Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
329/16.6T9GMR.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: RAI
REQUISITOS LEGAIS
NARRAÇÃO SUFICIENTE DOS FACTOS
NÃO REJEIÇÃO LIMINAR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE
Sumário: I – A instrução, quando requerida pelo assistente, visa a comprovação judicial da decisão de não deduzir acusação, em ordem, ao invés, a lograr a submissão da causa a julgamento (arts. 286º, nº 1 e 287º, nº 1, al. b) e 2, do CPP), pelo que, embora não sujeito a qualquer formalidade especial, o requerimento para a respectiva abertura deverá sempre conter, sob pena de nulidade, todos os elementos a que aludem as alíneas b) e c) do nº 3 do art. 283º do CPP, portanto, também, a «narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada».
II – Com efeito, o RAI constitui, substancialmente, uma acusação, nos mesmos termos que teria sido feita pelo Ministério Público se por ela tivesse optado, imprescindível para delimitar o objecto do processo e definir o âmbito sobre o qual o juiz, a final, se terá de pronunciar, bem como para que o arguido saiba bem de que é acusado e assim se possa defender, por imposição dos princípios do acusatório e do contraditório, devendo esse requerimento, como tal, especificar todos os elementos da mesma, ou seja, a todos os elementos objectivos e subjectivos que consubstanciem os ilícitos que se pretende imputar ao arguido, bem como a indicação desses ilícitos e da pessoa contra quem a instrução é dirigida.
III – Contudo, não merece uma rejeição liminar o RAI que, mesmo não sendo uma peça primorosa, contenha a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação pública, com a enunciação cabal, concreta e determinada dos factos que o assistente pretende estarem indiciados, susceptíveis de integrarem a prática do ilícito típico imputado, dele constando os elementos mínimos e indispensáveis para que o denunciado possa, eventualmente, ser pronunciado pelos factos nele descritos e para que lhe seja possível carrear para o processo os elementos de prova que entender úteis, respeitando-se, os princípios basilares que subjazem ao processo penal acima enunciados, em ordem a assegurar as garantias de defesa do arguido contra qualquer arbitrário alargamento do objecto do processo e a possibilitar-lhe a preparação da defesa.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Penal, do Tribunal da Relação de Guimarães:

O assistente K. D., inconformado com o despacho judicial que rejeitou, por legalmente inadmissível, o requerimento de abertura de instrução que deduzira contra F. E. e A. B.., interpôs recurso suscitando nas respectivas conclusões as questões de saber se aquela decisão viola o dever de fundamentação e se deve ser revogada porque o dito requerimento pode ser admitido liminarmente já que obedece a todos requisitos exigidos pelos artigos 287º, nº 2 e 283º, nº 3 do C. do Processo Penal, contendo a narração dos factos imputados, as normas jurídicas aplicáveis e os meios de prova que justificam a pronúncia dos arguidos.

O recurso foi admitido por despacho proferido a fls. 374.

O Ministério Público apresentou resposta à motivação, considerando que o requerimento de abertura de instrução deduzido pelo assistente é exequível e perfeitamente legal, por ter observado o disposto nos arts. 287º, nº 2 e 283, nº 3, al. b) e c), do CPP, e por conter todos os elementos objectivos e subjectivos típicos do crime de denúncia caluniosa p. e p. pelo artigo 365º, nº 1, do C. Penal e de falsidade de testemunho p e p. pelo art. 360º, nºs 1 e 3, do mesmo diploma legal que são imputados aos arguidos, inexistindo qualquer causa que determine a sua rejeição, defendendo, assim, o provimento do recurso.

O recorrido A. B.. também respondeu, sustentando a fundamentação da decisão recorrida.

Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, convocando os fundamentos aduzidos pelo Ministério Público de 1ª instância, pugnando que deve ser dado provimento ao recurso e, consequentemente, revogada a decisão recorrida.

Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP.
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Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (arts. 402º, 403º e 412º, nº 1, do CPP), sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, importa apreciar e decidir as acima enunciadas questões, naquelas suscitadas. Para tanto, deve considerar-se como pertinentes ao conhecimento do objecto do recurso os elementos considerados na decisão instrutória recorrida (transcrição):
«Não se conformando com o despacho de arquivamento de fls.178 e ss, o assistente veio, a fls. 186 e ss, requerer abertura de instrução.
Após análise crítica dos elementos probatórios, apresenta a sua versão dos factos, concluindo dever ser proferido despacho de pronúncia por crimes de denúncia caluniosa pp pelo artº 365ºdo CP e de falsidade de testemunho, pp pelo artº 360 do CP (sem qualquer indicação de qual o número dos referidos preceitos legais).
