Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1346/15.9T8CHV.G2
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: INVENTÁRIO
DÍVIDAS
DESPESAS SUJEITAS A COLAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Quando na petição inicial o requerente do inventário alega que a herança é constituída exclusivamente por bens imóveis, pode-se retirar dessa frase não apenas a negação da existência de outro tipo de bens como também a negação da existência de dívidas.

2. Recai sobre os outros interessados o ónus de alegar a existência de dívidas, bem como de alegar a existência de despesas sujeitas a colação.

3. Se nenhum dos interessados alegar e provar a existência de dívidas da herança e de despesas sujeitas a colação, então o Juiz deve concluir, para todos os efeitos práticos, que não existem.

4. Neste cenário, não é legítimo concluir que faltam factos sobre a existência ou inexistência de despesas sujeitas a colação e sobre a existência de dívidas da herança, nomeadamente para efeitos do cálculo da legítima e para determinação da eventual inoficiosidade de liberalidades.

5. Estando em Juízo todos os interessados na herança, se nenhum deles alegar a existência de despesas sujeitas a colação nem a existência de dívidas da herança, não faria sentido deixar de efectuar os cálculos da legítima com fundamento numa puramente hipotética existência de despesas sujeitas a colação e dívidas.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Sumário: 1. Quando na petição inicial o requerente do inventário alega que a herança é constituída exclusivamente por bens imóveis, pode-se retirar dessa frase não apenas a negação da existência de outro tipo de bens como também a negação da existência de dívidas. 2. Recai sobre os outros interessados o ónus de alegar a existência de dívidas, bem como de alegar a existência de despesas sujeitas a colação. 3. Se nenhum dos interessados alegar e provar a existência de dívidas da herança e de despesas sujeitas a colação, então o Juiz deve concluir, para todos os efeitos práticos, que não existem. 4. Neste cenário, não é legítimo concluir que faltam factos sobre a existência ou inexistência de despesas sujeitas a colação e sobre a existência de dívidas da herança, nomeadamente para efeitos do cálculo da legítima e para determinação da eventual inoficiosidade de liberalidades. 5. Estando em Juízo todos os interessados na herança, se nenhum deles alegar a existência de despesas sujeitas a colação nem a existência de dívidas da herança, não faria sentido deixar de efectuar os cálculos da legítima com fundamento numa puramente hipotética existência de despesas sujeitas a colação e dívidas.

I- Relatório

Os Autores M. F., M. P. e marido A. P., F. C. e mulher A. R., intentaram no Juízo Central Cível de Vila Real, Juíz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, acção declarativa de simples apreciação e de condenação, materializada sob a forma de processo comum, contra ADÉLIA, E. T., e D. B. e C. B., todos com os sinais dos autos, formulando os seguintes pedidos:

a) devem os RR. ser condenados a reconhecer -e isso mesmo ser declarado e reconhecido- que os autores são os únicos e universais herdeiros legitimários do falecido J. C.;
b) devem os RR. ser condenados a reconhecer -e isso mesmo ser declarado e reconhecido- que o valor total dos bens pertencentes ao falecido J. C., tendo em conta os bens deixados, os bens doados e o bem incluído no testamento, perfazem o valor total de € 74.418,74;
c) devem os RR. ser condenados a reconhecer -e isso mesmo ser declarado e reconhecido- que o valor da legítima dos herdeiros legitimários (descendentes) do falecido J. C. perfaz o montante de € 49.612,50;
d) devem os RR. ser condenados a reconhecer -e isso mesmo ser declarado e reconhecido- que o valor da segunda liberalidade (segunda doação a favor da R. ADÉLIA), é, em parte, inoficiosa porque ofende a dita legítima no montante de € 23.881,75.
e) devem os RR. ser condenados a reconhecer -e isso mesmo ser declarado e reconhecido- que a deixa testamentária é totalmente inoficiosa.
f) deve a R. ADÉLIA ser condenada a repor à herança a quantia de € 23.881,75, a qual deverá ser feita com a verba n.º 3 da segunda doação no valor de € 24.000,00;

Para tanto, alegam sinteticamente que:

(i) No dia 1 de Março de 2015 faleceu J. C., de 82 anos de idade, no estado de solteiro, natural da freguesia de (...);
(ii) O falecido não deixou ascendentes vivos, deixou 3 filhos, os autores M. F., M. P. e F. C.;
(iii) A herança aberta por óbito do falecido J. C. é constituída apenas por bens imóveis situados no limite da dita União das freguesias de (...) e (...), concelho de C.;
(iv) O falecido J. C. outorgou, no dia 11 de Agosto de 1999, escritura de doação a favor da R. ADÉLIA, exarada no Livro de Escrituras Diversas n.º (...)-C, de fls. 88 a 88 verso, do Cartório Notarial de C.;
(v) O falecido J. C. fez, ainda, no dia 18 de Fevereiro de 2015, testamento público a favor dos RR. E. T. e D. B. e, ainda da autora M. F., exarado no Livro de Testamentos e Escrituras de Revogação de Testamentos n.º 4-T do Cartório Notarial de H. R., Notário em V..

Os Réus ADÉLIA, E. T. e D. B. deduziram contestação, contra-alegando, sinteticamente, que:

(a) O meio processual não é o adequado;
(b) Corre termos no Cartório Notarial de C. o competente processo de inventário nº. (...) por óbito de J. C., ocorrendo a excepção de litispendência;
(c) Não aceitam a avaliação dos imóveis;
(d) Os Autores omitem créditos da herança.
Concluíram, pedindo a absolvição da instância ou a absolvição do pedido.

