Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
624/17.7T8VNF.G1
Relator: ELISABETE ALVES
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR
TÍTULO EXECUTIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – Existem providências cautelares cuja exequibilidade se esgota no âmbito do próprio procedimento, pois após decretadas são de imediato, no próprio processo do procedimento, realizadas pelo funcionário judicial (agente de execução), com ou sem o auxilio da força pública, findando o procedimento quando cumprida a decisão, entre as quais se contam a restituição provisória de posse, arresto ou arrolamento.
2- Outras existem que face à natureza da decisão, os seus efeitos práticos estão dependentes da cooperação espontânea do requerido ou em que, face ao não acatamento da medida, se exige a intervenção do tribunal com vista ao seu cumprimento coercivo.
3 - Nestes casos, como em outros em que está em causa o pagamento de uma quantia certa, entrega de coisa certa, prestação de facto positivo ou negativo, o requerente tem o ónus de impulsionar a sua execução, sob pena de ineficácia do procedimento.
4 - Nessa medida, não poderá deixar de se entender, que a decisão proferida no procedimento cautelar encerra uma verdadeira decisão judicial, nos termos e para os efeitos do disposto pelos artigos 703º alínea a) e 705º do C.P.C., com as características da coercibilidade e executoriedade.
5 - A decisão proferida no âmbito do procedimento cautelar de restituição provisória de posse que vai além da mera determinação de restituição da posse, pressupondo a sua concretização a intimação do requerido para a prática de actos, fixando-se, concomitantemente, uma sanção pecuniária compulsória, constitui título executivo.
Decisão Texto Integral:
Apelantes: J. P. e A. P.
Apelados: C. S. e M. N.

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

J. P. e A. P. instauraram, em 25.01.2017, os presentes autos de execução para prestação de facto contra C. S. e M. N. oferecendo como título executivo a decisão proferida nos autos de providência cautelar de restituição provisória da posse que sob o n.º 3118/16.4T8VNF correu termos pelo Juízo Local Cível - Juiz 3 de Vila Nova de Famalicão.
Alegaram, em síntese, que na sentença proferida em 1ª instância nos autos de procedimento cautelar, foram os executados condenados a restituir a posse do direito de servidão sobre águas conduzidas para o prédio urbano dos exequentes e a proceder à religação da água ao prédio dos exequentes.
Que os exequentes obtiveram um orçamento para as obras avaliadas em 1.100,00 euros e que apesar de instados os executados nada fizeram.
Ademais, foram os executados condenados a título de sanção pecuniária compulsória no pagamento da quantia diária de 25,00€ por cada dia de atraso no cumprimento da decisão a partir de 20.06.2016, devendo a tal título a quantia de 5.300€ por já terem decorrido 212 dias.
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Por decisão proferida nos autos de execução com a ref.ª 167076094 datada de 10.02.2020, consignou-se:

“a) Declaro o erro na forma de processo.
b) Determino a nulidade de todos os actos praticados.
c) Ordeno a extinção da execução.
d) Condeno os Exequentes nas custas do incidente, que fixo em 1 UC.”