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Cumpre proferir despacho liminar, sendo certo que o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução – artigo 287º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
O tribunal é competente.
O requerimento é tempestivo.
O requerente tem legitimidade – artigo 287º, n.º 1, al. b).
Importa, agora, apreciar a admissibilidade legal da instrução.
Findo o Inquérito, o Ministério Público proferiu de despacho de arquivamento (cfr. Fls. 178 e ss).
Inconformado, o denunciante, constituído assistente, veio a fls. 186 e ss, abertura de instrução.
Nesse requerimento, conforme se alcança da simples leitura do mesmo, o assistente coloca em crise os fundamentos do despacho de arquivamento, faz apreciação crítica dos elementos de prova e apresenta a sua versão dos factos.
No entanto, e pese embora a exposição das razões de facto relativamente ao despacho de arquivamento, o requerimento não reveste o formalismo de uma acusação, definindo e delimitando o objecto da instrução.
Analisada a peça processual de abertura de instrução, conclui este Tribunal que não se verificam os requisitos necessários para permitir uma abertura de instrução.
Vejamos.
Preceitua o artigo 287 n.º 2 do CPP que o requerimento de abertura de instrução pelo assistente (…) deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito da discordância relativamente à acusação ou não acusação. Trata-se de uma imposição legal essencial para que o arguido tenha a plena noção daquilo que o assistente o acusa e possa defender-se convenientemente, em respeito ao princípio do contraditório.
O assistente tem que, ainda que sumariamente, delimitar os factos suficientes para integrar todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo criminal que entende ter sido violado, sendo estes factos que delimitam a actividade investigatória do juiz de instrução criminal. Como resulta do artigo 303.º e 309.º do CPP o juiz de instrução criminal está limitado nos seus poderes de cognição pelo requerimento do assistente para que se abra a instrução. Os factos apresentados pelo assistente são a base de trabalho do juiz de instrução criminal, já que a instrução não é um suplemento de investigação e não visa a substituição do MP na função investigatória, conforme pretende o requerente. O escopo legal da instrução é a comprovação judicial da decisão acusatória ou do arquivamento em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Não é uma segunda fase investigatória desta feita levada a cabo pelo juiz , mas sim uma fase processual essencialmente garantística, adequando-se perfeitamente à natureza, que segundo a Constituição lhe cabe, de direito das pessoas e garantia do Processo Penal .
A instrução não é um novo inquérito: não se visa um juízo sobre o mérito, mas apenas um juízo sobre a acusação, em ordem verificar da admissibilidade da submissão do arguido a julgamento com base na acusação que lhe foi formulada.
Como sabemos visa-se nesta fase do processo alcançar não a demonstração da realidade dos factos, mas tão-só indícios, sinais, de que um crime foi cometido por determinado arguido, isto porque as provas a reunir não são pressuposto de uma decisão de mérito, mas de decisão processual da prossecução dos autos para julgamento (cfr. Acórdãos da Relação de Coimbra de 20.10.93, in CJ; IV, 261 e de 31.03.93, in CJ, II, 66, que seguimos de perto). Deve, assim, o juiz de instrução compulsar e ponderar toda a prova recolhida e fazer um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, em consonância com esse juízo, remeter ou não a causa para a fase de julgamento. No fundo, a fase de instrução permite que a actividade levada a cabo pelo Ministério Público durante a fase do inquérito possa ser controlada através de uma comprovação, por via judicial, traduzindo-se essa possibilidade na consagração, no nosso sistema, da estrutura acusatória do processo penal, a qual encontra assento legal no artigo 32.°, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa. Por isso, a actividade processual desenvolvida na instrução é materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações - Acórdão da Rel. de Lisboa de 12.07.1995, CJ XX-IV-140, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 128. A necessidade do assistente indicar no seu requerimento os factos que considere indiciados ou que pretende vir a indiciar justifica-se pelo facto do requerimento equivaler à acusação, definindo e delimitando o objecto do processo a partir da sua apresentação. Substancialmente o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente contém uma verdadeira acusação. Os requisitos a que deve obedecer uma acusação constam do artigo 283.º do CPP, ali se estabelecendo, nomeadamente nas alíneas a), b) e c), aplicável ao requerimento de abertura de instrução ex vi n.º 2 do artigo 287.