Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
768/17.5T8PTL.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO PAULIANA
IMPOSSIBILIDADE DA LIDE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

1- O interesse em agir configura uma exceção dilatória inominada, que reclama que ao intentar uma ação, o direito que o demandante nela pretende exercer se encontre carecido de tutela judiciária.

2- Para que se verifique o pressuposto do interesse em agir é necessário que o demandante se encontre numa situação justificada, razoável, fundada de lançar mão do processo para nele fazer valer o direito a que se arroga titular e carecido de tutela judiciária.

3- A ação de impugnação pauliana insere-se nos meios de conservação e garantia patrimonial que a lei coloca ao dispor do credor, dando-lhe a possibilidade de reagir contra atos positivos praticados pelo devedor que diminuam o ativo ou aumentem o passivo patrimonial deste.

4- A procedência da ação pauliana confere ao impugnante o direito de penhorar e vender por via executiva (em execução instaurada contra o seu devedor, transmitente desse bem, com vista à cobrança coerciva do seu crédito sobre aquele), o bem objeto do negócio impugnado na esfera jurídica do terceiro adquirente (o qual permanece proprietário do bem), na estrita medida em que tal se torne necessário para a satisfação do crédito que detém sobre o devedor (transmitente), sem o concurso dos demais credores do devedor, sequer dos credores do adquirente.

5- Em caso de procedência da impugnação pauliana, caso o adquirente de má fé do bem objeto do negócio impugnado não disponha do mesmo para que este seja penhorado pelo impugnante, em virtude de o ter alienado ou desse bem ter perecido ou se ter deteriorado, assiste ao impugnante o direito de receber desse adquirente de má fé o valor do bem alienado, perecido ou deteriorado com fundamento no instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos (art. 616º, n.º 2 do CC). Para o efeito, o impugnante terá de instaurar ação de responsabilidade civil contra o adquirente de má fé, reclamando dele o valor do bem alienado, perecido ou deteriorado.

6- Caso a alienação, perecimento ou deterioração do bem objeto do negócio impugnado ocorra na pendência da ação de impugnação pauliana, nada obsta que o impugnante exerça esse direito indemnizatório ao valor do bem alienado, perecido ou deteriorado contra o adquirente de má fé na própria ação de impugnação pauliana, devendo para o efeito apresentar articulado superveniente, deduzindo esse pedido contra o adquirente de má fé e alegando a necessária causa de pedir.

7- Em ação de impugnação pauliana, em que o demandante pretende impugnar um negócio de transmissão de quotas feito pelo seu devedor para um terceiro, verificado que seja que, à data da instauração da ação de impugnação, esse terceiro adquirente das quotas já as tinha retransmitido para o anterior transmitente (o devedor), ocorre impossibilidade originária da lide quanto à ação de impugnação pauliana instaurada.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. RELATÓRIO.

Recorrente: (…)
Recorridos: (…)

(..), residente na Rua (…) n.º (…), Ponte de Lima, instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra (..) e (…) residentes no Lugar de (…) Ponte de Lima, e (…) e (…), residentes no Lugar (…), Ponte de Lima, pedindo que:

a- se declare a nulidade da transmissão de quotas efetuada entre os 1ºs Réus e os 2ºs Réus, a que se refere o documento 2 e os artigos 7º, 9º e 10º da petição inicial;
b- se declare a restituição das quotas, na medida do interesse da Autora, ao património dos 1ºs Réus, podendo a Autora executá-las no património dos 2ºs Réus.

Para tanto alega, em síntese, que por documento particular outorgado pelos 1ºs Réus em 12/11/2011, estes declararam-se devedores da Autora da quantia de 10.000,00 euros, acrescida de juros;
Essa quantia permanece em dívida;
Os 1ºs Réus não têm quaisquer bens registados em seu nome;
Em 24/10/2012, os 1ºs Réus transmitiram, a título gratuito, aos 2ºs Réus as quotas que detinham na sociedade (…) Lda.;
Os 1ºs Réus procederam de tal modo com o intuito, conseguido, de não cumprir as suas obrigações, que bem conheciam, apenas pretendendo dar uma aparência aos credores de que não possuíam meios para as cumprir;
São os 1ºs Rés que continuam a administrar e a gerir a sociedade (…) e a receber os frutos resultantes da atividade dessa sociedade, sendo o 1º Réu-marido o seu gerente de facto.

Os 2ºs Réus contestaram, defendendo por exceção e por impugnação.

Invocaram a exceção da caducidade do direito da Autora a impugnar o ato de transmissão das quotas, alegando que tendo esse ato tido lugar em 23/10/2012, esse direito estava caduco quando foram citados para os termos da presente ação em 23/10/2017;
Suscitaram a inconstitucionalidade da pretensão da Autora por violação do princípio da proporcionalidade, sustentando que a anulação do negócio que aquela visa alcançar, e cujo valor ascende a 111.000,00 euros, excede em dez vezes o valor do crédito que pretende acautelar;
Aceitaram terem celebrado com os 1ºs Réus a escritura de cessão de quotas, mas impugnaram que essa cessão tivesse sido realizada a título gratuito, alegando que pagaram pela respetiva aquisição a quantia de 111.000,00 euros;
Impugnaram parte da restante factualidade alegada pela Autora.
Concluem pedindo que se julgue a ação improcedente e sejam absolvidos do pedido.

Também os 1ºs Réus contestaram, defendendo-se por exceção e por impugnação.

Invocaram a exceção da falta de patrocínio, sustentando que a Autora não se encontra patrocinada por advogado, apesar desse patrocínio ser obrigatório;

Invocaram a exceção da caducidade do direito da Autora a impugnar o negócio, alegando encontrarem-se decorridos mais de cinco anos sobre a data da celebração do ato impugnado;

Invocaram a exceção da nulidade do crédito invocado pela Autora, sustentando que o crédito por esta invocado respeita a um empréstimo efetuado às empresas “... – Sociedade de Construções e Imobiliária, Lda.” e “... – Construções e Armações de Ferro, Lda.” para atender a compromissos destas e que a declaração de dívida junta aos autos como doc. 1 encontra-se subscrita pelos mesmos na qualidade de “avalistas”, mas que esse aval é nulo, posto que tal garantia é sempre comercial e apenas pode ser prestada em títulos de crédito;

Excecionaram sustentando que tinham à data da celebração do ato impugnado, e continuam a ter, património suficiente para satisfazer o pretenso crédito a que a Autora se arroga titular até porque, desde 24/03/2017, são os únicos sócios da “...”, data em que readquiriram as quotas que tinham transmitido aos 2ºs Réus em 2012, aquisição esta que foi registada em 24/03/2017;

Impugnaram a quase totalidade da factualidade aduzida pela Autora.
Concluem pedindo que por via da procedência das exceções que invocam sejam absolvidos da instância ou do pedido e, subsidiariamente, que se julgue a ação improcedente e se absolva aqueles do pedido.

Em 02/03/2018, a Autora juntou aos autos procuração forense a favor da sua mandatária, em que declara ratificar os atos por esta praticados.
Por despacho proferido em 12/04/2018, ordenou-se a notificação da Autora, nos termos do art. 3º do CPC, para se pronunciar, querendo, quanto à exceção perentória da caducidade invocada pelos Réus.
A Autora acatou esse convite a fls. 71 a 73, concluindo pela improcedência dessa exceção.
Ordenou-se o registo da ação.