Para tal, foi sustentado: «A restituição provisória de posse configura uma das providências especificamente previstas no Código de Processo Civil e é regulada nos artigos 377.° a 379.°.
Dispõe o primeiro dos referidos normativos que “No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência”.
Dispõe, por seu turno, o art.º 378.º «Se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordena a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador.»
O procedimento cautelar de restituição provisória de posse compõe-se de duas fases:
[i] uma, de natureza declarativa, na qual o tribunal aprecia os elementos de que depende a tomada de uma medida antecipatória dos efeitos a que tende o processo principal; [ii] outra, de cariz executivo, em que o tribunal, no uso dos poderes de soberania, impõe coercivamente ao requerido a decisão e restabelece o statu quo ante, mediante a entrega material da coisa esbulhada – cfr. Temas da Reforma do Processo Civil IV Volume, Abrantes Geraldes, p. 57
Tal significa que a execução da providência cautelar de restituição provisória do processo tem lugar no próprio procedimento e não em processo executivo autónomo (para entrega de coisa certa).
Acresce que, foi já intentada pelos Exequentes a acção principal de que o procedimento cautelar de restituição provisória da posse é dependente, onde já foi proferida sentença transitada em julgado.
Estamos, assim, em presença de um erro na forma do processo, o qual consubstancia uma nulidade processual – cfr. artigo 193º, do C.P.C.
A nulidade em apreço é de conhecimento oficioso, nos termos do disposto no artigo 196º, do Código Processo Civil.
O momento do conhecimento da mesma, de acordo com o preceituado no artigo 200º, n.º2, do Código Processo Civil é o da prolação do despacho saneador se antes o juiz a não houver apreciado.
Caso inexista saneador, a nulidade pode ser apreciada até à sentença final.
Significa o mesmo que, sendo de conhecimento oficioso e atendendo ao princípio da economia processual, o juiz deve dela conhecer, logo que a detecte, por ser esta a posição mais benéfica para a celeridade e eficácia processual.
Por seu turno, dispõe o artigo 193º, do Código Processo Civil, como manifestação do princípio da adequação formal, que tal nulidade importa a anulação dos actos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime da forma estabelecida por lei
Não devem, porém, aproveitar-se os actos já praticados, se do facto resultar uma diminuição de garantias do réu (cfr. nº 2 do mencionado artº 193º).
No caso presente, não é possível aproveitar qualquer acto praticado e nem adequar o procedimento.»
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Desta decisão vieram os exequentes interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

« A) O título dado à execução é uma sentença condenatória transitada em julgado, sendo o título que determina o fim e os limites da execução. Art. 10º, 703º e 704º do CPC
B) A possibilidade de recurso à ação executiva no âmbito dos procedimentos cautelares resulta expressamente do disposto no art. 375º do CPC..»
C) Independentemente da qualificação jurídico-processual da decisão cautelar, esta é uma verdadeira decisão judicial que goza da garantia da coercibilidade
D) Tais decisões devem ser consideradas como sentenças condenatórias, ou equiparadas a estas.
E) A natureza provisória da decisão/sentença proferida em procedimento cautelar não afasta a sua exequibilidade pois outro entendimento contribuiria para a deslegitimação do poder judicial enquanto “poder soberano”.
F) A execução coerciva da decisão em causa nos autos - de prestação de facto positivo e pagamento da sanção pecuniária compulsória fixada – obedece ao disposto nos arts. 626º e 868º do CPC.
G) O processo comum para prestação de facto segue a forma única (art. 550º do CPC), correndo a execução de sentença nos próprios autos e sendo tramitada de forma autónoma. Art. 85º do CPC.
H) Os Exequentes/Apelantes cumpriram os mencionados preceitos legais e não se verifica qualquer erro ou nulidade processual a impedir o prosseguimento da execução.
I) A douta decisão recorrida violou as normas legais citadas e deve ser revogada, como é de Justiça. »
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Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. Objecto do recurso

As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objecto, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso ou relativas à qualificação jurídica dos factos, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b) e 5º, n.º 3, todos do Código de Processo Civil (C.P.C.).
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Face às conclusões da motivação do recurso, a questão a decidir reside na adequação do meio processual usado, acção executiva, para a execução da decisão proferida em procedimento cautelar de restituição provisória de posse, quando nesta, para além de ordenada a restituição, se condenam os requeridos numa obrigação de facere e numa sanção pecuniária compulsória, em caso de incumprimento da mesma.

III – Fundamentação fáctica.

A factualidade a ter em conta para a apreciação e decisão do recurso é a que foi alegada pelos exequentes no respectivo requerimento executivo, e que, constando em súmula de I supra, aqui se tem por reproduzida, para os legais efeitos.

Acresce, da análise eletrónica dos autos- art.º 607.º/4, ex vi art.º 663.º/2 do C. P. Civil- e para o que ora releva, que (factos indicados por ordem cronológica):

