Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
563/17.GBGMR.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
CONCURSO EFECTIVO
ARTºS 292º E 348º
Nº 2 DO CP E 154º
DO CE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
O condutor de um veículo automóvel que depois de encontrado em flagrante delito de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, n.º 1, do Código Penal, e notificado do impedimento de conduzir previsto no artigo 154º do Código da Estrada, volta a conduzir dentro do período das 12 horas subsequentes, apresentando uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l, comete um novo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, em concurso efetivo com o crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo art. 348º, n.º 2, do Código Penal, com referência ao citado preceito do Código da Estrada.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:


I - RELATÓRIO

1. No âmbito do processo especial, sob a forma sumária, com o NUIPC 563/17.1GBGMR, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no Juízo Local Criminal de Guimarães – J1, foi o arguido J. A. submetido a julgamento e condenado por sentença proferida e depositada a 27-09-2017, com o seguinte dispositivo (transcrição) [1]:

«Pelo exposto, julga-se a acusação deduzida pelo Ministério Público procedente e, em consequência, decide-se:

- Condenar o arguido J. A., pela prática, em autoria material e em concurso efetivo, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a), 14.º, n.º 1, 26.º, 1.ª parte, e 30.º, n.º 1, do Código Penal, a que se refere a primeira fiscalização, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 4 (quatro) meses e 15 (quinze) dias;
- Condenar o arguido J. A., pela prática, em autoria material e em concurso efetivo, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a), 14.º, n.º 1, 26.º, 1.ª parte, e 30.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 (cinco) meses;
- Condenar o arguido J. A., pela prática, em autoria material e em concurso efetivo, de um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 348.º, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 2, 14.º, n.º 1, 26.º, 1.ª parte, e 30.º, n.º 1, do Código Penal, com referência ao art.º 154.º, n.º 2, do Código da Estrada, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros);
- Em cúmulo jurídico das referidas penas parcelares de multa, condenar o arguido J. A. na pena única de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 6,00, mantendo-se as aplicadas penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor, devendo entregar a sua carta de condução, neste tribunal ou em qualquer posto policial, no prazo de 10 (dez) dias, a contar do trânsito em julgado da sentença, sob pena de incorrer em crime de desobediência (cfr. Acórdão do STJ n.º 2/2013 do DR, I Série, n.º 5, de 08.01.2013).
- Condenar o arguido nas custas, fixando-se em 2 (duas) UC a taxa de justiça;»
2. Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, com os fundamentos explanados na respetiva motivação, condensados nas conclusões que se transcrevem na parte relevante:

«(…)
3- Salvo o devido respeito, o aqui Recorrente discorda da douta sentença recorrida na parte em que o condenou pela prática, em autoria material e em concurso efetivo, de 2 (dois) crimes de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a), 14.º, n.º 1, 26.º, 1.ª parte, e 30.º, n.º 1, do Código Penal, defendendo o aqui Recorrente que deveria ter sido condenado apenas por 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a), 14.º, n.º 1, 26.º, 1.ª parte, e 30.º, n.º 1, do Código Penal e por 1 (um) crime de desobediência qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 348.º, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 2, 14.º, n.º 1, 26.º, 1ª parte, e 30.º, n.º 1, do Código Penal.
(…)
5- O douto Tribunal “a quo” defende que o aqui Recorrente incorreu em 2 (dois) crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1, do Código Penal, ainda que o segundo crime de condução de veículo em estado de embriaguez tenha ocorrido dentro das 12 horas imediatamente seguintes à primeira fiscalização, que desembocou na prática do primeiro crime de condução de veículo em estado de embriaguez. Salvo o devido respeito por tal douto entendimento, o aqui Recorrente não pode concordar com o mesmo.
6- Do rol dos factos provados pelo douto Tribunal “a quo”, consta que no mesmo dia (02-09-2017), o aqui Recorrente foi alvo de 2 (duas) fiscalizações, a primeira às 6:44 horas, na estrada nacional n.º 207, ao km 65.500, no sentido Arosa-Guimarães, tendo sido submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue, apresentando uma TAS de 1,587 g/l (já deduzido o valor máximo de erro admissível), ocorrendo a segunda fiscalização nesse mesmo dia, por volta das 08:15 horas, tendo sido novamente submetido a um exame de pesquisa de álcool no sangue, apresentando uma TAS de 1,482 g/l (já deduzido o valor máximo de erro admissível).
7- Ou seja, entre a primeira fiscalização que despoletou a primeira condenação dos presentes autos, a título de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, e a segunda fiscalização, a qual despoletou a segunda condenação a título de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, apenas decorreu um lapso temporal de, sensivelmente, 1 hora e 30 minutos.
8- Na esteira de entendimento jurisprudencial recente (vide neste sentido o douto aresto proferido pelo Tribunal da Relação do Porto de 03-06-2016, no Processo n.º 810/15.4PFPRT.P1, e ainda, o douto aresto proferido pelo mesmo Tribunal, datado de 11-11-2009, no Processo n.º 516/09.3PTPRT.P1) sobre a questão, defende o aqui Recorrente que o condutor que incorre na prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1, do Código Penal, se voltar a conduzir nas 12 horas imediatamente seguintes, com taxa de álcool igual ou superior a 1,20 g/l, não comete um novo crime de condução de veículo em estado de embriaguez em concurso real com o crime de desobediência qualificada, p. e p. pelos art.ºs 348.º, n.º 2, do Código Penal e 154.º, n.º 2, do Código da Estrada, mas antes, existe somente um concurso aparente, pois que autonomizar o conteúdo de ilícito desta segunda condução com álcool significaria uma dupla valoração do mesmo substrato de facto, em violação do art.º 29° n.º 5 CRP: ou seja, punir o arguido duas vezes mesmo facto.
9- O nosso legislador no artigo 154º n.º 1 do Código da Estrada consagrou o impedimento de conduzir pelo período de 12 horas, após obtenção de resultado positivo no exame de pesquisa de álcool no sangue, sancionando a violação de tal inibição com crime de desobediência qualificada (vide artigo 154º n.º 2 do Código da Estrada).
10- Existe apenas um ato que constitui a génese do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, consistindo o mesmo apenas na ingestão de bebidas alcoólicas, sendo consabido, aliás, facto que está mais do que provado pela ciência médica, que os efeitos da ingestão de bebidas alcoólicas prolongam-se no tempo e no mínimo por 12 horas.
11- Pelo que autonomizar o conteúdo de ilícito da segunda condução do veículo, a qual foi alvo da 2ª condenação nos presentes autos, significa uma dupla valoração do mesmo substrato de facto.
12- “Há um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de determinação volitiva, a par da manifesta homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal levam-nos a concluir pela unidade no crime de condução de veículo em estado de embriaguez” (neste sentido: o douto aresto proferido pelo Tribunal da Relação do Porto de 03-06-2016, no Processo n.º 810/15.4FPRT.P1);
13- O comportamento global do aqui arguido/Recorrente depois que foi fiscalizado pelos agentes policiais por conduzir o seu veículo automóvel na via pública sob influência do álcool e de ter sido advertido de que não poderia conduzir nas 12 horas imediatamente seguintes, preenche somente o tipo legal de desobediência e 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
14- Ao desacatar a ordem de inibição de condução que lhe foi emitida pelos Órgãos de Polícia Criminal e retomando a marcha em estado de embriaguez, o comportamento do arguido deverá considerar-se norteado somente por um único sentido de desvalor jurídico-social, o qual consiste no não acatamento da inibição da condução pelo período de 12 horas. A retoma da condução do veículo por parte do aqui Recorrente, surge apenas como meio necessário de concretizar a desobediência e nesta se esgota a sua danosidade social.
15- O sentido de ilícito de desobediência é que é absolutamente dominante, enquanto o sentido de ilícito da condução de veículo em estado de embriaguez assume carácter subsidiário.
16- Pelo exposto, subscrevendo integralmente o entendimento vertido no douto aresto supra citado, bem como, no douto aresto proferido pelo mesmo Tribunal da Relação, no Processo nº 516/09.3PTPRT.P1, datado de 11-11-2009, considera o aqui Arguido/ Recorrente, com o devido respeito, que mal andou o douto Tribunal “a quo” ao condená-lo em autoria material, dolo direto e em concurso efetivo, pela prática de 2 (dois) crimes de condução de veículo em estado de embriaguez previsto e punido no artigo 292.º, n.º 1, do C.P, sendo seu modesto entendimento, que deverá ser condenado pela prática de apenas 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a), 14.º, n.º 1, 26.º, 1.ª parte, e 30.º, n.º 1, do Código Penal e por 1 (um) crime de desobediência qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 348.º, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 2, 14.º, n.º 1, 26.º, 1.ª parte, e 30.º, n.º 1, do Código Penal.
17- Salvo o devido respeito, defende o aqui Recorrente que a decisão aqui Recorrida, ao decidir como decidiu, violou o disposto no artigo 29º n.º 2 da CRP (princípio ne bis in idem) e, consequentemente, é manifestamente inconstitucional. Inconstitucionalidade essa que aqui se argui para todos os efeitos legais.
18- Por fim, defende o Recorrente que sujeitar os factos aqui em litígio e objeto do presente recurso, às regras da punição do concurso de crimes, previstas no artigo 77.º do Código Penal é manifestamente desproporcionado e politico-criminalmente desajustado.
19- Pelo que, salvo o devido respeito por entendimento contrário, cremos que ao decidir como decidiu, o douto Tribunal “a quo” incorre num manifesto erro de interpretação dos preceitos legais previstos nos artigos 292º nº 1, 14º nº 1, 30º nº 1, todos do CP, bem como, do artigo 29º n.º 2 da CRP (princípio ne bis in idem) e, em consequência, deverá ser revogada e substituída por outra que condene o aqui Recorrente em apenas 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 292.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º, 1.ª parte, e 30.º, n.º 1, do Código Penal em concurso efetivo com 1 (um) crime de desobediência qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 348.º, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 2, 14.º, n.º 1, 26.º, 1.ª parte, e 30.º, n.º 1, do Código Penal, procedendo-se consequentemente a um novo cálculo da pena concretamente aplicável em cúmulo jurídico.