Por despacho de 02/01/2019, ordenou-se a impressão e a junção aos autos de certidão permanente da sociedade “...” e a notificação da Autora para se pronunciar, no prazo de dez dias, sobre a utilidade de prosseguir com a lide, tendo em conta que os 1ºs Réus são, desde 24/03/2017, novamente os únicos sócios dessa sociedade.
Notificada desse despacho e certidão, a Autora não se pronunciou.

Por sentença proferida em 07/02/2019 julgou-se extinta a instância por inutilidade originária da lide, constando essa sentença do seguinte teor:

Uma vez que, antes da instauração do presente processo, mais propriamente em 24.03.2017, os RR. J. M. e mulher, M. M., e A. S. e mulher, M. G., desfizeram o negócio de cessão das quotas da “... – Casas .... Lda.”, tendo os 1.ºs RR. passando a ser, novamente, os únicos sócios da aludida sociedade, assim se cumprindo o pretendido pela A. R. M., inexiste razão de ser para a subsistência destes autos.
Pelo exposto, e nos termos do art.º 277.º, al. e), do C.P.C., julgo extinta a presente instância por falta de interesse em agir da A. geradora de inutilidade originária da lide.
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Custas pela A.
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Fixo o valor da ação em 10.000,00 € - art.º 297.º, n.º 1, do C.P.C.”

Inconformada com o assim decidido, veio a Autora interpor o presente recurso de apelação, em que formula as seguintes conclusões:

a. O interesse em agir da Recorrente, no âmbito de uma impugnação pauliana, tem de ser aferido atendendo aos requisitos previstos no art.º 610.º, do Cód. Civil.
b. Neste caso concreto, o interesse em agir da Recorrente, no que à declaração de ineficácia do ato a impugnar diz respeito, afere-se pela verificação da condição de tal ato – à data da sua prática – ser apto a impossibilitar ou agravar a impossibilidade de a credora, aqui Recorrente, ver o seu crédito satisfeito.
c. Tal interesse em agir não pode ser verificado à data da propositura da ação pauliana e concorre para tal o facto de o legislador estabelecer expressamente um prazo de caducidade.
d. O Tribunal a quo está ainda vinculado a atender, na definição da existência de interesse em agir, ao efeito que a Recorrente pretende acautelar com o recurso à ação e ao pedido formulado e não apenas à condição de reingresso do bem no património dos 1.ºs Recorridos.
e. Tal raciocínio significaria que, no âmbito das sociedade comerciais, seria lícita por parte dos titulares de quotas (devedores) a alienação fraudulenta de participações sociais, com o propósito de prejudicar os credores, desde que, ainda que depois de a sociedade comercial se encontrar esvaziada de qualquer valor, essas participações sociais retornassem ao património dos devedores, escapando assim tal ato ao crivo do credor e se eximindo na totalidade o adquirente de má fé.
f. Não é pois, este o propósito que se visa acautelar através da impugnação pauliana, nem a lei estabelece como requisito de procedência da mesma que o bem alienado se encontre ainda ausente do património do devedor e presente no património do adquirente de má fé.
g. Nos casos em que o bem alienado já não se encontre no património dos adquirentes, a impugnação pauliana terá o escopo de possibilitar ao credor exigir dos adquirentes o pagamento da dívida que com o ato a impugnar prejudicaram.
h. Neste sentido, a Sentença proferida, repisa-se, desconsiderou in totum o pedido formulado contra os adquirentes aqui 2.ºs Recorridos.
i. Mais, o Tribunal a quo estava, pelo menos, obrigado a, nos termos do art.º 590.º, n.º 2, do Cód. de Proc. Civil, convidar a Recorrente ao aperfeiçoamento da Petição Inicial se entendesse não ser clara a possibilidade de procedência da mesma ou o interesse da Recorrente, ainda que claramente expresso em relação a 1.ºs e 2.ºs Recorridos e decorrência própria do tipo de ação intentada.
j. À Recorrente não foi sequer dada a faculdade de se pronunciar quanto à invocada exceção que veio a dar lugar à sentença proferida.
k. Razões pelas quais deve a Sentença proferida ser revogada, prosseguindo o processo os seus ulteriores trâmites.

Os 1ºs Réus, J. M. e M. M. contra-alegaram, pugnando pela improcedência da apelação, formulando as conclusões que se seguem:

1ª- Estabelece o artigo 610º do Cód. Civil que “Os atos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes: a) Ser o crédito anterior ao ato ou, sendo posterior, ter sido o ato realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor; b) Resultar do ato a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade”.
2ª No presente caso,
- a Autora intentou esta ação de impugnação pauliana em 19/10/2017, argumentando ser credora dos 1ºs RR desde 12/11/2011 e peticionando que fosse declarada a nulidade da transmissão de quotas que os 1ºs RR detinham na sociedade comercial ... – CASAS ..., Lda., a favor dos 2.ºs RR., realizada em 24/10/2012, do qual resultava a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade;
- os Réus, citados apenas em 01/12/2017, na sua contestação, alegaram, entres outros, que adquiriram as quotas que haviam transmitido em 24/10/2012 e as quotas dos outros sócios iniciais, sendo, desde 24/03/2017 os únicos sócios da sociedade comercial ... – CASAS ... LDA.», detendo, o Réu J. M., uma quota no valor nominal de 91.500,00€ e a Ré M. M., três quotas no valor nominal de 19.500,00€ cada uma, tendo sido esta aquisição das quotas registada em 24/03/2017, «e, portanto, muito antes de a Autora intentar a presente ação», tal como consta da certidão permanente da referida sociedade comercial junta pela Autora ao processo, em 20/10/2017.
3ª O direito de impugnação pauliana caduca ao fim de cinco anos, contados da data da celebração do ato impugnável.
4ª Tendo a cessão de quotas que os 1ºs RR detinham na sociedade comercial ... – CASAS ... LDA., ocorrido em 24/10/2012 e os 1ºs RR sido citados para a presente ação apenas em 01/12/2017, encontra-se esgotado o prazo impugnar paulianamente aquele ato.
5ª O direito de impugnação pauliana extingue-se quando deixe de se verificar o prejuízo do credor impugnante, seja porque o devedor ou terceiro satisfizeram o crédito daquele, seja porque, entretanto, o devedor adquiriu novamente a capacidade de satisfazer integralmente o crédito em causa; seja ainda no caso de o credor impugnante ter passado a beneficiar de uma garantia real que assegure a satisfação do seu crédito, etc.
6ª Tendo os 1ºs Réus adquirido, antes de instaurada a ação de impugnação pauliana, as quotas da sociedade comercial ... – CASAS ... LDA que haviam transmitido em 24/10/2012 e as restantes quotas dos sócios iniciais, tornando-se os únicos sócios daquela sociedade, desapareceu a situação danosa que fundamentava a intervenção pauliana, deixando o credor de poder impugnar aquele ato de cessão de quotas.
7ª O interesse em agir, ou interesse processual, é um pressuposto processual inominado referente às partes que consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial, de ser indispensável a atuação jurisdicional para a solução do conflito.
8ª O interesse em agir, ou interesse processual surge da necessidade justificada, razoável, fundada de o Autor utilizar o processo por a sua situação de carência necessitar da intervenção dos tribunais e traduz-se na real precisão de usar a arma judicial e em recorrer ao processo respetivo para se ver satisfeito o interesse substancial lesado pelo comportamento da parte contrária. Só assim se justificará o gravame e a perturbação que o recurso à tutela judiciária impõem ao demandado e bem assim a atuação de uma estrutura (os tribunais) que representa um elevado encargo para a coletividade.
9ª O fundamento para se exigir, como pressuposto processual, o interesse em agir é o de se evitar ações inúteis, pois se a lei proíbe os atos inúteis (art.º 130.º do CPC), por maioria de razão proibirá ações inúteis. É que sem o interesse em agir a atividade jurisdicional seria exercitada em vão.
10º A Autora não veio peticionar a invalidade dos atos praticados pelos adquirentes das quotas da sociedade comercial ... – CASAS .... LDA. cedidas pelos 1ºs Réus ou quaisquer outros mas pura e simplesmente lançou mão da impugnação pauliana contra a cessão de quotas realizada por estes em 24/10/2012.
11ª A Autora não tem interesse em agir pois, antes da instauração do presente processo, mais propriamente em 24/03/2017, os RR. J. M. e mulher, M. M., e A. S. e mulher, M. G., desfizeram o negócio de cessão das quotas da “... – Casas .... Lda.”» realizado em 24/10/2012 e que ela veio impugnar paulianamente em 19/10/2017.
12ª A Autora não tem interesse em agir pois quando veio peticionar a impugnação pauliana da transmissão de quotas operada em 24/10/2012, não se verificava a diminuição da garantia patrimonial do seu pretenso crédito uma vez que as quotas transmitidas em 2012 tinham retornado ao património dos 1ºs RR. em 24/03/2017; pelo contrário, verificava-se o reforço da garantia patrimonial do seu pretenso crédito, dado que os 1ºs Réus, em 24/03/2017, haviam também adquirido as quotas dos demais sócios iniciais, tornando-se os únicos sócios da referida sociedade.
13ª No caso dos autos, a falta do interesse processual, do interesse em agir da Autora gera a inutilidade originária da lide e determina a extinção da instância.
14ª O artigo 590.º, n.º 2, al. b) e n.º 3 do Cód. Processo Civil prescreve que incumbe ao juiz providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, dirigindo o correspondente convite à parte. Mas o juiz não tem, em todo e qualquer caso, de dirigir à parte o convite ao aperfeiçoamento do articulado. Se, mesmo que fosse formulado um convite ao autor para aperfeiçoar a sua petição inicial, a ação houvesse de improceder, não pela falta de esclarecimento de um facto constitutivo, mas pela falta de um facto constitutivo integrante da causa de pedir, é claro que não tem sentido dirigir esse convite.
15ª Quando existe inutilidade originária da lide, o convite ao aperfeiçoamento é um ato inútil e “não é lícito realizar, no processo, atos inúteis (art.º 130.º do CPC).
16ª A D. Sentença recorrida não merece qualquer reparo.

