Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
208/17.0T8VRL.G1
Relator: MARIA CRISTINA CERDEIRA
Descritores: LEGITIMIDADE PROCESSUAL
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
CONTRATO DE LOCAÇÃO
PRÉDIO INDIVISO
NULIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I) - A legitimidade das partes enquanto pressuposto processual, de cuja verificação depende a possibilidade do juiz conhecer do mérito da acção, não se confunde com a denominada “legitimidade substantiva”, que tem a ver com a posição das partes perante o direito subjectivo invocado e que, ocorrendo, determina a improcedência do pedido.

II) - A legitimidade processual, enquanto pressuposto adjectivo para que se possa obter decisão sobre o mérito da causa, não exige a verificação da efectiva titularidade da situação jurídica invocada pelo autor, bastando-se com a alegação dessa titularidade.

III) - Numa acção em que se invocam direitos emergentes de um contrato de locação, a legitimidade activa radica em quem alegar factos que evidenciem a sua qualidade de senhorio, e não de proprietário, comproprietário ou usufrutuário (podendo o senhorio ser ou não proprietário).

IV) - A circunstância da A. ser comproprietária do imóvel objecto mediato do contrato de locação e ter intervindo no mesmo desacompanhada dos demais consortes, apenas relevará para aferição da sua legitimidade substantiva para dispor da coisa comum, à luz do regime positivado no artº. 1024º, nº. 2 do Código Civil, que no domínio da locação consagra um regime especial face ao regime regra da compropriedade previsto no artº. 1408º do mesmo Código.

V) - O arrendamento de um prédio indiviso feito por um ou alguns dos consortes sem o consentimento de todos é um arrendamento nulo (artº. 294º do Código Civil), estando, no entanto, esta nulidade sujeita a um regime especial, incluindo a possibilidade de confirmação e o facto de só ser invocável pelos consortes não participantes no acto.

VI) - A invalidade a que o nº. 2 do artº. 1024º do Código Civil se refere, diz respeito meramente às relações internas entre os comproprietários, não estando em causa a validade do contrato em face do locatário.

VII) - A intervenção principal espontânea é admissível a todo o tempo, enquanto não estiver definitivamente julgada a causa, o que significa que poderá inclusivamente ser requerida depois de proferida sentença, desde que antes do trânsito em julgado desta, ou até em sede de recurso.

VIII) - Mesmo que a acção pudesse estar, de início, ferida de ilegitimidade activa da A., com a intervenção espontânea dos demais comproprietários do locado, na qual aderem aos articulados da A. e aceitam o processo no estado em que se encontrava, em termos substantivos estão a dar o seu assentimento à actuação daquela na celebração do contrato de arrendamento.

IX) - Decorre do preceituado nos artºs 3º, n.º 1, al. c) e 4º do DL 160/2006 de 8/8, que o contrato de arrendamento urbano deve mencionar o número de inscrição na matriz predial ou a declaração de o prédio se encontrar omisso, mas a falta desse elemento não determina a invalidade ou a ineficácia do contrato, quando possam ser supridas nos termos gerais e desde que os motivos determinantes da forma se mostrem satisfeitos.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

Maria intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra X – Construções, Unipessoal, Lda., pedindo a condenação desta a pagar-lhe:

a) A quantia de € 4.160,00 a título de rendas vencidas desde Fevereiro de 2016 a Fevereiro de 2017;
b) A quantia de € 2.080,00 a título de multas previstas no artº. 1041º do Código Civil e respeitantes ao período compreendido entre Fevereiro de 2016 e Fevereiro de 2017;
c) As rendas e multas vincendas a partir de Fevereiro de 2017 até que o contrato de arrendamento seja validamente denunciado por uma das partes e a A. seja reempossada da chave e do locado livre de pessoas e bens;
d) A quantia de € 3.426,40 a título de indemnização pelos danos causados no exterior do locado;
e) A quantia que se vier a apurar no final do contrato de arrendamento em sede de liquidação de sentença e necessária para proceder às reparações que se vierem a revelar necessárias a repor o locado em bom estado de conservação;
f) Tudo com juros de mora desde a data da citação.

Para fundamentar a sua pretensão alega, em síntese, que através de documento escrito deu de arrendamento à Ré, com início em 1/06/2015 e sem prazo estipulado, um armazém sito na Rua …, habitação …, freguesia de ..., concelho de Vila Real, mediante a renda mensal de € 320,00, a qual deveria ser paga até ao dia 10 do mês a que dissesse respeito, tendo a Ré, no momento da outorga do contrato, entregue à A., além do mês de renda, o valor respeitante a outro mês a título de caução, obrigando-se a Ré, findo o contrato de arrendamento, a entregar o locado livre de pessoas e bens e em bom estado de conservação e limpeza.

Acrescenta que desde Fevereiro de 2016, a Ré deixou de pagar as rendas e, aparentemente, não desenvolve no local qualquer tipo de actividade. Porém, até à data da propositura da acção, nenhuma das partes comunicou à outra o fim do contrato de arrendamento, mantendo a Ré na sua posse as chaves do locado, encontrando-se, por isso, em dívida as rendas vencidas desde Fevereiro de 2016 até à propositura da acção, no montante total de € 4.160,00, acrescidas da multa prevista no artº. 1041º do Código Civil, no valor de € 2.080,00, bem como das rendas e multas vincendas até efectivo e integral pagamento ou cessação do contrato de arrendamento.

Refere, ainda, que durante o tempo em que laborou no locado, a Ré provocou estragos no espaço exterior, pois o chão e as paredes exteriores estão manchados de óleo e a pedra mármore colocada em redor da porta na entrada do armazém está partida, devendo a Ré ser responsabilizada pelo pagamento da quantia de € 3.426,40 (acrescida de IVA à taxa legal) que a A. terá de despender na reparação dos danos causados no exterior do locado.

Em virtude da A. não ter na sua posse a chave do locado, desconhece o estado em que o mesmo se encontra no seu interior, pretendendo, por isso, que a Ré seja condenada a pagar o valor necessário para proceder às reparações no interior do locado, que se vier a liquidar quando ocorrer o fim do contrato de arrendamento e após perícia efectuada no local.

A Ré contestou, arguindo a invalidade do contrato, por não mencionar a descrição matricial e predial do locado e a existência da respectiva licença de utilização.
No entanto, em paralelo, alegou ter procedido à denúncia verbal do contrato, por contacto telefónico, com efeitos a partir do fim do mês de Janeiro de 2016, bem como à entrega das chaves do locado, argumentando que não podia denunciá-lo por escrito pois, como resulta do contrato, o mesmo é omisso quanto à morada da Autora.
Por outro lado, impugna os danos alegados pela A. e, a título subsidiário, caso não se entenda que houve denúncia verbal, procede, neste seu articulado, à denúncia do contrato.

