Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
573/14.0TBCTB.G1
Relator: MARIA JOÃO MATOS
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
ACTO ONEROSO
MÁ FÉ
PROVA
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/03/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
SUMÁRIO (da relatora):

I. O standard (suficiência) de prova é uma pauta móvel, que terá que ser adaptada (embora de forma objectiva) ao concreto litígio em causa (nomeadamente, à natureza dos factos que nele se discutem e terão de demonstrar).

II. Os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo (v.g. a determinação da vontade real do declarante, de uma certa intenção, o conhecimento de dadas circunstâncias) não são, em regra, passíveis de prova directa, mas sim de prova indirecta, a realizar nomeadamente com recurso a presunções judiciais.

III. Sendo as presunções judicias ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, de acordo com as regras da experiência comum, só serão validamente contraditadas se o impugnante demonstrar a não prova do facto base da presunção, ou o carácter ilógico do facto presumido (isto é, o não se mostrar o mesmo sufragado pelas ditas regras da experiência).
IV. Sendo necessário, em matéria de impugnação pauliana, apurar a consciência do terceiro adquirente ao outorgar o negócio impugnado (nomeadamente, do prejuízo que com ele causa aos credores do devedor alienante), e sendo rara a prova directa dessa intenção, deverá o juiz socorrer-se dos comuns e consolidados indícios/presunções aqui vigentes.

V. Entre os indícios consolidados pela doutrina e pela uniforme prática jurisprudencial a que se deverá atender contam-se, nomeadamente: o indício necessitas (agindo o devedor alienante contra a racionalidade económica, nomeadamente face à prévia invocação feita de dificuldades financeiras, com que procurara justificar a sua actuação); o indício omnia bona (alienando o devedor, numa única ocasião ou num curto período de tempo, todo o seu património, ou a parte mais significativa dele para os respectivos credores – desonerada e/ou de maior valor); o indício investimento (inexistindo registo da afectação, pelo devedor alienante, do preço recebido, nomeadamente daquela que ele próprio referira); o indício affectio (escolhendo o devedor alienante como parceiro negocial uma pessoa da sua confiança); o indício pretium vilis (existindo uma efectiva desproporção entre o preço de alienação e o valor de mercado dos bens transferidos); o indício pretium confessus (inexistindo prova do efectivo pagamento do preço, ou de qualquer outra contrapartida, ao arrepio do recebimento declarado no documento de transmissão); o indício subfortuna (não dispondo o terceiro adquirente de rendimentos ou bens próprios que lhe permitam o pagamento do preço, nem o justificando por outro modo); o indício movimento bancário (invocando-se a guarda, e a transmissão física, de quantias monetários para pagamento do preço, cujo volume é desconforme com tais práticas, antes se subsumindo a habituais, ou impostos, movimentos bancários); e o indício retentio possessionis (não exercendo o terceiro adquirente qualquer conduta possessória sobre a coisa adquirida).
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
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I – RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada

1.1.1. Manuel (aqui Recorrente), residente na Avenida …, em Castelo Branco, propôs a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Maria (aqui Recorrida), residente na …a, freguesia de ..., em Viana do Castelo, e contra José (aqui Recorrido), residente na Praça …, freguesia de ..., em Viana do Castelo, pedindo que

· fosse decretada a ineficácia, quanto a si, do actos de compra e venda havidos entre a Ré (Maria), como vendedora, e o Réu (José), como comprador, tendo por objecto um prédio rústico e um veículo automóvel (que melhor identificou);

· e fosse ordenado ao Réu (José) a restituição à Ré (Maria) dos ditos prédio rústico e veículo automóvel, por forma a que ele próprio se pudesse pagar - junto dela - à custa dos mesmos.

Alegou para o efeito, em síntese, que, tendo emprestado à Ré (Maria) a quantia de € 16.700,00, e não lhe tendo sido a mesma restituída até 15 de Abril de 2005, conforme acordado, instaurou contra ela, em 14 de Outubro de 2010, uma acção executiva para pagamento de quantia certa, sendo a quantia então devida de € 20.374,92.
Mais alegou que, no decurso da dita acção, a Ré (Maria) vendeu ao Réu (José) o único prédio de valor e desonerado que possuía, pelo preço declarado de € 2.000,00, bem como um veículo automóvel de marca BMW, actuando ambos com o propósito concertado de frustrarem a garantia patrimonial do seu crédito.
Por fim, o Autor alegou que as ditas vendas impossibilitaram de facto a satisfação integral do seu crédito (ascendendo o mesmo neste momento a € 23.230,76), por a Ré (Maria) não possuir outros bens idóneos para o efeito.

1.1.2. Regularmente citados, os Réus contestaram separadamente.

1.1.2.1. A (Maria) pediu, na sua contestação, que a acção fosse julgada improcedente.

Alegou para o efeito, em síntese, terem as compras e vendas (de prédio rústico e de veículo automóvel) sido realizadas porque necessitava de realizar de imediato dinheiro, por forma a enviá-lo para a sua Filha que residia nos Estados Unidos.
Mais alegou só ter conhecido o Réu (José) na altura em que negociou com ele as ditas compras e vendas, desconhecendo o mesmo se ela própria possuía dívidas ou processos judiciais em curso.
Por fim, a Ré alegou ser proprietária de outros bens, suficientes para o pagamento do crédito do Autor.

1.1.2.2. O Réu (José) pediu, na sua contestação, que a acção fosse julgada improcedente.

Alegou para o efeito, em síntese, só ter conhecido a Ré (Maria) poucos dias antes de concretizarem as compras e vendas (de prédio rústico e de veículo automóvel), tendo-as celebrado apenas para a auxiliar economicamente, desconhecendo ele próprio quaisquer dívidas ou processos pendentes que a mesma possuísse.
Mais alegou que a Ré (Maria) seria proprietária de outros bens, suficientes para o pagamento do crédito do Autor.

1.1.3. Em sede de audiência prévia, foi proferido despacho: saneador (certificando tabelarmente a validade e a regularidade da instância); fixando o valor da acção em € 10.000,00; definindo o objecto do litígio («A (in) eficácia dos contratos de compra e venda que tiveram por objecto o prédio rústico sido em ..., (…) e o veículo automóvel marca BMW, matrícula PZ») e enunciando os temas da prova («a) Ao vender o veículo e o prédio a ré Maria pretendeu subtrair tais bens à satisfação do crédito da autora», «b) ao celebrarem os referidos contratos de compra e venda ambos os réus agiram com o propósito concertado entre si de ocultar património transmitido, a fim de este não ser afecto à satisfação do crédito do autor», «c) Aquando da celebração dos referidos contratos o réu José tinha conhecimento da existência da dívida da ré Maria para com o autor», e «d) os demais bens existentes no património da ré Maria são suficientes para satisfazer o crédito do Autor»); e apreciando os requerimentos probatórios das partes (nomeadamente, deferindo a realização de uma perícia de avaliação aos bens penhorados pelo Autor à Ré, e aos bens vendidos por esta ao Réu), bem como designando dia para realização da audiência final.

1.1.4. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, julgando a acção improcedente, lendo-se nomeadamente na mesma:

«(…)
Pelo exposto, decide-se julgar a presente acção totalmente improcedente, e, em consequência, absolvo os Réus do pedido.
Custas pelo Autor ( art.º 527º, nº 1 e 2 do CPC).
(…)»
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1.2. Recurso

1.2.1. Fundamentos (do recurso do Autor)
Inconformado com esta decisão, o Autor (Manuel) interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que se revogasse a sentença recorrida, sendo substituída por decisão julgando a acção procedente.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (sendo as respectivas conclusões inicialmente sintetizadas - sem repetições do processado, ou reproduções de textos legais ou jurisprudenciais -, e depois reproduzidas ipsis verbis):

1ª - Ter o Tribunal a quo feito uma errada interpretação e valoração da prova produzida, já que a mesma impunha que se desse como provada a má fé do Réu (José).

XV. A má fé, tratando-se de um elemento respeitante ao estado psicológico do agente, afigura-se de difícil prova, porque se poderá desconhecer o circunstancialismo específico em que agiu o terceiro, relevando, assim, de forma especialmente importante a demonstração de factos instrumentais, através dos quais se possa recorrer a presunções judiciais que permitam demonstrar o conluio entre duas pessoas para prejudicar terceiros.

XVI. Foi provado nos autos que a Primeira Ré, mesmo após a alegada venda, continuou a ser vista a circular com o veículo alegadamente vendido.

XVII. As afirmações do Segundo Réu de que tem praticado actos de conservação, designadamente de limpeza do prédio adquirido, foram absolutamente contrariadas pelo Senhor Perito António, que em esclarecimentos presenciais em sede de Julgamento atestou que quando foi ao terreno nem sequer conseguiu nele entrar, em virtude da vegetação densa que o cobria, o que revela a falta de conservação e limpeza do referido prédio.

XVIII. Não se logrou provar o pagamento do preço - cuja prova incumbia aos Réus - nem a onerosidade do acto impugnado.

XIX. E, provado ficou que ao vender o veículo e o prédio identificados, a Primeira Ré pretendeu - e conseguiu - evitar ser proprietária de qualquer bem imóvel ou móvel de valor que pudesse satisfazer o crédito do Recorrente.

XX. Ora, todo este circunstancialismo só pode levar à conclusão que se tratou de vendas fictícias.

XXI. E todo este circunstancialismo configura a factualidade instrumental através da qual fica demonstrada a má fé dos Réus, o conluio entre eles que visou o prejuízo do Recorrente, por via da diminuição/eliminação da garantia do crédito deste.


2ª - Ter o Tribunal a quo feito uma errada interpretação e aplicação da lei (independentemente do sucesso da impugnação de facto feita), devendo ser alterada a decisão de mérito proferida (julgando-se a acção totalmente procedente, uma vez que ficou por demonstrar o carácter oneroso dos negócios em causa, dispensando-se assim a prova da má fé dos seus Intervenientes).

I. Exige o artigo 610º do Código Civil que o impugnante seja titular de um direito de crédito, não sendo indispensável, todavia, que o mesmo se encontre vencido.

II. Ora, tal pressuposto verifica-se no caso dos autos, como atesta o teor da alínea a) de «Factos provados».

III. O critério para aferir do requisito da impossibilidade para o credor de obter a satisfação plena do seu crédito, é o da «avaliação patrimonial do devedor» depois do acto impugnado, sendo que, a este propósito, é «Facto provado» que «l) Ao vender o veículo e o prédio identificados, a Ré Maria pretendeu evitar ser proprietária de qualquer bem móvel ou imóvel de valor que pudesse satisfazer o crédito do Autor». Pelo que, dúvidas não restam de que este segundo pressuposto da impugnação pauliana também se verifica in casu.

V. Da conjugação das alíneas l), m) e n) de «Factos provados» apenas se pode retirar a conclusão de que, a 1ª Ré, ao vender o prédio e o veículo identificados e sobre os quais incide a presente impugnação pauliana, ficou sem património (móvel ou imóvel) relevante, capaz de satisfazer o crédito do ora Recorrente. Assim, temos que também este pressuposto da impugnação pauliana se encontra preenchido.

V. A 1ª Ré, antes da venda ao 2º Réu do prédio rústico sito em ..., freguesia de ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., e do veículo automóvel da marca BMW, modelo 346L 3 ERREIHE, com a matrícula PZ, tinha uma situação patrimonial susceptível de satisfação do crédito do Recorrente.

