Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
613/12.8GBBCL-C.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: FUNDAMENTAÇÃO NA SENTENÇA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
PRÁTICA DE CRIME DOLOSO
REVOGAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – A fundamentação da decisão é um princípio com assento constitucional, em que se inscreve a legitimidade do exercício do poder judicial (art. 205º da CRP), dada a sua proeminência enquanto garantia integrante do Estado de direito democrático, mas só importa o vício da nulidade da decisão a ausência completa de especificação dos fundamentos de facto e de direito que a justificam, não a sua motivação deficiente, medíocre ou errada.

II – Com o segmento final do art. 56º, nº 1, b), do C.Penal, a revogação, ope legis, da suspensão como efeito automático da prática de um novo crime doloso no período dessa suspensão – pelo qual o agente venha a ser punido com pena de prisão – está posta de lado e delimitada aos casos em que esse facto imponha a conclusão de que se frustrou o juízo de prognose que havia fundamentado a suspensão, a ponderar, ainda e de novo, à luz dos fins das penas – tal como deve suceder com o incumprimento, em geral, de obrigações ou deveres impostos ao condenado como condições da suspensão da execução da pena de prisão –, suscitando-se a apreciação judicial sobre a personalidade e condições de vida do arguido, a sua conduta anterior e posterior ao crime e o circunstancialismo que envolveu o cometimento pelo mesmo do(s) novo(s) crime(s), à luz dos fins das penas e, ainda, dos critérios consagrados no art. 50º, nº 1, do CP.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal, do Tribunal da Relação de Guimarães:

No âmbito do referenciado processo, do Juízo Local Criminal de Barcelos, da Comarca de Braga, por decisão proferida em 12/05/2017, foi revogada a suspensão da execução da pena de três anos e dois meses de prisão em que a arguida M. X. fora condenada, por sentença transitada em julgado em 4/6/2012, pela prática, em 18/04/2012, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1, e 204º, nº 2, e), do C. Penal.
Inconformada com a referida decisão, a arguida interpôs recurso, formulando na sua motivação as seguintes conclusões (sic):
«A) Entende a Recorrente não terem sido levadas em consideração todas as circunstâncias relevantes para a boa decisão da causa, sendo que a decisão da revogação da suspensão da pena aplicada à recorrente não se encontra suficientemente motivada e justificada.
B) No douto Despacho de que ora se recorre, o Meritíssimo Juiz a quo fundou a sua convicção na verificação dos requisitos enunciados na alínea b) do nº 1 do artigo 56º do Código Penal, ou seja, a arguida ter sido condenada, por decisão já transitada em julgado no âmbito do processo nº 71/14.2PEBRG, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes; e de, com isso, ter colocado em causa as finalidades que se pretendia alcançar com a suspensão da pena de prisão que lhe foi aplicada.
C) Embora possa estar cumprido o primeiro requisito do artigo 56º, nº 1, al. b) do Código Penal, apesar de se tratar de um crime de natureza diversa, ter-se-á que passar à verificação do segundo pressuposto: “revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio desta, ser alcançadas”.
D) Ora, entende a Recorrente que este segundo requisito não se encontra verificado uma vez que: por um lado, os relatórios de execução elaborados pela técnica da DGRSP são francamente favoráveis à Recorrente; por outro lado, conforme decorre das declarações prestadas pela Recorrente no dia 09 de Março de 2017, os ilícitos criminais que esta cometeu ao longo da sua vida sempre se ficaram a dever, em grande parte, à exclusão social de que sempre foi vítima, sobretudo à falta de apoio por parte das instituições sociais, bem como ao facto de se ter rodeado de pessoas que se envolveram no mundo da criminalidade, o que sempre a prejudicou.
E) Aliás, a eventual revogação da suspensão da pena de prisão poderia ter um efeito absolutamente pernicioso na recorrente, comprometendo de forma definitiva a sua ressocialização.
F) Deste modo, o Tribunal a quo violou o artigo 56º, nº 1, alínea b) do Código Penal.
G) Ainda que a sim não se entenda, e sem prescindir nem conceder, poderia, e deveria, o Meritíssimo Juiz a quo, antes de decretar a revogação da suspensão da pena de prisão em que foi a Recorrente condenada, ter recorrido a alguma das medidas previstas no artigo 55º do Código Penal.
H) E, devendo, a pena de prisão, como pena privativa da liberdade, ser apenas aplicada em ultima ratio, entende a Recorrente que o Tribunal a quo deveria, após o conhecimento das condições sociais da Recorrente, ter optado pela não revogação da suspensão ou, quando muito, pela imposição de novos deveres ou regras de conduta ou pela imposição de exigências acrescidas no plano de reinserção. Ao não o fazer, o Despacho recorrido violou o artigo 55º do Código Penal.
I) A decisão recorrida é, assim, desadequada, desnecessária e desproporcional, pelo que deve ser revogada.».