Conclui, pedindo a condenação da A. como litigante de má fé em multa e indemnização a fixar equitativamente pelo Tribunal, pugnando pela improcedência da acção e sua absolvição do pedido.
A A. apresentou resposta, na qual impugnou a matéria de excepção alegada pela Ré e reafirmou a posição assumida na petição inicial, pugnando pela improcedência da excepção invocada pela Ré e do pedido da sua condenação como litigante de má fé.

Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, no qual se procedeu ao saneamento da acção, verificando-se a validade e regularidade da instância, tendo sido, ainda, definido o objecto do litígio, fixada a matéria de facto assente e enunciados os temas de prova, que não sofreram reclamações.

Após a realização de uma perícia singular ao locado, veio a A. deduzir incidente de liquidação, nos termos do artº. 358º e seguintes do NCPC, no qual reajustou os pedidos primitivos de condenação da Ré, nos seguintes termos:

a) A quantia de € 5.540,00 a título de rendas vencidas desde Fevereiro de 2016 a Julho de 2017;
b) A quantia de € 2.720,00 a título de multas previstas no artº. 1041º do Código Civil e respeitantes ao período compreendido entre Fevereiro de 2016 a Julho de 2017;
c) A quantia de € 4.120,00 acrescida de IVA à taxa legal em vigor, a título de indemnização para reparação dos danos causados no interior e exterior do locado e necessários a repô-lo em bom estado de conservação;
d) Tudo com juros de mora desde a data da liquidação até efectivo e integral pagamento.

O referido incidente de liquidação foi admitido liminarmente, por despacho proferido em 11/01/2018.
A Ré deduziu oposição ao mesmo, alegando que fez a denúncia do contrato de arrendamento na contestação, somente por cautela, na eventualidade de improceder a alegação de que a denúncia foi efectuada em 31/01/2016, pelo que não são devidas quaisquer rendas e multa, invocando, ainda, a extemporaneidade do incidente.
Por despacho proferido em 5/02/2018, foi julgada improcedente a arguição da extemporaneidade do incidente de liquidação e enunciados os temas de prova atinentes ao mesmo, que não sofreram reclamações.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo.
No decurso da audiência de julgamento, a Ré arguiu a ilegitimidade da Autora na presente acção, com fundamento no facto de a mesma ser comproprietária do locado e não estar acompanhada na lide pelos consortes, existindo “in casu” litisconsórcio necessário por força do disposto no artº. 1405º, nº. 1 do Código Civil, dado estar em causa a responsabilidade civil e consequente indemnização.

Antes de encerrada a discussão da causa, Pedro e mulher Maria vieram, na qualidade de comproprietários do imóvel arrendado, requerer a sua intervenção principal espontânea na presente acção, ao lado da A., declarando aderir aos articulados da mesma e aceitando o processo no estado em que se encontrava.
Por despacho de 21/03/2018, foi admitido liminarmente o incidente de intervenção principal espontânea suscitado por Pedro e Maria, não tendo sido deduzido nenhuma oposição ao mesmo.

Após, foi proferida sentença que decidiu:

a) Condenar a ré X - CONSTRUÇÕES, UNIPESSOAL, LDA. a pagar à autora MARIA o montante global de € 4.480,00 (quatro mil quatrocentos e oitenta euros), a título de rendas vencidas entre Fevereiro de 2016 e Março de 2017 (inclusive), sendo esse montante acrescido de juros de mora, calculados à taxa legal aplicável aos juros civis, actualmente de 4%, contados desde a citação e até efectivo e integral pagamento;
b) Condenar a ré X - CONSTRUÇÕES, UNIPESSOAL, LDA. a pagar à autora MARIA o montante global de € 2.240,00 (dois mil duzentos e quarenta euros), a título de indemnização prevista no artigo 1041.º, n.º 1 do Código Civil sendo esse montante acrescido de juros de mora, calculados à taxa legal aplicável aos juros civis, actualmente de 4%, contados desde a citação e até efectivo e integral pagamento;
c) Condenar a ré X - CONSTRUÇÕES, UNIPESSOAL, LDA. a pagar à autora MARIA o montante global de € 1.280,00 (mil duzentos e oitenta euros), a título de indemnização prevista no artigo 1098.º, n.º 6 do Código Civil sendo esse montante acrescido de juros de mora, calculados à taxa legal aplicável aos juros civis, actualmente de 4%, contados desde a citação e até efectivo e integral pagamento;
d) Condenar a ré X - CONSTRUÇÕES, UNIPESSOAL, LDA. a pagar à autora MARIA o montante global de € 3.198,00 (três mil cento, noventa e oito euros), a título de indemnização pela violação da obrigação prevista no artigo 1043.º, n.º 1 do Código Civil acrescido de juros de mora, calculados sobre o montante de € 2.600,00 (dois mil e seiscentos euros) à taxa legal aplicável aos juros civis, actualmente de 4%, contados desde a citação e até efectivo e integral pagamento;
e) Absolver a autora MARIA do pedido de condenação como litigante de má fé formulado pela ré X - CONSTRUÇÕES, UNIPESSOAL, LDA.;
f) Condenar a autora MARIA e a ré X - CONSTRUÇÕES, UNIPESSOAL, LDA., no pagamento das custas da acção, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 1/5 e 4/5 - cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC;
g) Condenar a ré X - CONSTRUÇÕES, UNIPESSOAL, LDA. nas custas do incidente de litigância de má fé que desencadeou, fixando-se a taxa de justiça em 1 (uma) U.C. - cfr. artigos 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC e 7.º, n.º 4 do RCP.

Inconformada com tal decisão, a Ré dela interpôs recurso, extraindo das respectivas alegações as seguintes conclusões [transcrição]:

1. A Autora alegou ser proprietária do imóvel, mencionou-se como “dona” no contrato de arrendamento.
2. A conformação da ação que fez, não foi como sendo comproprietária.
3. Mas sim como detendo a propriedade plena.
4. Portanto, para efeitos do disposto no artigo 30º, n.ºs 1 e 2 do CPC, é irrelevante a compropriedade que a Autora deliberadamente pretendeu omitir aos autos.
5. Porém, não foi isso que a mesma logrou provar, mas sim a mera compropriedade.
6. O que leva, desde logo, à falta da prova daquilo a que a Autora se propôs – a propriedade plena
7. Sem que jamais tivesse alterado a causa de pedir, nos termos do artigo 260º e 264º e 265 estes últimos a contrario do CPC.
8. O que viola o princípio da estabilidade da instância e o disposto nos mencionados artigos 260º, 264º e 265º do CPC.
Não obstante,
9. A intervenção judicial de todos os comproprietários não tem sempre a mesma solução, conforme fez crer o Tribunal a quo.
10. A Autora desacompanhada dos demais comproprietários não tem legitimidade para pedir indemnizações, como são as que o Tribunal condenou sob as alíneas b), c) e d) do dispositivo da sentença.
11. O Tribunal a quo sustentou a sua decisão no disposto no artigo 1024º, n.º 2 e 1408º do Código Civil.
12. Mas na verdade fugiu ao cerne da questão.
13. Nomeadamente ao disposto no artigo 1405º, n.º 2 do CPC.
14. Pois que, em casos como o dos autos, em que se peticionam indemnizações, verifica-se o litisconsórcio necessário entre os comproprietários.
15. Portanto, a Autora não tinha legitimidade, desacompanhada dos demais comproprietários, para fazer os pedidos que a sentença, sob as alíneas b), c) e d) do dispositivo, veio a condenar a Ré/Apelante.
16. Foram, assim, violados os artigos 33º do CPC e 1405º, n.º 2 do CC.
17. E, conforme já se adiantou, não pode a mesma fazer intervir os demais comproprietários, na medida que a mesma se arroga (não expressa, mas mais que tacita, descaradamente) de proprietária plena.

Da Invalidade do Contrato de Arrendamento

18. A Autora omitiu os elementos identificativos do prédio, quer no contrato de arrendamento, quer na PI.
19. A questão crucial é saber se a falta desse elemento “não determina a invalidade ou a ineficácia do contrato, quando possam ser supridas nos termos gerais”, nos artigos 3.º, n.º 1, al. c) e 4.º do Decreto-Lei n.º 160/2006, de 8 de Agosto.
20. Tal individualização teria de ser efetuada na PI, para, assim, suprir a invalidade do arrendamento.
21. O que não foi feito ou sequer tentado.
22. Pelo que precludiu essa possibilidade de suprimento das insuficiências do contrato de arrendamento.
23. Não obstante,
24. Decidiu mal o Tribunal a quo, pois não conseguiu a sua individualização.
25. Em rigor, apenas uma parte irrelevante da morada confere entre a descrição predial e o contrato de arrendamento.
26. Mais nada.
27. Nomeadamente o destino do imóvel, que no contrato de arrendamento é “armazém” (cláusula 1ª do contrato de arrendamento e artigo 1º da PI).
28. E, na descrição predial “atribuída” pelo Tribunal resulta “comércio ou serviços”.
29. E a atividade de “armazém” é bem diferente da de comércio e serviços, conforme resulta evidente e notório!
30. Mas e porque não a fração B e sim a A?!
31. Não percebe a Ré a que “termos gerais” recorreu o Tribunal a quo para optar pela A e não pela B.
32. Portanto, a individualização não foi conseguida.
33. E os elementos processuais não permitem fazer essa individualização, como exposto.
34. Portanto, o contrato de arrendamento terá de ser declarado inválido.
35. Foi, assim, violado o disposto nos artigos 3.º, n.º 1, al. c) e 4.º do Decreto-Lei n.º 160/2006, de 8 de Agosto.

Do Abuso de Direito e da Má-Fé da Autora

36. Os elementos processuais colhidos permitem concluir que – não obstante resultar da matéria de facto dada como provada que a Ré formalmente apenas com a contestação denunciou o contrato de arrendamento – a Autora há muito que estava na posse do imóvel e deturpou os factos com vista a fazer essa prova.
37. A aqui Ré procedeu à junção de documento que demonstra que contrariamente ao alegado em 15 da PI formulada nos presentes autos (onde a Autora alega desconhecer o estado interior do locado), na verdade a mesma Autora, em 25-05-2016, já conhecia precisamente o estado do interior do locado.
38. Ora, à data da apresentação da PI à ordem destes autos, em 11-02-2017, a Autora não podia, portanto, alegar desconhecer interior do locado, conforme fez em 15 da PI.
39. A mera confrontação das duas versões tão díspares de uma e outra petição são a prova da arreigada má-fé com que a Autora agiu no sentido de se aproveitar da falta de prova formal da Ré lhe ter entregue as chaves.
40. Esse simples facto, de per si, demonstra indubitavelmente a postura da Ré.
41. A mesma deduziu pretensão cuja falta de fundamento conhecia perfeitamente e alterou a verdade dos factos e omitiu factos relevantes para a decisão da causa.
42. O Tribunal a quo, envergonhadamente parece reconhecer esse facto, porém, incompreensivelmente, para efeitos de prova desconsidera-o.
43. Mas não reconhece a má-fé alegada pela Ré na PI e que aquele documento consubstancia e suporta suficientemente.
44. A Autora atuou em abuso de direito e com má-fé.
45. O Tribunal a quo desconsiderou as normas plasmadas nos artigos 542º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b) do CPC e 334º do CC.
46. A decisão recorrida além de sustentada na má-fé e abuso de direito da Autora, é extramente injusta, devendo nesta parte, ser revogada e substituída nos termos expostos nas alegações.

Termos em que deve a sentença objeto do presente recurso ser revogada e substituída por outra que:

a) Julgue a Autora parte ilegítima à ordem dos presentes autos por falta de prova da propriedade que se arrogou ter;
caso assim não se entenda,
b) Julgue a Autora parte ilegítima para a formulação dos pedidos que a sentença, sob as alíneas b), c) e d) do dispositivo, veio a condenar a Ré/Apelante;
caso assim não se entenda,
c) Declare o contrato de arrendamento inválido;
ainda assim não se entendendo ou em cumulação com o pedido,
d) Seja declarada a atuação da Autora como de má fé de abuso de direito.

A A. e os intervenientes contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.

O recurso foi admitido por despacho de fls. 155.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, tendo por base as disposições conjugadas dos artºs 608º, nº. 2, 635º, nº. 4 e 639º, nº. 1 todos do Novo Código de Processo Civil (doravante NCPC), aprovado pela Lei nº. 41/2013 de 26/6.

Nos presentes autos, o objecto do recurso interposto pela Ré, delimitado pelo teor das suas conclusões, circunscreve-se à apreciação das seguintes questões:

I) – Saber se a A. possui legitimidade activa;
II) – Da invalidade do contrato de arrendamento;
III) – Do abuso de direito e litigância de má fé da Autora.