Foi proferido saneador-sentença, o qual:

A) Julgou procedente a excepção dilatória de erro na forma do processo e absolveu os Réus ADÉLIA, E. T., D. B. e C. B. da instância atinente aos 2.º, 3.º, 4.º, 5.º e 6.º pedidos formulados pelos Autores;
B) Julgou a excepção de litispendência improcedente;
C) Reconheceu os Autores M. F., M. P. e F. C. como herdeiros legitimários do falecido J. C..

Os Autores recorreram desta sentença, não se conformando com o segmento que julgou procedente a excepção de erro na forma do processo.

Este Tribunal da Relação de Guimarães julgou o recurso procedente e determinou o prosseguimento dos autos.

Foi proferido despacho que enunciou o objecto do litígio e os temas da prova.

Teve lugar a audiência final.

A final, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e em consequência ABSOLVEU os Réus do peticionado.

Inconformados com esta decisão, os autores dela interpuseram recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo, findando a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

I- Os AA., ora recorrentes, não podem deixar de discordar da mui douta sentença, ora recorrida, uma vez que existem nos autos elementos suficientes para suportar a decisão da causa que consideram correcta e justa, ou seja, a total procedência da presente acção e a consequente condenação dos RR. nos pedidos formulados em sede de P.I.

II- No mui douto despacho saneador, dando-se cumprimento ao disposto no artigo 596º do CPC, foi fixado o seguinte:

OBJECTO DE LITÍGIO

"A) Da inoficiosidade da doação outorgada por J. C. com referência à Ré Adélia;
B) Da inoficiosidade da deixa testamentária exarada por J. C.;
C) Da obrigação imputável à Ré Adélia de reposição à herança de J. C. da quantia de 23.881.75€."

III- E enunciados como

TEMAS DE PROVA:

"O valor dos imóveis descritos nos artigos 7° a 10° da petição inicial."
IV- Na verdade, da P.I. constam única e simplesmente - A relação de Bens- ou seja, todos os bens que fazem parte da herança aberta por óbito do falecido J. C.- os bens deixados, os bens doados e o bem incluído no testamento.
V- Tal como resulta do inventário nº (...), o qual corre termos pelo aí citado Cartório Notarial, da Relação de Bens apresentada constam todos os bens existentes.
VI- Apesar de os RR., na sua contestação, alegarem a existência, para além de todos os referidos bens, de possíveis créditos e de possíveis bens móveis, não concretizaram qualquer crédito, nem qualquer bem móvel.
VII- Por essa razão é que também, no douto despacho saneador, foi fixado como único tema de prova:

"O valor dos imóveis descritos nos artigos 7° a 10° da petição inicial."
VIII- Todavia,

A douta sentença, ora recorrida, na sua fundamentação, refere:

"Porém, os Autores não alegam (e tampouco provaram - ónus imputável aos mesmos) a existência ou inexistência de despesas sujeitas a colação e a existência ou inexistência de dívidas da herança, matéria fáctica imprescindível para efectivação do cálculo da legítima, limitando-se tão-­só a invocar os bens imóveis que integram o acervo hereditário (no artigo 7°) da petição inicial."

IX- Refere, ainda: "consequentemente, afere-se que os factos vertidos na petição inicial são manifestamente insuficientes para sustentar a efectivação das operações do cálculo da legítima, nos termos plasmados no art. 2162° do Código Civil (vd. Acórdão do TRC de 5.3.2013, proc. n° 930/11.4T2AVR.C1, in www.dgsi.pt)".
X- E conclui: "destarte, inviabilizado o cálculo da legítima dos Autores, sucumbe a premissa sine qua non para a aferição da impetrada inoficiosidade, pelo que se demanda a improcedência dos 2.°) a 6°) pedidos formulados nos autos."
XI- A afirmação feita na douta sentença de que os AA. se limitaram a invocar os bens imóveis que integram o acervo hereditário é totalmente falsa e nada tem a ver com os elementos concretos e objectivos que constam, como já referido, dos presentes autos.
XII- No artigo 7° da P.I. refere-se expressamente que a herança aberta por óbito do falecido J. C. é constituída apenas pelos bens imóveis situados no limite da dita União de Freguesias de (...) e (...), concelho de C.".
XIII- Não é admissível que se possa, assim, afirmar que os AA. se limitaram a invocar os bens imóveis que integram o acervo hereditário.
XIV- O artigo 25° do RJPI, sob o título "Relação de Bens", enumera as seguintes verbas possíveis: "direitos de crédito; títulos de crédito; dinheiro; moedas estrangeiras; objectos de ouro; prata e pedras preciosas e semelhantes; outras coisas móveis e bens imóveis".
XV- De igual modo o faziam todos os anteriores diplomas legais relativos ao processo de inventário.
XVI- Pelo que, não podem subsistir quaisquer dúvidas de que os AA. incluíram na presente acção todos os bens possuídos pelo inventariado J. C. à data do seu falecimento.
XVII- Na verdade, os RR. não adiantaram/identificaram qualquer outro bem na sua contestação para além dos constantes da relação de bens dos autos.
XVIII- O que determinou, por isso, o teor do despacho saneador proferido nos presentes autos.
XIX- Mal e erradamente andou o meritíssimo Juiz ao concluir que: "os AA. se limitaram a invocar os bens imóveis que integram o acervo hereditário".
XX- O que, além de tudo o mais, também está em nítida contradição com o anteriormente decidido em sede de despacho saneador.
XXI- O que constitui causa de nulidade da sentença, de acordo com o disposto no artigo 615°, nº 1, alínea c), do CPC.
XXII- Também a douta sentença, ora recorrida, é nula por conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento, nos termos do disposto na alínea d) do citado preceito legal.
XXIII- Na verdade, como já sobejamente referido, a douta sentença acaba por alegar que: "os AA. se limitaram a invocar os bens imóveis que integram o acervo hereditário".
XXIV- O que não corresponde à verdade.
XXV- Uma vez que não existem nos autos, nomeadamente na mui douta contestação, no douto despacho saneador e na audiência de discussão e julgamento, quaisquer elementos que permitam a identificação de qualquer outro bem/dívida que possa fazer parte da herança aberta por óbito do falecido J. C..
XXVI- Impunha-se, por isso, ter como correcta e completa a relação de bens apresentada nos autos.
XXVII- E impunha-se, dando-se, assim, cumprimento, à citada alínea d), "a efectivação das operações do cálculo da legítima, nos termos plasmados no art.° 2162.°, do Código Civil".
XXVIII- Tal operação deverá ser feita como consta já da P.I., mas de acordo com os valores constantes do relatório pericial junto aos autos.
XXIX- A douta decisão, ora recorrida, está, assim, também ferida da nulidade prevista no citado artigo 615°/1, alínea d) do CPC.
XXX- Na douta decisão, ora recorrida, verifica-se, pelas razões supra referidas, excesso de pronúncia, nomeadamente, quando refere que os AA. se limitaram a invocar os bens imóveis que integram o acervo hereditário.
XXXI- E verifica-se omissão de pronúncia, além do mais, quando não dá integral cumprimento ao disposto nos artigos 52° e segs. do RJPI e artigo 2162° do Código Civil.
XXXII- A mui douta sentença, ora recorrida, faz uma incorrecta interpretação e aplicação de todas as citadas disposições legais.
XXXIII- A mui douta decisão, ora em recurso, deverá ser integralmente revogada e substituída por outra que proceda "à efectivação das operações do cálculo da legítima, nos termos plasmados no art. 2162° do Código Civil".