VI. Com a venda de tais bens - os únicos bens da 1ª Ré com valor capaz de satisfazer o crédito do Autor, sendo que os demais bens imóveis penhorados são de valor manifestamente irrisório - a 1ª Ré ficou voluntariamente sem património relevante e numa situação de impossibilidade patrimonial de satisfação do crédito do Recorrente, pelo que, também este pressuposto da impugnação pauliana se encontra preenchido.

VII. Sendo o acto impugnado posterior ao crédito e oneroso, o credor terá de demonstrar a má fé do devedor e do terceiro adquirente, considerando o nº 2 do artigo 612º do Código Civil que a má fé é a consciência do prejuízo que o acto oneroso causa ao devedor, sendo que tal pressuposto (má fé) refere-se a actos praticados a título oneroso, como, aliás, a douta Sentença recorrida reconhece.

VIII. Incumbia aos Réus provar a onerosidade do acto e o pagamento do respectivo preço, o que não se verificou.

IX. Preenchidos que estão todos os outros requisitos da impugnação pauliana, não pode, salvo o devido respeito por opinião contrária, a presente lide improceder com o fundamento da falta do pressuposto «má fé», sustentado na ideia de que não foi possível apurar que o segundo réu tinha consciência ou representou como possível que a celebração de tais negócios prejudicaria o credor, porquanto tal requisito apenas tem aplicabilidade em actos praticados a título oneroso.

X. Pois ninguém ignora que uma venda fictícia prejudica efectivamente os direitos do credor do vendedor.

XI. Inexiste prova do efectivo pagamento do preço pela alienação do imóvel e do veículo, ou seja, inexiste prova da onerosidade do acto impugnado.

XII. Só após se concluir pela onerosidade do acto e só depois de provado o pagamento do preço competia apreciar a existência ou não de má fé no negócio celebrado entre os Réus.

XIII. A fundamentação da douta decisão recorrida está, pois, em contradição consigo mesma, na medida em que, por um lado, menciona que a má fé se refere a actos praticados a título oneroso, utilizando a falta de tal requisito para fundamentar a improcedência da acção, e, por outro lado, conclui pela ausência de prova da onerosidade do acto impugnado: a alienação do imóvel e do veículo identificados nos autos.

XIV. A douta decisão recorrida violou, pois, os artºs 610º e 612º do código Civil.
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1.2.2. Contra-alegações (dos Réus)

1.2.2.1. O Réu (José) contra-alegou, pedindo que se mantivesse na íntegra a sentença recorrida.

Concluiu as suas contra-alegações da seguinte forma:

1. Para proceder a Impugnação Pauliana, há que provar (além do mais) que, no caso do acto ser oneroso, o devedor e terceiro agiram de má fé, entendendo-se por má fé o prejuízo que o acto causa ao credor, sendo irrelevante a má fé apenas no caso do acto ser gratuito;

2. Não se tendo provado, como não se provou, que o acto foi gratuito, e a má fé dos RR, a presente acção teria forçosamente que improceder;

3. Estando também vedada a M.ma Juiz, como pretende o A., socorrer-se de presunções judiciais para presumir a não onerosidade do acto, já que tal possibilidade está afastado pelo artº 351º e 393º do CC, por estamos perante negócios formais.
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1.2.2.2. A (Maria) declarou aderir «integralmente às doutas alegações e conclusões do recorrido José», e que o fazia «para todos os efeitos legais».
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 2, ambos do C.P.C.), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, nº 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº 2, in fine, ambos do C.P.C.).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar

Mercê do exposto, 02 questões foram submetidas à apreciação deste Tribunal:

- Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e valoração da prova produzida, já que a mesma impunha que se desse como provada a má fé do Réu (José) ?

- Deverá ser alterada a decisão de mérito proferida (mesmo independentemente do prévio sucesso da impugnação de facto feita), julgando-se a acção totalmente procedente ?
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1. Decisão de Facto do Tribunal de 1ª Instância
3.1.1. Factos Provados

Realizada a audiência de julgamento no Tribunal de 1ª Instância, resultaram provados os seguintes factos (aqui reordenados, lógica e cronologicamente, e renumerados):

1 - Por escrito particular datado de 16 de Novembro de 2004, sujeito a reconhecimento da assinatura no 1º Cartório Notarial, Maria, aqui Ré, declarou ter recebido por empréstimo de Manuel, aqui Autor, a quantia de € 16.700,00 (dezasseis mil, setecentos euros e zero cêntimos), mais declarando que tal quantia será devolvida antes de 15 de Abril de 2005 (conforme «DECLARAÇÃO» que é fls. 20 dos autos, e que aqui se dá por integralmente reproduzida).
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob a alínea a)

2 - Em 14 de Outubro de 2010, o Autor intentou contra a Ré (Maria) uma acção executiva para pagamento de quantia certa, com base na declaração supra referida, indicando como quantia exequenda o montante de € 20.374,92 (vinte mil, trezentos e setenta e quatro euros, e noventa e dois cêntimos), que deu origem aos autos de processo nº 2824/10.1 TBVCT, que correram termos no extinto 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viana do Castelo (conforme «REQUERIMENTO EXECUTIVO» que é fls. 16 a 18 dos autos, e que aqui se dá por integralmente reproduzido).
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob a alínea b)

3 - No âmbito dos referidos autos executivos, o aqui Autor (ali Exequente) foi notificado pela Agente de Execução, em 29 de Outubro de 2010, do resultado da consulta ao registo informático de execuções e restantes bases de dados, das quais resultava que a Ré (Maria) era dona e legítima proprietária do prédio rústico sito no ..., freguesia de ..., composto por mato, inscrito na matriz predial rústica da referida freguesia sob o artigo ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 832, da freguesia de ..., e do veículo automóvel da marca BMW, modelo 346L 3ER REIHE, com a matrícula PZ (conforme «PEDIDO DE INFORMAÇÃO SOBRE A SITUAÇÃO DO EXECUTADO» que é fls. 28 a 37 dos autos, e que aqui se dá por integralmente reproduzido).
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob a alínea c)

4 - Por requerimento que deu entrada em juízo no dia 25 de Novembro de 2010, o aqui Autor requereu à Srª Agente de Execução a penhora do veículo automóvel da marca BMW, modelo 346L 3ER REIHE, com a matrícula PZ, e do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 832 (conforme «COMUNICAÇÃO A AGENTE DE EXECUÇÃO» que é fls. 38 e 39 dos autos, e que aqui se dá por integralmente reproduzida).
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob a alínea d)

5 - Na sequência da citação da ali Executada, aqui Ré (Maria), no referido processo executivo, esta deduziu oposição à execução, por articulado que deu entrada em juízo em 25 de Janeiro de 2011 (conforme «REQUERIMENTO (INÍCIO DE PROCESSO)» que é fls. 43 a 46 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido).
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob a alínea e)

6 - Por documento particular autenticado no dia 01 de Outubro de 2012, a Ré (Maria) declarou vender a José, aqui Réu, e este declarou aceitar a venda, pelo preço de € 2.000,00 (dois mil euros, e zero cêntimos), do prédio composto de terreno de roço, com a área total de 4950m2, situado em ..., freguesia de ..., concelho de Arcos de Valdevez, a confrontar de norte com A. A. e Outro, do nascente com A. A., e do sul e poente com caminho público, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o nº 832 e inscrito na respectiva matriz predial sob o nº ..., com o valor patrimonial de € 27,00 (conforme «COMPRA E VENDA» que é fls. 166 e 167 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzida).
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob a alínea i)

7 - O prédio descrito sob o nº … na Conservatória do Registo Predial, encontra-se inscrito nela a favor do Réu (José), através da Ap. 527 de 2012/10/02 (conforme certidão da Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis » que é fls. 78 a 81 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzida).
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob a alínea h)

8 - O veículo automóvel da marca BMW, modelo 346 L 3ER REIHE, com a matrícula PZ, encontra-se inscrito a favor do Réu (José), através da Ap. 09785, de 01/10/2012, a quem foi vendido pela Ré (Maria) (conforme «Certidão de Registo Automóvel» que é fls. 124 dos autos, e que aqui se dá por integralmente reproduzida).
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob a alínea j)

9 - Ao vender o prédio rústico e o veículo automóvel referidos nos dois factos anteriores, a Ré (Maria) pretendeu evitar ser proprietária de qualquer bem móvel ou imóvel de valor que pudesse satisfazer o crédito do Autor.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob a alínea l)

10 - No âmbito da referida execução, quando a Agente de Execução diligenciou no sentido de proceder à penhora do prédio rústico sito em ..., freguesia de ..., inscrito na matriz predial rústica da referida freguesia sob o art.º ..., o mesmo já se encontrava registado e adquirido por pessoa diversa da ali Executada aqui Ré (Maria), o mesmo sucedendo em relação ao veículo automóvel da marca BMW, modelo 346L 3 ERREIHE, com a matrícula PZ.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob a alínea f)

11 - A Agente de Execução comunicou ao ali Exequente, aqui Autor (Manuel), através de comunicação datada de 08 de Dezembro de 2012, os factos referidos no facto provado enunciado sob o número 10 (conforme «NOTIFICAÇÃO» que é fls. 52 a 78 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzida).
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob a alínea g)

12 - A requerimento do ali Exequente, aqui Autor (Manuel), a Agente de Execução, no dia 07 de Maio de 2013, procedeu à penhora dos seguintes bens imóveis registados a favor da ali Executada, aqui Ré (Maria):

· Terreno rústico para pastagem, com 430 m2, confrontando de norte com A. F., nascente com caminho, sul com M. F., poente com F. R., sito em ..., freguesia de ..., concelho de Arcos de Valdevez, inscrito nas finanças com o respectivo artigo matricial ... e descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o nº ..., com o valor patrimonial de 4,29;
· Terreno rústico para cultura arvense, com 330 m2, confrontando de norte e poente com Rodrigo, nascente com Afonso, sul com Rosa, sito em …, freguesia do ..., concelho de Arcos de Valdevez, inscrito nas finanças com o artigo matricial ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ..., com o valor patrimonial de € 16,46;
· Terreno rústico para cultura arvense e vinha em ramada com 360 m2, confrontando de norte com Rosa, nascente com Afonso, sul com caminho e poente com M. G., sito em …, freguesia de ..., concelho de Arcos de Valdevez, inscrito nas finanças sob o artigo matricial ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ..., com o valor patrimonial de € 40,90;
· Terreno rústico de lameiro, com 260 m2, confrontando de norte com A. D., nascente com R. A., sul com João e poente com caminho, sito em ..., freguesia de ..., concelho de Arcos de Valdevez, inscrito nas finanças sob o artigo matricial ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ..., com o valor patrimonial de € 10,37;
· Terreno rústico de lameiro, com 160 m2, confrontando de norte com Domingos, nascente e sul com A. B., e poente com Corga da Ponte, sito em ..., freguesia de ..., concelho de Arcos de Valdevez, inscrito nas finanças sob o artigo matricial …, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº …, com o valor patrimonial de € 6,38;
· Terreno rústico para pastagem, com 420 m2, confrontando de norte com caminho, nascente com F. R., sul com A. B., e poente com R. A., sito em …, freguesia de ..., concelho de Arcos de Valdevez, inscrito nas finanças sob o artigo matricial …, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº …, com o valor patrimonial de € 4,19;
· Terreno rústico para pastagem, com 80 m2, confrontando de norte com J. M., nascente com Armindo, sul com F. R., poente com Angelina, sito em ..., freguesia de ..., concelho de Arcos de Valdevez, inscrito nas finanças sob o artigo matricial …, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº …, com o valor patrimonial de € 0,60;
· Terreno rústico para pastagem, com 290 m2, confrontando de norte e poente Luís, nascente com corga, e sul com Celeste, sito em ..., freguesia de ..., concelho de Arcos de Valdevez, inscrito nas finanças sob o artigo matricial …, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº …, com o valor patrimonial de € 2,89;
· Terreno rústico para terreno de mato, com 980 m2, confrontando de norte com Angelina, nascente, sul e poente com caminho, sito em …, freguesia de ..., concelho de Arcos de Valdevez, inscrito nas finanças sob o artigo matricial …, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº …, com o valor patrimonial de € 5,89.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob a alínea K)

