesão, o princípio que é possível a conversão da causa de pedir ou mesmo a qualificação do pedido, ao abrigo do artigo 293º do Código Civil, nos casos em que se mantêm os seus efeitos e fins, não se agrava a posição do demandado (4) ou de terceiros, e se verifica coincidência entre os interesses tutelados por ambos os pedidos. (5)
Hoje predomina já a ideia que há que reconhecer “que é lícito ao Tribunal convolar para uma qualificação jurídica da causa de pedir diferente da formulada pelo A. (…) mas também uma inovatória qualificação da pretensão material deduzida, cuja identificação não se faz apenas em função das normas e do instituto jurídico invocado pelo A., mas essencialmente através do efeito prático-jurídico que este pretende alcançar” (6).
Da mesma forma, “o que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da ação, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exata caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objeto diverso do peticionado”.
Assim, é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter; mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos do que o A. procurava obter através da pretensão que efetivamente, na sua estratégia processual, curou de formular.” (7) (8)
Importa, pois, verificar se existe a invocada correspondência prática no efeito jurídico pretendido pelo autor no pedido de declaração de um direito de superfície sobre a mina e poço ou de um direito de servidão sobre estes bens e, em caso afirmativo, se tal solução protege os mesmos interesses e não prejudica a posição de outros face ao pedido inicialmente formulado.
De acordo com o artigo 1524º do Código Civil, o direito de superfície consiste na “faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio, ou de nele fazer ou manter plantações”.
Por seu turno, o artigo 1543º do Código Civil define a servidão predial como: “o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente” tendo sido doutrinariamente entendido como o direito do titular de um direito real sobre um prédio a utilizar um prédio alheio para melhor aproveitamento do prédio dominante.” Incidem sobre “quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, suscetíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor”.

Enquanto que para se encontrar uma servidão é mister que haja o aproveitamento do prédio dominante, o direito de superfície não se reporta a outro prédio, sendo um direito como que autossuficiente. O direito e o dever em que a servidão se traduz são atribuídos em função da titularidade dos prédios dominante e serviente e são inseparáveis de tal titularidade, nada disto ocorrendo no direito de superfície.
Estamos, portanto, perante realidades de natureza totalmente diferente, com objetos dissemelhantes, que protegem interesses também divergentes e com modos de extinção não coincidentes, sendo que os sujeitos passivos de um e de outra têm formas totalmente diferentes de poder defender o seu direito de propriedade (coartado) no âmbito de uma e outra figuras, por haver muitas diferenças na sua forma de extinção (cf. artigo 1569º e 1536º do Código Civil).
É tão patente a diferença em substância entre o direito de superfície e a servidão que não lhe encontramos similitude suficiente dos efeitos jurídicos que adviriam do reconhecimento desses direitos.
Enfim, não é possível entender que a substituição no petitório de um direito de superfície por uma servidão não implica a troca de bens e direitos substancialmente diversos, não se reportando, pois, a questão, como o afirma o Recorrente apenas a “saber se o Tribunal está, ou não, vinculado à subsunção jurídica que o A. verte no pedido formulado na petição inicial”.
Tal implicaria, sim, uma total desvirtuação do pedido, no seu conteúdo e efeitos para as partes e terceiros, que é, como vimos, inadmissível.

Tem que improceder o recurso.

V- Decisão

Por todo o exposto, julga-se a presente apelação improcedente mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelo apelante (artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil)
Guimarães, 21 de maio de 2020

Sandra Melo
Conceição Sampaio
Fernanda Proença Fernandes


1. Já neste sentido Alberto dos Reis, cf. Código de Processo Civil, Volume V, Coimbra 1984, pag. 13), sem que se tenha encontrado qualquer doutrina ou jurisprudência que contrarie esta posição.
2. Manuel de Andrade — “Teoria Geral da Relação Jurídica”, n.° 134
3. Cf Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 02/11/2015 no processo 607/06.2TBCNT.C1.S1, acórdão proferido por este Tribunal da Relação de Guimarães em 01/26/2017, no processo 33/10.9TBMUR.G1 e Miguel Mesquita, A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno CPC” RLJ, ano 143º, págs. 134 e segs
4. Mencionando a necessidade de não prejudicar o demandado cf acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11/05/2009 no processo 308/1999.C1.S1 e, indiretamente, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 06/13/2013 no processo 296/09.2TBVRL.P2, salientando que para a convolação se atendeu ao facto da anulabilidade ser um minus relativamente à declaração de nulidade que havia sido pedida.
5. Salientando na impugnação pauliana a impossibilidade de substituir a consequência jurídica face aos interesses protegidos cf acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10/24/2002 no processo 02A2734.
6. Cf cit. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11/05/2009, no processo 308/1999.C1.S1. Posição também esta seguida no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de06/13/2019, no processo1294/17.8T8VCT.G1.
7. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/07/2016, no processo 842/10.9TBPNF.P2.S1.
8. No mesmo sentido acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01/24/2019, no processo 577/13.0TNLSB.L1-6