O Ministério Público apresentou resposta, pugnando pelo indeferimento do recurso, dizendo, em síntese, que a decisão recorrida deverá ser mantida, uma vez que se encontra devidamente motivada e fundamentada e sem violar qualquer norma ou princípio geral e/ou constitucional. Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer secundando aquela resposta.
Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP, sem que houvesse resposta.
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Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (art. 412º, nº 1, do CPP), sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, suscitam-se neste recurso as questões de saber se a decisão se encontra indevidamente fundamentada e se não se encontram preenchidos os pressupostos justificativos da revogação da suspensão da execução da pena, sendo esta desadequada e desnecessária.

Importa apreciar as enunciadas questões e decidir para o que são pertinentes: A) os factos considerados na decisão recorrida; B) o teor da decisão que incidiu sobre tais factos; C) os factos e as ocorrências que se extraem da tramitação dos autos.

A) Os factos considerados na decisão recorrida (transcrição):

1) Nos presentes autos, por sentença datada de 04/05/2012, a arguida M. X. foi condenada, pela prática em 18/04/2012 de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1, e 204º, nº 2, e), do Código Penal, na pena de três anos e dois meses de prisão, cuja execução se suspendeu por igual período.
2) - A arguida foi condenada como reincidente, por decisão já transitada em julgada, no âmbito do processo nº 71/14.2PEBRG, pela prática de crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º, nº 1, do DL 15/93, de 22/01, praticado em 02/102014 e 11/11/2015, na pena de 8 anos de prisão.

B) O teor da decisão recorrida:

«(…) Dispõe o art. 56º, nº 1, al. a), do C. Penal, na redacção introduzida pelo DL nº 48/95, de 15.03, que a suspensão da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação.
Por seu turno, preceitua a al. b) do mesmo normativo a mesma consequência quando o arguido cometer crime pelo qual venha a se condenado e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam por meio dela serem cumpridas.
Compulsados os autos, constata-se que a arguida M. X. (pelo menos, uma vez que ainda não existe notícia do trânsito da decisão proferida no processo nº 22/10.3GBB) foi condenada como reincidente, por decisão já transitada em julgada, no âmbito do processo nº 71/14.2PEBRG, pela prática de crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º, nº 1, do DL 15/93, de 22/01, praticado em 02/102014 e 11/11/2015, na pena de 8 anos de prisão.
Em face deste crime ulteriormente praticado pela arguida impõe-se concluir que a simples ameaça do cumprimento da pena aplicada nos presentes autos não foi suficiente para a prossecução dos fins que se pretendiam alcançar, maxime a reintegração social da arguida, por forma a afastá-la do caminho da delinquência.
Assim, nos termos do art. 56º, nº 1, al. b), do C.P., revogo a suspensão da execução da pena aplicada, nos presentes autos, à arguida M. X., determinando o cumprimento efectivo da mesma.».

C) Os factos que se extraem da tramitação dos autos:

1) - Na data referida em A)-1) a arguida já tinha sofrido, antecedentemente (desde 2000), condenações (cfr. fls. 30 e ss.) pela prática dos seguintes crimes: de injúrias (em 10/8/1999); de receptação (em 16/1/2002); de condução sem habilitação legal (em 29/8/2001); de falsidade de depoimento (em 14/10/2004); de tráfico de estupefacientes agravado (entre 15/2 e 18/3/2004), tendo sido condenada numa pena de prisão de seis anos, que cumpriu, tendo-lhe sido concedida a liberdade condicional cujo período terminou em 28/06/2012.
2) - Durante o período de suspensão referida em A)-1), a arguida veio a ser condenada em 30/06/2014 como autora de um crime de desobediência por factos praticados em 4/08/2012 e em 29/10/2014 como autora de um crime de desobediência por factos praticados em 4/08/2014 e indiciada pela prática de dois crimes de tráfico de estupefacientes no âmbito dos processos nºs 22/10.3GBBRG e 71/14.2PEBRG, pelo que foi decidida a prorrogação de tal suspensão por mais 18 meses, a qual passou, portanto, a ter a duração total de 4 anos e 8 meses.
3) - Entretanto, a arguida foi julgada e condenada no âmbito dos aludidos processos 22/10.3GBBRG e 71/14.2PEBRG, sendo que, relativamente ao primeiro, não consta dos autos que a condenação tenha transitado em julgado, enquanto a proferida no segundo e mencionada em A)-2) transitou em julgado em 27/03/2017.
3) - Ouvida nestes autos no dia 9/03/2017 (cfr. fls. 79), a arguida declarou, em síntese, que o seu percurso criminal se ficou a dever, em grande parte, à exclusão social de que sempre foi vítima, à falta de apoio por parte das instituições sociais, bem como ao facto de se ter rodeado de pessoas que se envolveram no mundo da criminalidade, o que sempre a prejudicou, tendo consciência da gravidade dos seus comportamentos, de que estava arrependida.
4) - O MP promoveu a revogação da suspensão referida em A) 1).
5) A arguida opôs-se.
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1. A falta de fundamentação.

Entende a arguida/recorrente que o despacho recorrido sofre de falta de fundamentação, invocando, para o efeito, que o mesmo, não contém qualquer alusão quanto à frustração do juízo de prognose a que alude a alínea b) do nº 1 do art. 56º do C. Penal.
O dever de fundamentação das decisões judiciais, princípio com assento constitucional em que se inscreve a legitimidade do exercício do poder judicial (art. 205º da CRP), traduz-se na obrigatoriedade de o tribunal especificar os motivos de facto e de direito da decisão, cominando a lei a sua omissão ou grave deficiência com a nulidade, aliás, de conhecimento oficioso, quando se trate da sentença (1).
Porém, todas as demais decisões proferidas no processo – que não sejam de mero expediente, isto é, que decidam qualquer questão que se suscite ou seja controvertida – devem ser sempre fundamentadas e o seu alcance deve ser perceptível para os respectivos destinatários e demais cidadãos.
Para além dessa proeminência da fundamentação, enquanto garantia integrante do Estado de direito democrático, no domínio do processo penal, a mesma assume uma função estruturante das garantias de defesa dos arguidos. Uma fundamentação cuidada é, pois, absolutamente essencial, desde logo, para garantir a possibilidade do exercício eficaz do direito ao recurso.
O art. 97º, nº 5, do CPP, consagra o princípio geral sobre a fundamentação dos actos decisórios, estatuindo que estes são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão. Este princípio geral é reiterado relativamente a alguns particulares e específicos actos que afectam ou podem afectar os direitos dos arguidos.
Não obstante, o empenho do legislador em impor a comunicação dos fundamentos que subjazem às decisões judiciais, o certo é que, no processo penal, ao incumprimento desse dever não corresponde um regime sancionatório particularmente gravoso.
Com efeito, de acordo com o princípio da tipicidade ou da legalidade consagrado em matéria de nulidades no art. 118º, nº 1, do CPP, “a violação ou infracção das leis de processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”.
Ora, em relação a este vício que a recorrente assaca ao despacho recorrido, aliás, (também) sem invocação de qualquer norma, sublinha-se, desde logo, que nada nos permite aplicar à decisão em causa a exigência de fundamentação nos termos inerentes à sentença, o acto decisório que conhece do mérito e que coloca termo ao processo (cfr. arts. 379º, nº 1, al. a), e 374º, nº 2, do CPP).
Assim, quanto a este concreto despacho, não existe norma alguma que estabeleça os requisitos a que deva obedecer a respectiva fundamentação ou a sanção correspondente à sua omissão e, por isso, não se encontrando cominada na lei a insanabilidade de tal vício, este, não sendo arguido no prazo legalmente estabelecido, ter-se-ia por sanado. O que se verificaria neste caso, porquanto o recorrente não arguiu o vício nos três dias seguintes a contar da notificação do despacho recorrido, como se infere dos autos.
Por outro lado, se, como se assinalou, todas as decisões devem ser sempre fundamentadas, também é consensual que só importa o esgrimido vício a ausência completa de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, não a sua motivação deficiente, medíocre ou errada.
Ora, analisando a decisão questionada, é patente que, pese embora o seu extremado laconismo, na mesma constam, sem margem para dúvidas, explícita e implicitamente, as razões que levaram o Sr. Juiz, a revogar a suspensão da execução da pena imposta à recorrente tendo concluído que a simples ameaça do cumprimento da pena aplicada nos autos não foi suficiente para a prossecução dos fins que se pretendiam alcançar, maxime a reintegração social da arguida, por forma a afastá-la do caminho da delinquência.
Assim, encarando o tema da deficiência suscitada na perspectiva da pretensão formulada pela ora recorrente, de que a decisão é omissa quanto ao juízo de prognose, não pode deixar de se reconhecer que na decisão recorrida se tomou conhecimento do mesmo, com a pronúncia sobre a verificação de um dos requisitos de que a lei faz depender a revogação da suspensão da pena, acompanhado do prognóstico desfavorável de que a condenada não voltará a incorrer na prática de novos crimes.
Por conseguinte, no caso em apreço, a decisão não enferma do vício que lhe foi assacado.
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2. Os pressupostos da revogação da suspensão.