13 - O valor de mercado dos imóveis identificados no facto provado enunciado sob o número 12 são os seguintes:

- Prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ... ------€ 447,20;
- Prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...------€ 788,70;
- Prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...------€ 860,40;
- Prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...------€ 270,40;
- Prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 8136------€166,40;
- Prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 8202------€436,80;
- Prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 8424------€191,20;
- Prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 8292-------€ 301,60;
- Prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 8290------€ 1.019,20.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob a alínea m)

14 - O prédio rústico sito em ..., freguesia de ..., inscrito na matriz rústica da referida freguesia sob o artigo ..., tem um valor de mercado de € 9.240,00 (nove mil, duzentos e quarenta euros, e zero cêntimos).
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob a alínea n)
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3.1.2. Factos não provados

Na mesma decisão do Tribunal de 1ª Instância, resultaram não provados os seguintes factos:

a) Ao acordarem na compra e venda do imóvel e do veículo automóvel identificados nas alíneas dos factos provados, na pendência do processo executivo identificado, a Ré (Maria) e o Réu (José) agiram com o propósito concertado entre si, com o objectivo de ocultar o património transmitido, a fim de este não ser afecto à satisfação do crédito do Autor.

b) Aquando da celebração dos referidos contratos de compra e venda, o Réu (José) tinha pleno conhecimento da existência da dívida da Ré para com o Autor.

c) O Réu (José) pagou à Ré (Maria), pela aquisição do terreno e do veículo automóvel, a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros, e zero cêntimos).

d) A Ré (Maria) procedeu à venda dos referidos bens ao Réu (José) por se encontrar com dificuldades financeiras e necessitar, de imediato algum dinheiro para enviar para a sua Filha que se encontrava nos Estados Unidos.

e) Os demais bens imóveis existentes no património da Ré (Maria) são suficientes para garantir a satisfação do crédito do Autor.
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3.2. Modificabilidade da decisão de facto (erro de julgamento)
3.2.1. Incorrecta apreciação da prova legal - Poder (oficioso) do Tribunal da Relação

Lê-se no art. 607º, nº 5 do C.P.C. que o «juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto», de forma consentânea com o disposto no C.C., nos seus art. 389º do C.C. (para a prova pericial), art. 391º do C.C. (para a prova por inspecção) e art. 396º (para a prova testemunhal).
Contudo, a «livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes» (II parte, do nº 5, do art. 607º do C.P.C. citado, com bold apócrifo).

Mais se lê, no art. 662º, nº 1 do C.P.C., que a «Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Logo, quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do art. 607º, nº 4 do C.P.C., aqui aplicável ex vi do art. 663º, nº 2 do mesmo diploma).
Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no C.C.), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspectos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.
Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico - com força probatória plena - cuja falsidade não tenha sido suscitada (arts. 371º, nº 1 e 376º, nº 1, ambos do C.P.C.), ou quando exista acordo das partes (art. 574º, nº 2 do C.P.C.), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (art. 358º do C.C., e arts. 484º, nº 1 e 463º, ambos do C.P.C.), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (vg. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos arts. 351º e 393º, ambos do C.P.C.).
Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).
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3.2.2. Incorrecta livre apreciação da prova
3.2.2.1. Âmbito da sindicância (provocada) do Tribunal da Relação

Lê-se no nº 2, als. a) e b), do art. 662º citado, que a «Relação deve ainda, mesmo oficiosamente»: «Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade de depoente ou sobre o sentido do seu depoimento» (al. a); «Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova» (al. b)».

«O actual art. 662º representa uma clara evolução [face ao art. 712º do anterior C.P.C.] no sentido que já antes se anunciava. Através dos nºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e fundar a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.

(…) Afinal, nestes casos, as circunstâncias em que se inscreve a sua actuação são praticamente idênticas às que existiam quando o tribunal de 1ª instância proferiu a decisão impugnada, apenas cedendo nos factores de imediação e da oralidade. Fazendo incidir sobre tais meios probatórios os deveres e os poderes legalmente consagrados e que designadamente emanam dos princípios da livre apreciação (art. 607º, nº 5) ou da aquisição processual (art. 413º), deve reponderar a questão de facto em discussão e expressar de modo autónomo o seu resultado: confirmar a decisão, decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão num sentido restritivo ou explicativo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 225-227).
É precisamente esta forma de proceder da Relação (apreciando as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, e indo à procura da sua própria convicção), que assegura a efectiva sindicância da matéria de facto julgada, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise (conforme Ac. do STJ, de 24.09.2013, Azevedo Ramos, comentado por Teixeira de Sousa, Cadernos de Direito Privado, nº 44, p. 29 e ss.).
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3.2.2.2. Modo de operar o duplo grau de jurisdição - Ónus de impugnação

Contudo, reconhecendo o legislador que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto «nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência», mas, tão-somente, «detectar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento» (preâmbulo do DL 329-A/95, de 12 de Dezembro), procurou inviabilizar a possibilidade de o recorrente se limitar a uma genérica discordância com o decidido, quiçá com intuitos meramente dilatórios.

Com efeito, e desta feita, «à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como de se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respectivas alegações que servem para delimitar o objecto do recurso», conforme o determina o princípio do dispositivo (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 228, com bold apócrifo).

Lê-se, assim, no art. 640º, n 1 do C.P.C. que, quando «seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».
Precisa-se ainda que, quando «os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados», acresce àquele ónus do recorrente, «sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes» (art. 640º, nº 2, al. a) citado).
Logo, deve o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada; e esta última exigência (contida na al. c) do nº 1 do art. 640º citado), «vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente», devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor enquanto «decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes», «impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 129, com bold apócrifo).

Dir-se-á mesmo que as exigências legais referidas têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efectividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).

Por outras palavras, se o dever - constitucional e processual civil - impõe ao juiz que fundamente a sua decisão de facto, por meio de uma análise crítica da prova produzida perante si, compreende-se que se imponha ao recorrente que, ao impugná-la, apresente a sua própria. Logo, deverá apresentar «um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido» por si (Ac. da RP, de 17.03.2014, Alberto Ruço, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, in www.dgsi.pt, como todos os demais sem indicação de origem).
Com efeito, «livre apreciação da prova» não corresponde a «arbitrária apreciação da prova». Deste modo, o Juiz deverá objectivar e exteriorizar o modo como a sua convicção se formou, impondo-se a «identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do Julgador», e ainda «a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto» (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, p. 655).

«É assim que o juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)» (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 325).

«Destarte, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (provado, não provado, provado apenas…, provado com o esclarecimento de que…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol. I, pág. 591, com bold apócrifo).
Dir-se-á mesmo que, este esforço exigido ao Juiz de fundamentação e de análise crítica da prova produzida «exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo Tribunal Superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao acto jurisdicional» (José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, p. 281).
É, pois, irrecusável e imperativo que, «tal como se impõe que o tribunal faça a análise critica das provas (de todas as que se tenham revelado decisivas)… também o Recorrente ao enunciar os concreto meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa deve seguir semelhante metodologia», não bastando nomeadamente para o efeito «reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, p. 595, com bold apócrifo).

Compreende-se, por isso, que se afirme que, quando o recurso sobre a matéria de facto não seja liminarmente rejeitado, o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, nesta mesma sede, se estabeleça de acordo com os seguintes parâmetros: só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente; sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento; e nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).

Importa, porém, não esquecer - porque (como se referiu supra) se mantêm em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância. «Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, pág. 609).
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3.2.2.3. Caso concreto

Concretizando, considera-se que o Autor recorrente (Manuel) cumpriu o ónus de impugnação que lhes estava cometido pelo art. 640º, nº 1 do C.P.C. (conclusão distinta de saber se, tendo-o feito, existe fundamento para a pretendida alteração dos factos julgados como não provados).

Com efeito, indicou nas suas conclusões de recurso: os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (os factos não provados enunciados sob as alíneas a) e b)); os concretos meios probatórios que imporiam decisão diferente (no caso, presunções judiciais a retirar de factos provados e de factos não provados); e a decisão que, no seu entender, se impunha (o darem-se como demonstrados os factos não provados enunciados sob as alíneas a) e b)).
Prosseguindo - na verificação do cumprimento do ónus de impugnação a cargo do Autor recorrente -, e relativamente ao juízo crítico próprio, assentou o mesmo na defesa de que a má fé do Réu (isto é, a consciência de que as aquisições que fez de bens à Ré causavam prejuízo aos credores desta) resultaria demonstrada da ponderação conjunta de factos provados e de factos não provados (como, aliás, o Tribunal a quo teria inicialmente reconhecido, decidindo depois de forma desconforme com parte do seu juízo de prova).
Crê-se, assim, estar este Tribunal da Relação em condições de poder proceder, nos termos autorizados pelo art. 640º do C.P.C, à reapreciação da matéria de facto pretendida pelo Autor recorrente.
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3.3. Modificabilidade da decisão de facto - Actuação de má fé do Réu
3.3.1. Juízo da sentença recorrida - Fundamentos da impugnação feita

Veio o Autor recorrente (Manuel) defender a alteração da decisão sobre a matéria de facto, por entender que o Tribunal a quo teria feito uma errada interpretação e valoração da prova produzida, já que a mesma impunha que se desse como provada a actuação de má fé do Réu (José), isto é, que ao adquirir um prédio rústico e um veículo automóvel à Ré (Maria), tinha consciência de que, desse modo, causava prejuízo ao seu credor (ele próprio).
Esta matéria integra os factos não provados enunciados na sentença recorrida sob a alínea a) («Ao acordarem na compra e venda do imóvel e do veículo automóvel identificados nas alíneas destes factos provados, na pendência do processo executivo identificado, os Réus agiram com o propósito concertado entre si, com o objectivo de ocultar o património transmitido, a fim de este não ser afecto à satisfação do crédito do Autor»), e sob a alínea b) («Aquando da celebração dos referidos contratos de compra e venda, o segundo Réu tinha pleno conhecimento da existência da dívida da primeira Ré para com o Autor»).

O Recorrente invocou para o efeito que, sendo a prova directa da referida má fé muito difícil, resultaria a mesma de factos instrumentais (de onde podia ser deduzida por presunções judiciais); e estarem esses factos já assentes nos autos (nomeadamente, o continuar a Ré a usar o veículo automóvel alegadamente vendido ao Réu, o não praticar este quaisquer actos de conservação sobre o prédio rústico que alegadamente lhe teria também adquirido, o não terem ambos logrado provar o efectivo pagamento do preço, e ter a Ré agido com o propósito de subtrair os seus bens à satisfação do crédito dele próprio).
Começa-se por considerar o juízo de prova vertido na sentença recorrida, para depois se aferir da bondade da sindicância que lhe foi feita pelo Autor recorrente.