A apelada Adélia apresentou contra-alegações, defendendo a total improcedência do recurso.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a única questão a decidir consiste em saber se constam dos autos todos os factos necessários para efectuar o cálculo da legítima e determinar se as liberalidades feitas pelo de cuius são inoficiosas.

III
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1. No dia 1 de Março de 2015, faleceu J. C., no estado de solteiro, natural da freguesia de (...), concelho de C., filho de (...) e de (...), com última residência na Rua …, (...), freguesia de (...) e (...), concelho de C..
2. A autora M. F., casada com F. P., é filha do falecido J. C. e de ADÉLIA.
3. A autora M. P., casada com A. P. sob o regime da comunhão de adquiridos, também é filha do falecido J. C. e de ADÉLIA.
4. O autor F. C., casado com A. R. sob o regime da comunhão de adquiridos, também é filho do falecido J. C. e de ADÉLIA.
5. No dia 11 de Agosto de 1999, exarou-se escritura pública de “Doação” subscrita por J. C., como primeiro outorgante, e por ADÉLIA, como segunda outorgante, consignando-se, designadamente, que:
Pelo primeiro outorgante foi dito que, pela presente escritura, doa à segunda outorgante os seguintes bens imóveis, sitos na dita freguesia de (...):

Número um: prédio rústico, no (...), composto por mato, inscrito na matriz sob o artigo (...), com o valor patrimonial de 248$00, descrito na Conservatória do Registo Predial de C. sob o número cento e dez (…)
Número dois: prédio rústico, no (...), composto por pastagem, inscrito na matriz sob o artigo (...), com o valor patrimonial de 75$00, descrito na Conservatória do Registo Predial de C. sob o número cento e onze (…)
Número três: dois terços indivisos de um prédio rústico, no (...), composto de terra de cultivo, lameiro de feno e mato, inscrito na respectiva matriz sob o artigo (...), com o valor patrimonial correspondente à fracção de 7870$00, descrito na Conservatória do Registo Predial de C. sob o número cento e doze (…)
Número quatro: prédio rústico, no (...), composto de terra de cultivo, inscrito na respectiva matriz sob o artigo (...), com o valor patrimonial de 2480$00, descrito na Conservatória do Registo Predial de C. sob o número cento e sessenta (…)
Número cinco: prédio rústico, no (...), composto de terra de cultivo, inscrito na respectiva matriz sob o artigo (...), com o valor patrimonial de 2381$00, descrito na Conservatória do Registo Predial de C. sob o número cento e sessenta e um (…)
Pela segunda outorgante foi dito que aceita a presente doação (…)
6. No dia 6 de Julho de 2000, exarou-se escritura pública de “Doação” subscrita por J. C., como primeiro outorgante, e por ADÉLIA, como segunda outorgante, consignando-se, designadamente, que:

Pelo primeiro outorgante foi dito que, pela presente escritura, doa à segunda outorgante os seguintes direitos imóveis, sitos no limite da freguesia de (...) referida, saber:
Número um: um quinto indiviso do prédio rústico, sito no lugar de (...), composto de terra de cultivo, inscrito na respectiva matriz sob o artigo (...), com o valor patrimonial de 9920$00, descrito na Conservatória do Registo Predial de C. sob o número cento e oito (…)
Número dois: um terço indiviso do prédio rústico, sito no lugar de (...), composto de terra de cultivo, lameiro de feno e mato, inscrito na respectiva matriz sob o artigo (...), com o valor patrimonial de 11.805$00, descrito na Conservatória do Registo Predial de C. sob o número cento e doze (…)
Número três: prédio rústico, sito no lugar de (...), composto de terra de cultivo e lameiro de feno, inscrito na respectiva matriz sob o artigo (...), com o valor patrimonial de 3.398$00, descrito na Conservatória do Registo Predial de C. sob o número cento e catorze (…)
Número quatro: prédio rústico, sito no lugar de (...), composto de terra de cultivo, sito no lugar dos (...), inscrito na respectiva matriz sob o artigo (...), com o valor patrimonial de 447$00, descrito na Conservatória do Registo Predial de C. sob o número trezentos e quarenta e seis (…)
Pela segunda outorgante foi dito que aceita a presente doação (…)”
7. Em 18 de Fevereiro de 2015, J. C. subscreveu escritura pública de “Testamento”, consignando:
Que, por conta da quota disponível da sua herança, faz os seguinte legados:
Lega em comum e em partes iguais à sua filha, M. F. e a E. T., filho de Adélia e A. T., o prédio urbano composto por casa de habitação, sito na freguesia de (...), concelho de C., que era a sua residência habitual.