º CPP, que a acusação contém, sob pena de nulidade, as indicações tendentes à identificação do arguido, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis. Ou seja, o assistente deverá descrever factos que permitam identificar no tempo e espaço acções (ou omissões), típicas, ilícitas, culposas e puníveis, pois só indiciariamente provados factos que permitam o preenchimento destes elementos é que se poderá afirmar a existência de um crime. Constituindo o RAI uma “verdadeira” acusação deveria, em segmento próprio, e devidamente autonomizado, cumprir-se o disposto no art. 283.º do CPP, nomeadamente, identificando na peça processual o arguido cabalmente, indicar as disposições legais aplicáveis e concretizando todos os factos que permitam a subsunção no crime pelo qual se pretende a pronúncia, ou seja, em local perfeitamente delimitado no RAI, alegar as circunstâncias de “tempo, modo, como e quando” e terminando com a subsunção jurídica no concreto crime pelo qual se pretende que o Tribunal submeta o arguido a julgamento. Ora, vemos que o RAI, além de conter os factos que considera indiciados, de permeio, contém apreciação crítica do despacho de arquivamento e conclui pela indicação de disposições legais, sem que, contudo, indique o concreto número de cada uma das disposições legais. Como já se disse, o requerimento de abertura de instrução pelo assistente, no caso de ter sido proferido despacho de arquivamento, equivale à acusação, definindo e limitando o objecto do processo a partir da sua apresentação. Os casos em que o requerimento de abertura de instrução pode ser rejeitado encontram-se taxativamente tipificados no artigo 287.º n.º 3 do CPP, mas partem do pressuposto de que aquele requerimento reúne os requisitos prévios, de forma e de fundo, designadamente as menções indicadas no artigo 283.º n.º 3, para que remete o artigo 287.º n.º 2 do CPP, sendo ainda a falta de tais menções de integrar no conceito de inadmissibilidade legal da instrução enunciado no artigo 287.º n.º 3 do CPP. Resulta daqui que, quando o requerimento de abertura de instrução narra factos insusceptíveis de integrarem o tipo, não pode haver legalmente pronúncia. Na verdade, esta, nos termos do art.° 308°, n° 1, do CPP, tem de descrever os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Ora, se a acusação apresentada pelo assistente não contém esses factos, a sua inclusão na pronúncia significaria, repete-se, a pronúncia do arguido por factos que constituiriam uma alteração substancial dos descritos naquele requerimento, sendo tal decisão nula, por força do já falado artº 309°, n° 1, do CPP. E uma acusação que não pode legalmente conduzir à pronúncia do arguido é uma acusação que a lei não pode admitir, até porque seria inútil, e não é lícito praticar no processo actos inúteis (art”s 137° do CPC e 4° do CPP). É, pois, legalmente inadmissível o recebimento de acusação quando seja formulada pelo assistente e este não descreva no seu requerimento os factos integradores do crime pelo qual pretende a pronúncia do arguido.
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Na hipótese de instrução requerida pelo assistente, em caso de despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo M.P., o requerimento de abertura de instrução deverá revestir todos os requisitos «de uma acusação, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório, e a elaboração da decisão instrutória. É que, nessa eventualidade, o requerimento de abertura de instrução tem de constituir uma verdadeira acusação, não só para que o arguido possa, eventualmente, ser pronunciado pelos factos nele descritos, mas também para que fiquem «definitivamente assegurados os seus direitos de defesa» e lhe seja possível «carrear para o processo os elementos de prova que entender úteis» ( cfr. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal. Anotado, 9: edição, pág. 541)- estrutura acusatória e delimitação ou vinculação temática do tribunal, em ordem a assegurar as garantias de defesa do arguido contra qualquer arbitrário alargamento do objecto do processo e a possibilitar-lhe a preparação da defesa, no respeito pelo princípio do contraditório. A falta de formulação e enunciação de factos é insuprível ( cfr . neste sentido, o Ac. da Rel. Lisboa de 09/02/2000, CJ XXV- I- 153 e o Acordo Uniformizador de Jurisprudência n.º 7/2005, publicado no DR, S I A, de 04.11.2005), sabido como é instrução, no caso de abstenção da acusação, equivale à acusação e que a decisão instrutória só pode recair sobre os factos que foram objecto de instrução, ficando o próprio objecto do processo delimitado pela indicação feita nesse requerimento e posteriormente aceite no despacho de pronúncia, no todo ou em parte. Efectivamente, não contendo o requerimento de abertura de instrução o indispensável conteúdo fáctico, nele se incluindo o dolo em todas as suas vertentes, «não só se torna inexequível a instrução, ficando o juiz sem saber quais os factos que o assistente gostaria de ver indiciados - e também o arguido, ficando inviabilizada a sua defesa -, como também, caso mesmo assim se prosseguisse a instrução, qualquer despacho de pronúncia que se proferisse na sua sequência sempre seria nulo nos termos do art. 309.° do CPP », e, por isso, «inútil e proibido, tal como os actos eventualmente subsequentes» (cf. o Ac. da RL de 11/10/2001, CJ, XXVI, 4. °, pág. 141 ).
