Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
78/18.0T8BRG.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: TRATAMENTO COMPULSIVO AMBULATÓRIO
SUBSTITUIÇÃO
INTERNAMENTO COMPULSIVO
REGIME DE EXECUÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) A colocação do requerido em regime de tratamento compulsivo ambulatório em substituição do regime de internamento compulsivo em que se encontrava não determina o arquivamento dos autos.

II) A execução da medida de substituição de tratamento ambulatório compulsivo tem de continuar a ser acompanhada não só pelo médico mas também pelo tribunal competente, desenvolvendo-se no âmbito do processo judicial em curso, que se mantém pendente e com a mesma natureza.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção Penal)

Relatora: Fátima Furtado; adjunta: Laura Maurício.

I. RELATÓRIO

No processo de internamento compulsivo nº 78/18.0T8BRG, do juízo local criminal de Braga, juiz 3, da comarca de Braga, em que é requerido Miguel, foi determinado que este se mantivesse em tratamento ambulatório compulsivo, por decisão de 22 de fevereiro de 2018, com o seguinte teor:

«I. RELATÓRIO

Iniciou-se o presente processo com o internamento compulsivo de urgência de MIGUEL, nascido no dia 1 de junho de 1978, residente na Rua …, em Braga.
Foi nomeada uma defensora oficiosa ao internado e foi dado cumprimento ao disposto no artigo 15.º da Lei n.º 36/98, de 24.07.
Procedeu-se à avaliação clínico-psiquiátrica a que alude o artigo 27.º, n.º 1, da Lei n.º 36/98, de 24/07.
Designada data para a sessão conjunta de prova, a mesma decorreu com integral respeito pelas formalidades legais.
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O Tribunal é competente.

Inexistem questões prévias, incidentais ou nulidades de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

2.1. Matéria de facto provada
Mostram-se provados os seguintes factos:

a) MIGUEL foi internado compulsivamente de urgência no Serviço de Psiquiatria do Hospital de Braga no dia 7 de janeiro de 2018;
b) O internamento compulsivo de urgência foi homologado por despacho judicial proferido no dia 8 de janeiro de 2018;
c) O requerido padece de doença bipolar do tipo I;
d) Apresenta agitação psicomotora, hostilidade e discurso coprolálico, bem como humor disfórico e irritável;
e) Encontra-se descompensado;
f) Não reconhece que está doente;
g) Recusa tratamento;
h) A anomalia psíquica de que padece acarreta riscos para a sua integridade física e de terceiros;
i) Atualmente apresenta-se mais calmo e colaborante, pelo que foi decidido pela psiquiatra assistente proceder à substituição do internamento compulsivo pelo tratamento compulsivo ambulatório, situação em que se mantém desde o dia 8 de fevereiro de 2018.
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2.2. Matéria fáctica não provada

Não resultaram não provados quaisquer factos.
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2.3. Motivação da decisão sobre a matéria de facto

A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto considerada provada resultou da análise dos relatórios de avaliação clínico-psiquiátrica juntos aos autos a fls. 02, 13-verso e 24, bem como do despacho judicial de fls. 4.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

O internamento compulsivo encontra-se regulamentado na Lei n.º 36/98, de 24 de julho – adiante designada como Lei de Saúde Mental e pela sigla L.S.M..

Nos termos do disposto no artigo 12.º, n.º 1, da Lei de Saúde Mental, “o portador de anomalia psíquica grave que crie, por força dela, uma situação de perigo para bens jurídicos, de relevante valor, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial, e recuse submeter-se ao necessário tratamento médico pode ser internado em estabelecimento adequado”.

Os factos provados permitem concluir pela existência dos legais requisitos para o internamento compulsivo de MIGUEL, já que este é portador de anomalia psíquica grave, não tem capacidade crítica do seu estado de saúde e a sua doença do foro psíquico origina que tenha comportamentos prejudiciais para si e para as pessoas que convivem com o mesmo.