Lega a D. B., filha da referida Adélia e A. T., o prédio urbano composto por armazém (em construção), que confina com o prédio supra identificado.
8. Pela ap. 1 de 2000/09/06, afigura-se registada a aquisição a favor de Adélia dos prédios rústicos sitos na freguesia de (...), descritos na Conservatória do Registo Predial de C. sob os números (...), (...) e (...), por doação de J. C..
9. No Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros e Registos n.º (...)/2015, da Conservatória do Registo Civil de C., declarou-se que M. F., M. P. e F. C., filhos de J. C., são herdeiros do mesmo.
10. Pela ap. 516 de 2015/03/12, afigura-se registada a aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito a favor de M. F., M. P. e F. C. dos prédios sitos na freguesia de (...) e descritos na Conservatória do Registo Predial de C. sob os números …, … e …, por sucessão hereditária de J. C..
11. Pela ap. 516 de 2015/03/12, afigura-se registada a aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito a favor de M. F., M. P. e F. C. de 1/2 do prédio sito na freguesia de (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de C. sob o números …, por sucessão hereditária de J. C..
12. Os prédios rústicos sitos no lugar de (...), anteriormente inscritos na matriz da freguesia de (...) sob os artigos (...) e (…) e actualmente inscritos na matriz da União das freguesias de (...) e (...) sob os artigos … e …, descritos na Conservatória do Registo Predial de C. sob os números … e …, têm o valor de mercado global de 21.353,00€.
13. O prédio rústico sito no lugar da …, anteriormente inscrito na matriz da freguesia de (...) sob o artigo (...) e actualmente inscrito na matriz da União das freguesias de (...) e (...) sob o artigo …, descrito na Conservatória do Registo Predial de C. sob o n.º …, tem o valor de mercado de 1.850,00€.
14. O prédio rústico sito no lugar de Cortiços, anteriormente inscrito na matriz da freguesia de (...) sob o artigo … e actualmente inscrito na matriz da União das freguesias de (...) e (...) sob o artigo …, descrito na Conservatória do Registo Predial de C. sob o n.º …, tem o valor de mercado de 6.460,00€.
15. Os prédios rústicos sitos no lugar de (...), anteriormente inscritos na matriz da freguesia de (...) sob os artigos … e (...) e actualmente inscritos na matriz da União das freguesias de (...) e (...) sob os artigos … e …, descritos na Conservatória do Registo Predial de C. sob os números … e …, têm o valor de mercado global de 1.870,00€.
16. O prédio rústico sito no lugar de (...), anteriormente inscrito na matriz da freguesia de (...) sob o artigo (...) e actualmente inscrito na matriz da União das freguesias de (...) e (...) sob o artigo …, descrito na Conservatória do Registo Predial de C. sob o n.º …, tem o valor de mercado de 11.632,00€.
17. O prédio rústico sito no lugar de (...), anteriormente inscrito na matriz da freguesia de (...) sob o artigo (...) e actualmente inscrito na matriz da União das freguesias de (...) e (...) sob o artigo …, descrito na Conservatória do Registo Predial de C. sob o n.º …, tem o valor de mercado de 2.836,00€.
18. O prédio rústico sito no lugar de (...), anteriormente inscrito na matriz da freguesia de (...) sob o artigo (...) e actualmente inscrito na matriz da União das freguesias de (...) e (...) sob o artigo …, descrito na Conservatória do Registo Predial de C. sob o n.º …, tem o valor de mercado de 1.651,00€.
19. O prédio rústico sito no lugar do (...), anteriormente inscrito na matriz da freguesia de (...) sob o artigo (...) e actualmente inscrito na matriz da União das freguesias de (...) e (...) sob o artigo …, descrito na Conservatória do Registo Predial de C. sob o n.º …, tem o valor de mercado de 9.768,00€.
20. O prédio rústico sito no lugar dos (...), anteriormente inscrito na matriz da freguesia de (...) sob o artigo (...) e actualmente inscrito na matriz da União das freguesias de (...) e (...) sob o artigo …, descrito na Conservatória do Registo Predial de C. sob o n.º …, tem o valor de mercado de 1.638,00€.
21. O prédio urbano sito em Dorna, anteriormente inscrito na matriz da freguesia de (...) sob o artigo … e actualmente inscrito na matriz da União das freguesias de (...) e (...) sob o artigo …, descrito na Conservatória do Registo Predial de C. sob o n.º …, tem o valor de mercado de 36.000,00€.
22. A Ré Adélia viveu com J. C. durante mais de 30 anos.
*
B) Factos não provados: inexistem com relevância para a discussão da causa.

IV
Conhecendo do recurso.

Verificamos que os recorrentes, nas suas conclusões de recurso, não atacam a decisão sobre matéria de facto, o que significa que esta é tida como definitiva.

E assim, essencialmente, o que está em causa é saber se com base nessa matéria de facto a acção deveria ter sido julgada procedente.