Assim, ponderou a mesma para este efeito (limitando-se a reprodução às partes aqui relevantes, e com bold apócrifo, aposto nos segmentos que se consideraram mais significativos, atento o objecto da sindicância):

«(…)
Na consideração da factualidade provada e não provada, o tribunal alicerçou a sua convicção no acervo documental junto aos autos em conjugação com os depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, e nos relatórios periciais de avaliação dos bens imóveis existentes no património da primeira Ré.

É de realçar o depoimento da Ré Maria que afirmou ter pago a dívida reclamada pelo Autor, cerca de um ano depois da emissão da declaração de dívida, em dinheiro, num encontro presencial ocorrido entre si e o Autor num estabelecimento comercial de café, na presença de um casal amigo. No entanto, para além de tal versão contradizer a contestação que apresentou, pois nesse articulado a Ré aceitou expressamente a existência da dívida reclamada nos autos de execução, e que o Autor invoca como fundamento do seu pedido, nem sequer foram arroladas as ditas duas testemunhas que na versão da Ré testemunharam o pagamento da dívida, para virem corroborarem a sua versão, sendo que a demais prova produzida também não corrobora a sua versão.

A existência da dívida para além de ter sido confessada pela Ré Maria, foi confirmada pelo Autor, que atestou que a Ré nunca lhe pagou um cêntimo que seja, facto que foi corroborado pelas testemunhas J. N. e J. J., embora o conhecimento destas testemunhas seja indirecto, pois tomaram conhecimento do facto através do próprio Autor.

As declarações da Ré Maria estão eivadas de contradições e incoerências clarividentes, quer quanto ao alegado pagamento da dívida, quer quanto à data do conhecimento de que contra si estava a correr a execução que lhe foi movida pelo Autor. Com efeito, saliente-se que a depoente referiu que nunca foi citada para a execução e só dela teve conhecimento no ano de 2014, o que é contrariado pela intervenção que a depoente teve no dito processo, pois para além de ter deduzido oposição à referida execução, requereu previamente o apoio judiciário para dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos do processo, em 24/01/2011 como resulta da documentação junta aos autos. Acresce que a depoente acabou por confirmar que foi ouvida em declarações na audiência de julgamento da referida oposição à execução que ocorreu muito antes do ano de 2014.

Por outro lado, as suas declarações não convenceram o tribunal quanto ao recebimento do preço de venda, os ditos € 10.000,00, aquando da celebração do contrato de compra e venda, não existindo qualquer outro meio de prova do recebimento efectivo desse valor, justificando a depoente que o preço foi recebido em dinheiro. Esta versão apenas foi corroborada pelo Réu José, que, no entanto, reconheceu que não utiliza a referida viatura e que é a Ré Maria que continua a utilizar o veículo, se bem que a título de empréstimo, facto que também foi confirmado pelo Autor e pela testemunha M. M., amiga da Ré Maria. Afirmou, ainda o segundo Réu que pagou os referidos bens em dinheiro. No entanto, também não se afigura tal verosímil, tanto mais que o depoente reconheceu que apenas aufere uma reforma de € 450,00. De acordo com as regras da experiência comum e normalidade social não é consentâneo que um rendimento mensal de € 450,00 permita ter uma poupança de € 10.000, sendo certo que tal rendimento mal chegará para um sustento minimamente condigno.

É de realçar que o Autor para além de ter afirmado que presenciou a Ré Maria a circular com o veículo alegadamente vendido, apurou junto de vizinhos que é a Ré que utiliza sempre a referida viatura, estando convencido que a venda é fictícia.

Para além da ausência de qualquer prova do efectivo recebimento do preço da venda, alegadamente ajustada em € 10.000,00, sendo que, conforme declarações de ambos os Réus, € 5.000,00 diziam respeito ao preço do imóvel e outros € 5.000,00 diziam respeito ao preço do veículo, certo é que no documento que titula a venda do imóvel consta que o preço estipulado é de € 2.000,00, sendo certo que quando questionado o segundo Réu o porquê de tal preço não coincidir com o valor alegadamente pago, afirmou que foi para não pagar impostos, ou seja, o segundo Réu admitiu expressamente a existência de acordo simulatório.

Por outro lado, as afirmações do Réu José de que tem praticado actos de conservação, designadamente de limpeza do prédio adquirido, são totalmente contrariados pelo depoimento do Sr. Perito António que elaborou o primeiro relatório pericial, que em esclarecimentos presenciais em sede de audiência de julgamento, atestou que quando foi ao terreno nem sequer conseguiu nele entrar em virtude da vegetação densa que o cobria, o que revela a falta de conservação e limpeza do referido prédio. Por outro lado, não têm a mínima consistência que o segundo Réu que tem um rendimento mensal que mal dá para a sua subsistência, pague a terceira pessoa € 500,00 para limpar o terreno como por este foi afirmado.

Assim, as inconsistências patenteadas pelos depoimentos de ambos os Réus, quer porque contraditórios com a demais prova produzida, quer porque não consentâneos com as regras da experiência comum e normalidade social, aliados com a ausência de prova do efectivo pagamento do preço pela alienação do imóvel e do veículo, do facto do preço alegadamente pago pelo imóvel não coincidir com o preço declarado no contrato, e da circunstância de ser notório que o Réu José não tem feito qualquer utilização dos bens alegadamente alienados, fazem presumir que se tratou de vendas fictícias.

Porém, afigura-se-nos que a prova produzida não permite dar como provado o elemento psicológico e intelectual, ou seja, a consciência da causação de prejuízo. Com efeito, verifica-se uma total ausência de prova quanto a este aspecto, pois nem sequer foi possível apurar que o segundo Réu, tinha à data dos negócios, conhecimento da existência da dívida, nem tão pouco que a Ré estava a ser executada por tal dívida.

Saliente-se, ainda, que apesar da primeira Ré ter alegado circunstâncias que justificariam a necessidade de vender os referidos bens – alegadamente terá sido para ajudar financeiramente uma filha a residir nos Estados Unidos e que estava com sérias dificuldades económicas – certo é que não logrou convencer o tribunal, pelas incoerências e contradições insanáveis que o seu depoimento revelou, pois também não existe qualquer documento que prove a transferência da alegada verba recebida para os Estados Unidos – sendo certo que não nos parece curial que estando a Ré Maria à data a passar por tantas dificuldades económicas se deslocasse de propósito àquele país para entregar em mão o dinheiro à filha, quando poderia fazê-lo através de transferência internacional, evitando necessariamente os gastos da viagem, com um custo relevante.

Por outro lado, é um dado para nós mais que evidente que a executada tinha total conhecimento de que lhe tinha sido instaurada uma execução pelo aqui Autor, do valor reclamado, e de que este pretendia proceder à penhora dos bens alienados, tanto mais que tendo constituído mandatário no processo e deduzido oposição, tinha acesso a todos os actos processuais praticados no processo executivo, e naturalmente tinha conhecimento do requerimento que o ali exequente tinha dirigido à Srª Agente de Execução a requerer a penhora dos referidos bens.
Acresce que se revelou evidente que os Réus têm uma relação muito próxima, pois é um dado objectivo que até foi o segundo Réu que recebeu a citação da Ré para estes autos (cfr. resulta de fls. 148).
No que concerne ao valor de mercado dos imóveis efectivamente penhorados no âmbito da referida execução, foram fundamentais os relatórios periciais elaborados, no entanto, o tribunal desconsidera o primeiro relatório pericial quanto aos prédios efectivamente penhorados, na medida, em que não teve em conta a situação actual dos prédios. Mas vamos por partes:
(…)
No que concerne ao prédio objecto do contrato de compra e venda entre ambos os Réus, o mesmo apenas foi objecto a avaliação efectuada na primeira perícia, que nesta parte não foi posta em causa pelas partes que se conformaram com ele, não tendo sido objecto da segunda perícia realizada. Aceita-se o valor indicado, considerando a sua área total (4950 m2) de muito maiores dimensões de qualquer um dos outros, sendo que acesso directo para a via pública pavimentada (cfr. resulta de fls. 223).
No que diz respeito ao valor do veículo vendido teve em conta o teor do relatório pericial de fls. 185 e ss., com o qual as partes se conformaram, estando a nosso ver devida e adequadamente fundamentado.

(…)
Já quanto ao segundo Réu, adquirente dos bens, a factualidade dada como provada, não é suficiente, nem pouco mais ou menos, para inferir a consciência do prejuízo que advinha desses negócios para o credor, pois apesar da convicção adquirida de que os negócios em causa foram fictícios, pois os Réus não lograram provar o pagamento efectivo do preço que estes alegam ter sido de € 10.000,00 pelo conjunto de ambos os bens (€ 5.000,00 para cada um dos bens). Por outro lado, o preço alegadamente estipulado por ambos os Réus para o imóvel, diverge substancialmente do preço mencionado no documento de formalização do negócio. No entanto, tais factos circunstanciais, não nos permitem afirmar que o segundo Réu, tinha consciência ou representou como possível que a celebração de tais negócios prejudicaria o credor. Para tal era necessário que se tivesse provado que o segundo Réu tinha conhecimento da existência da dívida da Ré Maria para com o Autor, e a prova produzida não possibilitou, directa ou indirectamente, a aquisição desse facto, não se tendo evidenciado da prova produzida que o segundo Réu, sequer soubesse que primeira Ré estava a ser executada por tal dívida.
Falece, também, a prova da existência de conluio entre ambos os Réus destinado a ocultar o património transmitido.
Por conseguinte, face à ausência de prova do elemento intelectual do segundo Réu subjacente à má-fé – a consciência do prejuízo – claudica, forçosamente, a pretensão do Autor, improcedendo a acção.
(…)»

Dir-se-á assim, e salvo o devido respeito por opinião contrária, que o Tribunal a quo fundou o seu juízo de não demonstração dos factos não provados enunciados sob as alíneas a) e b) na ausência de produção de prova directa sobre eles, nomeadamente de que «o segundo Réu, tinha à data dos negócios, conhecimento da existência da dívida», ou de «que a Ré estava a ser executada por tal dívida».
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3.3.2. Má fé (estado psicológico) - Prova indirecta (por presunções judiciais)

Contudo, correspondendo esta «consciência do prejuízo que o acto [impugnado paulianamente] causa ao credor» (art. 612º, nº 2 do C.C.) a um facto do foro interno, a respectiva prova não é, em regra, susceptível de ser feita de forma directa.

Por outras palavras, os «eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo (v.g. a determinação da vontade real do declarante, uma certa intenção, o conhecimento de dadas circunstâncias) constituem factos cujo conhecimento pode ser atingido directamente pelos sentidos ou através das regras de experiência».
Ora, a «prova directa dessas intenções é rara (v.g. confissão) pelo que quase sempre terá que ser feita por meio de indícios/presunções. Verifica-se o mesmo tipo de dificuldade na prova de outros factos do foro interno designadamente no requisito da má fé na impugnação pauliana (Artigo 612º)» (Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 2017, 3ª edição, Almedina, p. 264 e 265, com bold apócrifo).