Nestes termos e nos melhores de Direito que Vossas Exªs mui doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente, por provado e em consequência, ser revogada a douta Sentença recorrida e substituída por outra em que condene o aqui Recorrente/ Arguido em apenas 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 292.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º, 1.ª parte, e 30.º, n.º 1, do Código Penal em concurso efetivo com 1 (um) crime de desobediência qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 348.º, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 2, 14.º, n.º 1, 26.º, 1.ª parte, e 30.º, n.º 1, do Código Penal, procedendo-se consequentemente a um novo cálculo da pena concretamente aplicável em cúmulo jurídico, tudo com as inerentes consequência legais, fazendo-se assim o que é de inteira e elementar JUSTIÇA!»
3. A Exma. Procuradora Adjunta respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões (transcrição):

«1. Bem andou o Tribunal ao condenar o arguido recorrente, em concurso real, pela prática de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e de um crime de desobediência qualificada, crimes pelos quais havia sido acusado.
2. Nos termos do disposto no artigo 30º, n.º 1 do Código Penal, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
3. No artigo 292º, n.º 1, do Código Penal, o facto penalmente proibido consiste em conduzir um veículo, em via pública ou equiparada, estando o agente com uma taxa de álcool igual ou superior a 1,20 g/l, sendo por isso a fonte geradora de responsabilidade criminal a condução de veículo por parte do agente que ingeriu bebidas alcoólicas em excesso.
4. No caso em apreço nos presentes autos, os factos provados atinentes à condução do veículo pelo arguido em estado de embriaguez integram, sem margem para dúvida, dois episódios absolutamente distintos a nível temporal, ambos violadores do bem jurídico da segurança rodoviária, em que o arguido teve necessariamente de formular nova resolução criminosa para voltar a conduzir, diferente da primeira, pelo que, existindo duas resoluções, consumadas em atos independentes, há dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez.
5. Por outro lado, são absolutamente diversos os bens jurídicos protegidos pelos dois crimes perpetrados pelo arguido recorrente aquando do segundo episódio de condução. Isto porque a condução de veículo em estado de embriaguez respeita à segurança rodoviária e a desobediência ao interesse administrativo do Estado em que as ordens legítimas dos seus agentes sejam obedecidas, sendo certo que o preenchimento do crime desobediência nada tem que ver com a efetiva embriaguez durante a condução.
6. O crime de condução de veículo em estado de embriaguez e o crime de desobediência qualificada pelo qual o arguido foi acusado são crimes estruturalmente autónomos entre si, tutelando bens jurídicos diversos, pelo que concorrem em acumulação real, quando cometidos pelo mesmo agente.
7. Assim, carece de falta de fundamento da alegada violação do preceituado no artigo 29º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, não tendo o arguido sido punido pelo duas vezes pela prática do mesmo crime, porquanto estão em causa resoluções criminosas diversas.
8. Com a sua conduta, praticou em autoria material e em concurso efetivo, de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 292º, n.º 1, 69º, n.º 1, alínea a), 14º, n.º 1, 26º, 1.ª parte, e 30º, n.º 1, do Código Penal, e um crime de desobediência qualificada, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 348º, n.ºs 1 e 2, 14º, n.º 1, 26º, 1.ª parte, e 30º, n.º 1, todos do Código Penal, e 154º, n.º 2, do Código da Estrada.
9. Não poderá o arguido ser absolvido da prática de um dos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez pelo qual foi acusado e condenado.
10. Face ao exposto, entende-se dever ser negado provimento ao recurso e confirmada, pois, na íntegra, a sentença recorrida.
V. Exas. Senhores Juízes Desembargadores, no entanto, decidirão e farão JUSTIÇA.»
4. Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que alude o art. 416º do Código de Processo Penal, emitiu parecer no sentido de o recurso ser manifestamente improcedente, porquanto o arguido conduziu o veículo ligeiro de passageiros em dois momentos distintos e com uma taxa de álcool no sangue também distinta, pelo que não existe qualquer dúvida de que cometeu dois crimes de condução em estado de embriaguez.
5. Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido não respondeu a esse parecer, após o que foram colhidos os vistos e o processo foi presente à conferência, em conformidade com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do mesmo diploma.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Dispõe o art.º 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal que “a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
É entendimento pacífico que são as conclusões que definem e determinam o âmbito do recurso e os seus fundamentos, delimitando, assim, para o tribunal ad quem, as questões a decidir e as razões por que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que eventualmente existam [2].