A sentença recorrida analisou bem a pretensão formulada pelos autores: trata-se de aferir dos pressupostos da inoficiosidade da doação e da deixa testamentária referenciadas pelos Autores, em decorrência do falecimento de J. C. e da abertura da respectiva sucessão.

A teoria é conhecida e pacífica. Damos aqui por reproduzido o que se escreve na sentença recorrida, sobre o funcionamento da sucessão legitimária. A principal nota é a de que as normas que regem a sucessão legitimária são imperativas, no sentido de que os herdeiros legitimários não podem ser afastados da herança pelo autor da mesma, salvo casos de deserdação.

Sabemos que os herdeiros legitimários são o cônjuge, os descendentes e os ascendentes, pela ordem e segundo as regras estabelecidas para a sucessão legítima, nos termos prescritos no art. 2157º do Código Civil.

Os herdeiros legitimários têm a faculdade (art. 2170º CC), irrenunciável, de pedir a redução por inoficiosidade das liberalidades do autor da sucessão que ofendam a legítima, poder que se aplica não apenas a liberalidades que hajam de produzir os seus efeitos após a morte do autor da sucessão, mas igualmente a liberalidades que produzem os seus efeitos próprios em vida deste.

Trata-se de faculdade que apenas pode ser utilizada pelos herdeiros legitimários após a morte do de cuius, atentas as naturais flutuações do património, que fazem com que só na altura da morte do autor da sucessão é que pode saber se há ou não ofensa à legítima.

No caso dos autos, não existe cônjuge e já não existem ascendentes vivos. Assim, como se provou, os autores M. F., M. P., e F. C. são os filhos do de cuius J. C. (e de ADÉLIA).

Logo, são seus herdeiros legitimários.

A existência de herdeiros legitimários acarreta a existência da legítima. Como é sabido, a legítima, que nunca ocupa a totalidade do património do de cuius, mas apenas uma sua quota-parte, variável, é aquela quota-parte do património de que o autor da sucessão não pode dispor.

Recorrendo aos ensinamentos de Inocêncio Galvão Telles (Direito das Sucessões, Noções fundamentais, 5ª edição, fls. 84 e seguintes), “se em vida do de cuius o ius succedendi ou direito à sucessão é para o legitimário, como para qualquer outro sucessível, algo de meramente futuro e eventual, a verdade é que o legitimário goza já, nessa fase, de protecção particular. Ele é, como os demais, simples sucessível virtual, pois a situação ainda não se concretizou, é uma situação instável que só com o óbito do de cuius se fixará. Contudo, a lei tutela o seu interesse de vir a ser chamado à herança, e nisto a sua posição difere profundamente da do sucessível legítimo e da do testamentário. Estes estão inteiramente à mercê do de cuius, que pode livremente frustrar por completo os seus cálculos: afastando o sucessível legítimo mediante testamento em que deixe os bens a outrem, ou o sucessível testamentário revogando o testamento feito. O legitimário não se encontra, por definição, sujeito à discricionariedade do de cuius. A sua presença impõe à vontade deste um limite importante representado pela quota indisponível. A liberdade de disposição gratuita do autor da sucessão, quer por meio de liberalidades mortis causa quer por meio de liberalidades inter vivos sofre grave amputação, acantonada como fica à porção restante do seu património. O de cuius com sucessíveis legitimários não pode instituir herdeiros cujos quinhões excedam a quota disponível: e também não pode fazer legados que só por si ou somados àqueles quinhões ultrapassem o valor dessa quota. Mas a protecção da lei vai ainda mais longe, porque as doações entre vivos contam igualmente para este efeito. Seria insuficiente restringir a liberdade de testar proibindo deixas ofensivas da legítima. Se o de cuius conservasse a plena liberdade de doar poderia em vida canalizar gratuitamente os seus bens ou grande parte deles para outras pessoas que desejasse beneficiar prejudicando os legitimários. (…) Numa palavra, as doações inter vivos também têm de se manter dentro dos limites da quota disponível. Donde se segue que para calcular a legítima há que somar ao valor do património efectivamente deixado, isto é, do património existente à data do óbito do de cuius, o valor das doações feitas”.

De acordo com o art. 2159º,2 CC, não havendo cônjuge sobrevivo, a legítima dos filhos é de metade ou dois terços da herança, conforme exista um só filho ou existam dois ou mais. No caso, existem 3 filhos, donde a legítima são dois terços da herança.

Já o art. 2162º,1 CC dispõe que para o cálculo da legítima, deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte (relictum), ao valor dos bens doados (donatum), às despesas sujeitas a colação e às dívidas da herança.

Tudo isto é referido na sentença recorrida, que faz a explicação do regime jurídico do cálculo da legítima, com referência à divergência quanto às operações que visam o apuramento da legítima, entre a tese da Escola de Coimbra e a da Escola de Lisboa. Enquanto a primeira propugna que o donatum não responde pelo passivo, pelo que a quota indisponível se apura com o abatimento do passivo ao relictum, seguindo-se a soma do donatum, e indexando-se o resultado ao cálculo da quota legitimária, a segunda advoga que o donatum também é afectado pelo passivo, pelo que o donatum deve ser somado ao relictum, abatendo-se, de seguida, o passivo (vd. Luís Carvalho Fernandes, ob. cit., p. 409 e ss.). E acolhe-se a tese expendida pela Escola de Coimbra.

De seguida, a sentença conclui, com acerto, que inexistindo cônjuge sobrevivo, a legítima fixa-se nos 2/3 da herança (art. 2159º do Código Civil), sendo que a quota indisponível apura-se com o abatimento do passivo ao relictum, seguindo-se a soma do donatum, e indexando-se o resultado ao cálculo da quota legitimária.