A suspensão da execução da pena de prisão pode ser decretada incondicionadamente, mas também o pode ser subordinadamente a: cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime (art. 51º do CP); imposição ao condenado de regras de conduta de conteúdo positivo, susceptíveis de fiscalização e destinadas a promover a reintegração do agente do crime na sociedade (art. 52º do CP); acompanhamento de regime de prova, se o tribunal o considerar adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade (art. 53º do CP).
A destrinça entre as diversas condicionantes da suspensão releva para os efeitos, mais ou menos gravosos, que advêm da respectiva não verificação posterior. Assim, pode/deve o tribunal adoptar qualquer das medidas previstas nas alíneas a) a d) do art. 55º do CP (2), se durante o período da suspensão o condenado, culposamente, deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta impostos, ou não corresponder ao plano de reinserção, enquanto, nos termos do subsequente art. 56º, a suspensão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: a) infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos no plano de reinserção social; ou b) cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
No caso ora em apreço, a suspensão da execução da pena de prisão imposta à recorrente foi subordinada à última das condições acima referidas, o acompanhamento com regime de prova, portanto condicionadamente e daí que, à partida, não se mostrava efectivamente afastado o regime do citado art. 56º, nº 1, al. a) pelo que, a mesma deveria ser revogada se, no seu decurso, a condenada viesse a infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou a cometer crime pelo qual fosse condenada e revelasse que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
Porém, o certo é que a decisão de revogação de tal suspensão, censurada no recurso, nada teve a ver com a infracção (grosseira ou repetida) do plano de reinserção social concernente a tal regime [art. 56º, nº 1, al. a)]. Com efeito, o Tribunal de 1ª instância fundamentou essa sua decisão, exclusivamente, na nova condenação relativa a factos ocorridos durante o período da suspensão» [art. 56º, nº 1, al. b)].
Ou seja, na linha da fundamentação perfilhada em tal decisão, estaria apenas em questão a averiguação de elementos que pudessem indicar que a arguida revelara «que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas».
Nessa vertente, impor-se-ia, naturalmente, que essa avaliação fosse precedida da realização das diligências que se revelassem úteis para averiguar das razões que conduziram ao cometimento de novo crime no período da suspensão, entre as quais a obrigatória audição da arguida, que foi feita, tendo sido proporcionada à recorrente, como condenada, a ocasião para se pronunciar sobre a possibilidade de revogação da suspensão da pena que lhe havia sido imposta.
Vejamos, então, se a recorrente comprometeu de forma irremediável as finalidades que estiveram na base da suspensão da pena que lhe foi imposta.
Como é sabido, diferentemente do que sucedia até à revisão do C. Penal de 1995, actualmente, «o acento tónico passou a estar colocado, não no cometimento de crime (doloso) durante o período da suspensão da prisão e na correspondente condenação em pena de prisão, mas no facto de o cometimento do segundo crime e respectiva condenação revelarem a inadequação da suspensão para prosseguir as finalidades da punição» (3). Nessa medida, a revogação da suspensão da pena como decorrência do cometimento, no decurso do período de suspensão, de novo crime deixou de ser uma mera formalidade, antes impõe a avaliação sobre se a condenação pela prática desse novo crime implica a revogação da suspensão porque essa prática pusera em causa, definitivamente, o juízo de prognose que esteve na sua base, ou seja, o de que, através da suspensão, o arguido se manteria afastado da criminalidade: em função das conclusões obtidas na apreciação judicial das circunstâncias em que ocorreu o cometimento do novo crime se decidirá do benefício ou inconveniente da revogação, em conformidade com as finalidades consagradas no art. 40º, nº 1, do C. Penal: «a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade». «Se estes são os requisitos materiais da revogação.» (4).