Pelo exposto, é de concluir pelo decretamento do tratamento compulsivo ambulatório de MIGUEL. Com efeito, tendo em conta a evolução favorável, deverá o mesmo manter-se na situação de tratamento compulsivo ambulatório, nos termos fixados a fls. 24 e 25 e com integral respeito pelo disposto no artigo 33.º da L.S.M..
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IV. DECISÃO

Tendo em conta o supra exposto, determino que MIGUEL se mantenha em tratamento compulsivo ambulatório.
Sem custas (cfr. o artigo 37.º da L.S.M.).
Notifique, nos termos do artigo 20.º, n.º 3, da L.S.M..
Oficie ao Senhor Diretor do Serviço de Psiquiatria do Hospital de Braga, remetendo cópia da presente decisão e dando conta que:

. deve ser remetida informação aos presentes autos, em caso de alta da requerida, nos termos do disposto no artigo 34.º, n.º 3, da L.S.M.;
. caso não seja dada alta ao requerido, deve obrigatoriamente dar cumprimento ao disposto no n.º 4, do artigo 35.º da L.S.M., enviando até 10 dias antes da data em que se cumpram dois meses a contar da presente decisão, um relatório de avaliação clínico-psiquiátrica elaborado por dois psiquiatras com a eventual colaboração de outros profissionais de saúde mental, a fim de ser junto aos presentes autos.
Deposite, registe e notifique.»
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Inconformado, o requerido Miguel interpôs recurso, apresentando a respetiva motivação que remata com as seguintes conclusões:

«I - A douta decisão julgou incorrectamente as alíneas d), e), g) e h) da matéria de facto provada.
II - As alíneas d) e e) da matéria de facto provada deverão ser revogadas ou alteradas em face do novo quadro sintomático do doente e da alta.
III - A alínea g) da matéria de facto provada há-de ter por assente, apenas, a recusa até à data da alta.
IV - A alínea h) da matéria de facto provada deve ser alterada em conformidade de que, em abstracto, a anomalia pode provocar aquela consequência mas já não no caso actual.
V - No caso de alta e aceitação de tratamento ambulatório deve determinar-se o arquivamento dos autos.
VI - Se a aceitação de internamento importa que se arquive o processo – assim artigo 19.º, n.º 3 da LSM – não se vê razão para que o mesmo não se verifique no menos, ou seja em situações de tratamento como sucede no caso sub judice - a maiori, ad minus.

NESTES TERMOS,

- Deve a, aliás, douta decisão em crise ser revogada determinando-se, para além do mais, o arquivamento dos autos.»
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães com o regime e efeito próprios, por despacho datado de 14 de março de 2018.
A Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral adjunto emitiu douto parecer, igualmente no sentido de que o recurso não merece provimento.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (1).
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1. Questões a decidir

Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, as questões a decidir são:

A. incorreção da decisão proferida sobre a matéria de facto;
B. saber se a colocação do requerido em regime de tratamento compulsivo ambulatório, aceite pelo próprio, em substituição do regime de internamento compulsivo em que se encontrava, determina o arquivamento dos autos.
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3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

A. Incorreção da decisão proferida sobre a matéria de facto.

O recorrente começa por se insurgir com a decisão sobre a matéria de facto, alegando ter sido incorretamente considerada como provada a factualidade descrita nas alíneas d), e), g) e h) da matéria de facto provada.

Os pontos impugnados têm o seguinte teor:

«d) Apresenta agitação psicomotora, hostilidade e discurso coprolálico, bem como humor disfórico e irritável;
e) Encontra-se descompensado;
g) Recusa tratamento;
h) A anomalia psíquica de que padece acarreta riscos para a sua integridade física e de terceiros;»

Na motivação da decisão de facto o Tribunal a quo dá conta que a sua convicção relativamente à matéria considerada provada assentou na análise dos relatórios de avaliação clínico-psiquiátrica juntos a fls. 2, 13 verso e 24, bem como no despacho judicial de fls. 4.

Ora, vistos os relatórios periciais de fls. 2 e 13 verso, todos elaborados por médicos psiquiatras que observaram o recorrente, sendo o último inclusive assinado por dois médicos, constata-se que neles é feito o diagnóstico da doença psiquiátrica de que o recorrente padece, referidos os respetivos sintomas e aludidos os riscos que por via dessa doença ocorrem para o próprio e para terceiros, precisamente nos termos e até com as mesmas expressões que foram vertidas nas impugnadas alíneas dos factos provados.