Assim, no caso vertente, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, a única questão a decidir consiste em saber se o condutor que, após ser fiscalizado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º do Código Penal, volta a conduzir nas 12 horas subsequentes, comete ou não um outro crime de condução de veículo em estado de embriaguez, em concurso efetivo com o crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo 348º, n.º 2, do Código Penal, com referência ao art. 154º, n.º 2, do Código da Estrada.

2. DA SENTENÇA RECORRIDA

2.1 - Para a resolução da questão supra enunciada importa ter presente a seguinte factualidade relevante, dada como provada na sentença recorrida (transcrição):

«1) No dia 02.09.2017, pelas 6:44 horas, EN 207, km 65.500, Arosa, Guimarães, o arguido circulava na referida via aos comandos do veículo ligeiro de passageiros que ostentava a matrícula …-…-XJ.
2) Submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue, pelo método do ar expirado, através do equipamento “Drager Alcotest 7110 MK III P”, o arguido apresentou uma TAS registada de 1,67 g/l, correspondendo a uma TAS de 1,587 g/l deduzido o valor máximo de erro admissível.
3) Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido foi devidamente notificado de que ficava impedido de conduzir pelo período de 12 horas, sob pena de incorrer no crime de desobediência qualificada.
4) Porém, o arguido não acatou tal ordem e, cerca das 8:15 horas, desse mesmo dia, foi intercetado por militares da GNR quando conduzia o mesmo veículo na Rua Padre Arieira, em São Torcato, Guimarães.
5) Submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue, pelo método do ar expirado, através do equipamento “Drager Alcotest 7110 MK III P”, o arguido apresentou uma TAS registada de 1,56 g/l, correspondendo a uma TAS de 1,482 g/l deduzido o valor máximo de erro admissível.
6) O arguido quis conduzir, sabendo que se tratavam de vias públicas, o referido veículo, sabendo que o não podia fazer por ter ingerido bebidas alcoólicas que lhe determinaram as TAS em que foi encontrado, como decorreu das duas vezes em que foi intercetado.
7) Apesar de bem saber que estava embriagado e de saber que não podia conduzir no período de 12 horas, sob pena de incorrer no crime de desobediência, ainda assim não se coibiu da sua conduta.
8) O arguido não se absteve de agir do modo descrito, o que quis e fez de modo livre e consciente, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta.
9) Nas descritas circunstâncias, o arguido não transportava passageiros, propunha-se percorrer a distância total de cerca de 15 km, tendo percorrido cerca de 2 km até à primeira fiscalização e mais cerca de 5 km até à segunda fiscalização, e não foi interveniente em acidente de viação.
10) O arguido não tem antecedentes criminais.
11) O arguido tem como habilitações literárias o 9.º ano de escolaridade; é músico, auferindo rendimento médio mensal não inferior ao salário mínimo nacional; é solteiro; vive em união de facto com uma companheira, que é empregada de balcão; tem dois filhos, com 6 e 12 anos de idade; vive em caso do pai, não pagando renda.»