Na verdade, a revisão do C. Penal de 1995 – com o segmento final do art. 56º, nº 1, b) – pôs termo à revogação, ope legis, da suspensão como efeito automático da prática de um novo crime doloso no período dessa suspensão, pelo qual o agente viesse a ser punido com pena de prisão (5), delimitando-a aos casos em que esse facto imponha a conclusão de que se frustrou o juízo de prognose que havia fundamentado a suspensão, a ponderar, ainda e de novo, à luz dos fins das penas, tal como deve suceder com o incumprimento, em geral, de obrigações ou deveres impostos ao condenado como condições da suspensão da execução da pena de prisão (6): «A condenação pela prática de um crime no decurso do período de suspensão da execução da pena só implica a revogação da suspensão se a prática desse crime infirmar definitivamente o juízo de prognose favorável que esteve na base da suspensão. A revogação da suspensão deverá ser excluída, em princípio, se na nova condenação tiver sido renovado esse juízo de prognose favorável, com o decretamento da suspensão da pena da nova condenação. A escolha de uma pena de multa na nova condenação é, igualmente, um elemento que contra-indica a solução da revogação da suspensão.» (7).
«No actual regime não basta afirmar as condenações sofridas pelo agente para se concluir pela infirmação do juízo de prognose favorável determinante da suspensão da pena. Fosse assim e estaríamos a regressar enviesadamente ao regime inicial do Código de 1982.» (8).
«A condenação por crime cometido no período da suspensão da execução da pena de prisão não dita, por si só, a imediata revogação da pena de substituição, sendo antes o juízo sobre a possibilidade de ainda serem alcançadas, em liberdade, as finalidades da punição que norteará a escolha dos regimes do art. 55º ou do art. 56º do Código Penal. (…) Tendencialmente, será a condenação em pena efectiva de prisão a reveladora de que as finalidades que estiveram na base da decisão prévia de suspensão não puderam ser alcançadas.» (9).
De harmonia com o art. 40º, nº 1, do C. Penal, a aplicação das penas visa, a par da protecção de bens jurídicos, a reintegração do agente na sociedade (10). Assim, também a revogação da suspensão da pena, na sequência do cometimento de novo crime no período da suspensão, suscita a necessidade de uma apreciação judicial sobre a personalidade e condições de vida do arguido, a sua conduta anterior e posterior ao crime e o circunstancialismo que envolveu o cometimento pelo mesmo do novo crime, à luz dos fins das penas e, ainda, dos critérios consagrados no art. 50º, nº 1, do C. Penal, por força dos quais a prática de um crime durante o período de suspensão da execução da pena de prisão só deve constituir fundamento de revogação desta, quando essa prática, tendo em conta o tipo e a gravidade penal do novo crime, as condições em que foi cometido, entre outras circunstâncias, revele, em concreto, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, devendo concluir-se, por isso, que se frustraram as expectativas que motivaram a concessão daquela suspensão, ou se, pelo contrário, apesar da prática do novo crime, subsistem ainda fundadas expectativas de ressocialização em liberdade.
Tendo em conta o expendido, ponderemos, pois, a concreta situação dos autos.
Segundo a condenada, na decisão recorrida, não se encontram preenchidos os pressupostos justificativos da revogação da suspensão, não tendo sido ponderado, designadamente, que as finalidades que estiveram na base da suspensão não puderam por meio desta, ser alcançadas, sendo que, os novos ilícitos por si cometidos se ficaram a dever à exclusão social de que sempre foi vítima, sobretudo à falta de apoio por parte das instituições sociais e ao facto de se ter rodeado de pessoas envolvidas no mundo da criminalidade.
Somos de opinião radicalmente diversa porquanto, no essencial, concordamos com a fundamentação em que se estriba a decisão recorrida, que em nada é abalada pelo arrazoado crítico que lhe é movido no recurso, antes logra convencer, inteiramente, das razões pelas quais foi considerado que a recorrente, com o seu comportamento, comprometeu, definitiva e irremediavelmente, o juízo que esteve na base da suspensão da execução da pena de prisão que lhe fora aqui aplicada e que assentava no pressuposto de que a mesma não mais praticaria crimes de idêntica ou diferente natureza àquele pelo qual foi condenada no âmbito dos presentes autos e, menos ainda, com a gravidade e contornos dos que envolveram aquele que a mesma, efectivamente, cometeu.