Daí que, se o assistente requerer a abertura de instrução sem a indicação e enunciação dos factos concretos e determinados imputados ao arguido susceptíveis de consubstanciarem a prática de um hipotético tipo legal de crime e sem a delimitação do campo factual sobre que a instrução há-de versar, como sucede in casu, « a instrução será a todos os títulos inexequível» (cfr. Maia Gonçalves, op. cit., pág. 541, e Souto de Moura, « Inquérito e Instrução » in « Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal », ed. do CEJ., Almedina, Coimbra, 1991, pág. 120)». Paralelamente, se o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, em caso de despacho de arquivamento formulado pelo M.P., não obedecer aos requisitos contemplados no art. 283.°, n.º 3, al. b)- aplicável por força da remissão operada pelo art. 287.°, n.º 2 -, que a lei exige para a acusação pública, tal requerimento não pode deixar de considerar-se nulo, tal como ocorre, aliás, com a acusação pública deduzida sem observância de tais requisitos.
É o que sucede, inquestionavelmente, na situação vertente, porquanto no requerimento de abertura de instrução não são de todo em todo respeitadas, como precedentemente se referiu, as exigências legais plasmadas na al. b) do n.º 3, do citado art. 283º do CPP, nomeadamente as concretas disposições legais, com a indicação de qual o número de cada uma das indicadas disposições legais, até porque no caso do artº 365º a indicação das alíneas não é indiferente para efeitos de moldura penal.
Não cabe ao juiz compor ele próprio uma acusação, respigando aqui um segmento de frase e outro além.
E nem se diga que o juiz deveria proferir, em situação como à destes autos, despacho de aperfeiçoamento do requerimento de abertura da instrução, não obstante tal entendimento ter sido já defendido (cfr. Ac. da Rel. Évora de 16.12.1997, BMJ n.º 472.°, pág. 585, 20.06.2000, CJ III, pág. 153 e de 21.03.2001, CJ, II, pág. 131).
Na verdade o convite ao aperfeiçoamento não está prevista na lei processual penal, para além de que tal convite violaria os princípios da imparcialidade, das garantias de defesa do arguido, da estrutura acusatória do processo e do contraditório (cfr., neste sentido, Acórdãos da Relação do Porto de 14/01/2004, de 31/03/2004, de 05/05/2004, de 16/06/2004, de 23/06/2004, de 15/12/2004 e de 05/01/2005, todos consultados em www.dgsi.pt e Acórdão de Fixação de Jurisprudência de 12 /05/2005, publicado no DR – I Série-A, de 04/11/2005), solução que não contende com princípios constitucionais (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 27/2001, de 30 de Janeiro de 2001, consultado em www.tribunalconstitucional.pt).
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Nestes termos e pelos fundamentos expostos, ao abrigo do disposto no art. 287.°, n.ºs 2 e 3, quer porque a instrução é inadmissível - por inexequibilidade e por falta de objecto (cfr., em situações similares, Acórdãos da Relação de Lisboa de 06/11/2001, da Relação de Coimbra de 31/10/2001 e da Relação do Porto de 23/05/2001 e de 24/04/2002, processo n.º 0210078, todos consultados em www.dgsi.pt).-, quer porque o requerimento de abertura de instrução é nulo, atentas as disposições conjugadas dos arts. 287°, n° 2 e 283°, n° 3, al. b), rejeito tal requerimento.».
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A violação do dever de fundamentação.
Segundo parece, o assistente pretenderia reputar o despacho recorrido de nulo por obscuridade da respectiva fundamentação, por falta de concretização/fundamentação e por se encontrar eivado de alegações genéricas sobre o não preenchimento pelo RAI dos requisitos legalmente exigíveis para a sua admissão e apenas ter concretizado como únicos vícios o da não identificação do número dos artigos e a ausência de conteúdo fáctico quanto ao dolo dos arguidos.
Vejamos.
A fundamentação, princípio com assento constitucional em que se inscreve a legitimidade do exercício do poder judicial (art. 205º da CRP), traduz-se na obrigatoriedade de o tribunal especificar os motivos de facto e de direito da decisão, cominando a lei a sua omissão ou grave deficiência com a nulidade, aliás, de conhecimento oficioso. Também as demais decisões proferidas no processo – que não sejam de mero expediente, isto é, que decidam qualquer questão que se suscite ou seja controvertida – devem ser sempre fundamentadas (1) e o seu alcance deve ser perceptível para os respectivos destinatários e demais cidadãos.