1. Por decisão proferida em 30.05.2016 nos autos de procedimento cautelar de restituição provisória de posse com o n.º 3118/16.4T8VNF, intentados por J. P. e A. P. contra C. S. e M. N., foi decidido, sem audição dos requeridos: «Por todo o exposto, considerando que se encontram preenchidos todos os requisitos exigidos pelo artigo 377º do CPC, decido decretar a restituição provisória, aos requerentes, da posse do direito de servidão sobre as águas aludidas nos factos provados. Em consequência, determino que os requeridos procedam à religação das águas acima aludidas ao prédio identificado em 1), tal como antes se encontrava.
Fixo ainda em 25€ o montante da sanção pecuniária compulsória a pagar pelos requeridos por cada dia de atraso no cumprimento do acima decidido, sendo que tal sanção apenas será aplicada a partir do 20º dia posterior à notificação da presente decisão.
Os requeridos deverão ainda ser advertidos que incorrerão no crime de desobediência nos termos do artigo 375º do CPC, caso infrinjam a providência decretada.
Mais dispenso os requerentes do ónus de propositura da acção principal e declaro invertido o contencioso, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 371º do CPC.»
2. Efectuada a citação dos requeridos foi, por estes, deduzida oposição, vindo a ser proferida, em 12.09.2016, decisão final nos autos de procedimento cautelar, que julgou improcedente a oposição e manteve a providência decretada e bem assim a inversão do contencioso.
3. Com data de 25.01.2017 os requerentes do procedimento cautelar intentaram acção de execução dando como titulo executivo a decisão proferida nos autos de procedimento cautelar.
4. Da decisão final proferida no procedimento cautelar foi interposto recurso pelos requeridos, tendo sido proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 16.03.2017, que julgando parcialmente procedente o recurso, revogou a decisão proferida na parte em que determinou a inversão do contencioso, mantendo, no mais, na íntegra, a decisão recorrida.
5. Na sequência dessa decisão, foi intentada em 1-05-2017, pelos requerentes, acção declarativa (Pr. nº 2913/17.1T8VNF), tendo sido proferida sentença em 9-05-2018, onde ficou decidido: «julgo a presente acção parcialmente procedente e, consequentemente:
- Reconheço aos AA. o direito de servidão sobre a água aludida nos “factos provados”, bem como o direito de servidão de aqueduto referente ao encanamento subterrâneo dessas águas;
- Condeno os RR. a proceder à religação das águas acima aludidas ao prédio identificado em 1) dos “factos provados”, tal como se encontrava antes dos os RR. terem levantado a calçada da Rua de …, aberto uma vala, cortado o tubo da água e procedido ao desvio da água para a sua casa de habitação referida em 9) dos “factos provados”; e
- Condeno os RR. a pagar a cada um dos AA. a quantia de 1 000 (mil) €, acrescido de juros de mora, à taxa legal civil, a contar da presente data.
Mais absolvo os RR. dos demais pedidos formulados pelos AA.
Mais julgo totalmente improcedente o pedido reconvencional formulado pelos RR., dele absolvendo os AA..
Mais julgo improcedentes os pedidos de condenação dos AA. e dos RR. como litigantes de má-fé.».
6. Desta decisão foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, que por acórdão de 17 de Dezembro de 2018, já transitado em julgado, decidiu: «julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pelos Réus (C. S. e mulher, M. N.) e, em consequência, em Confirmar integralmente a sentença recorrida».
7. Por requerimento ref.ª 9178083 de 3.10.2019, vieram os exequentes dar conta aos autos de execução que face ao incumprimento dos executados, por sua iniciativa e expensas, ordenaram a realização da religação da água a uma empresa do ramo os quais orçaram em € 1.908,00, que já pagaram, requerendo, por isso, extinção do pedido executivo de cumprimento da prestação de facto, por inutilidade superveniente e o prosseguimento da execução com penhora de bens relativamente ao pedido de pagamento da sanção pecuniária compulsória, das despesas com a religação da água e das custas do processo.
8. Por despacho proferido na execução em 10.02.2020, ora sob recurso, foi a execução julgada extinta pela verificação do erro na forma de processo, nos termos supra referidos.
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IV - Fundamentação de Direito