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO APLICÁVEIS DEVE SER NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELA AUTORA E, MANTIDA A D. SENTENÇA RECORRIDA.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.

No seguimento desta orientação, as questões que são submetidas à apreciação desta Relação são as seguintes:

a- se a 1ª Instância incorreu em nulidade processual, por violação do princípio do contraditório, ao ter proferido a sentença recorrida sem que tivesse dado oportunidade à apelante de se pronunciar quanto à matéria de exceção em que se baseou a decisão proferida na sentença;
b- se essa sentença, ao julgar extinta a presente ação de impugnação pauliana instaurada pela apelante contra os apelados em 18/10/2017, em que aquela pretende impugnar a cessão de quotas realizada em 23/10/2012, pelos 1ºs apelados aos 2ºs apelados relativas à sociedade “... – Casas ..., Lda.”, com fundamento em falta de interesse em agir da apelante, geradora de inutilidade originária da lide, ante a constatação que os apelados, em 24/03/2017, desfizeram esse negócio de cessão de quotas, readquirindo aos 2ºs apelados as quotas transmitidas, padece de erro de direito, posto que nela o tribunal alheou-se dos efeitos jurídicos pretendidos pela apelante com a instauração da ação e, bem assim, do pedido e da causa de pedir nela deduzidos pela mesma;
c- se ao proferir a sentença recorrida, sem dirigir à apelante convite para que esta aperfeiçoasse a petição inicial, a 1ª Instância incorreu em nulidade processual.
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A- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que relevam para efeitos de decisão a proferir na presente apelação são os seguintes, que se encontram provados por prova documental:

A- Por documento escrito de fls. 53 a 55, outorgado em 23/10/2012, o 1º Réu, J. M., declarou ceder a quota de 91.500,00 euros ao 2º Réu, A. S., e a 1ª Ré, M. M., declarou ceder a quota de 19.500,00 euros à 2ª Ré, M. G., que ambos detinham na sociedade “... – Casas ..., Lda.” – cfr. doc. de fls. 53 a 55.
B- As cedências identificadas em A), encontram inscritas na matrícula da sociedade “... – Casas ..., Lda.” pela ap. 1/20150811 – cfr. doc. de fls. 77 a 80.
C- A 2ª Ré, M. G., transmitiu à 1ª Ré, M. M., a quota de 19.500,00 euros identificada em A), encontrando-se esta transmissão inscrita na matrícula da sociedade “... – Casas ..., Lda.” pela Dep 654/2017-03-24 – cfr. doc. de fls. 77 a 80.
D- E o 2º Réu, A. S., transmitiu ao 1º Réu, J. M., a quota de 91.500,00 euros identificada em A), encontrando-se esta transmissão inscrita na matrícula da sociedade “... – Casas ..., Lda.” pela Dep. 656/2017-03-24 – cfr. doc. de fls. 77 a 80.
E- A presente ação deu entrada em juízo em 18/10/2017 – cfr. fls. 12.
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B- FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

Enunciadas que foram as concretas questões que a apelante submete à apreciação desta Relação, a primeira questão que se impõe apreciar é a da nulidade em que terá incorrido a 1ª Instância ao proferir a sentença recorrida, sem previamente ter dado oportunidade à apelante para se pronunciar sobre a exceção em que veio a alicerçar a sentença recorrida.

B.1- Da violação do princípio do contraditório – nulidade processual.

Sustenta a apelante que o tribunal a quo proferiu a sentença recorrida sem que lhe tivesse dado a oportunidade de se pronunciar sobre a matéria de exceção em que veio depois a alicerçar a decisão proferida na sentença.

Note-se que ao assim alegar, a apelante não imputa qualquer nulidade à sentença recorrida e, na nossa perspetiva, bem, na medida em que a ter ocorrido o vício que aquela ora suscita, estar-se-á perante a omissão de uma formalidade processual, decorrente de se ter postergado o princípio do contraditório previsto no art. 3º, n.º 3 do CPC, que por ser suscetível de influir no exame e na decisão da causa, se subsume à nulidade processual a que aludem os arts.195º, n.º 1, 199º, n.º 1 e 199º, n.º 1 do CPC, e não perante qualquer nulidade da sentença recorrida, muito embora essa nulidade, caso se verifique, tenha como consequência jurídica inelutável a declaração da nulidade dos atos subsequentes (art. 195º, n.º 2 do CPC), arrastando com ela a nulidade da própria sentença, uma vez que esta é precisamente o ato subsequente ao cometimento da pretensa nulidade processual suscitada pela apelante.