Para além dessa proeminência da fundamentação, enquanto garantia integrante do Estado de direito democrático, no domínio do processo penal, a mesma assume uma função estruturante das garantias de defesa dos arguidos. Uma fundamentação cuidada é, pois, absolutamente essencial, desde logo, para garantir a possibilidade do exercício eficaz do direito ao recurso.
O art. 97º, nº 5, do CPPenal, consagra o princípio geral sobre a fundamentação dos actos decisórios, estatuindo que estes são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão. Este princípio geral é reiterado relativamente a alguns particulares e específicos actos que afectam ou podem afectar os direitos dos arguidos.
Quanto a este concreto despacho, estipula o nº 1 do art. 307º, que a fundamentação poderá ser feita por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura da instrução. Contudo, como se afirma no Acórdão do TRP de 29.02.2012, «a possibilidade prevista no art. 307º, nº 1, do Código de Processo Penal de fundamentação da decisão instrutória por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução refere-se somente à dispensa da narração/descrição dos factos e da respectiva qualificação jurídica, não desobrigando o juiz de instrução de explicitar os motivos pelos quais, nomeadamente, não viu nos factos e nos elementos probatórios indicados pelo arguido virtualidade suficiente para infirmar a tese da acusação.».
Ademais, não se pode olvidar, que a fase de instrução, terá por objecto a análise dos factos que são indiciariamente imputados ao arguido pelo Ministério Público, na acusação pelo mesmo deduzida (art. 283º), e/ou pelo assistente, quando este tenha requerido a abertura de instrução [art. 287º, nº 1, alínea b)] ou deduzido acusação particular (arts. 284º ou 285º). Donde, perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art. 32º, nº 5, da CRP), os poderes de cognição do tribunal estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação e/ou pelo requerimento de abertura de instrução, limitação que se traduz em duas vertentes, por um lado, não permite que o juiz de instrução conheça de factos não imputados naquelas peças processuais, por outro, impõe-lhe que conheça de todos os factos alegados numa e/ou noutra daquelas peças.
Assim, para além de não poder conhecer de novos factos – exceptuada a situação de alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução prevista no art. 303º do CPPenal – não poderá igualmente o juiz de instrução deixar de se pronunciar sobre algum ou alguns dos factos imputados pelo Ministério Público e/ou pelo assistente.
Por outro lado, se, como se assinalou, todas as decisões devem ser sempre fundamentadas, também é consensual que só importa o esgrimido vício a ausência completa de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, não a sua motivação deficiente, medíocre ou errada.
Ora, analisando a motivação da decisão questionada, é patente que, sem margem para dúvidas, na mesma constam, explícita e implicitamente as razões quer de facto quer de direito, que levaram o Sr. Juiz, a indeferir o requerimento de abertura de instrução: a decisão recorrida foi efectivamente fundamentada com o exibido entendimento de que, o requerimento não reveste o formalismo de uma acusação, definindo e delimitando o objecto da instrução, não contendo o indispensável conteúdo fáctico, nele se incluindo o dolo em todas as suas vertentes e a indicação do número de cada uma das indicadas disposições legais. A par dessa enunciação de factos, o Sr. Juiz também teceu abundantes considerações para justificar o não convite ao aperfeiçoamento do RAI, rejeitando-o, por o ter considerado nulo.
Assim, também é imperceptível a alusão contida na conclusão 26ª à “confusão” do despacho ou à suposta dificuldade da sua apreensão, por o mesmo criticar a insuficiência de factos, nomeadamente quanto ao dolo, depois de afirmar que o RAI contém factos. Não se lobriga o que, na apontada sequência, poderia redundar em obscuridade ou incompatibilidade lógica: no discurso da decisão, o RAI contém uma enunciação de factos mas não dos suficientes para o efeito nele visado.
Portanto, encarando o tema da aludida nulidade na perspectiva da pretensão formulada pelo ora recorrente, de que não lhe foram indicados os concretos vícios que levaram à rejeição do RAI, não pode deixar de se reconhecer que na decisão recorrida, embora em termos bastantes genéricos e abstractos, se tomou conhecimento desses vícios, com a pronúncia sobre a inexequibilidade e falta de objecto do requerimento de instrução, por se ter entendido que no mesmo não consta a narração de factos que fundamentassem a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis na sequência do despacho de arquivamento de tal inquérito.
Por conseguinte, no caso em apreço, a decisão não enferma manifestamente de qualquer dos vícios que lhe foram assacados.

Os requisitos do requerimento de abertura de instrução.