Assim, constituindo «tarefa árdua e de difícil concretização para o autor» a «prova de factos do foro interno, como aqueles de que depende a afirmação do requisito da má fé necessário à impugnação pauliana», compreende-se que «as presunções judiciai» assumam «particular importância na formação da convicção quanto à fixação da matéria de facto, embora condicionadas sempre a uma utilização prudente e sensata» (Ac. da RL, de 29.03.2005, Fernanda Isabel Pereira, Processo nº 9549/2004).
Precisando, entendem-se por presunções judiciais as ilações que o julgador tira de um facto conhecido (facto base da presunção) para firmar um facto desconhecido (facto presumido), conforme arts. 349º e 351º, ambos do C.C..
Deverão, por isso, as ditas presunções mostrarem-se conformes com as regras da experiência a que necessariamente apelam; e só serão validamente contraditadas se o impugnante demonstrar a não prova do facto base da presunção, ou o carácter ilógico do facto presumido (isto é, o não se mostrar o mesmo sufragado pelas ditas regras da experiência).

Ora, em matéria de simulação e de impugnação pauliana, vêm sendo condensadas pela doutrina e pela uniforma prática jurisprudencial diversas e relevantes presunções judiciais nesta matéria, que permitem a prova indirecta de alguns dos respectivos requisitos (nomeadamente, dos pertinentes à consciência e/ou intenção dos simuladores, bem como do devedor alienante e do terceiro adquirente).
Esclarece-se, a propósito, que, face a uma venda simulada, realizada em prejuízo do credor do alienante, este pode optar pela declaração da nulidade do acto de alienação (art. 605º do C.C.), ou ignorar essa nulidade e impugnar simplesmente o acto (art. 615º do C.C.), sendo que esta última solução é aquela que lhe é mais favorável, uma vez que pode executar imediatamente no património do terceiro adquirente os bens por ele recebidos (conforme João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, Almedina, 2004, p. 123).

Assim, quer «na simulação quer na impugnação pauliana, impõe-se a indagação de condutas humanas em que a motivação tem um papel essencial como elemento propulsor. O simulador actua de forma planeada com o intuito de se esquivar a um determinado efeito jurídico ou adverso aos seus propósitos. O motivo ou interesse que determinam a actuação do simulador constitui a causa simulandi, a qual corresponde assim ao interesse que leva as partes a celebrar um contrato simulado ou o motivo que as induz a dar aparência a um negócio jurídico que não existe ou a apresentá-lo de forma diversa da que genuinamente lhe corresponde».
Precisa-se, porém, que para «que se conclua pela existência da simulação não é obrigatório que se prove uma causa simulandi. A causa simulandi constitui um indício tipicamente axial no sentido de que a presença da mesma, só por si, não permite construir definitivamente a presunção mas constitui um catalisador heurístico que pode resultar da prova de outros indícios da síndrome simulatória. Ou seja, perante o apuramento de uma concreta causa simulandi, ficará facilitada a prova da simulação porquanto a causa simulandi operará como fio condutor na averiguação e interpretação dos demais factos sob julgamento».

Estabelecido, dir-se-á que um dos indícios seguintes a descortinar será o indício necessitas, que, «na sua vertente positiva, procura demonstrar a veracidade do negócio simulado, a qual decorrerá, v.g., do actuar do homo aeconomicus que pretende obter o máximo rendimentos dos bens, o seu sustento ou aumentar a sua riqueza»; e, por isso, «se o simulador alega a existência de uma motivação atendível para a celebração do negócio, esta não deve ser admitida como válida sem que venha acompanhada da sua oportuna demonstração» (devendo ser recusada a justificação para as vendas - v.g. dificuldades económicas do vendedor - se a mesma foi realizada entre pessoas que estão próximas, ou por um preço inferior ao de mercado).
Outro «dos indícios mais operativos em sede de simulação é o indício affectio, gerado pelas relações familiares, de amizade, de dependência, de negócios, profissionais ou de dependência, anteriormente firmadas entre o simulador e o seu co-autor e que vinculam este àquele por um motivo de tal índole. O simulador escolhe como parceiro negocial uma pessoa da sua confiança porque pretende preservar o negócio dissimulado (ou o objectivo final que preside à sua actuação) e subtraí-lo a qualquer risco que ponha em causa a sua subsistência».

Acresce, neste percurso indagativo, o indício subfortuna, isto é, a «incapacidade financeira ou desproporcionalidade entre os meios económicos do adquirente e os encargos que o mesmo assume nos termos declarados no negócio simulado», devendo por isso exigir-se a apresentação e prova das razões que o justifiquem (v.g. prévios empréstimos contraídos para viabilizarem o negócio, existência de poupanças próprias).
Muitas vezes relacionado com o anterior (e cada vez mais justificado nas nossas sociedades, de progressiva diminuição da guarda própria e subsequente transmissão física de dinheiro vivo) surge o indício movimento bancário, segundo o qual o que é normal «é que o pagamento e movimento de dinheiro deixe um rasto documental e bancário, sendo fácil ao titular de uma conta bancária fazer a prova dos movimentos da mesma».
Dir-se-á, igualmente, que um «preço irrisório ou abaixo dos valores de mercado constitui outro indício frequente da simulação (indício pretium vilis). Este indício abrange não só o preço em sentido estrito como a toda a contraprestação susceptível de valorar-se em dinheiro, v.g. permuta».
Reconhece-se, a propósito, que, e tal «como ocorre nos negócios genuínos, é comum nos negócios simulados, v.g. venda, as partes declararem perante o notário que já receberam o preço (indício pretium confessus). A diferença reside em que nos negócios simulados as partes dão por realizado o pagamento mas não dizem como, quando e/ou onde, sucumbindo qualquer explicação sobre as circunstâncias pretéritas integrativas do pagamento do preço.
Este indício é gerado por condicionalismos inerentes ao próprio negócio simulatório: a parte declara que já recebeu porque finge o pagamento de uma quantia que não dispõe e, deste modo, pretende obstar ao despoletamento do indício pretium vilis; a pressa ou sigilo do negócio simulatório; para evitar que se investiguem os movimentos bancários da data da escritura; para inviabilizar a investigação sobre o destino do dinheiro no património do accipiens; para sustentar a tese do preço compensado, etc».
Incumbe, porém, «aos simuladores provar o efectivo pagamento e não ao autor provar o facto negativo do não pagamento pelo simulador».
Ainda relacionado com o pagamento do preço, surge o indício investimento, segundo o qual «a circulação fiduciária não apresenta páginas em banco»: «o accipiens normalmente fará ingressar o dinheiro numa conta bancária ou de aforro ou dar-lhe-á outro destino em conformidade com a necessidade que pretendeu provar ao efectuar a alienação». Logo, a «não demonstração do destino efectivamente dado ao dinheiro, depois de ingressar no património do accipiens, despoleta, de pleno, este indício».
Prosseguindo, dir-se-á que «um dos indícios mais emblemáticos da simulação é o indício retentio possessionis (retenção da posse) que se traduz no facto de o simulador adquirente da coisa transmitida não exercitar sobre a coisa qualquer conduta possessória, sucumbindo por parte deste qualquer actividade reconduzível ao jus utendi, fruendi, disponendi e vindicandi. Assim, apesar da transmissão formal de bens, o vendedor continua na posse do imóvel ou aí a residir, ou seja, o contrato não é executado.
No que tange ao jus fruendi, a inexistência deste decorre, v.g. do vendedor continuar a receber as rendas, continuar a aproveitar os frutos, prosseguir o cultivo do terreno. Quanto à inexistência do ius utendi, a mesma pode demonstrar-se, v.g. pelo facto do vendedor fazer obras no imóvel ou suportar os custos das mesmas, pelo facto de o adquirente não ter sequer mudado o titular dos contratos de água ou electricidade. (…)
Naturalmente que os simuladores tentarão infirmar o indício retentio possessionis designadamente com recurso a documentos registais, recibos de impostos e doutro tipo de encargos gerados pela coisa adquirida, Todavia, o que mais releva do ponto de vista semiótico não é a titularidade formal aposta em tal documento porquanto o fisco proprietário é quem precisamente figura como tal no título propriedade, mas sim quem efectivamente pagou tais encargos. Ou seja, mais do que atender a elementos documentais figurativos, haverá que averiguar se o pretenso adquirente exerce uma intervenção pessoal de domínio de facto sobre a coisa».
Por fim, e no que em particular à impugnação pauliana diz respeito, invoca-se ainda o indício omnia bona, isto é, «a venda de todo o património ou da parte mais significativa deste geralmente num curto período de tempo», o que se reforça quanto estejam em causa bens móveis, normalmente de valor inferior e de revenda mais difícil (Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 2017, 3ª edição, p. 265 a 285).
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3.3.3. Juízo definitivo (do Tribunal da Relação)

Concretizando, dir-se-á, de forma conforme com a sentença recorrida, que não foi feita prova directa da má fé do Réu (José), isto é, a consciência de que causava prejuízo ao Autor ao adquirir à Ré (Maria) o único prédio rústico da mesma simultaneamente de maior valor e desonrado, e o seu veículo automóvel de marca BMW.
Com efeito, nenhuma das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento confirmou essa consciência (nomeadamente, e tal como o Tribunal a quo o considerou exigível, o conhecimento por parte do Réu - José - do concreto crédito do Autor, de que este o estava a exigir judicialmente, ou de que aquele se haja conluiado com a Ré - Maria - para frustrar a garantia patrimonial dos respectivos credores); e a mesma também não foi confessada pelos Réus.
Contudo, e face aos demais factos provadas e não provados (isto é, àqueles que nenhuma das partes - nomeadamente, os Réus - sindicaram), considera-se que os mesmos permitem a prova indirecta dessa mesma má fé, nomeadamente face às presunções judiciais tidas habitualmente como suficientes para esse fim.
Com efeito, foi a prova produzida consentânea com a demonstração:
. de uma verosímil causa simulandi - isto é, a preocupação da Ré (Maria) - à data já objecto de uma acção executiva movida pelo Autor -, de frustrar a garantia patrimonial do crédito deste (conforme provado no facto enunciado na sentença recorrida sob a alínea l)), tendo a mesma soçobrado na prova da alegada necessidade de auxiliar economicamente a Filha residente nos Estados Unidos (conforme facto não provado enunciado na sentença recorrida sob a alínea d)).

Nesta afirmação da causa simulandi, considera-se ainda positivamente o indício necessitas, já que, a ser verdadeira a alegação de dificuldades financeiras da Ré (Maria), mal se compreenderia que a mesma não pusesse os bens em causa em irrestrito mercado de oferta e procura, obtendo pelos mesmos um preço consentâneo com o seu valor real, não os alienando conjuntamente ao mesmo Adquirente, e por menos de metade daquele valor.

Pondera-se, de igual modo, o indício omnia bona, isto é, a Ré (Maria) alienou simultaneamente, numa única data, os dois únicos bens de maior valor, e desonerados, que possuía.

Por fim, o indício investimento reforça todo o anterior juízo, de determinação e confirmação da causa simulandi, já que a Ré (Maria) não demonstrou a efectiva afectação do alegado preço recebido ao auxílio da Filha (uma vez que, como bem enfatizou o Tribunal a quo, o que seria normal é que lho fizesse chegar por meio de uma transferência bancária internacional, e não em mão, consumindo na sua própria deslocação aos Estados Unidos uma parte do dito auxílio, e agravando a sua prestação com superior demora).