Como resulta da decisão proferida na presente execução e do teor das alegações de recurso, a questão decidenda centra-se em saber se a decisão proferida no âmbito de um procedimento cautelar constitui título executivo bastante para instauração de uma acção executiva ou se a executoriedade do procedimento se esgota no âmbito do próprio procedimento cautelar. Cabendo referir, que, in casu, estamos perante um procedimento cautelar tipificado de restituição provisória de posse, cuja decisão para além de ordenar a restituição provisória «da posse do direito de servidão sobre as águas aludidas nos factos provados», determinou que os requeridos procedessem à religação das águas acima aludidas ao prédio identificado na acção, tal como antes se encontrava e fixou uma sanção pecuniária compulsória a pagar pelos requeridos em caso de incumprimento da obrigação fixada, a aplicar a partir do 20º dia da notificação àqueles da decisão, que sem a sua audição, foi inicialmente proferida no procedimento.
Por outras palavras, se como defende o apelante e assim o fez in casu, será através da instauração de um processo executivo que tal decisão deverá ser executada, porquanto os apelantes, requerentes de um procedimento cautelar especificado de restituição provisória de posse, intentaram execução para prestação de facto da decisão proferida nos autos de procedimento cautelar (com a especificidade de nesta ter sido declarada a inversão do contencioso, apesar de posteriormente revogada no que se refere a essa questão) ou se como é decidido na decisão recorrida, o âmbito processual idóneo para a sua execução é o procedimento cautelar de restituição provisória de posse na sua dita «fase executiva».