Posto isto, como é sabido o princípio do contraditório é um dos princípios basilares que norteiam o processo civil nacional e em si mesmo é uma decorrência do princípio da igualdade das partes.
Por via desse princípio exige-se, antes de mais, que instaurada determinada ação, execução ou incidente, o demandado tenha conhecimento de que contra si foi formulado um pedido, dando-lhe oportunidade de defesa.

Esta finalidade é atingida pela citação para a ação ou para a execução ou com a notificação do mesmo para o incidente suscitado.
Depois exige-se que ao longo de toda a tramitação do processo, qualquer das partes tenha conhecimento das iniciativas ou pretensões deduzidas pela sua contraparte, com a inerente possibilidade de se pronunciar quanto às mesmas antes de sobre elas recair decisão.

Como é bom de ver, só mediante a realização destas duas exigências que se acabam de enunciar se logrará assegurar uma efetiva igualdade de tratamento das partes ao longo do processo.

A razão de ser do princípio do contraditório radica, ainda, na circunstância de perante a “estruturação dialética ou polémica do processo”, em que os pleiteantes apresentam interesses ou opiniões contraditórias, se esperar que da “discussão nasça à luz” e que, consequentemente, “as partes (ou os seus patronos), integrados no caso e acicatados pelo interesse ou pela paixão, tragam ao debate elementos de apreciação (razões e provas) que o juiz, mais sereno, mais distante dos factos e menos ativo, dificilmente seria capaz de descobrir por si” (1).

Deste modo, além do princípio do contraditório ser condição para se assegurar uma efetiva igualdade de tratamento dos litigantes, aquele traz vantagens inegáveis em sede de descoberta da verdade material.

O princípio do contraditório, entendido como o direito de conhecimento de pretensão contra si deduzida e o direito de pronúncia prévia à decisão, corresponde à conceção tradicional do princípio e tem consagração legal na segunda parte do n.º 1 e no n.º 2 do art. 3º do atual vigente CPC (2).

Nesta conceção tradicional o princípio do contraditório tem como escopo principal a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia.

No entanto, como tem sido posto em evidência pela doutrina e pela jurisprudência, embora a conceção tradicional do princípio do contraditório continue válida e tenha acolhimento legal no atual processo civil, nele consagrou-se uma conceção ampla de contrariedade ao estatuir-se no art. 3º, n.º 3 do CPC que “o juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

Mediante a consagração desta norma consagra-se no âmbito do processo civil o princípio constitucional da proibição da indefesa, associada à regra do contraditório, visando-se conferir às partes uma efetiva participação no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão, proibindo-se ao juiz a prolação de qualquer decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que, previamente, tenha sido conferido às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar (3).

Nesta conceção ampla do princípio do contraditório, em que se proíbe a indefesa e, nessa medida, a prolação de decisões-surpresa, visando-se assegurar às partes o direito de influenciarem efetivamente o rumo do processo e a decisão nele a proferir, o escopo principal desse princípio, contrariamente ao que acontece na conceção tradicional, deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo do direito das partes de influírem ativa e decididamente no desenvolvimento e no êxito do processo (4).

Esta vertente positiva do princípio do contraditório, tal como todos os outros princípios, não tem, no entanto, um sentido absoluto.

Na verdade é o próprio art. 3º, n.º 3 do CPC que admite que esse princípio possa ser afastado nos casos de “manifesta desnecessidade”.

No entanto porque tal questão se mostra irrelevante para a decisão a proferir nos presentes autos, abstemo-nos de a desenvolver.

No caso, embora a apelante peça que se declare a nulidade da transmissão de quotas efetuada entre os 1º e os 2ºs Réus/apelado, a que se refere o documento n.º 2, cotejada a causa de pedir em que esta alicerça esse pedido e o outro que deduz, em que pede que se declare “a restituição das quotas, na medida do interesse da Autora, ao património dos 1ºs Réus, podendo a Autora executá-lo no património dos 2ºs Réus”, é indiscutível que a presente ação configura uma típica ação de impugnação pauliana, mediante a qual aquela pretende impugnar a transmissão das quotas realizadas pelos 1ºs apelados para os 2ºs apelados em 23/10/2012, com vista a poder pagar-se pelo crédito de 10.000,00 euros que alega deter sobre os 1ºs apelados, mediante a execução dessas quotas no património dos 2ºs apelados, para quem os 1ºs apelados as transmitiram.

Deste modo, ao pedir que se declare a “nulidade da transmissão de quotas”, a apelante incorreu em erro na qualificação jurídica, a ser corrigido oficiosamente pelo juiz, em conformidade com a doutrina sufragada por Antunes Varela (5) e que veio a ser a adotado no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 3/2001, de 23/01/2001, publicado no DR, Iª Série de 09/02/2001, onde se estabelece que: “Tendo o autor, em ação de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do ato jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do ato em relação ao autor (n.º 1 do art. 616º do CC), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo art. 664º do CPC”.

De resto, que se trata de uma ação de impugnação pauliana é corroborado não só pelo facto da apelante, na petição inicial, não invocar quaisquer factos suscetíveis de determinar a nulidade daquele negócio de transmissão de quotas que impugna (isto é, não alega quaisquer factos tendentes a demonstrar que esse negócio padece de qualquer vício genético determinativo da sua invalidade jurídica), mas antes, pelo contrário, toda a sua alegação e a disposição legal que invoca no art. 21º da p.i. (art. 610º do CC) respeitam à ação de impugnação pauliana.

A presente ação de impugnação pauliana deu entrada em juízo em 18/10/2017 (cfr. fls. 12).

Por sua vez, já na contestação apresentada pelos 1ºs apelados estes alegam que “logo que conseguiram obter os necessários meios económicos, adquiriram não só as quotas que transmitiram, em 2012, mas também as quotas que os sócios iniciais haviam transmitido nessa altura, e desde 24/03/2017 são os únicos sócios da sociedade comercial “... - Casas ..., Lda.” (cfr. pontos 26º e 27º da contestação de fls. 62), alertando, assim a apelante (Autora) e o tribunal que o negócio que a primeira pretende impugnar na presente ação já era insubsistente desde 24/03/2017 e, por isso, em data anterior à propositura da presente ação.

Por despacho de fls. 86, proferido em 02/01/2018, a 1ª Instância ordenou que fosse imprimida e junta ao processo físico a certidão permanente da sociedade “... – Casas ..., Lda.” e ordenou a notificação da apelante para, em dez dias, se pronunciar sobre “a utilidade do prosseguimento da presente lide”, “tendo em conta que os 1ºs Réus são, desde 24/03/2017, novamente os únicos sócios da aludida sociedade”.

Conforme se vê do Citius, a apelante foi notificada, na pessoa da sua ilustre mandatária, via Citius, em 04/01/2019, do teor desse despacho e, bem assim do teor da certidão então impressa e junta ao processo físico.

No entanto, não se pronunciou.

Por sentença proferida em 07/02/2019, a 1ª Instância julgou extinta a presente instância por falta de interesse em agir da apelante, geradora de inutilidade originária da lide, alicerçando essa decisão na circunstância dos Réus, antes da instauração do presente processo, mais propriamente, em 24/03/2017, terem desfeito “o negócio de cessação das quotas da ... – Casas ..., Lda., tendo os 1ºs Réus passado a ser, novamente, os únicos sócios da aludida sociedade, assim se cumprindo o pretendido pela Autora R. M.”, inexistindo “razão de ser para a subsistência destes autos”.