Por outro lado, do relatório da última avaliação clínico psiquiátrica (fls. 24) – igualmente elaborado por dois médicos psiquiatras – decorre que durante o internamento compulsivo a que o recorrente esteve sujeito se verificaram melhoras na sintomatologia que apresentava, mas em momento algum se deixa antever que aquele se encontre já compensado e sem os sintomas do distúrbio mental que motivaram o seu internamento compulsivo.

Antes pelo contrário, pois os médicos fazem menção expressa de que o recorrente continua «sem crítica para a sua doença» e dão conta que o internamento compulsivo foi substituído por tratamento compulsivo em regime ambulatório, para o que se verificou a necessária declaração de aceitação do doente das terapêuticas e recomendações definidas pelo seu psiquiatra assistente.

Esta evolução do estado de saúde foi também levada à factualidade apurada, encontrando-se descrita na al. i), muito embora – e contrariamente ao que sustenta o recorrente – de modo algum signifique uma atual inexistência de recusa do tratamento e consequentemente incorreção da matéria constante da al. g) dos Factos Provados.

Em face do teor da prova produzida, a aceitação do doente abrange aqui unicamente as condições fixadas pelo médico para o tratamento em regime ambulatório, no contexto da doença de que padece e a qual continua a não reconhecer, mas já não abrange o internamento a que aquela situação poderá reverter pelo simples incumprimento das prescrições médicas, às quais nem se pode opor (cfr. o disposto no artigo 33.º, n.º 4 da Lei 36/98, de 24.07 – Lei de Saúde Mental).

A circunstância de o recorrente ter tido alta clínica por os médicos entenderem estarem reunidas as condições para que se proceda ao seu tratamento compulsivo ambulatório, mais não significa do que deixou de haver necessidade que o tratamento decorresse em regime de internamento. O que não é o mesmo que afirmar já ter sido restabelecido o equilíbrio do doente/recorrente, cujo distúrbio mental e riscos a ele associados (descritos nos relatórios periciais) justificam a compulsividade do respetivo tratamento médico psiquiátrico, seja em internamento, seja em ambulatório.
A factualidade impugnada e considerada apurada encontra-se assim amplamente suportada pela prova constante dos autos, que sobre ela não permite a mínima dúvida.
Improcedendo este ponto do recurso.
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B. Questão de saber se a colocação do requerido em regime de tratamento compulsivo ambulatório, aceite pelo próprio, em substituição do regime de internamento compulsivo em que se encontrava, determina o arquivamento dos autos.

O recorrente sustenta que no seu caso, de alta do internamento e aceitação de tratamento ambulatório prescrito, deve determinar-se o arquivamento dos autos.

Vejamos.

Compulsados os autos, constata-se que estes se iniciaram com o internamento compulsivo urgente do recorrente Miguel, no serviço de psiquiatria do Hospital, com o quadro clínico de doença bipolar do tipo I, por se recusar ao tratamento exigível pela doença de que padece, por via da qual apresentava agitação psicomotora, hostilidade e discurso coprolálico, humor disfórico e irritável, sem reconhecer que estava doente e apresentando riscos para a sua integridade física e de terceiros.

Este internamento compulsivo de urgência foi confirmado judicialmente por decisão datada de 8 de janeiro de 2018, por se verificarem os respetivos pressupostos, dos artigos 12.º, n.º 1 e 22.º da Lei de Saúde Mental.
Tendo posteriormente o internamento compulsivo sido substituído por tratamento compulsivo em regime ambulatório, aceite pelo recorrente em 8 de fevereiro de 2018.
Esta substituição encontra o seu fundamento legal no artigo 33.º da Lei de Saúde Mental e é demonstrativa da filosofia subjacente ao diploma, que ao invés de definir uma duração mínima ou máxima para o internamento compulsivo, optou pelo tratamento sempre na forma menos restritiva possível, de preferência na comunidade.

Como ato médico que é, a decisão sobre a possibilidade de realização do tratamento compulsivo em ambulatório e consequente substituição do internamento compulsivo por aquele é da exclusiva responsabilidade do psiquiatra assistente, depois de obtido o consentimento do internado, devendo ser obrigatoriamente comunicada ao tribunal competente.