Vejamos:
É sabido que a providência cautelar se destina a salvaguardar o direito ameaçado até que seja proferida decisão na acção principal, salvo ocorrendo inversão do contencioso (artigo 364.º, n.º 1, CPC). E, em regra, mantém-se até ao trânsito em julgado da decisão que julgar improcedente a acção principal (artigo 373.º, n.º 1, alínea c), CPC).
Os procedimentos cautelares são, nas palavras de Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma, III, Almedina, 3ª ed., pg. 35, «…uma antecâmara do processo principal, possibilitando a emissão de uma decisão interina ou provisória destinada a atenuar os efeitos erosivos decorrentes da demora na resolução definitiva ou a tornar frutuosa a decisão que, porventura, seja favorável ao requerente».
Na medida em que os procedimentos cautelares carecem de autonomia, tendo as providências feição provisória ou interina, suprindo temporariamente a falta da providência final e formando-se para durar unicamente enquanto não existir a decisão final; logo que formada a decisão definitiva, a providência cautelar, porque é provisória, caduca.
Como salienta Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil, vol. I, págs. 623 e segs, a providência cautelar não é um fim, mas um meio, sendo posta ao serviço de uma outra providência que há-de definir em termos definitivos a relação jurídica litigiosa – daí a providência ter carácter provisório… Pela «sua própria natureza e pelas condições em que é decretada, a providência cautelar tem uma vida necessariamente limitada: só dura enquanto não é proferida a decisão final. Logo que se forma a decisão definitiva, a providência cautelar, porque é provisória, caduca automaticamente, perde, ex se ou ipso jure, a sua eficácia, a sua vitalidade». Pela «sua própria índole e função, o acto ou a providência cautelar forma-se para durar unicamente enquanto não existir a decisão final. Emitida esta com carácter definitivo, a providência cautelar cai forçosamente, quer a providência definitiva negue, quer reconheça, o direito do requerente».
O acabado de referir, evidencia-se, designadamente, no teor dos arts. 364.º e 373.º do CPC, que versam sobre a relação entre o procedimento cautelar e a acção principal e a caducidade da providência.
Sucede que enquanto providência cautelar decretada, a sua eficácia na salvaguarda do direito ameaçado, quer na ausência de cumprimento voluntário, quer quando a natureza da decisão o imponha, fica dependente dos mecanismos que permitam a sua execução.
Vejamos:
Se é certo que alguns dos procedimentos cautelares, designados por Amâncio Ferreira in «Curso de Processo de Execução, 12ª ed., pág. 475 e segs. »“Providências Cautelares Perfeitas”, se esgotam no âmbito do próprio procedimento, pois após decretadas são de imediato, no próprio processo do procedimento, realizadas pelo funcionário judicial ( agente de execução), com ou sem o auxilio da força pública, findando o procedimento quando cumprida a decisão e surgindo este como um misto de processo declarativo e executivo, pois a execução surge como fase da própria tramitação do procedimento cautelar1. Entre as quais se contam a restituição provisória de posse, arresto ou arrolamento ( Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma de Processo Civil, III Vol. 5. Procedimento Cautelar Comum, 3ª ed., págs. 263 e segs.), outras existem que face à natureza da decisão, «os seus efeitos práticos estão dependentes da cooperação espontânea do requerido ou em que, face ao não acatamento da medida, se exige a intervenção do tribunal com vista ao seu cumprimento coercivo, independentemente das consequências penais da desobediência ilegítima (2)»
Importa referir que, numa primeira análise, um dos procedimentos cautelares completos ou perfeitos, é o da restituição provisória de posse, já que, como salienta A. Geraldes in obra citada nota 1, págs. 58 e segs. do Vol. IV, a actuação do tribunal não se limita a uma actividade cognitiva de avaliação da verificação dos pressupostos da providência requerida, mas envolve ainda a intromissão na esfera de actuação do requerido por forma a retirar-lhe a posse da coisa ilicitamente esbulhada e a entrega-la ao requerente. Por outras palavras, apresenta uma fase declarativa, na avaliação dos pressupostos da medida antecipatória e uma fase de cariz executivo, em que o tribunal no uso dos poderes de soberania impõe coercivamente ao requerido a decisão e restabelece oficiosamente o statuo quo ante, mediante a entrega material da coisa esbulhada sem necessidade de se instaurar acção executiva para o efeito.
Sucede que existem casos, como ocorre no presente, em que a decisão proferida e a sua concretização pressupõe uma prestação de facto positivo por parte dos requeridos; veja-se: « determino que os requeridos procedam à religação das águas acima aludidas ao prédio identificado em 1), tal como antes se encontrava.» e fixada uma sanção a pagar pelos requeridos em caso de incumprimento: « Fixo ainda em 25€ o montante da sanção pecuniária compulsória a pagar pelos requeridos por cada dia de atraso no cumprimento do acima decidido, sendo que tal sanção apenas será aplicada a partir do 20º dia posterior à notificação da presente decisão.»
Nestes casos, como em outros em que está em causa o pagamento de uma quantia certa, entrega de coisa certa, prestação de facto positivo ou negativo, o requerente tem o ónus de impulsionar a sua execução, sob pena de ineficácia do procedimento.
Nessa medida, não poderá deixar de se entender, que a decisão proferida no procedimento cautelar encerra uma verdadeira decisão judicial, nos termos e para os efeitos do disposto pelos artigos 703º alínea a) e 705º do C.P.C., com as características da coercibilidade e executoriedade.
A esta conclusão não obsta o facto de uma das características do procedimento cautelar ser a sua provisoriedade, que não poderá nunca significar inexequibilidade, gozando, pelo contrário, de exequibilidade todas as decisões cautelares que imponham imediatamente um dever de agir, já que aquela é condição fundamental para a sua eficácia (3).