Pretende a apelante que o tribunal proferiu esta sentença sem que previamente lhe tivesse dado oportunidade, conforme se impunha que acontecesse, em obediência ao princípio do contraditório, de se pronunciar quanto à matéria de exceção em que veio a ancorar a sua decisão.

No entanto, dir-se-á que a alegação da apelante apenas se poderá dever a um manifesto equívoco, quiçá, falta de evidente atenção (mas sempre uma conduta processual negligente, raiando os limites da litigância de má fé), posto que o tribunal notificou-a expressamente, na pessoa da sua ilustre mandatária, via Citius, em 04/01/2019 (conforme se impunha que acontecesse – arts. 247º, n.º 1 e 248º do CPC) para se pronunciar sobre a utilidade do prosseguimento da presente lide, tendo em conta que os 1ºs Réus são, desde 24/03/2017, novamente os únicos sócios da sociedade ....
Logo, se a apelante não se pronunciou sobre essa questão, conforme efetivamente não se pronunciou, não foi certamente por falta de oportunidade concedida pelo tribunal, mas porque não quis.
O tribunal na sentença recorrida, concluiu que inexistia utilidade no prosseguimento da ação, uma vez que tendo os 1ºs Réus antes da instauração da presente ação, mais propriamente, em 24/03/2017, passado a ser, novamente, os únicos sócios da sociedade “...”, encontrava-se “cumprido o pretendido pela Autora R. F.”, inexistindo, por isso, “razão de ser para a subsistência destes autos” e conclui que estando essa pretensão da Autora já cumprida antes desta ter instaurado a presente ação, esta nem sequer tinha interesse em agir, pelo que existia uma situação de inutilidade originária da lide.

Por conseguinte, os fundamentos fácticos e jurídicos em que a sentença se alicerçou foram precisamente aqueles que o tribunal enunciou no despacho que notificou à apelante, via Citius, em 04/01/2019.

Note-se que a exceção do interesse processual, também designada de interesse em agir, configura uma exceção dilatório inominada que consiste em o direito da demandante estar carecido de tutela judiciária, tendo, por isso, aquela necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a ação (6).

Por conseguinte, ao notificar a apelante para se pronunciar sobre a utilidade do prosseguimento do processo uma vez que os 1ºs Réus são, desde 24/03/2017, novamente os únicos sócios da sociedade ..., o tribunal mais não fez que notificar a mesma para que se pronunciasse, querendo, no prazo de dez dias, quanto à exceção dilatória inominada da falta de interesse em agir da apelante.
Termos em que sem mais, por desnecessárias delongas, improcede este fundamento de recurso aduzido pela apelante.

B.2- Erro de direito.

Sustenta a apelante que ao julgar extinta a presente instância por inutilidade originária da lide, o tribunal a quo se alheou dos efeitos jurídicos por ela pretendidos com a instauração da presente ação de impugnação pauliana e, bem assim, da causa de pedir e do pedido que nela formulou, padecendo, por isso, a sentença proferida de erro de direito, isto porque “através do recurso à impugnação pauliana a recorrente pretende não só a declaração de ineficácia do negócio em relação a si, na qualidade de credora, mas, e acima de tudo, ter a possibilidade de executar no património do adquirente as quotas, o valor correspondente ao crédito que detém sobre o cedente ou o retorno de tais quotas ao património dos cedentes, acompanhado do seu valor expresso em moeda. Outro sentido não pode existir no recurso a uma impugnação pauliana, nos termos do art. 610º do CC, quando o que está em causa são participações sociais em sociedades comerciais, porquanto, tais participações sociais, se desacompanhadas do pagamento do seu valor correspondente, não representam um mais no património dos cedentes/devedores da recorrente, passados 5 anos da sua primeira transmissão. Na verdade, as participações sociais têm tanto mais valor quanto património tem a sociedade, sendo certo que o mero retorno de tais ações ao património dos 1ºs recorridos de nada vale à recorrente, ou afasta a impugnabilidade em relação aos 2ºs recorridos, porquanto tal retorno desacompanhado de qualquer valor executável, numa sociedade comercial completamente esvaziada de património (o que é manifesto – porque consta da certidão permanente da mesma que desde 2017 não presta contas) não representa a garantia de cumprimento do seu crédito, pretensão que visa acautelar o recurso ao presente processo” (sublinhado nosso).

Argumenta ainda a apelante que o “tribunal a quo está obrigado a verificar o interesse em agir da recorrente tendo por base a data em que ocorreu o ato que se pretende impugnar, isto é, se à data da prática do ato a impugnar o negócio jurídico celebrado foi apto a impossibilitar ou a agravar a possibilidade do credor, aqui recorrente, de satisfazer o seu crédito, e não à data da propositura da ação”(…) “A decisão recorrida alheia-se, por completo, da causa de pedir, do pedido formulado e do tipo de ação, bem como da existência dos 2ºs Recorridos e do pedido quanto a eles formulado, pois que a mera restituição de quotas de uma sociedade comercial decorridos 5 anos da sua transmissão fraudulenta não pode interessar e não interessa ao credor aqui recorrente ou acautela o cumprimento por parte do devedor aqui 1ºs e 2ºs recorridos”.

Refira-se que ao assim alegar, é indiscutível que a apelante incorre em diversos equívocos, que importa deslindar.

O primeiro equívoco em que incorre a apelante é o de pretender que a exceção dilatória do interesse em agir daquela em instaurar a presente ação de impugnação pauliana carece de ser apreciado pelo tribunal por referência à data em que ocorreu o ato que a mesma impugna, e não, como fez a 1ª Instância, por referência à data em que propôs a ação, quando manifestamente assim não é, confundindo manifestamente a apelante o momento por referência ao qual tem de ser apreciada a exceção dilatória do interesse em agir, com o momento por referência ao qual se têm de aferir os pressupostos de cuja verificação depende a procedência da ação de impugnação pauliana.

Vejamos:

Conforme já referido, o interesse processual, também designado pela doutrina italiana de “interesse em agir” e pela alemã de “necessidade de tutela judiciária”, configura um pressuposto processual inominado, isto é, que a lei processual civil nacional não prevê expressamente, mas que, ainda assim, não deixa de consagrar por via implícita.

Os pressupostos processuais, como se sabe, são “os elementos de cuja verificação depende o dever de o juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a providência requerida. Trata-se das condições mínimas consideradas indispensáveis para, à partida, garantir uma decisão idónea e uma decisão útil da causa” (7) e, sem cuja verificação não lhe é lícito entrar na apreciação do mérito da causa.

Mediante o pressuposto processual inominado do interesse em agir, quer-se significar que ao intentar determinada ação judicial, o direito que o demandante nela pretende fazer valer tem de se encontrar carecido de tutela judiciária e daí a necessidade do mesmo se socorrer do processo.

Essa necessidade de recurso ao processo não tem de ser uma necessidade estrita ou absoluta, no sentido de que o recurso à via judiciária se apresente como a única via aberta ao demandante para realizar a sua pretensão, isto é, o direito que pretende fazer valer no processo. Mas tão-pouco se pode tratar de um interesse vago, remoto, subjetivo, moral, científico ou académico de recurso a essa via. Reclama-se que a necessidade de recurso à via judiciária se situe num estádio intermédio entre a necessidade absoluta do demandante de recorrer à via judiciária e a sua necessidade subjetiva de a ela se socorrer, ou seja, “exige-se uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a ação” (8), ou dito por outras palavras, o demandante tem de se encontrar num “estado de coisas reputado bastante grave, por isso, tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem jurídico que a ordem lhe reconhece” (9).