Igualmente, é feita a referência a que em conformidade com o prescrito no art. 2168º do Código Civil, dizem-se inoficiosas as liberalidades, entre vivos ou por morte, que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários. E que estas liberalidades inoficiosas são redutíveis, a requerimento dos herdeiros legitimários ou dos seus sucessores, em tanto quanto for necessário para que a legítima seja preenchida (art.º 2169.º, do Código Civil). E ainda que a redução abrange em primeiro lugar as disposições testamentárias a título de herança, em segundo lugar os legados, e por último as liberalidades que hajam sido feitas em vida do autor da sucessão (art.º 2171.º, do Código Civil).

De seguida, baixando ao concreto, e olhando para a factualidade provada sob os nºs 5) a 7), retira-se que o de cujus efectuou duas doações inter vivos e outorgou num testamento.
Até aqui estamos em total acordo com o que vem sendo expendido na decisão recorrida, o mesmo podendo ser dito quanto aos recorrentes.

A divergência dos recorrentes surge porém logo no passo seguinte, quando se escreve na sentença que: “porém, os Autores não alegaram (e tampouco provaram – ónus imputável aos mesmos) a existência ou inexistência de despesas sujeitas a colação e a existência ou inexistência de dívidas da herança, matéria fáctica imprescindível para a efectivação do cálculo da legítima, limitando-se tão-só a invocar os bens imóveis que integram o acervo hereditário (no art. 7º) da petição inicial).

Consequentemente, afere-se que os factos vertidos na petição inicial são manifestamente insuficientes para sustentar a efectivação das operações do cálculo da legítima, nos termos plasmados no art.º 2162.º, do Código Civil (vd. Acórdão do TRC de 5.3.2013, proc. n.º 930/11.4T2AVR.C1, in www.dgsi.pt).

Destarte, inviabilizado o cálculo da legítima dos Autores, sucumbe a premissa sine qua non para a aferição da impetrada inoficiosidade, pelo que se demanda a improcedência dos 2.º) a 6.º) pedidos formulados nos autos”.

Verificamos que, segundo a sentença recorrida, são duas as omissões que impediram a efectivação das operações do cálculo da legítima, nos termos plasmados no art. 2162º do Código Civil.

A primeira é a referência à existência ou inexistência de despesas sujeitas a colação.

Já vimos supra que o art. 2162º,1 CC manda, no cálculo da legítima, atender entre outros factores às despesas sujeitas a colação.

O que seja colação é definido pelo art. 2104º,1 CC: “Os descendentes que pretendem entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança, para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este: esta restituição tem o nome de colação”. E o artigo seguinte estatui que só estão sujeitos à colação os descendentes que eram à data da doação presuntivos herdeiros legitimários do doador.

Explicando este regime, e, logo, ajudando à sua interpretação, escreve Rabindranath Capelo de Sousa (Lições de Direito das Sucessões, volume II, 2ª edição, fls. 262 e seguintes): “tal noção, porém, carece de diversos esclarecimentos, particularmente no que toca à determinação dos seus pressupostos, ao seu modus operandi e às finalidades que visa. Começando pela determinação dos pressupostos da colação prevista nos arts. 2104º a 2118º do Código Civil, há a salientar que para esta se verificar é cumulativamente necessário: 1º: que haja doações ou certas despesas gratuitamente feitas pelo autor da sucessão a favor de descendentes que na data da liberalidade fossem seus presuntivos herdeiros legitimários: 2º: que tais liberalidades não estejam dispensadas da colação pelo autor da sucessão ou por força da lei; e 3º: que se tenha aberto uma sucessão hereditária em que concorram efectivamente diversos descendentes, nomeadamente descendentes beneficiados com aquelas liberalidades ou seus representantes. Assim, e em primeiro lugar, para haver colação é necessário desde logo que o autor da sucessão tenha doado em vida coisas, direitos ou outros bens jurídicos, ou efectuado em vida despesas gratuitas (cfr. art. 2104º, nº 2 e 2110º do CCiv), em favor de um, ou de todos os descendentes ou equiparados adoptados plenos e seus descendentes que à data da doação ou da despesa fossem presuntivos herdeiros legitimários do doador”.

Podemos já parar por aqui, pois não consta da matéria de facto provada que tenham existido doações ou despesas gratuitamente feitas pelo autor da sucessão a favor de descendentes que na data da liberalidade fossem seus presuntivos herdeiros legitimários. Mais, acontece que a existência de tais liberalidades não foi sequer alegada por ninguém, nomeadamente pelos réus, e supomos ser pacífico que, nos termos do disposto nos arts. 5º,1 CC e 342º,2 CC, o ónus da alegação e prova da existência de tais liberalidades recaía sobre os réus. Eles é que tinham interesse em alegar e provar esses factos modificativos do direito que os autores afirmavam assistir-lhes. Mas não o fizeram.

Assim, para todos os efeitos legais, o Tribunal pode e deve concluir que na partilha sub judice não existem despesas sujeitas a colação. Donde, assiste razão nesta parte aos recorrentes.

A segunda é a existência ou inexistência de dívidas da herança. E aqui, aplica-se também mutatis mutandis o raciocínio que acabámos de referir. Em primeiro lugar, não resultou provada a existência de qualquer dívida da herança. Em sede de alegações, os autores alegaram no art. 7º da sua petição inicial que “a herança aberta por óbito do falecido J. C. é constituída apenas por bens imóveis situados…”. Este “apenas” pode ser entendido como significando a inexistência de bens móveis mas também a inexistência de dívidas.