2.2 - Por seu lado, da sentença recorrida consta a seguinte fundamentação de direito quanto à questão suscitada no recurso (transcrição):

«Cumpre dizer que, como sustenta o Ministério Público na acusação, e ao contrário do pretendido sustentar pelo arguido em sede de alegações, é de atribuir a prática ao arguido, em concurso efetivo, dos três imputados crimes, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 30.º do Código Penal – onde se dispõe: “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”.
Com efeito, no art.º 292.º, n.º 1, do Código Penal, o facto penalmente proibido consiste em conduzir um veículo, em via pública ou equiparada, estando o agente com uma taxa de álcool igual ou superior a 1,20 g/l, sendo por isso a fonte geradora de responsabilidade criminal a condução de veículo por parte do agente que ingeriu bebidas alcoólicas em excesso (e não unicamente a ingestão dessas bebidas que, como é sabido, por si só não é criminalmente punida).

Ora, no caso os factos provados, atinentes à condução do veículo pelo arguido em estado de embriaguez, integram sem margem para dúvida dois episódios absolutamente distintos a nível temporal, ambos violadores do bem jurídico da segurança rodoviária, em que o arguido teve necessariamente de formular nova resolução criminosa para voltar a conduzir, diferente da primeira, pelo que, existindo duas resoluções, consumadas em atos independentes, há dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos art.ºs 291.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.

Por outro lado, é de atentar que a referência feita no n.º 1 do citado art.º 30.º, a crimes “efetivamente cometidos”, reflete o critério teleológico acolhido pela lei em matéria de concurso de crimes, segundo o qual o número de infrações efetivamente cometidas determina-se pelo número de valores ou bens jurídicos que são negados, independentemente de, no plano naturalístico, lhes corresponder uma só atividade (pluralidade de crimes através de uma mesma ação); assim como quando só um valor é negado, só existe um crime, mesmo havendo uma pluralidade de ações.

Ora, in casu também não há dúvida de que são absolutamente diversos os bens jurídicos protegidos pelos dois crimes perpetrados pelo arguido aquando do segundo episódio de condução, já que a condução em estado de embriaguez se refere à segurança rodoviária e a desobediência ao interesse administrativo do Estado em que as ordens legítimas dos seus agentes sejam obedecidas.
Acresce que, se o crime de condução de veículo em estado de embriaguez exige que o agente pratique a condução de veículo na via pública sob o efeito de bebidas alcoólicas, já para o preenchimento do crime desobediência prescinde-se da verificação da efetiva embriaguez durante a condução.

Estes dois crimes são assim estruturalmente autónomos entre si, tutelando bens jurídicos diversos e, por conseguinte, concorrem em acumulação real quando cometidos pelo mesmo agente.
Nestes termos, na esteira do entendimento jurisprudencial recente sobre a questão, entendemos que o condutor que incorre na prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1, do Código Penal, se voltar a conduzir nas 12 horas imediatamente seguintes, com taxa de álcool igual ou superior a 1,20 g/l, comete novo crime de condução de veículo em estado de embriaguez em concurso real com o crime de desobediência qualificada, p. e p. pelos art.ºs 348.º, n.º 2, do Código Penal e 154.º, n.º 2, do Código da Estrada (cfr. v.g. neste sentido: Acórdão do Tribunal da RP de 20.04.2016, acessível in www.dgsi.pt).

Atento o exposto, e não se divisando qualquer causa suscetível de excluir a ilicitude e ou a culpa, resta concluir que o arguido, com a sua apurada conduta, incorreu na prática, em autoria material e em concurso efetivo, de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 292.º, n.º 1, 69.º, n.º 1, alínea a), 14.º, n.º 1, 26.º, 1.ª parte, e 30.º, n.º 1, do Código Penal, e um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 348.º, n.ºs 1 e 2, 14.º, n.º 1, 26.º, 1.ª parte, e 30.º, n.º 1, do Código Penal, e 154.º, n.º 2, do Código da Estrada.»

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Sendo o recurso restrito à matéria de direito, e não havendo nulidades a conhecer nem resultando do texto da sentença recorrida qualquer dos vícios enumerados no art. 410º do Código de Processo Penal, inexistem razões para alterar o juízo probatório constante da mesma, mantendo-se, em consequência, toda a matéria de facto nela dada como provada.

Conforme referido supra, a questão a decidir consiste em saber se o condutor de um veículo automóvel que depois de encontrado em flagrante delito de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, n.º 1, do Código Penal, e notificado do impedimento de conduzir previsto no artigo 154º do Código da Estrada, voltar a conduzir dentro do período das 12 horas subsequentes, apresentando uma taxa igual ou superior a 1,20 g/l, comete apenas o crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo art. 348º, n.º 2, do Código Penal, com referência ao citado preceito do Código da Estrada, ou também, em concurso efetivo, um novo crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
Sobre esta questão tem havido decisões opostas na jurisprudência, designadamente por parte dos tribunais da relação.