Com efeito, são duas razões ponderosas que justificam a consagração deste pressuposto processual, a saber: a) por um lado, avulta o interesse particular, pretendendo-se evitar que as pessoas sejam precipitadamente forçadas a vir a juízo, para organizarem, sob cominação de uma grave sanção, a defesa dos seus interesses, numa altura em que a situação da parte contrária o não justifica; e b) por outro lado, o interesse público, procurando-se evitar não sobrecarregar os tribunais, cujo tempo é escasso e que são mantidos a expensas da coletividade, com querelas que efetivamente não se encontram carecidas de verdadeira tutela judiciária (10).

Naturalmente que tratando-se de um pressuposto processual, a exceção dilatória do interesse em agir carece de ser apreciado por referência à data em que a ação é proposta.
Com efeito, é por referência ao momento da propositura da ação que se terá de verificar se o direito que o demandante pretende exercer na ação se encontra ou não carecido de tutela judiciária e, por conseguinte, se existe ou não uma situação justificada, razoável, fundada daquele de lançar mão à arma judiciária para fazer valer o direito que pretende exercer contra o demandado ou demandados.

Consequentemente, tal como entendeu a 1ª Instância, contrariamente ao pretendido pela apelante, o interesse em agir da apelante, isto é, a necessidade da mesma de instaurar a presente ação de impugnação pauliana, em que pretende impugnar o ato de transmissão das quotas da sociedade “...”, realizado pelos 1ºs apelados para os segundos em 23/10/2012, tem de ser apreciado por referência à data em que a mesma instaurou a presente ação, ou seja, por referência a 18 de outubro de 2017 (cfr. fls. 12).

Note-se que não obstante à data da propositura da ação se poder verificar esse interesse em agir da demandante, posteriormente, na pendência da causa, poderão ocorrer circunstâncias que eliminem ou anulem esse interesse.

Nessas situações, até por força do princípio da limitação dos atos, que veda ao juiz a prática de atos inúteis (art. 130º do CPC), naturalmente que sempre que ocorram circunstâncias que eliminem esse interesse do demandante em prosseguir com a ação, impõe-se julgar extinta a instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide (art. 277º, al. e) do CPC), dado que não se pode prosseguir com uma atividade judiciária para apreciar direitos que se tornaram supervenientemente impossíveis ou em que o efeito prático da ação se tornou inútil.

Naturalmente que uma coisa é o momento por referência ao qual se tem de aferir o pressuposto processual do interesse em agir da apelante para instaurar a presente ação de impugnação pauliana, e outra, bem diversa, é o momento por referência ao qual, uma vez afirmado esse interesse em agir da apelante para instaurar a presente ação, têm de ser apreciados os pressupostos legais que lhe permitem impugnar aquele negócio de transmissão de quotas celebrado entre os apelados em 23/10/2012, por via do instituto da impugnação pauliana.

A data a que se deve atender para saber se do ato resultou ou não a impossibilidade, de facto, da apelante de satisfazer integralmente o crédito que alega deter sobre os 1ºs apelados (um desses pressupostos legais do instituto da impugnação pauliana – art. 610ºdo CC), é naturalmente o da data da celebração do ato impugnado (11).

Assente nestas premissas, o ato que a apelante pretende impugnar mediante a instauração da presente ação em 18/10/2017, é o negócio jurídico celebrado entre os apelados em 23/10/2012, mediante o qual os 1ºs apelados transmitiram para os segundos as quotas que detinham na sociedade “...”.

Acontece que em 18/10/2017, aquelas quotas já não se encontravam no património dos 2ºs apelados, posto que estes, pelo menos em 24/03/2017 (data do registo das transmissões que se vão passar a referir) transmitiram essas quotas novamente para o património dos 1ºs apelados (cfr. alíneas C e D da matéria apurada).

Por conseguinte, como bem ponderou a 1ª Instância, à data em que a apelante instaurou a presente ação, em 18/10/2017, aquela já não tinha qualquer necessidade justificada, razoável, fundada de lançar mão da presente ação de impugnação pauliana tendo em vista a impugnação do ato de transmissão das quotas realizado pelos 1ºs apelados para os 2ºs apelados em 23/10/2012, posto que essas quotas, já antes da propositura da ação, tinham sido retransmitidas pelos 2ºs apelados para o património dos 1ºs apelados, onde a apelante naturalmente as poderá penhorar com vista à cobrança coerciva do seu pretenso crédito sobre os últimos.

Diremos mesmo, à data da propositura da presente ação, em 18/10/2017, a apelante não só já não dispunha de qualquer necessidade justificada, razoável e fundada para recorrer à presente ação com o fito de impugnar a transmissão das quotas realizada em 23/10/2012, como existia uma impossibilidade legal e, inclusivamente, lógica, de o fazer, posto que então as referidas quotas já não se encontravam no património dos 2ºs apelados, mas sim no dos 1ºs apelados.

De resto, porque assim é, é que se compreende que na sentença recorrida se tivesse julgado justificadamente extinta a instância por inutilidade (na nossa perspetiva, mais correto seria, por impossibilidade) originária da lide, com as inerentes consequências em termos de custas – a cargo da apelante.

Sustenta a apelante que assim não é, posto que tendo os 2ºs apelados retransmitido as quotas aos 1ºs apelados, impunha-se que a ação de impugnação pauliana prosseguisse os seus termos, dado que, por via desse instituto e do disposto no art. 616º, n.º 2 do CC, assiste-lhe o direito de ver retornadas “tais quotas ao património dos cedentes, acompanhado do seu valor expresso em moeda”, uma vez que “tais participações sociais, se desacompanhadas do pagamento do seu valor, não representam um mais no património dos cedentes/devedores da recorrente passados cinco anos da sua primeira transmissão”, “… tal retorno desacompanhado de qualquer valor executável, numa sociedade completamente esvaziada de património (…), não representa a garantia de cumprimento do seu crédito (…)”, concluindo esta sua argumentação, imputando erro de direito à sentença recorrida, ao julgar extinta a instância por inutilidade originária da lide, na medida em que, ao assim decidir, a 1ª Instância ter-se-á alheado completamente dos efeitos pretendidos pela mesma com a instauração da presente ação e da causa de pedir e do pedido que nela formula.

Sucede que ao assim argumentar é indiscutível que a apelante incorre em equívoco quanto ao alcance dos efeitos jurídicos decorrentes da procedência da ação de impugnação pauliana e, bem assim, quanto ao alcance jurídico da norma contida no n.º 2 do art. 616º do CC, além de que se alheia, em absoluto, dos princípios norteadores do processo civil do dispositivo e da estabilidade da instância.

Concretizando:

O instituto da impugnação pauliana encontra-se regulado nos arts. 610º a 618º do CC e insere-se nos meios de conservação e garantia patrimonial que a lei coloca ao dispor do credor, dando-lhe a possibilidade de reagir contra atos praticados pelo devedor que inconvenientemente diminuam o seu ativo ou aumentem o seu passivo patrimonial (12).