Embora a medida de substituição de tratamento em regime de ambulatório dependa de aceitação expressa do doente, a sua adoção apenas corresponde à diminuição das exigências cautelares que determinaram o internamento compulsivo urgente, mantendo-se a inerente restrição da liberdade do doente. Repare-se que esse tratamento é sempre determinado pelo psiquiatra assistente e o doente não pode opor-se-lhe, pois o incumprimento das condições estabelecidas determina que o internamento seja retomado, nos termos do artigo 33.º, n.º 4 da Lei de Saúde Mental.

A aceitação do doente abrange aqui unicamente as condições fixadas pelo médico para o tratamento em regime ambulatório, nos termos do artigo 32,º, n.º 2 do mesmo diploma, mas não também o internamento a que, como já vimos, aquela situação pode sempre reverter.

Por outro lado, não se pode também olvidar que é a própria lei que prevê a obrigatoriedade da revisão da medida de tratamento ambulatório de dois em dois meses e sempre com a prévia audição do Ministério Público (artigo 35.º, n.ºs 2 e 4 ex vi artigo 33.º, n.º 1, última parte, ambos da Lei de Saúde Mental). Podendo ainda, e a qualquer tempo, o tribunal proceder à revisão da medida desde que invocados - por quem tem legitimidade - fundamentos conducentes à cessação do internamento (artigo 35.º, n.ºs 1 e 3 da Lei de Saúde Mental).

No contexto legal acabado de descrever, é indubitável que a execução da medida de substituição de tratamento ambulatório compulsivo tem necessariamente de continuar a ser acompanhada não só pelo médico, mas também pelo tribunal competente. Desenvolvendo-se no âmbito do processo judicial em curso, que se mantém pendente e com a mesma natureza, só terminando quando se verificar a desnecessidade do tratamento compulsivo, seja ele em internamento ou em ambulatório, por terem cessado os pressupostos que lhe deram origem.
Precisamente neste sentido se tem vindo a pronunciar de forma pacífica a jurisprudência dos tribunais superiores (2).

A mesma solução defendendo, também, António Latas e Fernando Vieira, em Notas e Comentários à Lei de Saúde Mental (3), onde se pode ler: «(…) nos casos de que trata o artº 33º o processo não finda, antes prossegue seus termos, o que significa que terão lugar as diligências que obrigatoriamente teriam que preceder o internamento (avaliação clínico-psiquiátrica e sessão conjunta) bem como a decisão final sobre o internamento do doente que permanece em tratamento ambulatório ao abrigo do artº 33º, pois a possibilidade de continuar a sujeitar o doente a tratamento compulsivo, pressupõe necessariamente a decisão final sobre o internamento, no momento próprio e pelo tribunal competente (artº 27º) conforme resulta inequivocamente da inserção sistemática e do teor do artº 33.»

Assim, no caso em apreço, nenhuma censura nos merece a decisão recorrida, quando em face da verificação da substituição do internamento por tratamento compulsivo ambulatório determinou a manutenção do tratamento compulsivo do recorrente, com o inerente prosseguimento do processo em curso.
Naufragando também este ponto do recurso.
***
III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso do requerido Miguel.
Sem custas (artigo 37.º da Lei de Saúde Mental).
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Guimarães, 18 de junho de 2018
(Elaborado e revisto pela relatora)


1. Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
2. Cfr., entre outros, ac. do TRE 15.05.2001, Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVI – tomo III/2001, pp. 283-284; ac. do TRP 08.07.2009, Colectânea de Jurisprudência, Ano XXXVI – tomo III/2009, pp. 235-237; ac. do TRE 12.07.2011, Colectânea de Jurisprudência, Ano XXXVI – tomo III/2011, pp. 267-269; ac. do TRP de 16.09.2009, proc. 4307/09.3TBVNG.P1; ac. do TRP de 10.11.2010, proc. 2510/10.2TBVNG.P1; ac. do TRC de 02.12.2015, proc. 5712/15.1T8CBR-A.C1; ac. do TRC de 11.10.2017, proc. 122/17.9T8TND.C1; estes quatro últimos disponíveis em www.dgsi.pt.
3. Centro de Estudos Judiciários, Coimbra Editora, 2004, pp. 136 e 137.