. da relação próxima (indício affectio) existente entre a Ré (Maria), alienante, e o Réu (José), adquirente - isto é, não obstante a mesma ter sido negada nos articulados de ambos, certo é que resultou absolutamente demonstrada pela prova produzida (também como o enfatizou o Tribunal a quo, nomeadamente quando fez notar ter sido o Réu quem recebeu a citação da Ré para estes autos).
Acresce que, mesmo na versão sustentada em sede de audiência de julgamento pelo Réu (José) - de que a Ré (Maria) circularia a título de empréstimo com o veículo automóvel que lhe adquirira -, o dito empréstimo só faria sentido se previamente existisse uma relação de proximidade afectiva que o justificasse (já que não é comum que um terceiro adquirente, de todo estranho ao alienante, o beneficie depois gratuitamente com o uso e fruição de um bem cuja disposição, por ele próprio, exigiu o pagamento de um preço).

. da menoridade da contrapartida económica em causa (indício pretium vilis) - isto é, ficou assente que Ré (Maria) declarou vender ao Réu (José) um prédio rústico por € 2.000,00, quando o mesmo valeria € 9.240,00, constituindo aquele o seu único bem desonerado, e o de maior valor.

. da ausência de prova do efectivo pagamento do preço ou de qualquer outra contrapartida (indício pretium confessus) - isto é, não demonstraram os Réus onde, quando e por que modo, foram pagos os preços devidos pelo prédio rústico e pelo veículo automóvel (na versão por eles defendida em audiência de julgamento, de € 10.000,00), nomeadamente o preço de € 2.000,00 declarado como tendo sido já recebido no documento particular autenticado de venda.

. da falta de meios económicos do Réu (José) adquirente (indício subfortuna) - isto é, resultou da prova produzida em audiência de julgamento que o mesmo aufere apenas uma reforma mensal de € 450.00, não lhe sendo conhecidos outros rendimentos ou bens disponíveis; e sem que também tenha apresentado qualquer explicação verosímil para a inesperada disponibilidade de € 10.000,00 (a acreditar na sua versão, de ter sido esse o preço conjunto pago pelas compras feitas).
No mesmo sentido se considera o indício movimento bancário, já que, dispondo o Réu (José) efectivamente daquele montante, não seria expectável que o guardasse em casa, e sim numa qualquer instituição bancária, sendo ainda da experiência comum que o entregasse à Ré (Maria) por meio de normal e corrente transferência bancária.

. do ter-se mantido a Ré (Maria) como exclusiva utilizadora do veículo automóvel vendido, e da falta de prática pelo Réu (José) de actos de conservação sobre o prédio rústico adquirido (indício retentio possessionis) - isto é, e tal como resultou da prova produzida, é a Ré (Maria) quem se continua a comportar como proprietária do veículo automóvel (sendo o mesmo um bem de desgaste rápido e progressivo, pelo que essa utilização gratuita acarretará inexorável prejuízo para o Réu, já de si privado da respectiva utilização); e o Réu (José), ao contrário do por ele sustentado em sede de audiência de julgamento, também não praticou até hoje quaisquer actos de apropriação do prédio rústico que alegadamente comprou.

. da inesperada coincidência entre a alegada prática dos actos de alienação e o seu registo - isto é, ficou demonstrado que, não só Ré (Maria) teria, na mesma data (01 de Outubro de 2012) vendido ao Réu (José) um prédio rústico e um veículo automóvel, como este procedeu ao registo de aquisição de tais bens a seu favor logo no dia imediato (02 de Outubro de 2012), sem que apresentasse qualquer razão que justificasse tamanha eficiência e organização, tão desconformes com a idiossincrasia e a prática nacionais (quando não estão em causa pessoas colectivas, ou a imposição legal da prática de tais actos em imperativos momentos).

. da inequívoca falta de verdade de parte dos depoimentos prestados pelos Réus em audiência de julgamento - isto é, devendo a ponderação da credibilidade de um qualquer depoimento ser realizada como um todo, verifica-se que ambos os Réus, e não apenas a Ré (Maria), depuseram de forma desconforme com a realidade depois apurada (e não objecto de sindicância no único recurso interposto). Ora, ao fazê-lo, tornaram lícita a dúvida do julgador, de que a sua falta de rigor na reprodução da realidade histórica ocorrida não se limitou apenas à parte em que foi indiscutivelmente confirmada, sucedendo muito provavelmente o mesmo com a parte do seu depoimento que não se viu directamente contraditada por outra prova.

Dir-se-á assim, e salvo o muito respeito pela opinião contrária do Tribunal a quo, que a consideração dos factos provados e não provados referidos supra (repete-se, já definitivamente estabelecidos, porque não integrantes do objecto deste único recurso), permite a prova indirecta da má fé do Réu (José): os prévios factos (provados e não provados) estabelecidos (constituindo-se como facto base da presunção) permitem firmar a consciência que o Réu (José) tinha de que estava a prejudicar os credores da Ré (Maria) (facto presumido); e o facto presumido (inicialmente desconhecido) mostra-se absolutamente conforme com as regras da experiência.

Precisa-se que o exposto não equivale a dizer que o Réu (José) tinha conhecimento do concreto crédito do Autor (v.g. natureza, montante, datas de constituição ou de vencimento), ou de que o mesmo se encontrava a ser judicialmente exigido. Contudo, considera-se suficiente para este efeito que tivesse actuado conjuntamente com a Ré (Maria), por forma e com a consciência de frustrar a garantia patrimonial dos créditos que terceiros tivessem sobre ela (onde, necessariamente, e não obstante o seu eventual desconhecimento, se incluía o crédito do Autor), o que ficou sobejamente demonstrado supra.
Exigir mais do que isto, seria esquecer que o standard (suficiência) de prova é uma pauta móvel, que terá que ser adaptada (embora de forma objectiva) ao concreto litígio em causa (nomeadamente, à natureza dos factos que nele se pretendem demonstrar); e a correcção, ou incorrecção, dessa adaptação deverá ser sindicável por meio da indicação e da justificação das presunções judiciais que se haja utlizado para o efeito (conforme, aliás, o impõe o art. 607º, nº 4 do C.P.C.), o que ficou sobejamente feito supra.

Mostra-se, assim, parcialmente procedente o recurso do Autor sobre a matéria de facto julgada, devendo parte dos factos não provados enunciados na sentença recorrida sob as alíneas a) e b) passar a integrar a matéria de facto provada, e mantendo-se na outra parte no elenco dos factos não provados.

São, por isso, aditados ao elenco dos factos provados, como 9.1. e 9.2., os seguintes:

9.1. - Ao acordarem na compra e venda do imóvel e do veículo automóvel identificados referidos nos três factos anteriores, na pendência do processo executivo identificado, os Réus agiram com um propósito concertado entre si, com o objectivo de ocultarem o património transmitido, a fim de este não ser afecto à satisfação dos credores da Ré (Maria).

9.2. - Aquando da celebração dos referidos contratos de compra e venda, o Réu (José) tinha pleno conhecimento da existência de dívidas da Ré (Maria).

Altera-se, em conformidade, o elenco dos factos não provados, nomeadamente dos enunciados sob as alíneas a) e b), que aí passam a constar da seguinte forma:

a) O Réu (José), ao agir concertadamente com a Ré (Maria), com o objectivo de ocultar o património que esta lhe transmitiu, fê-lo para que ele não fosse especificamente afecto à satisfação do crédito do Autor.

b) Aquando da celebração dos referidos contratos de compra e venda, o Réu (José) tinha pleno conhecimento da existência da dívida da Ré (Maria) para com o Autor.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Impugnação pauliana
4.1.1. Conceito – Natureza

Lê-se no art. 601º do C.P.C. que «pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios».

Logo, em regra todos os bens do devedor (isto é, todos os que integram o seu património), respondem pelo cumprimento da obrigação, constituindo uma garantia geral do adimplemento (art. 817º do C.C.), que se torna efectiva por meio de execução (art. 735º, nº 1 do C.P.C.).

Contudo, o devedor, pretendendo frustrar esta garantia geral dos seus credores (ou de um deles em particular), poderá fazer sair do seu património determinados bens, com ou sem o concurso de terceiros, com os quais eventualmente se tenha conluiado neste propósito.

Visando obstaculá-lo, lê-se no art. 610º do C.C. que «os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor», se «o crédito for anterior ao acto ou, sendo posterior», tiver sido «realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor», desde que «resulte do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade».

Uma vez «julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei», sendo que «os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido» (art. 616º, nº 1 e nº 4 do C.C.).

Assim, «ao credor que impugnou com êxito o acto do devedor cabe o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse» (já que se visa reduzir o impacto nas relações entretanto constituídas, afectadas assim no mínimo suficiente à satisfação do credor activamente interessado na preservação da garantia patrimonial do seu crédito). «Mas os bens não têm de sair do património do obrigado à restituição, onde o credor poderá executá-los e praticar, quanto a eles, os actos de conservação da garantia autorizados por lei» (Mário Júlio de Almeida ..., Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra Editora, 1991, p. 729).

Por outras palavras, «a restituição na acção pauliana, sendo exercida no interesse exclusivo do credor, não necessita de que os bens regressem ao património do devedor, podendo conservar-se no património do terceiro, onde o credor os poderá executar. (...) A consequência da acção pauliana é sempre uma restituição: mesmo quando o réu se limita a tolerar que o autor execute os bens no seu património, há uma restituição, empregada a palavra no seu sentido lato, pois, mediante aquela tolerância, consegue-se a restituição de determinado valor ao autor» (Vaz Serra, B.M.J., nº 75, p. 287, com bold apócrifo).
Por isso também se diz que «a acção pauliana é uma acção de responsabilidade ou indemnizatória, não podendo os bens ou direitos adquiridos pelo terceiro ser atingidos senão na medida do necessário ao ressarcimento do prejuízo sofrido pelo impugnante, cujos efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido. É uma acção pessoal por meio da qual se faz valer um direito de crédito do autor e não uma acção de nulidade (...), já que o acto contra o qual se dirige a acção não é nulo, mas válido, sem vício interno que impeça a sua validade» (Ac. da RC, de 17.01.1995, C.J., Tomo I, p. 27, com bold apócrifo. No mesmo sentido, Mário Júlio de Almeida ..., «Nótula a propósito da Impugnação Pauliana», R.L.J., Ano 132º, p. 165).
O credor, julgada procedente a acção, adquire três direitos: o direito à restituição de bens na medida do seu interesse; o direito de praticar actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei; e o direito de executar os bens no património do obrigado à restituição (art. 616º, nº 1 do C.C.).

Assim se compreende que, na acção pauliana, o pedido a formular pelo autor seja o da restituição, material e jurídica, dos bens alienados, ao património dos devedores alienantes, e não o da rescisão do contrato celebrado (Ac. do STJ, de 20.05.1993, C.J.STJ, Tomo II, p. 113).