Se assim não fosse, cabia aos réus, pelas mesmas razões já referidas, alegar e provar a existência dessas dívidas, que, segundo os autores, inexistem. Porém, se formos olhar para a contestação, vemos que não é identificada uma única dívida da herança. E tudo o que aí se afirma é vago. A afirmação de que “os autores omitem, ainda, créditos da herança, em resultado de empréstimos de dinheiros que o falecido J. C. realizou”, salvo o devido respeito, nada diz. Que empréstimos ? A quem ? Em que data ? De que montantes ? Nada é dito.

A afirmação “não relacionam um único bem móvel” igualmente nada nos diz sobre a existência ou a identificação de bens móveis.

Para todos os efeitos práticos, e nomeadamente para efeitos de preenchimento da causa de pedir nestes autos, podemos por isso concluir que não existem dívidas da herança (ninguém as alegou e ninguém as provou).

Assim, e em conclusão, não podemos concordar com a sentença recorrida quando afirma que a acção não pode proceder porque faltam factos sobre a existência ou inexistência de despesas sujeitas a colação e sobre a existência de dívidas da herança.

Estão em Juízo nestes autos todos os interessados na herança de J. C.. Nenhum deles sequer alegou a existência de despesas sujeitas a colação nem a existência de dívidas da herança. Como tal, pensamos que não faria sentido deixar de efectuar os cálculos da legítima com fundamento numa puramente hipotética existência de despesas sujeitas a colação e dívidas, sobretudo quando nenhum dos interessados alegou a sua existência, e, por maioria de razão, nenhum o provou.

Podemos ainda acrescentar que, como bem alegam os recorrentes, se o Tribunal tivesse tido dúvidas sobre esses aspectos, tê-los-ia incluído na fixação dos temas da prova. O que não fez, pois de fls. 166 resulta que o Tribunal apresentou como único tema da prova o valor dos imóveis descritos nos arts. 7º a 10º da petição inicial.

Assim, não podemos sufragar a afirmação do Tribunal recorrido de que os factos vertidos na petição inicial são manifestamente insuficientes para sustentar a efectivação das operações do cálculo da legítima, nos termos plasmados no art.º 2162.º, do Código Civil.

A referência que é feita, a seguir, ao acórdão do TRC de 5.3.2013, não tem aplicação a este caso, porque o que se pode ler nesse aresto é que “nem sequer estão apurados todos os bens existentes no património do de cujus à data da sua morte. Apenas foi referido como existente um prédio, mas nem foi afirmado ser o único existente. Não foi mencionada a existência de quaisquer outros bens, por exemplo móveis, a não ser depósitos e sem valores apurados. Mesmo em relação ao prédio não foi alegado nem apurado um valor certo, sequer por avaliação”.

Recordemos agora que a pretensão dos autores/recorrentes, na acção que instauraram e neste recurso, resume-se no fundo a obter a redução por inoficiosidade da segunda doação a favor da ré ADÉLIA), por ofensa da legítima.

Vamos então calcular a legítima da herança, a fim de apurar se essa liberalidade é inoficiosa, por ofender a legítima.

A legítima é neste caso de 2/3 da herança (art. 2159º).

Como já vimos, o cálculo da legítima é feito da forma descrita no art. 2162º CC, ou seja, in casu, atende-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, e ao valor dos bens doados.

O que, feitas as pertinentes contas, com os valores que emergiram provados, nos dá o valor total da herança de € 84.381,50.

A legítima, por seu turno, é de 56.254,32.
E a quota disponível é de € 28.127,16.

Ora, basta somar o valor de todas as liberalidades que ficaram supra provadas (€ 65.395,00) para se tornar patente que elas ultrapassam em € 37.267,84 a quota disponível, que é de € 28.127,16.

Embora os recorrentes se fixem apenas na segunda liberalidade (segunda doação a favor da ré ADÉLIA, a verdade é que temos de seguir as regras impostas por lei.

Sabemos que as liberalidades inoficiosas são redutíveis, em tanto quanto for necessário para que a legítima seja preenchida (art. 2169º CC). E sabemos que a redução segue a ordem prescrita no art. 2171º CC, ou seja, abrange em primeiro lugar as disposições testamentárias a título de herança, em segundo lugar os legados, e por último as liberalidades que hajam sido feitas em vida do autor da sucessão.

Vejamos pois. Seguindo a ordem imposta pelo art. 2171º CC tem de ser sacrificado em primeiro lugar o legado a E. T. e D. B., de metade do prédio urbano composto por casa de habitação, e armazém em construção, no valor de € 18.000,00.

Assim, continuam em falta para a legítima € 19.267,84.

O outro legado, à sua filha e recorrente Fernanda, não é afectado, como é evidente, pois sendo esta herdeira legitimária, aplica-se de pleno o disposto no art. 2165º,4 CC, e tal legado é imputado na quota indisponível do autor da sucessão.

Temos então de passar para as doações que ficaram provadas, onde, como já vimos, se deve seguir a ordem imposta pelo art. 2173º CC. Ou seja, começa-se pela última liberalidade (a mais recente), no todo ou em parte, e se isso não bastar, passar-se-á à imediata (mais antiga), e assim sucessivamente.

Assim, indo às doações a ADÉLIA (companheira do de cuius por mais de 30 anos e mãe dos autores/recorrentes), e começando pela de 6 de Julho de 2000, verificamos que ela tem de ser reduzida integralmente por inoficiosidade, o que permite recuperar para a legítima mais € 11.406,00.

E mesmo assim não chega para garantir a legítima (continuam em falta € 7.861,84). Donde, tem igualmente de ser reduzida a doação de 11 de Agosto de 1999, nesse valor.