Inconformado com o despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução, e, consequentemente, de não pronúncia dos arguidos, o assistente interpôs o presente recurso, alegando, em suma, que foi feita uma incorrecta interpretação dos arts. 287º, nº 1, 2 e 3 e 283º, nº 3 do CPP, pois, para além de não existir qualquer deficiência na narração dos concretos indícios imputados aos arguidos, também se encontram correctamente indicadas as normas legais violadas e, na eventualidade, de se considerar existir qualquer um dos apontados vícios, sempre incumbiria ao Sr. Juiz, ordenar o aperfeiçoamento do requerimento, por ser esta a solução que melhor se concilia com o direito de acesso à justiça.
Vejamos.
Preceitua o art. 286º, nº 1, do CPP, ao cuidar da finalidade e âmbito da instrução, que esta fase do processo se destina, exclusivamente, à comprovação judicial das decisões de acusação ou de arquivamento formuladas pelo MP, no fim do inquérito (2).Trata-se de uma fase jurisdicional (facultativa) em que o juiz de instrução investiga autonomamente o caso que lhe é submetido, praticando os actos necessários a fundear a convicção que lhe permita proferir a decisão final de submeter ou não a causa a julgamento, ou seja, de pronunciar ou não pronunciar o arguido (3).
A instrução pode ser requerida pelo arguido ou pelo assistente e, quando o for pelo assistente, como aqui sucede, visa a comprovação judicial da decisão de não deduzir acusação, em ordem, ao invés, a lograr a submissão da causa a julgamento (4) e, embora não sujeita a qualquer formalidade especial, deverá sempre conter todos os elementos a que aludem as alíneas b) e c) do nº 3 do art. 283º do CPP.
E, nos termos do art. 283º, nº 3 b), a acusação deve conter, sob pena de nulidade, a «narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada».
Com efeito, tem sido entendimento pacífico que o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente, uma acusação, devendo, como tal, conter todos os elementos da mesma, ou seja, a matéria de facto que consubstancie o ilícito que se pretende imputar ao arguido, bem como a indicação desse mesmo ilícito e da pessoa contra quem a instrução é dirigida. O princípio do acusatório, mas também o contraditório, impõem a necessidade de tal especificação.
Segundo Henriques Gaspar, «a estrutura acusatória do processo determina que o thema da decisão seja apresentado ao juiz, e que a decisão deste se deva situar dentro da formulação que lhe é proposta no requerimento para a abertura de instrução. (…) Os termos em que a lei dispõe sobre a definição do objecto da instrução através do requerimento para abertura desta fase processual têm de ser compreendidos pela estrutura e exigências do modelo acusatório. (…) O requerimento para a abertura de instrução constitui pois o elemento fundamental de definição e de determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas delimitada pelo tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura de instrução» (5).
Para tanto, finda a fase da instrução, terá de ser possível realizar um juízo de controlo positivo ou negativo no que concerne à verificação dos pressupostos necessários à submissão da causa a julgamento.
O T. Constitucional, no Ac. 358/04, de 19/05 (P. 807/03, in DR II, de 28/06/04) ponderou:
«A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução. (…)».
«Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe, como se deixou mencionado, uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.
Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada. (…)».
«De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.».
Expendeu o Desembargador Cruz Bucho no estudo “ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS EM PROCESSO PENAL(6):
«Como o Tribunal Constitucional já por diversas vezes teve oportunidade de salientar, os factos descritos na acusação (normativamente entendidos, isto é, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática e também obrigatoriamente indicadas na peça acusatória), definem e fixam o objecto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal 7 e o âmbito do caso julgado.
Segundo Figueiredo Dias 8 é a este efeito que se chama vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade 9 (segundo o qual o objecto do processo, os factos devem manter-se os mesmos, da acusação ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou indivisibilidade 10 (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente) e da consunção do objecto do processo penal (mesmo quando o objecto não tenha sido conhecido na sua totalidade deve considerar-se irrepetivelmente decidido, e, portanto, não pode renascer noutro processo) 11.».
Daí que, perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art. 32º, nº 5, da CRP), os poderes de cognição do tribunal estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação. Por outro lado, os “factos” que constituem o “objecto do processo” têm que ter a concretude suficiente para poderem ser contraditados e deles se poder defender o arguido e, sequentemente, a serem sujeitos a prova idónea (12). Tal resulta dos arts. 303º, nº 3 e 309º, nº 1 do CPP, onde se proíbe a pronúncia do arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos no requerimento do assistente para a abertura da instrução.
No caso vertente, o Ministério Público não deduziu acusação, optando por ordenar o arquivamento dos autos, recaindo, assim, sobre o assistente o ónus de invocar e alegar expressamente no RAI os factos materiais, susceptíveis de integrarem todos os elementos objectivos e subjectivos dos tipos de crimes que imputava aos arguidos. Ou seja, a concretização precisa dos factos objectivos e subjectivos conformadores dos ilícitos típicos em causa, nos mesmos termos que teria sido feita pelo Ministério Público se tivesse optado pela acusação, imprescindível para delimitar o objecto do processo e definir o âmbito sobre o qual o juiz, a final, se terá de pronunciar, bem como para que o arguido saiba bem de que é acusado e assim se possa defender.