Contudo, «tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (nº 1 do artigo 616º do Código Civil), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo artigo 664º do Código de Processo Civil» (A.U.J do STJ nº 3/2001, de 23 de Janeiro de 2001, publicado no DR, I Série A, de 9 de Fevereiro de 2001)
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4.1.2. Requisitos de procedência

Identificado e definido o tipo de tutela que o Autor aqui pretende obter, importa verificar se se encontram reunidos nos autos os pressupostos legais da sua atribuição.
Recorda-se, a propósito, a redacção do art. 610º do C.C., onde se lê que «os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor», se «o crédito for anterior ao acto ou, sendo posterior», tiver sido «realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor», desde que «resulte do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade».
Sendo, porém o «acto oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé», ao contrário do que sucede se o acto for gratuito, em que «a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa fé» (art. 612º, nº 1 do C.C.).
Por fim, lê-se no nº 2 do art. 612º citado que «entende-se por má fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor».

São, assim, requisitos de procedência da acção de impugnação pauliana (conforme Ac. do STJ, de 20.01.2010, Processo nº 1282/03.1, Ac. do STJ, de 08.10.2009, Processo nº 1360/07.8, e Ac. do STJ, de 12.03.2009, Processo nº 09B0264, todos in www.dgsi.pt, como qualquer outro citado sem indicação de origem):

. a existência de determinado crédito

A impugnação pauliana pressupõe desde logo, e por parte do seu autor, que o mesmo seja titular de um ou mais créditos sobre alguém (isto é, que tenha direito a exigir-lhe uma prestação com expressão pecuniária).

. a prática de um acto pelo devedor que não seja de natureza pessoal

Existindo o crédito, importa de seguida que a contraparte do seu titular - o devedor - pratique um acto (não uma omissão, compreendida no âmbito da sub-rogação prevista no art. 606º do C.C.) que envolva diminuição da garantia patrimonial daquele crédito.
Entre os potenciais actos assim configuráveis destacam-se os de alienação de bens ou de transmissão de direitos, bem como os de renúncia a direitos existentes no património do devedor (v.g. compra e venda, doação, hipoteca, dação em pagamento, constituição de usufruto, trespasse, renúncia abdicativa a quaisquer direitos reais de garantia).
Os actos em causa não poderão, porém, revestir natureza pessoal - v.g. casamento, divórcio, adopção - embora estes possam ter reflexos no património do devedor.

. a anterioridade desse crédito em relação à celebração do acto, ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor

Existindo um crédito, e tendo o seu devedor praticado um acto que prejudica a garantia patrimonial daquele, «exige-se, em princípio, que o crédito se mostre anterior ao acto a impugnar. A explicação parece evidente: por um lado, os credores só podem contar com os bens que existam no património do devedor à data da constituição da dívida e com os que nele entrem depois; por outro lado, resultaria perturbada a segurança do comércio jurídico, desde que se admitisse a impugnação de certos negócios com fundamento em actos posteriores de alguns dos seus outorgantes» (Mário Júlio de Almeida ..., Direito das Obrigações, 4ª edição, Coimbra Editora, 1984, p. 594).

Mas o referido pressuposto de anterioridade do crédito sofre uma restrição importante, consagrada pela primeira vez entre nós precisamente com o art. 610, al. a), in fine do C.C. (já que o Código de 1867 apenas se referia à anterioridade da dívida): o crédito poderá ser posterior, desde que o acto tenha sido «realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor».
O que se deverá entender, então, pelo dito «carácter doloso» do acto ? Exigir-se-á do terceiro a intenção, não apenas de tirar proveito do acto fraudulento do devedor, mas também a intenção de prejudicar os futuros credores deste ?
Parece suficiente, a este propósito, a scientia fraudis, isto é, ter o terceiro conhecimento do plano urdido pelo devedor, estando com isso o terceiro já em dolo, embora possa dizer-se que se trata de um dolo simplesmente genérico. O terceiro deve ter participado na intenção fraudulenta do devedor, ter tido conhecimento ou consciência da fraude (Vaz Serra, R.L.J., nº 3382, p. 9).
Por outras palavras, «a impugnação de actos anteriores ao crédito exige, pois, que se mostre que tais actos visaram impedir a satisfação do crédito do credor, mas fazendo-o ardilosamente, convencendo o credor de que os bens continuaram no devedor». Logo, «há-de haver um nexo entre o dolo perpetrado e o crédito frustrado»; e, por isso, «se resultar que esse crédito seria concedido mesmo sem a interferência do devedor e do terceiro, o dolo é irrelevante; nos termos gerais do Art. 254º, nº 1, tal releva há-de provir de que “a vontade tenha sido determinada por dolo”» (Menezes Cordeiro, Impugnação Pauliana, C.J., 1992, Tomo II, p. 60).

. o resultar do acto a impossibilidade para o credor de obter a satisfação plena do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade

Existindo um crédito, tendo ocorrido a prática de um acto por parte do seu devedor, e sendo aquele crédito anterior a este acto (ou, sendo posterior, tendo o acto sido praticado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor), exige-se ainda que da prática do dito acto resulte a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade.
O acto pode envolver a diminuição da garantia patrimonial tanto pela diminuição do activo (v.g. doação de um imóvel, remissão de uma dívida), como pelo aumento do passivo (v.g. assunção da dívida de outrem, afiançamento de débito alheio).
Com efeito, «a constituição de uma dívida pode ser objecto da impugnação. E pode igualmente ser impugnada, através da pauliana, a constituição da garantia real, na medida em que diminua o acervo de bens que constituem a garantia dos credores comuns» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I Volume, 4ª edição, Coimbra Editora, Limitada, p. 626).
«Esta impossibilidade, conforme resulta da regra especial sobre repartição do ónus de prova, contida no art. 611º, do C.C., afere-se através duma avaliação da situação patrimonial do devedor após a prática do acto a impugnar. É o peso comparativo do montante das dívidas e do valor dos bens do devedor que indicará se desse acto resultou a mencionada impossibilidade. Se aquele montante for superior ao valor dos bens do devedor, verifica-se uma lesão da garantia patrimonial do credor que permite a utilização da impugnação pauliana; mas se for inferior ou igual, deve considerar-se que aquela garantia não foi afectada pelo acto praticado, não se verificando um prejuízo que justifique qualquer reacção» (João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2ª edição - revista e aumentada, Almedina, 2008, p. 175, com bold apócrifo).

Ao credor incumbirá «a prova do montante das dívidas», enquanto que «ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto» incumbirá «a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor» (art. 611º do C.C.).

A doutrina deste artigo afasta-se, em alguma medida, das regras gerais sobre o ónus de prova, contidas no art. 342º e seguintes do C.C., já que, segunda as mesmas, deveria caber inteiramente ao autor fazer a prova dos requisitos necessários à procedência do seu pedido. «No entanto, por razões compreensíveis - dificuldade ou mesmo impossibilidade de provar que o devedor não tem bens - o artigo atribui a este o encargo de provar que possui bens penhoráveis de valor igual ou superior ao das dívidas. E igual encargo lança a lei sobre o adquirente (terceiro), interessado na manutenção do acto» (Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., p. 628). Caber-lhe-á, desse modo, a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou de maior valor.

Assim, compreende-se igualmente que, «no caso de existirem vários responsáveis solidários, o ónus de prova incumba aos demandados na acção de impugnação pois, caso tal faculdade da prova da existência de mais bens penhoráveis se estendesse a todos os responsáveis solidários da dívida, poderia haver um arrastamento por cadeia de novos responsáveis solidários de outras dívidas o que tornaria impossível ou diabólica a prova a fazer» (Ac. do STJ, de 29.09.1993, C.J.STJ, 1993, Tomo III, p. 37).

A data a que deve atender-se para saber se do acto resultou, ou não, a impossibilidade, de facto, de satisfação integral do crédito impugnante é a do acto impugnado. Assim, se nessa data o devedor ainda possuía bens de valor bastante superior ao montante do crédito, a impugnação deverá ser julgada improcedente (Ac. do STJ, de 19.12.1972, B.M.J., nº 222, p. 386).
Contudo, «o julgador necessita (...) de ser muito realista e de atender francamente, não tanto ao texto, como ao espírito da lei.
Se do acto realizado pelo devedor, em si mesmo considerado, sem atender às suas sequelas, não resultar imediata ou necessariamente a insolvência dele, mas houver sinais sérios de que ele se prepara para ocultar aos credores e ao tribunal o dinheiro ou outro valores mobiliários recebidos, o juiz deve conceder a pauliana» (João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em geral, Vol. II, 4ª edição, Almedina, 1990, p. 437).

. e, tratando-se de acto oneroso, que tenha havido má fé bilateral (tanto da parte do devedor como do terceiro), entendendo-se por má fé a consciência do prejuízo que o acto cause ao credor

Existindo um crédito, tendo ocorrido a prática de um acto por parte do seu devedor, sendo aquele crédito anterior a este acto, e tendo resultado da prática do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade, importará ainda que - sendo aquele acto oneroso - o devedor e o terceiro tenham agido de má fé.
Relativamente ao que seja um «negócio oneroso», define-se o mesmo tradicionalmente como o que pressupõe atribuições patrimoniais de ambas as partes, existindo entre elas um nexo de correspectividade ou relação sinalagmática, segundo a respectiva vontade, enquanto os «negócios gratuitos» se caracterizam pela presença de uma intenção liberal de uma das partes, tendo por objectivo efectuar uma atribuição patrimonial a favor de outra, sem qualquer contrapartida ou equivalente.

Contudo, importa salientar que esta genérica e operativa definição pode carecer de uma mais aprofundada consideração, nomeadamente porque: há negócios susceptíveis de gradações, isto é, nem são totalmente onerosos, nem são totalmente gratuitos, como uma doação modal, ou uma compra e venda com um preço quase irrelevante (vide, a propósito, Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2008, 5ª edição, p. 447, e o Ac. da RG, de 18.02.2016, Helena Melo, Processo nº 134/14.0TBAMR-G1); e negócios que, tendo formalmente uma destas naturezas, se vêem depois adulterados na sua utilização, como será o caso de uma escritura de compra e venda de imóvel, mas em que por vontade das respectivas partes seja logo assumida a definitiva falta de pagamento do preço (vide, a propósito, Ac. da RP, de 28.11.2017, Fernando Samões, Processo nº 943/15.7T8PVZ.P1, em que numa acção de impugnação pauliana qualificou «como gratuito o contrato de compra e venda em que não houve pagamento de qualquer preço e a declarada compradora é filha dos vendedores e irmã do principal devedor»).
Precisa-se, porém, que incumbe ao credor do devedor alienante o ónus de alegação e prova de que o negócio impugnado reveste a natureza de gratuito, não lhe aproveitando para o efeito a simples não prova do pagamento do preço declarado numa compra e venda (vide, a propósito, Ac. da RL, de 27.09.2016, Luís Filipe Pires de Sousa, Processo nº 9448/12.7TCLRS.L1-7).

Por outras palavras, se bem que esta não prova do pagamento possa constituir um indício da simulação havida, por si só não equivale à demonstração da natureza gratuita do acto, que terá de ficar afirmada positivamente (isto é, ficar provado que o preço declarado não foi pago): nem a prova de um facto negativo altera, por si só, as regras do ónus de alegação e prova, nem a não prova de um facto implica a prova do facto contrário (mas tão só que o facto em causa inexistiu, ficando como se nunca tivesse sido alegado).

Já relativamente à «má fé», que a lei define hoje como «a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor», o que se deverá entender por ela ?

«A consciência do prejuízo causado aos credores não é a intenção de os prejudicar, pois o acto pode ser praticado sem esta intenção e existir, todavia, a consciência do prejuízo.