O entendimento de que apenas é cometido o crime de desobediência foi seguido, por exemplo, nos acórdãos da Relação do Porto de 03-06-2016 e de 11-11-2009 e da Relação de Évora de 28-06-2011 [3], com base na argumentação, que é perfilhada pelo recorrente, de que o ato gerador da responsabilidade criminal é a ingestão de bebidas alcoólicas e, portanto, nas 12 horas abrangidas pela proibição, em que os efeitos do álcool perduram, a condução automóvel num segundo momento insere-se ainda na mesma unidade criminosa, não havendo lugar a outro crime de condução de veículo em estado de embriaguez, bem como, por outro lado, que existe uma situação de concurso aparente de normas, em que o segundo crime de condução de veículo em estado de embriaguez é consumido pelo crime de desobediência qualificada.

Por seu lado, a posição segundo a qual a condução com taxa de alcoolemia igual ou superior a 1,20 g/l dentro daquele período das 12 horas de impedimento de conduzir integra a prática do crime de desobediência qualificada e também, em concurso efetivo, um novo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, foi adotada, nomeadamente, nos acórdãos da Relação de Évora de 20-12-2011 e 21-06-2011 e da Relação do Porto de 28-09-2016, 20-04-2016, 09-09-2015, 17-06-2015 e 26-10-2016 [4].
Esta segunda posição, que cremos ser claramente maioritária, assenta na consideração de que em situações como a em apreço nos autos, havendo uma pluralidade de resoluções criminosas e sendo diversa a natureza jurídica dos bens protegidos, são cometidos dois crimes de condução em estado de embriaguez, o segundo deles em concurso efetivo com o crime de desobediência.
Como resulta do excerto da sentença recorrida supra transcrito, foi este o entendimento seguido pela Mmª. Juíza, com quem concordamos, em face da factualidade dada como provada.
Com efeito, apurou-se que no dia 02-09-2017, pelas 06 horas e 44 minutos, na Estrada Nacional n.º 207, ao km 65,5, em Arosa, Guimarães, o arguido conduzia um veículo automóvel, apresentando uma taxa de álcool no sangue de 1,587 g/l, tendo, nessas circunstâncias, sido notificado de que ficava impedido de conduzir pelo período de 12 horas, sob pena de incorrer no crime de desobediência qualificada.
Porém, cerca das 08 horas e 15 minutos desse mesmo dia, o arguido conduzia o mesmo veículo automóvel, agora na Rua Padre Arieira, em São Torcato, Guimarães, apresentando uma taxa de álcool no sangue de 1,482 g/l.
Mais se provou que, em ambas as situações, o arguido quis conduzir o veículo automóvel, sabendo que o fazia em vias públicas e que não o podia fazer por ter ingerido bebidas alcoólicas determinantes de uma taxa de álcool no sangue superior ao limite permitido por lei, bem como que não podia conduzir no período de 12 horas subsequente à primeira fiscalização por parte das autoridades policiais, sob pena de cometer um crime de desobediência, mais sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta, pelo que atuou dolosamente.
Em face desta factualidade é inequívoco que as condutas do arguido integram dois episódios absolutamente distintos no tempo e no espaço, ambos violadores do mesmo bem jurídico - a segurança rodoviária - que por duas vezes foi posto em causa, sendo que, na segunda situação, foi ainda violado um outro bem jurídico - o interesse administrativo do Estado em que as ordens legítimas dos seus agentes sejam obedecidas.
Não obstante, o recorrente sustenta que, para além do crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo artigo 348º, n.º 2, do Código Penal, por referência ao art. 154º, n.º 2, do Código da Estrada, apenas incorreu num único crime de condução de veículo em estado de embriaguez, ancorando-se no excerto do referido acórdão da Relação do Porto de 11-11-2009 onde se afirma que «o ato que constitui a génese do crime detetado – ingestão de bebidas alcoólicas em excesso –, é único. Todavia, os seus efeitos prolongam-se no tempo, pelo que, sendo o arguido encontrado a conduzir, por diversas vezes, durante tal período e sujeito a testes de alcoolemia positivos, seria autuado e submetido a julgamento, mais do que uma vez, com base na mesma fonte geradora de responsabilidade criminal. Assim, crê-se que detetada a condução de veículo automóvel com TAS superior a 1,20 g/l, esgota-se a possibilidade de imputação de novo crime punível pelo art. 292º, do Cód. Penal, até completa eliminação pelo organismo dos efeitos do álcool, convencionada pelo legislador em 12 horas, restando a imputação do crime de desobediência se o arguido for encontrado a conduzir durante tal período.»