Tal constatação resulta claramente do artigo 375º do C.P.C., segmento final, onde se prevê o recurso à acção executiva em qualquer das suas espécies: acção executiva para pagamento de quantia certa, para entrega de coisa certa, ou para prestação de facto, sempre que a providência decreta uma intimação do requerido para que realize uma prestação positiva ou negativa e ele a não realiza (4).
Decorre do art. 10º, nº5 do C.P.C. que: “Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva”.
Na definição de Manuel de Andrade, citado por Amâncio Ferreira, in Curso de Processo de Execução, Almedina, 6ª ed., p. 19, o título executivo é “o documento de acto constitutivo ou certificativo de obrigações, a que a lei reconhece a eficácia de servir de base ao processo executivo (...)”.
O título executivo é condição necessária da execução, na medida em que os actos executivos não podem ser praticados senão na presença dele e é também condição suficiente da acção executiva, uma vez que, na sua presença, seguir-se-á imediatamente a execução, sem necessidade de qualquer indagação prévia sobre a existência do direito a que se refere.
Entre este, como referido supra, estará, com todo o respeito por diverso entendimento, a decisão proferida em procedimento cautelar cujo âmbito vá além da executoriedade prevista para o próprio procedimento, como sucede in casu.
Como refere Alberto dos Reis a fls. 127 do Vol. I do Processo de Execução, «Ao atribuir eficácia executiva às sentenças de condenação, o código quis abranger nesta designação todas as sentenças em que o juiz expressa ou tacitamente impõe a alguém determinada responsabilidade. A fórmula legal do n.1 do artigo 46º (5) foi empregada para abranger todas as sentenças em que possa formalmente descobrir-se uma condenação»
Reportando as considerações tecidas ao caso dos autos, claramente se evidencia que a decisão proferida no âmbito do procedimento cautelar de restituição provisória de posse aqui em causa, titulo executivo dado à presente execução, foi além da mera determinação de restituição da posse, já que para a sua concretização foi necessário ordenar, concomitantemente, a intimação do requerido para a prática de actos, cujo incumprimento foi salvaguardado com a fixação de uma sanção pecuniária compulsória a valer após a notificação àquele da decisão proferida no procedimento ( o que só por si evidencia que a exequibilidade da mesma não se esgota no procedimento – vide o artigo 378º do CPC, onde se diz que o juiz ordena a restituição sem citação nem audiência do esbulhador-). Significando, outrossim, que tal decisão constitui título executivo bastante à execução para prestação de facto (868º e segs.).
Importa ainda referir, com especial relevo à decisão a proferir, que à data da propositura da acção executiva pelos requerentes do procedimento cautelar, a decisão dada à execução foi a decisão final proferida no âmbito daquele procedimento (após deduzida oposição pelos requeridos), a qual manteve, quer a providência inicialmente decretada, quer a inversão do contencioso, o que significa que à data da propositura da execução ora em apreço e embora a decisão do procedimento ainda não tivesse transitado em julgado, o que não obstava à sua imediata execução ( cfr. artigo 704º n.1 ( segmento final), 647º ns. 1 e 3 al. d) a contrario, todos do CPC), os exequentes deram à execução uma decisão não apenas transitória, mas final ( ainda que não transitada).
É certo que a inversão do contencioso veio a ser revogada na pendência da execução, por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães no recurso interposto pelos requeridos da decisão final do procedimento cautelar. Tal acórdão, todavia, manteve a decisão proferida quanto a tudo o mais aí decidido. Nessa medida, se bem vemos, a única consequência a extrair do mesmo foi a da necessidade de os requerentes do procedimento instaurarem acção declarativa principal para reconhecimento dos direitos que lhe foram provisoriamente reconhecidos no procedimento cautelar, não afastando a exequibilidade da decisão proferida naquele procedimento, mormente face às consequências do incumprimento pelos requeridos, alegado na execução, do determinado naquele procedimento cautelar, até ao trânsito em julgado da decisão a proferir na acção principal e de acordo com o que nesta viesse a ser decidido, mormente para efeitos da sua eventual caducidade (artigo 373º do CPC) (6).
Não podemos desta forma e face a tudo o que vem exposto, acompanhar o vertido no douto despacho recorrido quando declara a existência de erro na forma do processo por considerar que a execução da decisão tinha que ter tido lugar no procedimento cautelar e não num processo executivo autónomo (para entrega de coisa certa), terá querido dizer certamente, para prestação de facto.
Destarte, impõe-se a revogação de tal despacho de molde a que prosseguindo a execução possam ser apreciadas nesta as questões que aí se suscitam, mormente o requerimento ref.ª 9178083 e os efeitos eventuais que a decisão final e já transitada em julgado proferida no processo declarativo poderá ter no âmbito do peticionado no processo executivo.
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V. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido que declarou o erro na forma de processo, e determinando-se, em consequência, o prosseguimento da execução.
Sem custas.
Guimarães, 24 de Setembro de 2020

Elisabete Coelho de Moura Alves (Relatora)
Fernanda Proença Fernandes
Alexandra Viana Lopes
(assinado digitalmente)


1. Entre as quais se contam a restituição provisória de posse, arresto ou arrolamento ( Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma de Processo Civil, III Vol. 5. Procedimento Cautelar Comum, 3ª ed., págs. 263 e segs.)
2. Ob. citada na nota 1, fls. 264.
3. Neste sentido, entre outros, Ac. R. Lisboa de 10.01.2013 in www.dgsi.pt
4. Vide C.P.C. Anotado, Vol. II, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, págs. 82.
5. Actual 703º n.1 al.a) do CPC.
6. Veja-se a este propósito Ac. STJ de 21.2.2019, processo nº47/14.0T8MNC-D.G1.S1, do relator Oliveira Abreu, in www.dgsi.pt e Ac. R.L. de 05-11-2009, processo 661/08.2YYLSB-B.L1-2, in www.dgsi.pt