Por outro lado, pode haver conhecimento do estado de insolvência e não haver consciência do prejuízo causado aos credores, porque pode haver a convicção séria de que, embora insolvente agora, o devedor melhorará depois a sua fortuna, de sorte a não prejudicar os seus credores. (...) Assim, se o devedor, estando insolvente, vende um prédio ou o hipoteca para obter valores com que possa realizar uma operação destinada a melhorar a sua situação patrimonial, e este facto é conhecido do terceiro, não haverá má fé, nem dele, nem do terceiro» (Vaz Serra, Responsabilidade patrimonial, B.M.J., nº 75, p. 212, em estudo que se insere no âmbito dos trabalhos preparatórios do actual C.C., citado com bold apócrifo).

Por outras palavras, «não se reclama, deste modo, a intenção de prejudicar ou o conhecimento da insolvência do devedor. Trata-se de fórmula que corresponde a realidades diversas. Repara-se que pode existir a consciência do prejuízo que o acto causa aos credores, sendo o mesmo realizado, todavia, sem o intuito de lhes produzir dano; assim como essa consciência do prejuízo não pressupõe, necessariamente, que se reconheça ou exista a situação patrimonial deficitária do devedor, e vice-versa» (Mário Júlio de Almeida ..., Direito das Obrigações, 4ª edição, Coimbra Editora, 1984, p. 598, com bold apócrifo).

Logo, a má fé do terceiro que aqui releva é a sua consciência do prejuízo causado ao credor, «a consciência de que o acto de alienação e o subsequente esbanjamento do preço recebido prejudicam o credor. (...) Pode dizer-se que o conceito adoptado representa uma solução intermédia entre o antigo conceito psicológico do conhecimento da insolvência e o requisito bem mais apertado da intenção de prejudicar (animus nocendi) os credores» (Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., p. 629, com bold apócrifo. No mesmo sentido, Vaz Serra, R.L.J., nº 3382, p. 10, maxime nota 2, já no âmbito do actual C.C.).

A lei, ao exigir a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor, está a determinar a necessidade da sua previsão. Esta, pode, assim, ser consentânea, não apenas com o dolo (em qualquer das suas formas - directo, necessário ou eventual), mas ainda com a negligência consciente (em que o agente, prevendo a possibilidade de certo resultado, actua todavia confiando levianamente em que ele não se produza).Não se verificando tal previsão, só pode haver negligência inconsciente, insuficiente para fundamentar a impugnação pauliana.

(Neste sentido, defendendo que o instituto deve abranger tanto os casos de dolo, como de negligência consciente - já que em ambos há a representação da possibilidade da produção do resultado danoso -, Luís Manuel Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, 6ª edição, Almedina, 2008, p. 307, ou Mário Júlio de Almeida ..., Direito das Obrigações, 10ª edição, 2006. A jurisprudência pronuncia-se invariavelmente no mesmo sentido, e há muito, conforme Ac. do STJ, de 23.01.1992, B.M.J., nº 413, p. 552).

Compreende-se, por isso, que se afirme que «a teleologia subjacente ao instituto da impugnação pauliana não é compatibilizável com uma excessiva ampliação dos seus requisitos fundamentais, de modo a dispensar a efectiva representação pelas partes - por ambas as partes, assente a exigência de bilateralidade da má fé - no negócio oneroso impugnado da sua nocividade para a garantia geral dos credores – substituindo tal consciência ou efectiva percepção do prejuízo por uma mera cognoscibilidade deste, assente no estabelecimento de deveres acessórios de indagação de circunstâncias e motivações subjectivas subjacentes ao acto impugnado, em muitos casos de duvidosa praticabilidade. O sistema em que assenta este instituto funda-se numa ponderação ou balanceamento dos interesses contrapostos - de credores e adquirentes de bens – que confere relevo substancial e acrescido ao valor da segurança do comércio jurídico, no que respeita a actos onerosos – obstando a que determinado negócio jurídico oneroso possa ser procedentemente impugnado quando alguma das partes não tiver representado, face às circunstâncias que lhe foi possível apreender e de que teve efectivo conhecimento, a sua possível nocividade para garantia geral dos credores» (Ac. do STJ, de 13.10.2011, Lopes do Rego, Processo nº 116/09.8T2AVR-Q.C1.S1).

Já «se o acto for gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro [devedor e terceiro] agissem de boa fé» (art. 612º, nº 1, in fine, do C.C.).

Logo, tratando-se de acto gratuito, a lei não exige um específico consilium fraudis por parte do alienante e do adquirente, por entender que os interesses que estão em causa num acto gratuito não podem prevalecer contra os interesses do credor: a impugnação pauliana procede ainda que o devedor e o terceiro tenham agido de boa fé.

«A diversidade de regimes tem explicação fácil: sendo o acto gratuito, há sempre prejuízo para o credor, e prejuízo injustificável, porque quem procura interesses (certat de lucro capiendo, como diziam as fontes romanas) deve ceder a quem procura evitar prejuízos (certat de damno vitando): nemo liberalis nisi liberatus: sendo o acto oneroso, em tese geral não há prejuízo para o credor, porque à prestação cedida há-de corresponder, por conceito, uma prestação de valor equivalente. Deve, portanto, exigir-se mais alguma coisa. E essa mais alguma coisa é a má fé» (Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., p. 628).

Por fim, o requisito da má fé depende da prova, a produzir pelo credor, relativamente à factualidade integrativa do conceito.
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4.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)

Concretizando, verifica-se que o Tribunal a quo deu como preenchidos todos os requisitos legais de procedência da impugnação pauliana pretendida pelo Autor, à excepção da má fé bilateral (do devedor alienante e do terceiro adquirente), já que apenas a julgou verificada quanto à Ré.

Com efeito, lê-se na sentença recorrida (que aqui se subscreve inteiramente, reproduzindo-se a mesma com bold apócrifo):

«(…)
Como já foi expendido na motivação da matéria de facto, considerou-se como provado que o crédito do Autor existe, por um lado porque a existência do crédito não foi impugnada pela primeira Ré, e embora impugnado pelo segundo Réu (por desconhecimento), certo é que os Réus não provaram que o referido crédito se tenha extinto pelo pagamento, pois não ficou provado que a primeira Ré tenha pago ao Autor o seu crédito, prova que lhe competia fazer, nos termos do disposto no art.º 342º, nº 2 do Cód. Civil.

Assim, para além de ter ficado provada a existência do crédito do Autor, também ficou provada a anterioridade de tal crédito em relação ao acto transmissivo dos bens à custa dos quais o Autor pretende ressarcir-se, bem como a impossibilidade do Autor obter a satisfação integral do seu crédito.

Com efeito, como ficou plasmado nos factos provados, quer o contrato de compra e venda referente ao imóvel, quer o contrato referente ao veículo automóvel foram concretizados no dia 01 de Outubro de 2012, sendo que a confissão de dívida em que assenta o crédito do Autor reporta-se a 16 de Novembro de 2004, e venceu-se a 15 de Abril de 2005.
(…)
Conforme resulta da factualidade dada como provada, os demais bens existentes no património da primeira Ré não são suficientes para garantir o pagamento do crédito do Autor, pois como ficou demonstrado embora a Ré seja proprietária de mais 9 prédios rústicos, estes, na sua totalidade têm um valor de mercado de € 4.481,90, valor manifestamente inferior ao valor da dívida que ascende ao montante de, pelo menos, € 20.374,92, que corresponde ao montante da quantia exequenda, reclamada nos autos de execução que o Autor instaurou contra a primeira Ré, a que acrescerão os juros de mora e as despesas de execução.
Tais factos, permitem-nos afirmar com segurança que do acto impugnado resultou para o Autor a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito.
(…)
Conforme resulta dos factos provados, os negócios atacados através da presente acção, tendo um por objecto a compra e venda do prédio rústico sito em ..., freguesia de ..., Arcos de Valdevez, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº …, e outro por objecto o veículo automóvel da marca BMW, de matrícula PZ, foram celebrados em 01/10/2012, ou seja, na pendência da acção executiva que o Autor instaurou contra a primeiras Ré para cobrança do seu crédito, a qual foi instaurada em Outubro de 2010, e depois de já ter sido requerida, naqueles autos, pelo aqui Autor, a penhora dos referidos bens, e da primeira Ré ter sido citada para os respectivos termos, mais resultando que esta até se apresentou a deduzir oposição à execução.
Esta factualidade, tanto basta, para inferirmos, que a primeira Ré, tinha consciência do prejuízo que a realização de tais negócios jurídicos acarretaria para o Autor, até porque não desconhecia que os demais bens existentes no seu património tinham valor manifestamente insuficiente para garantir a satisfação do referido crédito, considerando até os irrisórios valores patrimoniais, que a Ré tinha necessariamente conhecimento, mais tendo ficado demonstrado que tais bens imóveis, no seu todo, tem um valor de mercado, de € 4.481,90.

Como se disse, à data dos negócios a primeira Ré tinha conhecimento que o Autor havia instaurado contra si a referida execução com vista à satisfação do seu crédito, pois já havia sido citada para os referidos autos e, inclusive, havia deduzido oposição à execução, sem que tivesse arguido qualquer nulidade de citação.
(…)»

Contudo, a mesma sentença recorrida, tendo previamente julgado não provada a consciência do Réu (José) de que, com os negócios feitos com a Ré (Maria), prejudicava os seus credores, veio depois a concluir coerentemente com aquele seu prévio juízo que «claudica, forçosamente, a pretensão do Autor, improcedendo a acção».

Tendo, porém, sido aqui já alterada a redacção do elenco os factos provados e dos factos não provados - desse modo se estabelecendo que o Réu (José) actuou concertadamente com a Ré (Maria) para frustrar a garantia patrimonial dos credores desta (nomeadamente, adquirindo-lhe para o efeito o prédio rústico e o veículo automóvel em causa nos autos), tendo com isso necessária consciência do prejuízo que desse modo lhes causava -, ficou igualmente verificado o requisito de má fé bilateral; e, do mesmo passo, assegurada a procedência da acção.
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Fica, ainda, prejudicado o conhecimento do remanescente objecto do recurso sobre a matéria de direito (pertinente à alegada natureza gratuita dos negócios em causa), o que aqui se declara, nos termos do art. 608º, nº 2 do C.P.C., aplicável ex vi do art. 663º, nº 2, in fine, do mesmo diploma.
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Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela procedência do recurso de apelação interposto pelo Autor (Manuel).
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V – DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto pelo Autor (Manuel), e, em consequência, em

· revogar a sentença recorrida;

· substituí-la por decisão a decretar a ineficácia, quanto ao Autor (Manuel), do actos de compra e venda havidos em 01 de Outubro de 2012 entre a Ré (Maria), como vendedora, e o Réu (José), como comprador, tendo por objecto um prédio rústico (sito no ..., freguesia de ..., concelho de Arcos de Valdevez, composto de mato, inscrito na matriz predial rústica da referida freguesia sob o artigo ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o artigo …º) e um veículo automóvel (de marca BMW, modelo 346L 3ER REIHE, com a matrícula PZ), podendo o Autor (Manuel) executar os referidos prédio rústico e veículo automóvel no património do Réu (José), até ao montante da dívida que a Ré (Maria) possui para com ele próprio.
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Custas da apelação pelos Réus (art. 527º, nº 1 do CPC).
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Guimarães, 03 de Maio de 2018.


Maria João Marques Pinto de Matos
José Alberto Martins Moreira Dias
António José Saúde Barroca Penha