Porém, tal como é posto em evidência nos citados acórdãos que se pronunciaram no sentido oposto, o facto penalmente punido pelo art. 292º é a condução de veículo automóvel, em via pública ou equiparada, apresentando o agente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l. Assim, a fonte geradora de responsabilidade criminal é a condução automóvel por parte do agente que ingeriu bebidas alcoólicas em excesso e não unicamente a ingestão dessas bebidas, que por si só não é criminalmente punida.
Significa isto que, no caso vertente, o primeiro crime de condução de veículo em estado de embriaguez e a respetiva resolução criminosa cessaram quando o arguido foi, pela primeira vez, às 06 horas e 44 minutos, fiscalizado pela autoridade policial.
Após essa fiscalização, com a submissão do arguido ao teste de pesquisa de álcool no sangue e a todo um conjunto de procedimentos legais, nomeadamente a sua detenção, constituição de arguido, notificação para comparência em tribunal, libertação e notificação de que não poderia conduzir no prazo de 12 horas, sob pena de cometer um crime de desobediência, afigura-se-nos inequívoco que o mesmo teve necessariamente de formular um novo desígnio para voltar a conduzir, diferente do primeiro e dele separado temporalmente. Isto porque o resultado positivo daquela fiscalização, as respetivas consequências e o conjunto dos procedimentos legais a ela inerentes interromperam forçosamente a resolução inicialmente tomada de conduzir em estado de embriaguez.
Perante a afirmação da existência de duas resoluções criminosas, consumadas em atos independentes e distintos no espaço e no tempo, sem que o segundo tenha sido favorecido pelo primeiro, no quadro de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente (caso em que haveria um único crime continuado), impõe-se concluir pela verificação de dois crimes de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º, n.º 1, do Código Penal.
Por outro lado, uma vez que no segundo episódio a conduta do arguido, para além do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, preenche também os elementos típicos do crime de desobediência qualificada, importa verificar se tais infrações estão entre si numa situação de concurso efetivo ou aparente.
De acordo com o disposto no art. 30º do Código Penal, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos pela conduta do agente (concurso heterogéneo), ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente (concurso homogéneo), sendo que em ambos os casos o comportamento do agente tanto se pode consubstanciar numa só ação, como em várias ações.
Como refere o citado acórdão da Relação do Porto de 28-09-2016, «Há assim concurso real de crimes quando o agente pratica vários atos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime – existe uma pluralidade de ações típicas – e concurso ideal quando a mesma ação viola mais do que uma norma penal ou a mesma norma penal mais do que uma vez – existe uma unidade na ação típica. Nestas situações, à pluralidade de tipos penais abrangidos por uma ou mais ações há de corresponder uma pluralidade de punições pelos crimes “efetivamente cometidos” (é esta a expressão legal).
Porém, há situações em que a mesma ação típica só aparentemente preenche uma pluralidade de tipos legais, mas, na verdade, as normas penais potencialmente aplicáveis se encontram entre si numa relação em que umas excluem outras. Aqui não existe verdadeiramente concurso de crimes mas sim concurso de normas. Maioritariamente a doutrina tem considerado três tipos de situações de concurso de normas: especialidade, subsidiariedade ou consumpção. Muito sinteticamente, haverá especialidade quando as normas estão entre si numa relação de subordinação lógica – um crime é tipificado por referência ao outro, como qualificado ou privilegiado. Subsidiariedade ocorrerá nas situações em que a interpretação das normas permite concluir que uma tipifica uma ação que constitui a fase prévia da realização do tipo previsto na outra (subsidiariedade implícita) ou nas situações em que seja o próprio texto da lei a condicionar a aplicação de uma norma à ausência da outra (subsidiariedade expressa). A consumpção verificar-se-á nos casos em que as normas estão entre si numa relação em que a violação de uma é instrumental para a violação da outra. O critério operativo essencial para verificar em que tipo de relação as normas se encontram deve ser o dos bens jurídicos protegidos.»
Em matéria de concurso de crimes, a lei acolheu um critério teleológico, segundo o qual o número de infrações efetivamente cometidas se determina pelo número de valores ou bens jurídicos que são negados, independentemente de, no plano naturalístico, lhes corresponder uma só atividade (pluralidade de crimes através de uma mesma ação), da mesma forma que quando só um valor é negado, existe um único crime, mesmo havendo uma pluralidade de ações.