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos [transcrição]:

1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º … o prédio sito na freguesia de ..., concelho de Vila Real, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 826.º.
2. Decorre da descrição predial relativa ao prédio descrito sob o n.º ...:
composição: edifício de rés-do-chão, primeiro andar e sótão;
confronta do norte com estrada camarária, do sul com José e Manuel, do nascente com caminho de consortes e poente com Álvaro.
área coberta: 374 m2;
área coberta: 564,50 m2;
3. Mediante a apresentação n.º 15, de 21/05/2007, foi inscrita a constituição de propriedade horizontal relativa ao prédio descrito sob o n.º ..., daí resultando:
fracção A: permilagem 233;
fracção B: permilagem 233;
fracção C: permilagem 272;
fracção D: permilagem 262;
É comum a todas as fracções o logradouro do prédio, com a área de 484 m2.
4. Decorre da descrição predial relativa à fracção designada pela letra "A", integrante do prédio descrito sob o n.º ..., que esta é composta por "Comércio ou serviços - rés-do-chão esquerdo - Estabelecimento n.º 1, dois lugares de garagem, designados pelos nº 2 e 3 no parque de estacionamento exterior do prédio".
5. Através da apresentação n.º 13, de 22/03/2002, foi inscrita a aquisição do direito de propriedade relativo ao prédio descrito sob o n.º ..., a favor de Carlos, Pedro, Sílvia e Maria, por doação de J. A. e a esposa Adelaide.
6. Através da apresentação n.º 13, de 21/05/2007, foi inscrita a aquisição de 1/2 do direito de propriedade relativo ao prédio descrito sob o n.º ..., a favor de Maria, por partilha subsequente a divórcio que dissolveu o casamento daquela com Carlos.
7. A ré possui como objecto social:
"Actividade de demolições e terraplanagens em obras particulares e públicas, aluguer de equipamentos para a construção, construção e engenharia civil de obras particulares e públicas, transportes rodoviários de mercadorias por conta de outrém, realização de investimentos na área imobiliária, incluindo compra e venda de imóveis para si ou para venda dos adquiridos para esse fim, construção, urbanização e loteamento, promoção, administração e locação de bens imobiliários próprios ou de terceiros e ainda a administração de projectos de investimento e das participações financeiras da própria sociedade; cedência de mão de obra em regime de trabalho temporário; reparação de veiculos automóveis e sua manutenção; mecânica e serralharia civil".
8. A autora e a ré subscreveram um documento, denominado "contrato de arrendamento", datado de 01/06/2015, contendo o seguinte teor, no que ora releva (cfr. art. 1.º e 3.º da p.i.):
"(...) 1.º O primeiro outorgante é dono e legitimo possuidor de um armazém, sito na Rua..., Vila Real;
2.º Este contrato terá início a partir de 01 de Junho de 2015;
3.º A parte arrendada destina-se a armazém do 2.º Outorgante;
4.º A renda mensal a pagar pelo segundo outorgante é de € 320,00 (trezentos e vinte euros), a pagar até ao dia 10 de cada mês, neste data foi entregue ao 1.º outorgante um cheque no valor de 640,00 €, para pagamento da renda de Junho de 2015 e respectiva caução;
5.º O 2.º outorgante fica obrigado a conservar em bom estado o local arrendado, para que todo se encontre em bom estado de conservação e limpeza;
6.º Todas e quaisquer obras e benfeitorias, qualquer que seja a sua natureza, que o arrendatário faça no local arrendado ficará a fazer parte integrante deste, sem que por elas possa ser exigida qualquer indemnização ou alegar qualquer direito de retenção, que não possam ser retiradas sem detrimento do prédio".
9. No momento da outorga do contrato a ré entregou à autora um mês de renda e o valor respeitante a outro mês de renda, a título de caução - cfr. art. 2.º da p.i.
10. A ré procedeu ao pagamento à autora das rendas até Fevereiro de 2016 - cfr. art. 4.º e 7.º da p.i.
11. A partir de data não concretamente apurada do ano de 2016, mas que se determinou ser anterior a 21/03/2016, a ré deixou de utilizar o imóvel indicado em 8 - cfr. art. 4.º da p.i.
12. O revestimento em granito da ombreira do portão de acesso ao imóvel identificado em 8 apresenta uma esquina quebrada, o que pressupõe um custo de reparação de € 120,00 (acrescido de I.V.A) - cfr. art. 11.º e 12.º da p.i.
13. No interior do imóvel referenciado em 8 verifica-se (cfr. art. 13.º a 16.º do artic. de fls. 67v-69):
zonas localizadas do pavimento com manchas de óleo penetradas, riscos e rachadelas;
as paredes e pilares interiores apresentam-se sujos e com ligeiras mazelas no reboco, decorrentes de acção mecânica.
14. O pavimento do interior do imóvel indicado em 8 apresenta algumas superfícies diferenciadas inerentes à passagem de tubagens - cfr. art. 13.º a 16.º do artic. de fls. 67v-69.
15. A demolição integral do pavimento e a sua reposição implica um custo de € 2.800,00 (acrescido de I.V.A.), enquanto a reparação restrita às zonas afectadas acarreta um custo de € 1.400,00 (acrescido de I.V.A.) - cfr. art. 13.º a 16.º do artic. de fls. 67v-69.
16. A reparação dos pilares e das paredes e a sua pintura implica um custo de € 1.200,00 (acrescido de I.V.A.) - cfr. art. 13.º a 16.º do artic. de fls. 67v-69.

Por outro lado, na sentença recorrida foram considerados não provados os seguintes factos [transcrição]:

1. O chão exterior do imóvel indicado 8 dos factos provados apresenta-se manchado de óleo, um pouco por todo o chão, situação que se repete nas paredes exteriores - cfr. art. 10.º da p.i.
2. É necessário despender a quantia de € 3.426,40 (acrescido de I.V.A), para levar a cabo todas as reparações necessárias a repor o espaço exterior do imóvel indicado 8 dos factos provados no estado em que se encontrava antes de 01/06/2015 - cfr. art. 12.º da p.i.
3. O revestimento em granito da ombreira do portão foi quebrado pela ré - cfr. art. 10.º da p.i.
4. Mediante comunicação telefónica, a ré comunicou verbalmente à autora que denunciava o contrato, com efeitos reportados a Janeiro de 2016 - cfr. art. 2.º, 3.º e 7.º da cont.
5. (...) tendo a ré entregue à autora as chaves do imóvel indicado 8 dos factos provados - cfr. art. 5.º da p.i. e 8.º da cont.
6. A ré desconhecia onde residia a autora, por esta não residir no mesmo local que o locado - cfr. art. 7.º a 9.º da cont.
*
Apreciando e decidindo.

I)Saber se a A. possui legitimidade activa:

Insurge-se a Ré, ora recorrente, contra a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade da A. na presente acção por preterição do litisconsórcio necessário do lado activo, arguida pela Ré em sede de audiência de discussão e julgamento, alegando que sendo a A. apenas comproprietária do imóvel objecto do contrato de arrendamento celebrado entre as partes, não tem legitimidade, desacompanhada dos demais comproprietários, para pedir indemnizações, como são as que o Tribunal condenou sob as alíneas b), c) e d) do dispositivo da sentença, sendo que em casos como o dos autos, em que se peticionam indemnizações, verifica-se o litisconsórcio necessário entre os comproprietários.