Ou seja, no total, as liberalidades em vida a favor da ré Adélia têm de ser reduzidas em € 19.267,84.

É quanto basta para concluirmos que a acção merece provimento, nos termos expostos.

Importa só corrigir a forma como os autores / recorrentes formulam os seus pedidos. Os autores pedem que os réus sejam “condenados a reconhecer” isto e aquilo.

Ora, os Tribunais não condenam os réus a reconhecer o que quer que seja. “Reconhecer” é uma mera actividade cerebral, do foro íntimo de cada um, que jamais pode ser imposta coercivamente.

Por suficientemente esclarecedor, transcrevemos o que a este respeito escreve José Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3ª edição, pág. 365:

“(…) usa-se, por vezes, desta linguagem: seja o réu condenado a ver declarar que o autor é seu filho, a ver declarar que não existe a servidão a que se arroga, a ver decretar o divórcio ou a separação, a ver autorizar a constituição da servidão de aqueduto, etc.

É claro que esta forma de enunciação do pedido é incorrecta. Condenar alguém a ver produzir-se determinado efeito jurídico não tem pés nem cabeça. A condenação só tem razão de ser quando o réu estava obrigado a prestar um facto ou uma coisa e deixou de satisfazer a prestação”.

Por isso é que o art. 10º CPC, que define as espécies de acções consoante o seu fim, estabelece que as acções declarativas podem ser de simples apreciação, de condenação ou constitutivas, sendo que as de simples apreciação têm por fim obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto; as de condenação, exigir a prestação de uma coisa ou de um facto, pressupondo ou prevendo a violação de um direito; e as constitutivas, autorizar uma mudança na ordem jurídica existente.

Como se vê, não existem acções de condenação destinadas a exigir uma actividade mental de reconhecimento do que quer que seja.

Assim, interpretando o pedido formulado à luz desta classificação de acções declarativas consoante o seu fim, temos que a verdadeira tutela pretendida pelos recorrentes é prosseguida através de uma acção de simples apreciação, que neste caso tem por fim obter a declaração de que os autores são os únicos e universais herdeiros legitimários do falecido J. C.; que o valor total dos bens pertencentes ao falecido J. C., tendo em conta os bens deixados, os bens doados e o bem incluído no testamento, perfazem o valor total de € 74.418,74; que o valor da legítima dos herdeiros legitimários (descendentes) do falecido J. C. perfaz o montante de € 49.612,50; que o valor da segunda liberalidade (segunda doação a favor da R. ADÉLIA), é, em parte, inoficiosa porque ofende a dita legítima no montante de € 23.881,75; que a deixa testamentária é totalmente inoficiosa.

O único segmento verdadeiramente condenatório é aquele em que se pede a condenação da ré ADÉLIA a repor à herança a quantia de € 23.881,75, a qual deverá ser feita com a verba n.º 3 da segunda doação no valor de € 24.000,00.

Ora bem. Nestes autos já foi proferida decisão por este mesmo Tribunal da Relação que decidiu que esta forma processual era apta apenas para obter a redução de liberalidades por inoficiosidade. Como é óbvio, já não serve para se fazer nestes autos a partilha da herança.

Ou seja, a decisão final nesta acção não dispensa o processo de inventário, pois só aí será possível efectuar a partilha litigiosa da herança.

O que quer dizer que o último pedido formulado, aquele em que se pede a condenação da ré ADÉLIA a repor à herança a quantia de € 23.881,75, a qual deverá ser feita com a verba nº 3 da segunda doação no valor de € 24.000,00, não pode proceder, pois ao sair do plano dos valores e entrar no plano dos bens concretos que compõem a herança, já estamos a fazer a partilha da mesma, o que, como é óbvio, não pode ser feito nestes autos.

Por outro lado, quanto ao pedido de ser emitido um segmento condenatório da ré Adélia a repor à herança a quantia referida, importa repetir que, pelas razões já explicadas, não se trata aqui de condenar a ré a entregar essa quantia. Trata-se, antes, de uma operação intelectual, de devolução daquele valor inoficioso à massa hereditária, a fim de ser tido em conta na partilha. Donde, a tutela jurisdicional que os autores pretendem com a sua formulação é alcançada, não com um segmento condenatório, mas sim com um segmento de simples apreciação, no qual o Tribunal declara que as liberalidades feitas em vida a favor da ré Adélia ofendem a legítima dos autores e têm de ser reduzidas em € 19.267,84. A referida operação intelectual de devolução do valor inoficioso à massa hereditária terá de ser feita depois em sede de partilha.

Um último ponto. Os valores que ficaram provados nos autos quanto aos bens que compõem a herança são diferentes, porque superiores, aos que os autores incluíram nos seus pedidos. Mas pensamos que o princípio do pedido (art. 609º,1 CPC) não impede que se condene com base nos valores superiores que ficaram provados, pois ambas as partes aceitaram que a actividade probatória fosse dirigida quase exclusivamente para a determinação do valor dos bens que compõem a herança.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso procedente, e em consequência, revogando a sentença recorrida, julga a acção procedente e em consequência:

a) declara que os autores M. F., M. P., e F. C. são os únicos herdeiros legitimários do falecido J. C.;
b) declara que os bens da herança do falecido J. C. perfazem o valor total de € 84.381,50;
c) declara que o valor da legítima dos autores perfaz o montante de 56.254,32;
d) declara que as liberalidades feitas em vida a favor da ré Adélia ofendem a legítima dos autores e têm de ser reduzidas em € 19.267,84.
e) declara que a deixa testamentária é totalmente inoficiosa;
Custas pelos recorridos (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 6/12/2018

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)