Após esta incursão pelas normas que regem a fase da instrução, mais concretamente sobre os requisitos a que deve obedecer o RAI, apreciemos agora o requerimento para a abertura de instrução apresentado pelo assistente K. D..
Da sua análise, extrai-se que o mesmo começa por enunciar as razões de discordância relativamente à decisão do Ministério Público de não ter deduzido acusação, descrevendo de seguida, as normas legais que, na sua óptica, foram violadas e, finalmente, embora de forma bastante confusa, a actuação que em concreto imputa a cada um dos arguidos.
Com efeito, estando em causa o eventual cometimento de crimes de denúncia caluniosa e de falsidade de testemunho, o assistente discorrendo sobre os elementos objectivos e subjectivos destes ilícitos acaba por concretizar os comportamentos dos arguidos, apelando inclusive para elementos documentais existentes no processo, fazendo igualmente referência factual quanto aos elementos subjectivos dos tipos de ilícitos em causa.
Concretizando.
Desde logo e no que respeita ao primeiro dos aludidos ilícitos que o assistente imputa á denunciada F. E., no ponto B do requerimento, para além das considerações sobre os elementos objectivos e subjectivos deste crime, o mesmo descreve nos pontos 1 a 10, os factos, que em seu entender, foram perpetrados pela denunciada e susceptíveis de integrar tal ilícito, rematando com uma menção concreta quanto ao elemento subjectivo da infracção (dolo), ou seja: o conhecimento de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito e a intenção de o realizar, assacando-lhe a prática de um de um crime p. e p. pelo art. 365º, nº 1, do CP (cfr. fls.187 a 198 do RAI).
Constatamos, assim, que o assistente fez no requerimento de abertura da instrução a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação pública, porquanto enumerou de forma cabal, concreta e determinada os factos que pretende estarem indiciados, susceptíveis de integrarem a prática de um ilícito típico de denúncia caluniosa que permita a aplicação de uma pena à denunciada.
Para além do crime de denúncia caluniosa o assistente imputa também à denunciada a autoria de um crime de falsidade de depoimento p. e p. pelo art. 360º, nºs 1 e 3 do CP.
Relativamente a este ilícito, o assistente seguiu a mesma técnica, isto é, descreveu os elementos objectivos e subjectivos do crime, acabando por enunciar os factos em que se consubstanciou a sua prática por banda da arguida, enumerando-os nas alíneas a) a g) do ponto 2 do requerimento, concluindo que F. E. «estava ciente de que actuava na qualidade de testemunha e que ao prestar juramento estava obrigada a responder com verdade aos factos sobre os quais ia depor, tendo sido advertida dessa obrigatoriedade. Mais estava ciente das consequências da sua conduta e, não obstante, quis, deliberadamente omitir a versão correcta dos factos que efectivamente ocorreram.
A arguida bem sabia que no dia e hora descritos K. D. não estava na rua de …, na cidade de …. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente bem sabendo que a sua conduta era proibida e penalmente punida.» (cfr. 199 a 204).
Quanto ao denunciado A. B. o assistente imputa-lhe a autoria de um crime de falsidade de depoimento p. e p. pelo art. 360º, nºs 1 e 3 do CP, seguindo o mesmo procedimento que se acabou por descrever e que consta de fls. 206 a 208 do RAI.
Em síntese, estamos inteiramente de acordo com o Ministério Público quando defende que o requerimento de abertura da instrução em apreço contém os elementos mínimos e necessários para não merecer uma rejeição liminar.
De facto, impõe-se sublinhar que não é de acompanhar a afirmação do Sr. Juiz de instrução criminal asseverando que no RAI não constavam o número dos ilícitos criminais imputados aos denunciados, os seus elementos subjectivos, assim como que o assistente não fez a enunciação dos factos concretos e determinados que imputa aos denunciados, nem a delimitação do campo factual sobre que a instrução haveria de versar. Na realidade, não sendo o RAI uma peça primorosa, dele constam, para além da indicação da tipificação subjectiva e os números dos respectivos ilícitos, também os elementos mínimos e indispensáveis para que os denunciados possam, eventualmente, ser pronunciados pelos factos nele descritos e para que fiquem definitivamente assegurados os seus direitos de defesa e lhe seja possível carrear para o processo os elementos de prova que entenderem úteis, respeitando-se, os princípios basilares que subjazem ao processo penal acima enunciados: a estrutura acusatória e delimitação ou vinculação temática do tribunal, em ordem a assegurar as garantias de defesa dos arguidos contra qualquer arbitrário alargamento do objecto do processo e a possibilitar-lhes a preparação da defesa, no respeito pelo princípio do contraditório.