Argumenta, ainda, que não pode a A. fazer intervir os demais comproprietários, na medida em que a mesma, no contrato de arrendamento, mencionou ser proprietária do imóvel e não apenas comproprietária, invocando a violação do disposto nos artºs 33º do NCPC e 1405º, nº. 2 do Código Civil.

O Tribunal “a quo”, na sentença recorrida, julgou improcedente esta excepção e concluiu pela legitimidade da A. na presente acção, com os seguintes fundamentos [transcrição parcial da decisão]:

«(…)
Dito isto, valendo como critério definidor da legitimidade processual o modo como o autor configura a acção (artigo 30.º, n.º 3, do C.P.C.), no domínio dos pleitos em que se invoquem direitos emergentes do contrato de locação, como o presente, tal implica a necessidade do autor alegar factos que evidenciem a sua qualidade de senhorio, ainda que não seja proprietário (1), o que ocorreu no caso concreto, pois a autora alegou ter dado de arrendamento à ré o imóvel objecto de locação, através do contrato de arrendamento de fls. 12. Já a circunstância da autora ser comproprietária do imóvel objecto mediato do contrato de locação e ter intervindo desacompanhada dos demais consortes, apenas relevará para aferição da sua legitimidade substantiva para dispor da coisa comum, à luz do regime positivado no artigo 1024.º, n.º 2, do Código Civil, que no domínio da locação consagra um regime especial face ao regime regra da compropriedade previsto no artigo 1408.º do Código Civil.

Julga-se, pois, inverificada a excepção dilatória de preterição do litisconsórcio necessário do lado activo e, em conformidade, conclui-se pela legitimidade da autora.»

Como é sabido, o artº. 30º, nºs 1 e 2 do NCPC estabelece o critério de determinação da legitimidade das partes: têm legitimidade como autor e como réu, as pessoas que, juridicamente, têm interesse directo em demandar e em contradizer, o qual se exprime pela utilidade derivada da procedência da acção e pelo prejuízo directo que dessa procedência advenha.
Por outro lado, de acordo com o disposto no nº. 3 daquele artigo, a legitimidade processual afere-se pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor na petição inicial.

Com efeito, a legitimidade tem de ser apreciada e determinada pela utilidade (ou prejuízo) que da procedência (ou improcedência) da acção possa advir para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado e a posição que as partes, perante o pedido formulado e a causa de pedir, têm na relação jurídica material controvertida, tal como a apresenta o autor (cfr. acórdão do STJ de 15/10/2013, proc. nº. 971/10.9TVLSB, acessível em www.dgsi.pt).

A legitimidade das partes enquanto pressuposto processual, de cuja verificação depende a possibilidade do juiz conhecer do mérito da acção, não se confunde com a denominada “legitimidade substantiva”, que tem a ver, isso sim, com a posição das partes perante o direito subjectivo invocado e que, ocorrendo, determina a improcedência do pedido.

E enquanto pressuposto processual, estamos perante uma excepção que deve ser aferida tendo em conta a relação material controvertida tal como ela é desenhada pelo autor, e cuja falta determina a verificação da correspondente excepção dilatória, dando lugar à absolvição do réu da instância (cfr. acórdão da RL de 19/02/2015, proc. nº. 143148/13.0YIPRT, acessível em www.dgsi.pt).

Desta forma, hoje raramente se poderá falar de ilegitimidade das partes. Deixou de se tornar necessário ter em conta a verdadeira relação jurídica, tal como realmente se constituiu. O Tribunal já não terá de averiguar se a relação jurídica substantiva, cuja discussão lhe é submetida, se estabeleceu entre o autor e o réu.

A legitimidade processual, enquanto pressuposto adjectivo para que se possa obter decisão sobre o mérito da causa, não exige a verificação da efectiva titularidade da situação jurídica invocada pelo autor, bastando-se com a alegação dessa titularidade (cfr. acórdãos da RL de 3/10/2017, proc. nº. 20120/16.9T8LSB e da RG de 11/01/2018, proc. nº. 2366/16.1T8VCT, ambos acessíveis em www.dgsi.pt).

Dito isto, numa acção em que se invocam direitos emergentes de um contrato de locação, como a presente, a legitimidade activa radica em quem alegar factos que evidenciem a sua qualidade de senhorio, e não de proprietário, comproprietário ou usufrutuário (podendo o senhorio ser ou não proprietário) – cfr. acórdão da RE de 26/03/2015, citado na sentença recorrida em nota de rodapé.
Ora, no caso em apreço, a A. alegou ter dado de arrendamento à Ré o imóvel identificado no artº. 1º da petição inicial, através do contrato de arrendamento de fls. 12, mediante o pagamento de uma renda mensal.
Tanto basta para que a Autora seja parte legítima do ponto de vista processual.

Como bem se refere na decisão colocada em crise, a circunstância da A. ser comproprietária do imóvel objecto mediato do contrato de locação e ter intervindo no mesmo desacompanhada dos demais consortes, apenas relevará para aferição da sua legitimidade substantiva para dispor da coisa comum, à luz do regime positivado no artº. 1024º, nº. 2 do Código Civil, que no domínio da locação consagra um regime especial face ao regime regra da compropriedade previsto no artº. 1408º do mesmo Código.

Vem a ora recorrente argumentar que a A. jamais mencionou ser apenas comproprietária do imóvel arrendado, mas antes alegou ser proprietária do mesmo, conforme resulta da cláusula primeira do contrato de arrendamento junto com a petição inicial, tendo conformado a acção como detendo a propriedade plena sobre o locado.

Tendo-se apurado, em sede de audiência de julgamento, que o prédio arrendado era detido pela A. em regime de compropriedade, entende a recorrente que, embora a A. tenha legitimidade para administrar o imóvel e pedir o pagamento de rendas, não tem legitimidade para, desacompanhada dos demais comproprietários, fazer os pedidos de indemnização que a sentença recorrida, sob as alíneas b), c) e d) do dispositivo, veio a condenar a Ré/recorrente, não podendo a mesma fazer intervir os demais comproprietários, na medida em que se arroga (não expressa, mas mais que tacitamente) de proprietária plena.