Contrariamente a outros institutos, como é o caso da simulação (art. 240º, n.º 2 CC), a impugnação pauliana não tem como efeito jurídico a declaração da nulidade do negócio impugnado, sequer a declaração da sua anulabilidade, mas apenas torná-lo ineficaz relativamente ao impugnante, que fica com a possibilidade de executar o bem ou bens objeto do negócio impugnado na esfera jurídica do terceiro adquirente, na estrita medida em que tal se torne necessário para a satisfação do crédito que detém sobre o devedor, transmitente desse bem ou bens, mantendo-se, por isso, o negócio jurídico impugnado incólume.

Concretizando o que se acaba de referir, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 616º do Código Civil, “julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei” e conforme decorre do seu n.º 4 “os efeitos da impugnação pauliana aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido”.

Deste modo, a impugnação pauliana é uma ação vincadamente pessoal, em que os seus efeitos jurídicos medem-se pelo interesse do credor que a promove pelo que, em caso de procedência, o ato impugnado não é globalmente anulado, mantendo antes a sua validade jurídica e tratando-se de negócio cujo objeto seja divisível ou de coisas determináveis por conta, peso ou medida, os efeitos da impugnação apenas recaem sobre o “quantum” necessário à satisfação dos interesses do credor.

Por outro lado, só o credor impugnante beneficiará dos efeitos da procedência da ação pauliana, o que significa que, quanto aos demais credores, tudo se passa como se o ato impugnado se mantivesse intocado, não lhes aproveitando, consequentemente, a impugnação julgada procedente.

O efeito da impugnação é que o objeto do negócio impugnado pode ser executado “no património do obrigado a restituir”, o que significa que aquele não sai do património do adquirente por via da procedência da ação pauliana, permanecendo nele, onde aí poderá ser penhorado pelo impugnante, para cobrança coerciva do crédito que detém sobre o transmitente desse objeto e apenas na medida em que tal seja necessário à satisfação desse crédito.

Enfim e em síntese, conforme escreve lapidarmente Antunes Varela, a impugnação pauliana traduz-se no instituto que permite a “intromissão de terceiros (o credor) num ato realizado pelo devedor” (13), perseguindo o bem ou bens cuja propriedade foi transmitida da esfera jurídica do devedor para a de terceiro por via do negócio impugnado, podendo-o(s) penhorar e executar no património deste, na medida em que tal se mostre necessário à satisfação do seu crédito perante o devedor.

Deste modo, impugnando a apelante, na presente ação, o negócio de transmissão das quotas da sociedade “...” celebrado em 23/10/2012, mediante o qual os 1ºs apelados transmitiram as quotas que detinham sobre aquela sociedade para os 2ºs, em caso de procedência da ação, por via dessa procedência, a apelante tinha o direito a executar as quotas objeto daquele negócio, no património dos 2ºs apelados, como se elas não tivessem saído do património dos 1ºs apelados, sem a concorrência dos demais credores destes últimos, uma vez que a procedência da pauliana só aproveita à impugnante, e tem direito a executá-las, como se elas tivessem retornado ao património dos 1ºs apelados e não se mantivessem na titularidade dos 2ºs apelados (adquirentes), podendo executá-las no património destes, na medida do necessário para satisfação do seu crédito, sem sofrer a competição dos credores desses 2ºs apelados (14).

Por conseguinte, procedendo a ação de impugnação pauliana, o efeito jurídico dessa procedência seria o retorno das quotas da sociedade “...”, transmitidas em 23/10/2012, pelos 1ºs apelados aos 2ºs apelados (não das quotas, acompanhadas do seu valor expresso em moeda, conforme pretende apelante, designadamente, do valor correspondente à desvalorização que essas quotas eventualmente sofreram desde 23/10/2012 até ao trânsito em julgado da sentença que julgasse a ação de impugnação pauliana procedente), as quais, no entanto, não deixariam de continuar a ser propriedade dos 2ºs apelados, podendo a apelante executar essas quotas no património desses 2ºs apelados, como se elas não tivessem saído do património dos 1ºs apelados em 23/10/2012.

Acontece que, como é bom de ver, em 18/10/2017, data em que a apelante instaurou a presente ação, a apelante já não podia pedir o retorno dessas quotas tendo em vista executá-las no património dos 2ºs apelados, pela simples razão de que as mesmas já não se encontravam no património destes, mas sim no dos 1ºs apelados, em virtude daquelas terem sido retransmitidas, pelo menos, em 24/03/2017, para o património dos 1ºs apelados.

Por conseguinte, conforme se escreve na sentença recorrida, à data da instauração da presente ação encontrava-se “cumprido o pretendido pela Autora (apelante) R. M.”, pelo que a mesma “não tinha interesse em agir” para instaurar a presente ação tendo em vista impugnar o negócio de transmissão das quotas dos 1ºs para os 2ºs apelados e cujo escopo é no sentido de se declarar a ineficácia dessa transmissão para que a apelante pudesse penhorar e vender essas quotas no património dos 2ºs apelados com vista à satisfação coerciva do pretenso crédito que detém sobre os 1ºs apelados. É que, reafirma-se, à data da propositura da presente ação, essas quotas já não se encontravam no património dos 2ºs apelados, mas sim no dos 1ºs apelados, onde naturalmente, independentemente da procedência da presente ação, a apelante as podia penhorar.

Neste contexto, evidentemente que a ação instaurada em 18/10/2017 pela apelante, tendo em vista a impugnação daquele negócio de transmissão das quotas, não só era originariamente inútil, como, concluímos nós, era, inclusivamente, originariamente impossível.

Conforme bem realça a apelante, a procedência da ação de impugnação pauliana, caso as quotas da sociedade ..., permanecessem, em 18/10/2017 (data da propositura da presente ação), no património dos 2ºs apelados (o que, reafirma-se, não era o caso), conferia-lhe o direito a executar essas quotas no património desses 2ºs apelados com vista à cobrança coerciva do crédito que alegadamente detém sobre os 1ºs apelados, como se essas quotas não tivessem saído, em 23/10/2012 (data da celebração do negócio impugnado), do património dos 1ºs apelados.

Por outro lado, também é certo que entre 23/10/2012 e a data do trânsito em julgado da sentença que viesse a julgar procedente a ação de impugnação pauliana e, inclusivamente, até à penhora dessas quotas na execução que a apelante viesse a mover contra os 1ºs apelados com vista à cobrança coerciva do seu crédito, podiam ocorrer múltiplas situações que levassem à perda ou à perda de valor dessas quotas.

Deste modo, efetivamente, em 23/10/2012, essas quotas podiam ter um valor elevadíssimo.

Já à data do trânsito em julgado da sentença que viesse a julgar procedente a ação de impugnação pauliana, ou à data em que essas quotas viessem a ser penhoradas na execução instaurada pela apelante contra os 1ºs apelados com vista à cobrança coerciva do crédito que alegadamente detém sobre os últimos, ou até à data da venda dessas quotas nessa execução, o valor das mesmas podia ser nulo ou praticamente nulo, fruto das vicissitudes de mercado em que se insere a sociedade “...” ou de comportamentos negligentes ou dolosos dos respetivos gerentes.

Nestes casos, estabelece o n.º 2 do art. 616º do CC., que o adquirente de má fé é responsável pelo valor dos bens que tenha alienado, bem como dos que tenham perecido ou se hajam deteriorado por caso fortuito, salvo se provar que a perda ou deterioração se teriam igualmente verificado no caso de os bens se encontrarem no poder do devedor.