A instrução é pois legalmente admissível, procedendo o recurso.
*
Decisão:
Nos termos expostos, julgando-se totalmente procedente o recurso, decide-se revogar o despacho recorrido e ordenar que o mesmo seja substituído por outro que, na ausência de qualquer outro motivo impeditivo, declare aberta a instrução, seguindo-se os ulteriores termos processuais.
Sem tributação.
Guimarães, 19 /06/2017

Ausenda Gonçalves

Fátima Furtado
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1 Cfr. art. 97º nº 5 do CPP.
2 Cfr. José Souto de Moura, Inquérito e Instrução, Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, 1989, p. 125.
3 Cfr. art. 308º, nº 1, do CPP.
4 Cfr. arts. 286º, nº 1 e 287º, nº 1, al. b) e 2, ambos do C.P.Penal.
5 As exigências da investigação no processo penal durante a fase de instrução, in Que Futuro para o Processo Penal, 2009, p. 92-93.
6 Que apresentou, nomeadamente, numa comunicação feita no Tribunal da Relação de Guimarães, no dia 2 de Abril de 2009.
7 Cfr., v.g., Ac. do Tribunal Constitucional n.º 130/98, in www.tribunalconstitucional.pt.
8 Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, pág. 145.
9 Cfr. Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal – II Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, Coimbra, Almedina, reimp., 1983, págs. 305 e 317.
10 Não pode “a acusação pretender uma consideração só parcial ou só de alguns dos aspectos jurídico-criminais do objecto posto pela acusação” (Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, pág. 202). Por isso, também, “o juiz deve conhecer não de maneira fragmentária mas esgotantemente o facto que é submetido ao seu julgamento” (Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal, cit., pág. 359; cfr. também, págs. 314-315 e 317-318). O princípio da investigação ou da verdade material, com os propósitos de economia, celeridade e justiça material, justifica a indivisibilidade do objecto do processo.
11 O princípio da consunção implica que "posta uma questão penal ante um magistrado, deve este necessariamente resolvê-la. E resolvê-la esgotantemente até onde deva e possa. Aquilo, pois, que, devendo tê-lo sido, não se decidiu na sentença directamente, tem de considerar-se indirectamente resolvido; aquilo que se não resolveu por via expressa deve tornar-se como decidido tacitamente” (Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal, cit., pág. 304); “Por outras palavras, o conhecimento do objecto do processo deve ter-se sempre por totalmente consumido – a decisão sobre ele deverá considerar-se como tendo-o definido jurídico-criminalmente em tudo o que dele podia e devia ter conhecido” (Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, cit., pág. 205).
12 Assim, concluiu o STJ no Ac. de 17-06-2004 (04P908 - Santos Carvalho): «Não são “factos” susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado (“procediam à venda de produtos estupefacientes”, “essas vendas eram feitas por todos e qualquer um dos arguidos”, “a um número indeterminado de pessoas consumidoras de heroína e cocaína”, utilizavam também “correios”, “utilizavam também crianças”, etc.). As afirmações genéricas, contidas no elenco desses “factos” provados do acórdão recorrido, não são susceptíveis de contradita, pois não se sabe em que locais os citados arguidos venderam os estupefacientes, quando o fizeram, a quem, o que foi efectivamente vendido, se era mesmo heroína ou cocaína, etc. Por isso, a aceitação dessas afirmações como “factos” inviabiliza o direito de defesa que aos mesmos assiste e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art. 32º da Constituição.». Ou no Ac. de 2-07-2008 (07P3861 - Raul Borges): «Esta imprecisão da matéria de facto provada colide com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, traduzindo aquela uma mera imputação genérica, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido ser insusceptível de sustentar uma condenação penal – cf. Acs. de 06-05-2004, Proc. n.º 908/04 - 5.ª, de 04-05-2005, Proc. n.º 889/05, de 07-12-2005, Proc. n.º 2945/05, de 06-07-2006, Proc. n.º 1924/06 - 5.ª, de 14-09-2006, Proc. n.º 2421/06 - 5.ª, de 24-01-2007, Proc. n.º 3647/06 - 3.ª, de 21-02-2007, Procs. n.ºs 4341/06 - 3.ª e 3932/06 - 3.ª, de 16-05-2007, Proc. n.º 1239/07 - 3.ª, de 15-11-2007, Proc. n.º 3236/07 - 5.ª, e de 02-04-2008, Proc. n.º 4197/07 - 3.ª.».