A arguida, actualmente com 50 anos, não obstante os já significativos antecedentes criminais referenciados em C)-1, incluindo o relacionado com o cometimento de um crime de tráfico de estupefacientes agravado e da pesada pena que sofreu, foi condenado neste processo (por decisão transitada em julgado em 4/6/2012), na pena de 3 anos e dois meses de prisão, suspensa na respectiva execução, como autora de um crime de furto qualificado, praticado em 18/04/2012. Posteriormente, volvidos apenas dois dias, após o mencionado trânsito, a mesma voltou a ser condenada na pena de 117 dias de multa como autora de um crime de desobediência e de novo em 29/10/2014, reiterou a mesma conduta vindo a ser condenada como autora de um outro crime de desobediência na pena de 110 dias de multa, praticado em 4/08/2013.
Na sequência da prática destes dois crimes foi-lhe prorrogada a suspensão da execução da pena pelo período de dezoito meses. E, mais recentemente, a arguida foi novamente condenada como reincidente, no âmbito do processo nº 71/14.2PEBRG, pela prática em 02/10/2014 e 11/11/2015 de crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 8 anos de prisão, portanto da mesma natureza daquele por que já havia cumprido pena de prisão.
Com o cometimento deste novo crime, em pleno período da suspensão da execução da pena decretada nestes autos, a arguida, por um lado, sujeitou-se a um destacado juízo de censura ético-jurídica com os actos, em si mesmos, que o consubstanciaram e com que demonstrou um absoluto alheamento pelo muito sensível bem jurídico protegido pelo mencionado ilícito, a saúde pública, e a prevenção dos prejuízos a esta causados pela difusão de produtos estupefacientes. Por outro lado, a arguida tripudiou clamorosamente o prognóstico favorável à suspensão da execução da pena que lhe foi imposta, que teve subjacente a fundada esperança de que a sua ressocialização poderia ser alcançada em liberdade e de que essa condenação ainda emergiria, por isso, como isolada, não obstante o seu pregresso percurso criminal, por este se inscrever, realmente, no respectivo passado. Tal vaticínio frustrou-se totalmente: a arguida encarregou-se de revelar, com o seu comportamento ulterior, uma verdadeira tendência para o crime, pois o cometimento do novo crime de tráfico de estupefacientes, com uma particular saliência jurídico-penal, no decurso do período de suspensão da execução da pena, não só não emerge como um facto isolado, como se encadeia numa sua patente indiferença pelas exigências formais decorrentes da lei, realizando, de novo, a sua tendência criminal para tal tipo de crimes.
A conduta da arguida revela-se ainda mais censurável, pois, não se pode olvidar que já havia sofrido uma pesada pena de prisão pela prática de um crime da mesma natureza, sendo que, como de forma precisa refere o Prof. Figueiredo Dias, «se a finalidade precípua desta pena de substituição é …a de afastar o delinquente da criminalidade…, então, o cometimento de um crime durante o período de suspensão é a circunstância que mais claramente pode pôr em causa o prognóstico favorável que a aplicação da pena de suspensão sempre supõe» (11).
Neste específico contexto, a nova condenação da arguida não é nada coerente com o juízo de prognose favorável à ressocialização da mesma em liberdade, dada a desconformidade ético-social que a arguida, entretanto, evidenciou, antes infirma, claramente, tal juízo e, por consequência, impõe a necessidade de cumprimento efectivo da pena de prisão.
Tudo ponderado, concluímos que a recorrente nos levou a desacreditar que a simples ameaça da pena de prisão a irá afastar da prática de novos crimes e que subsistam ainda fundadas expectativas da sua ressocialização em liberdade, tendo-se frustrado, como vimos, as expectativas que motivaram a concessão da suspensão decretada nestes autos. Constatação que prejudica a análise sobre a eventual imposição de novos deveres ou regras de conduta, embora não deixemos de observar que essa foi já uma solução anteriormente tentada [cf. item C)-2) supra], mas que a ora recorrente também se frustrar.