Neste domínio, importa, desde já, salientar que em face dos factos inscritos no registo predial (vide pontos 5 e 6 dos factos provados), a A. presume-se proprietária de uma quota correspondente a 1/2 do direito de propriedade relativo ao locado, enquanto Pedro e Sílvia se presumem proprietários da restante metade (cfr. artº. 7º do Código do Registo Predial) e não tendo tais presunções sido ilididas (cfr. artº. 350º do Código Civil), constata-se que a A. deu de arrendamento à Ré um imóvel do qual era apenas comproprietária.
Perante tal quadro e o regime da compropriedade, invoca a recorrente que houve violação do disposto no artº. 1405º, nº. 2 do NCPC.

No entanto, entendem Pires de Lima e Antunes Varela (in Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 355 – em anotação ao artº. 1405º) que o nº. 2 do artº. 1405º ocupa-se apenas da legitimidade para as acções de reivindicação, o que não é o caso dos autos. E continuam referindo que “tratando-se de acções de outra natureza, a legitimidade deverá aferir-se em função dos poderes que a lei atribui aos comproprietários em relação à coisa comum”.

Resulta claro dos factos apurados que entre a A. e a Ré foi celebrado um contrato de arrendamento, tendo por objecto o imóvel relativamente ao qual a A. declarou ser “dona e legítima possuidora”, sendo certo que Pedro e Sílvia figuram no registo predial, igualmente, como proprietários do prédio em questão, na proporção de metade. E no contrato apenas interveio, na qualidade de senhorio, a ora Autora.

Relativamente a esta questão, refere-se na sentença recorrida o seguinte:

«Decorre dos n.ºs 1 e 2 do artigo 1408º do Código Civil, que o comproprietário pode dispor de toda a sua quota na comunhão ou de parte dela, mas não pode, sem consentimento dos restantes consortes, alienar nem onerar parte especificada da coisa comum, sob pena de tal disposição ou oneração ser havida como disposição ou oneração de coisa alheia, mas na locação de imóveis rege o disposto no artigo 1024º, n.º 2, do Código Civil, no qual se prevê que “o arrendamento de prédio indiviso feito pelo consorte ou consortes administradores só é válido quando os restantes comproprietários manifestem, por escrito e antes ou depois do contrato, o seu assentimento”.

Como se trata de uma norma imperativa, a celebração de um negócio em contravenção com tal regra consubstanciará uma nulidade (cfr. artigo 294º do Código Civil), mas susceptível de convalidação e que apenas pode ser arguida pelos comproprietários que não intervieram no contrato, por ser no seu interesse que a invalidade é estabelecida, encontrando-se, pois, sujeita a um regime diverso do regime regra da nulidade (cfr. artigos 285º, 1.ª parte, 286º e 289º n.º 1 do Código Civil).

Consequentemente, não assiste legitimidade à ré, enquanto inquilina, para arguir tal invalidade, assim como o Tribunal dela não pode conhecer oficiosamente (cfr. artigos 576º, n.ºs 1 e 3, 579º e 608º, n.º 2 do C.P.C.).

Acrescentando em nota de rodapé que “resulta da aplicação conjugada dos artigos 1407°, n.º 1 e 985°, n.º 1 do Código Civil, que qualquer um dos consortes tem poderes de administração da coisa, na falta de convenção em contrário, que no caso concreto não foi chamada à colação, pelo que a autora actuou como administradora da coisa comum.”

O artº. 1024º, nº. 2 do Código Civil é uma norma especial para os arrendamentos de prédios indivisos, fora da aplicação da regra comum do artº. 1407º do Código Civil, relativa à administração das coisas comuns.

Embora Pires de Lima e Antunes Varela entendam que o arrendamento de um prédio indiviso feito por um ou alguns dos consortes sem o consentimento de todos é um arrendamento nulo, invocando a propósito o artº. 294º do Código Civil, consideram que esta nulidade “está sujeita a um regime especial, incluindo a possibilidade de confirmação e o facto de só ser invocável pelos consortes não participantes no acto” (cfr. Código Civil Anotado, Vol. II, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 334 – em anotação ao artº. 1024º).

O Prof. Pereira Coelho refere tratar-se de uma nulidade de regime misto que “só pode ser invocada pelos outros comproprietários e pode ser sanada mediante confirmação, mas não está sujeita a prazo”, mais referindo que a norma em causa não se inspira em normas de interesse e ordem pública cuja violação importe por si a nulidade total do acto, antes contendo uma norma especial que se destina unicamente a acautelar os direitos dos outros consortes do prédio, de tal modo que, “aquele que abusivamente deu de arrendamento coisa que não lhe pertencia na totalidade, não pode pedir a declaração de nulidade do acto, uma vez que a invalidade deste não foi estabelecida no seu interesse mas na dos demais consortes, porventura prejudicados com tal acto” (cfr. Lições de Direito ao Arrendamento, 1976, pág. 83).
Sobre a mesma questão se pronunciou também Jorge Aragão Seia (in Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, 4ª ed., Almedina, 1997, pág. 87:

«Para que o arrendamento do prédio indiviso feito apenas pelo consorte ou consortes administradores se considere válido é necessário que os restantes comproprietários manifestem, antes ou depois do contrato, o seu assentimento.
O assentimento manifestado pelos interessados depois do contrato tem a natureza de confirmação – ver art. 288º do C.C.
Se o assentimento não for manifestado o contrato é nulo, sendo esta nulidade especial ou de regime misto, mas só pode ser invocada pelos consortes que nele não intervieram.»
De todo o modo, a invalidade a que o citado nº. 2 do artº. 1024º do Código Civil se refere, diz respeito meramente às relações internas entre os comproprietários, não estando em causa a validade do contrato em face do locatário (cfr. acórdão da RL de 8/06/2017, proc. nº. 4579/14.1T8FNC, acessível em www.dgsi.pt).

Como vimos, tal invalidade - que apenas aproveita ao comproprietário não interveniente – é susceptível de sanação, mediante confirmação, nos termos previstos no artº. 288º, n.º 1 do Código Civil. Enquanto negócio jurídico unilateral não receptício, a confirmação identifica-se com o assentimento posterior ao arrendamento dado pelo consorte que não teve intervenção no contrato, em conformidade com o disposto no nº. 2 do artº. 1024º do Código Civil (cfr. acórdão da RL de 4/06/2013, proc. nº. 3134/10.0TBMTJ, acessível em www.dgsi.pt).

Reportando-nos ao caso dos autos, estando em causa uma eventual ilegitimidade (substantiva) da Autora, esta mostra-se ultrapassada com a intervenção principal espontânea dos demais comproprietários do locado nos presentes autos.

Na verdade, suscitada a questão na sessão de julgamento realizada em 5/03/2018, veio a A./recorrida a juntar aos autos recibos emitidos pelo comproprietário Pedro (fls. 108 e vº), fazendo menção, ainda, aos emails subscritos pela mulher desse comproprietário, Sílvia e juntos a fls. 22 e 81 a 86, documentos esses comprovativos do conhecimento e aceitação do contrato de arrendamento objecto do litígio pelos demais comproprietários do locado.