Ora, no caso em apreço nos autos são inequivocamente distintos os bens jurídicos tutelados pelos dois crimes praticados pelo arguido aquando do segundo episódio: por um lado a segurança rodoviária, protegida pelo crime de condução em estado de embriaguez, e, por outro lado, o interesse administrativo do Estado em que as ordens legítimas dos seus agentes sejam obedecidas, tutelado pela incriminação da desobediência qualificada.
Acresce que, para além dos bens jurídicos protegidos, também as próprias ações típicas são distintas.
Com efeito, no crime de desobediência qualificada, a ação típica consiste na violação da proibição de conduzir veículos automóveis nas 12 horas subsequentes a um exame de pesquisa de álcool no sangue com resultado igual ou superior a 1,20 g/l. O bem jurídico tutelado - a autonomia intencional do Estado - é atingido com a simples desobediência à proibição de conduzir, independentemente de o agente se encontrar ou não em estado de embriaguez. A resolução criminosa consiste em decidir iniciar a condução contra aquela proibição, decisão essa que assume autonomia em relação à decisão de conduzir sob a influência do álcool.
Por seu turno, no crime de condução de veículo em estado de embriaguez, a ação típica consiste em conduzir um veículo automóvel sob o efeito do álcool, isto é, com uma taxa de alcoolemia no sangue igual ou superior a 1,20 g/l.

Em suma, a tipicidade do crime de condução em estado de embriaguez exige a condução de veículo automóvel na via pública após a ingestão de bebidas alcoólicas e sob o efeito das mesmas, ao passo que no crime de desobediência qualificada se prescinde da verificação de efetiva embriaguez durante a condução automóvel.
Pelo exposto, de acordo com o preceituado no art. 30º do Código Penal, no caso dos autos o arguido incorreu na prática, em concurso efetivo, de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos art.s 292º, n.º 1, e 69º, n.º 1, al. a), do Código Penal, e de um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo art. 348º, n.ºs 1 e 2, do mesmo código, por referência ao art. 154º, n.º 2, do Código da Estrada, não ocorrendo entre essas normas qualquer situação de concurso aparente, mormente de consunção.

Conclui-se, assim, que a conduta do arguido foi objeto de correta e adequada subsunção jurídica na sentença recorrida, com cuja fundamentação se concorda inteiramente.
Por conseguinte, também não se reconhece razão ao recorrente quando invoca a violação, pela sentença recorrida, do princípio ne bis in idem, consagrado no art. 29º, n.º 5 [5], da Constituição da República Portuguesa, com base na alegação de que autonomizar o conteúdo do ilícito da segunda condenação sob o efeito do álcool significaria uma dupla valoração do mesmo substrato de facto.
Com efeito, o que esse preceito constitucional proíbe é que alguém seja julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, o que não ocorre na situação dos presentes autos, uma vez que, como vimos, os factos que justificam a punição pelos dois crimes são distintos, a que correspondem duas resoluções criminosas igualmente distintas.
Improcede, pois, o recurso.

III - DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, J. A., confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a 3 (três) unidades de conta (art.s 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).
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(Elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)

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Guimarães, 20 de fevereiro de 2018

(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)


[1] - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo gralhas evidentes e a ortografia utilizada, sendo a formatação da responsabilidade do relator.
[2] - Conforme resulta do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série, de 28-12-1995.
[3] - Proferidos, os dois primeiros, nos processos, respetivamente 810/15.4PFPRT.P1 e 516/03.3PTPRT.P1, disponíveis em http://www.dgsi.pt, e o último publicado na Coletânea de Jurisprudência, n.º 231, Tomo III, págs. 263-264.
[4] - Os cinco primeiros proferidos nos processos, respetivamente, 237/09.7GBPSR.E1, 441/10.5GTABF.E1, 95/16.5PFPRT.P1, 794/15.0PFPRT.P1 e 73/15.1GDAND.P1, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt, o penúltimo publicado na Coletânea de Jurisprudência, Ano XL, Tomo III, pág. 237-239, e o último disponível na Coletânea de Jurisprudência online (http://www.colectaneadejurisprudencia.com/content/Home.aspxcom a referência), com a referência 7827/2016.
[5] - E não 29º, n.º 2, como, por o recorrente, por lapso de escrita, refere nas conclusões 17ª e 19ª.