Improcede, pois, o recurso.

Decisão:

Pelo exposto, julgando improcedente o recurso, decide-se manter integralmente a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro UC´s.

Guimarães, 6 /11/2017

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado


1- Segundo o Ac. do STJ de 17-09-2014 (1015/07.3PULSB.L4.S1 - Armindo Monteiro), a «A fundamentação das sentenças judiciais é a forma que o legislador se serve para a sua explicação aos sujeitos processuais e aos cidadãos: através dela o julgador presta conta a ambos, proclama as razões de facto e de direito, por que optou por certa solução, ao fixar os factos e ao assentar neles o direito». Também Perfecto Ibañez, no estudo “Sobre a formação racional da convicção judicial”, publicado na Revista do CEJ, 1.º semestre, 2008, p. 167, citado no Ac. do STJ de 8-01-2014 (7/10.0TELSB.L1.S1 - Armindo Monteiro), considera que «motivar uma decisão é justificar a decisão por que se optou para que possa ser controlada tanto pelos seus destinatários directos como pelos demais cidadãos, apresentar de forma inteligível, lógica, coerente e racional, o “iter“ seguido no tratamento valorativo da prova».
2- a) Fazer uma solene advertência; b) Exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão; c) Impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano da reinserção; d) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de um ano nem por forma a exceder o prazo máximo de suspensão previsto no n.º 5 do artigo 50.º.
3- Ac. da RE de 25-09-2012 (413/04.9GEPTM.E1 - Ana Barata Brito).
4- Ac. da RC de 12-05-2010 (1803/05.5PTAVR.C1 - Jorge Jacob).
5- «A suspensão será sempre revogada se, durante o respectivo período, o condenado cometer crime doloso por que venha a ser punido com pena de prisão» (art. 51º do CP de 1982).
6- «A violação grosseira dos deveres ou regras de conduta impostos, de que se fala na alínea a), do n.º 1, do artigo 56º, do Código Penal, há-de constituir uma indesculpável actuação, em que o comum dos cidadãos não incorra e que não mereça ser tolerada nem desculpada; só a inconciliabilidade do incumprimento com a teleologia da suspensão da pena é que deve conduzir à respectiva revogação. Importa no entanto salientar que a infracção grosseira dos deveres que são impostos ao arguido não exige nem pressupõe necessariamente um comportamento doloso, bastando a infracção que seja o resultado de um comportamento censurável de descuido ou leviandade.» (Ac. da RC de 17/10/2012 (91/07.3IDCBR.C1 - Correia Pinto).
7- Ac. da RP de 02-12-2009 (425/06.8PTPRT.P1 e Ac. da RL de 23-04-2013 (90/01.9TBHRT-C.L1) - Jorge Gonçalves).
8- Citado ac. da RC de 12-05-2010. No mesmo sentido, o Ac. da RC de 11-09-2013 (20/10.7GCALD-B.C1 - Brízida Martins).
9- Citado ac. da RE de 25-09-2012.
10- Portanto, são visadas finalidades de prevenção geral e especial, não de compensação da culpa ou de retribuição do mal causado (neste sentido, Figueiredo Dias, “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, p. 331).
11- Figueiredo Dias. Ob. cit., pág. 355.