Para além disso, vieram os demais comproprietários do locado requerer a sua intervenção principal espontânea, aderindo aos articulados da A. e aceitando o processo no estado em que se encontrava, nos termos do artº. 313º do NCPC.

De acordo com o supra citado dispositivo legal, a intervenção principal espontânea é admissível a todo o tempo, enquanto não estiver definitivamente julgada a causa, o que significa que poderá inclusivamente ser requerida depois de proferida sentença, desde que antes do trânsito em julgado desta, ou até em sede de recurso.
E quando assim é, desde que admitido o incidente, ficará sanada, como acontece nos presentes autos, uma eventual situação de ilegitimidade.

Assim, mesmo que a acção pudesse estar, de início, ferida de ilegitimidade activa da A., com a intervenção espontânea dos demais comproprietários do locado nos moldes em que o fizeram, em termos substantivos estão a dar o seu assentimento à actuação daquela na celebração do contrato de arrendamento, não assistindo, por isso, razão à recorrente ao invocar a ilegitimidade da Autora por preterição de litisconsórcio necessário.
*
II)Da invalidade do contrato de arrendamento:

Invoca a recorrente a invalidade do contrato de arrendamento por, em seu entender, tal contrato omitir elementos identificativos do locado, devendo a sua individualização ter sido efectuada na petição inicial para, assim, suprir a invalidade do arrendamento, o que não foi feito, violando-se o disposto nos artºs 3º, nº. 1, al. c) e 4º do DL 160/2006 de 8/8.

Porém, sobre esta questão pronunciou-se o Tribunal “a quo” nos seguintes termos:

«Decorre do preceituado nos artigos 3º, n.º 1, al. c) e 4º do Decreto-Lei n.º 160/2006, de 8 de Agosto, que o contrato de arrendamento urbano deve mencionar “o número de inscrição na matriz predial ou a declaração de o prédio se encontrar omisso”, mas a falta desse elemento “não determina a invalidade ou a ineficácia do contrato, quando possam ser supridas nos termos gerais e desde que os motivos determinantes da forma se mostrem satisfeitos”, o que nos reconduz ao artigo 280º, n.º 1 do Código Civil, quando aí se prescreve que é nulo o negócio cujo objecto seja indeterminável.

Atentando ao conteúdo do contrato de arrendamento, verifica-se que a morada do armazém aí aposta (contendo o “número de polícia” 8, da Rua …, da localidade de …), permite a sua individualização, sendo pois determinável o bem dado de locação (de acordo com os critérios interpretativos dos artigos 236º e 238º do Código Civil), e, nessa medida, a ausência de menção ao artigo matricial do imóvel não acarreta a invalidade do contrato, o mesmo se podendo dizer, “mutatis mutandis”, da falta de referência à descrição predial, apesar de esta menção não ser explicitada no rol de referências eventuais do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 160/2006, de 8 de Agosto.»

Ora, como vimos, o objecto do contrato de arrendamento foi o espaço que a recorrente confessa ter utilizado como armazém, na sequência do contrato que celebrou, cujas rendas pagou (até determinada data), o mesmo que agora pretende seja declarado inválido.

Assim sendo, afigura-se-nos que a simples delimitação física do espaço, a entrega das chaves desse espaço, a contratação pela recorrente de contadores de leitura dos consumos de água e electricidade, para esse espaço, integrarão o espírito do legislador quando no artº. 4º do DL 160/2006 de 8/8 refere que “a falta de algum ou alguns dos elementos referidos nos artigos 2º e 3º não determina a invalidade ou a ineficácia do contrato, quando possam ser supridas nos termos gerais e desde que os motivos determinantes da forma se mostrem satisfeitos”.
E julgamos que a melhor forma de suprir a falta de elementos formais é a indicação física do espaço.

Com efeito, a invalidade/nulidade resultante da inobservância do estipulado nos artigos invocados pela recorrente só se verificaria caso a arrendatária não lograsse localizar fisicamente o locado por falta de identificação do mesmo.

Ora, celebrar um contrato de arrendamento tendo por objecto um armazém sito na Rua..., Vila Real, do qual se tem a chave e ocupa durante vários meses, demonstra que o locado se encontra perfeitamente individualizado, mostrando-se, assim, suprida a falta de indicação da inscrição na matriz predial que é invocada pela recorrente.

Entendemos, pois, que bem andou o Tribunal “a quo” ao considerar validamente celebrado o contrato de arrendamento em discussão nestes autos, não merecendo qualquer censura, nesta parte, a sentença recorrida.
*
III)Do abuso de direito e litigância de má fé da Autora:

Por fim, pretende a Ré/recorrente a condenação da Autora/recorrida como litigante de má fé e que seja declarado que actuou em abuso de direito, alegando para tanto que, não obstante resultar da matéria de facto dada como provada que a Ré formalmente apenas com a contestação denunciou o contrato de arrendamento, a A. há muito que estava na posse do imóvel e deturpou os factos com vista a fazer essa prova, porquanto juntou aos autos um orçamento relativo aos custos com a reparação do interior do imóvel.

Nos termos do disposto no artº. 542º, nº. 2 do NCPC, litiga de má-fé quem, agindo com dolo ou negligência grave, deduzir pretensão ou oposição com manifesta falta de fundamento, por inconcludência ou inadmissibilidade do pedido ou da excepção; apresentar uma versão dos factos, deturpada ou omissa, em violação do dever de verdade; omitir o dever de cooperação; tiver feito uso reprovável do processo ou de meios processuais, com o fim de atingir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção de justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Assim, para haver má fé não basta a constatação de um dos comportamentos indiciadores de tal litigância acolhidos nas mencionadas alíneas do nº. 2 do artº. 542º do NCPC; é indispensável ainda que a parte tenha actuado com dolo ou negligência grave.

Na base da má fé está este requisito essencial: “a consciência de não ter razão”, como refere Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, pág. 263.

Por outro lado, como refere António Abrantes Geraldes (in Temas Judiciários, Vol. I, pág. 313), “é neste contexto, com certeza fruto da degradação dos padrões de actuação processual e do uso dos respectivos instrumentos que, a par do realce dado ao princípio da cooperação e aos deveres de boa-fé e de lealdade processuais, surge a necessidade de ampliar o âmbito de aplicação do instituto, assumindo-se claramente que a negligência grave também é causa de condenação como litigante de má-fé”.

O Prof. Antunes Varela (in Das obrigações em Geral, Vol. I, 10ª ed., pág. 573) define a negligência (consciente) como a conduta em que o agente prevê a produção do facto ilícito como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação, e só por isso não toma as providências necessárias para o evitar.