A propósito deste normativo, escreve Vaz Serra que “o terceiro, visto que procedeu de má fé, parece dever ser responsável pelo valor da coisa, se não puder restitui-la em espécie. Isto em consequência do facto ilícito” (15).

Deste modo, julgada procedente a ação de impugnação pauliana, verificado que seja que o adquirente de má fé do bem já não o tem na sua propriedade em virtude de o ter alienado a terceiro ou desse bem ter perecido ou se ter deteriorado (onde se inclui uma eventual desvalorização de quotas sociais ocorrida entre o momento em que se deu a transmissão impugnada e o trânsito em julgado da sentença que julgou procedente a impugnação), o n.º 2 do art. 616º do CC confere ao impugnante o direito de receber o valor dos bens alienados, perecidos ou deteriorados do adquirente de má fé ação com fundamento no instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos (arts. 483º e ss. do CC), que para o efeito terá de instaurar a competente ação de responsabilidade civil contra esse adquirente.

Naturalmente que ocorrendo essa alienação, perecimento ou deterioração do bem na pendência da ação de impugnação pauliana, conforme se realça no acórdão do STJ de 27/11/2001 (16), nada obsta que o impugnante exerça esse direito indemnizatório ao valor do bem alienado, perecido ou deteriorado contra o adquirente de má fé, nos próprios autos de ação de impugnação pauliana, devendo para o efeito, mediante a apresentação de articulado superveniente, deduzir o correspondente pedido indemnizatório e alegando a causa de pedir que o suporta.

No entanto, caso essa alienação, perecimento ou deterioração do bem objeto do negócio impugnado ocorra na pendência da ação de impugnação pauliana, mas o impugnante nela não apresente articulado superveniente, alterando o pedido e a causa de pedir, por forma a ser indemnizado pelo adquirente de má fé pelo valor desse bem, o tribunal não pode, em sede de ação de impugnação pauliana, condenar o adquirente a satisfazer ao impugnante a indemnização prevista no art. 616º, n.º 2 do CC, por a isso se opor o princípio da estabilidade da instância (art. 260º do CPC).

Com efeito, conforme se pondera nesse aresto, não é possível convolar o pedido de restituição da coisa no pedido de entrega do seu valor, por se tratar de pedidos qualitativamente diferentes, nada mais restando ao tribunal que não seja, face à alienação ou perecimento do bem objeto do negócio impugnado, julgar extinta a instância da ação de impugnação pauliana por inutilidade superveniente da lide.

Acontece que conforme decorre do que se vem dizendo, a situação sobre que versam os autos não é aquela que vimos enunciando e sobre a qual se debruça o identificado aresto do STJ.

Como referido, na situação sobre que versam os autos, a apelante instaurou contra os apelados ação de impugnação pauliana, impugnando o negócio jurídico entre estes celebrados em 23/10/2012, mediante o qual os 1ºs apelados (seus pretensos devedores) transferiram a propriedade das quotas que detinham na sociedade “...” para os 2ºs apelados, visando (é este o efeito jurídico da procedência desta ação, independentemente do que a apelante pretende obter, mas que a lei não lhe reconhece) o retorno ou inoponibilidade do negócio de transmissão dessas quotas, por forma a lhe ficar conferido o direito de as penhorar no património dos 2ºs apelados para se fazer pagar do crédito que alegadamente detém sobre os 1ºs apelados.

Acontece que à data da propositura da presente ação, em 18/10/2017, esta pretensão da apelante já não era lógica e juridicamente possível, pela simples circunstância de anteriormente, pelo menos, em 24/03/2017, os 2ºs apelados terem retransmitidos essas quotas para os 1ºs apelados, pelo que tal como concluiu a 1ª Instância ocorre uma efetiva inutilidade (e diríamos mesmo, impossibilidade) originária da lide.

Acresce dizer que, conforme resulta do que sem vem dizendo, mesmo que essa retransmissão das quotas tivessem ocorrido na pendência da presente ação (o que não é o caso), em face dessa retransmissão das quotas efetuada pelos 2ºs apelados para os 1ºs apelados, não tendo a apelante deduzido, nos presentes autos, articulado superveniente, alterando o pedido e a causa de pedir por forma a exercer o eventual direito indemnizatório que nos termos do n.º 2 do art. 616º do CC lhe possa assistir contra os 2ºs apelados, nunca o tribunal podia no âmbito da presente ação condenar os 2ºs apelados a satisfazer-lhe essa indemnização, por a isso se oporem os princípios do dispositivo e da estabilidade da instância, pelo que sempre se impunha julgar extinta a presente ação, neste caso, por impossibilidade superveniente da lide.

Aqui chegados, impõe-se concluir que a sentença recorrida não padece dos erros de direito que a apelante lhe assaca.

Por último, pretende a apelante que a 1ª Instância, ao proferir a sentença recorrida, sem dirigir à mesma qualquer convite para que aperfeiçoasse a petição inicial, incorreu em nulidade processual, argumento este que é manifestamente improcedente.

Com efeito, o convite ao aperfeiçoamento apenas se encontra previsto para as situações que se encontram elencadas nos n.ºs 2, 3 e 4 do art. 590º do CPC., onde não se insere o caso de dedução pela demandante de uma pretensão, como é o caso, em que ocorre uma impossibilidade legal (e mesmo lógica) originária dessa pretensão poder vir a ser-lhe reconhecida.

Aqui chegados, na improcedência de todos os fundamentos de recurso deduzidos pela apelante, resta concluir pela improcedência da presente apelação e pela consequente confirmação da sentença recorrida.
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Decisão:

Nestes termos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a presente apelação improcedente e, em consequência:
- confirmam a sentença recorrida.
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Custas pela apelante (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Notifique.
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Guimarães, 19 de junho de 2019

Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores:

Dr. José Alberto Moreira Dias (relator)
Dr. António José Saúde Barroca Penha (1º Adjunto)
Dra. Eugénia Maria Marinho da Cunha (2ª Adjunta)


1. Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 379.
2. Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, Almedina, 2014, pág. 24
3. Ac. RC. de 20/09/2016, Proc. 1215/14.0TBPBL-B.C1, in base de dados da DGSI.
4. Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto”, Coimbra Editora, 1996, págs. 96 e 97.
5. Antunes Varela, RLJ, 122 – 255, onde refere: “se o advogado requereu a declaração da nulidade do ato, fê-lo apenas por erro na qualificação jurídica do efeito prático que pretendia obter para a sua constituinte. E os erros dessa natureza é ao juiz que cumpre corrigi-los, sem a mais ligeira ofensa ao princípio do dispositivo, tal como o art. 644º do CPC o concebe e define”.
6. Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, págs. 79 a 80; Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manuel de Processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, págs. 179 e 180.
7. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., pág. 104.
8. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., pág. 181.
9. Manuel Andrade, ob. cit., pág. 80.
10. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., pág. 182; Manuel de Andrade, pág. 82.
11. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 7ª ed., Almedina, pág. 449.
12. Antunes Varela, ob. cit., pág. 446.
13. Antunes Varela, ob. cit., pág. 447.
14. Antunes Varela, ob. cit., pág. 457.
15. Vaz Serra, BMJ 75º, pág. 296.
16. Ac. STJ. de 27/11/2001, Proc. 02B198, in base de dados da DGSI.