No caso dos autos, a conduta da Autora não excedeu as regras normais da litigância, onde é normal que as partes apresentem versões divergentes dos factos e se prove uma dessas versões.
Ora, em face da factualidade apurada, entendemos não estarem preenchidos os requisitos previstos no citado artº. 542º, nº. 2 do NCPC, pelo que improcede o pedido de condenação da Autora como litigante de má fé.

A pretensão da Autora é legitima e está devidamente fundamentada, tendo inclusive obtido provimento, dando assim lugar à manutenção da decisão recorrida.

Por sua vez, o abuso do direito previsto no artº. 334º do Código Civil consiste no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Conforme se pode ler no acórdão do STJ de 2/07/1996 (proc. nº. 96A136), citado no acórdão desta Relação de 25/05/2017 (proc. nº. 354/14.1T8VCT-A), ambos acessíveis em www.dgsi.pt, «Esta complexa figura do abuso de direito é uma válvula de segurança, uma das cláusulas gerais, de janelas por onde podem circular lufadas de ar fresco, com que o julgador pode obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido (Manuel Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 1958, 63 e seguintes; Almeida Costa Direito das Obrigações, 3.ª edição, 60 e seguintes; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 4.ª edição, 299; Antunes Varela, Comunicação à Assembleia Nacional em 26 de Novembro de 1966).

Manuel de Andrade acrescentou ainda “grosso modo” existirá tal abuso quando, admitido um certo direito como válido, isto é, não só legal mas também legítimo e razoável, em tese geral, aparece todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito (loc. cit.).

Por sua vez, Antunes Varela esclareceu que o abuso de direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo e que se designa por abuso de direito o exercício de um poder formal realmente conferido pela ordem jurídica a certa pessoa, mas em absoluta contradição seja com o fim (económico ou social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa fé e bons costumes) que, em cada época histórica, envolve o seu conhecimento (R.L.J. 114, página 75) e, por outro lado, não se esqueceu de salientar que a condenação do abuso de direito, a ajuizar pelos termos do dito artigo 334.º, “aponta de modo inequívoco para as situações concretas em que é clamorosa, sensível, evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjectivo, de carga essencialmente formal, e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou, pelo menos, dos direitos de certo tipo” (R.L.J. 128, página 241).

E há que ter presente que o actual Código Civil consagrou a concepção objectivista do abuso de direito e por isso não é necessário a consciência malévola, a consciência de se excederem, com o abuso de direito, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, bastando que sejam excedidos esses limites, muito embora a intenção com que o titular do direito tenha agido não deixa de contribuir para a questão de saber se há ou não abuso de direito (Almeida Costa, loc. cit., Pires de Lima e Antunes Varela, loc. cit.).»

Ora, o instituto do abuso de direito pressupõe a alegação e prova de factos que permitam concluir pela verificação dos respectivos pressupostos.

Da matéria de facto alegada e provada, não resultam quaisquer factos que nos permitam concluir existir abuso de direito, no que se refere à conduta da Autora/recorrida, ónus cuja alegação e prova incumbia à recorrente, pelo que, também nesta parte, terá de improceder a pretensão da Ré/recorrente.
Por tudo o que se deixou exposto, sem necessidade de ulteriores considerações, terá de improceder o recurso de apelação interposto pela Ré e, em consequência, confirmar-se a sentença recorrida.
*
SUMÁRIO:

I) - A legitimidade das partes enquanto pressuposto processual, de cuja verificação depende a possibilidade do juiz conhecer do mérito da acção, não se confunde com a denominada “legitimidade substantiva”, que tem a ver com a posição das partes perante o direito subjectivo invocado e que, ocorrendo, determina a improcedência do pedido.
II) - A legitimidade processual, enquanto pressuposto adjectivo para que se possa obter decisão sobre o mérito da causa, não exige a verificação da efectiva titularidade da situação jurídica invocada pelo autor, bastando-se com a alegação dessa titularidade.
III) - Numa acção em que se invocam direitos emergentes de um contrato de locação, a legitimidade activa radica em quem alegar factos que evidenciem a sua qualidade de senhorio, e não de proprietário, comproprietário ou usufrutuário (podendo o senhorio ser ou não proprietário).
IV) - A circunstância da A. ser comproprietária do imóvel objecto mediato do contrato de locação e ter intervindo no mesmo desacompanhada dos demais consortes, apenas relevará para aferição da sua legitimidade substantiva para dispor da coisa comum, à luz do regime positivado no artº. 1024º, nº. 2 do Código Civil, que no domínio da locação consagra um regime especial face ao regime regra da compropriedade previsto no artº. 1408º do mesmo Código.
V) - O arrendamento de um prédio indiviso feito por um ou alguns dos consortes sem o consentimento de todos é um arrendamento nulo (artº. 294º do Código Civil), estando, no entanto, esta nulidade sujeita a um regime especial, incluindo a possibilidade de confirmação e o facto de só ser invocável pelos consortes não participantes no acto.
VI) - A invalidade a que o nº. 2 do artº. 1024º do Código Civil se refere, diz respeito meramente às relações internas entre os comproprietários, não estando em causa a validade do contrato em face do locatário.
VII) - A intervenção principal espontânea é admissível a todo o tempo, enquanto não estiver definitivamente julgada a causa, o que significa que poderá inclusivamente ser requerida depois de proferida sentença, desde que antes do trânsito em julgado desta, ou até em sede de recurso.
VIII) - Mesmo que a acção pudesse estar, de início, ferida de ilegitimidade activa da A., com a intervenção espontânea dos demais comproprietários do locado, na qual aderem aos articulados da A. e aceitam o processo no estado em que se encontrava, em termos substantivos estão a dar o seu assentimento à actuação daquela na celebração do contrato de arrendamento.
IX) - Decorre do preceituado nos artºs 3º, n.º 1, al. c) e 4º do DL 160/2006 de 8/8, que o contrato de arrendamento urbano deve mencionar o número de inscrição na matriz predial ou a declaração de o prédio se encontrar omisso, mas a falta desse elemento não determina a invalidade ou a ineficácia do contrato, quando possam ser supridas nos termos gerais e desde que os motivos determinantes da forma se mostrem satisfeitos.

III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela Ré X – Construções, Unipessoal, Lda. e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente.
Notifique.
Guimarães, 10 de Julho de 2018
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)


(Maria Cristina Cerdeira)
(Raquel Baptista Tavares)
(Margarida Almeida Fernandes)

1. Cfr. o Ac. do Trib. da Rel. de Évora de 26/03/2015, rel, Cristina Cerdeira, proc. n.º 183/11.4T2GDL.El, in www.dgsi.pt