Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
390/17.6T9PTL.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: CRIME DE AMEAÇA AGRAVADA
NATUREZA PÚBLICA
DESISTÊNCIA DA QUEIXA
IRRELEVÂNCIA
ARTºS 155º
Nº 1 E 153º
NºS 1 E 2 DO CP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/25/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. O crime de ameaça agravada, previsto e punível pelos artigos 155.º, n.º 1 e 153.º, n.º 1 do Código Penal tem natureza pública.

II. A remissão feita pelo artigo 155.º, n.º 1 para o artigo 153.º, não abrange o seu n.º 2, que contém a disposição «o procedimento criminal depende de queixa», antes se cinge, tão só, aos «factos previstos» no citado preceito, ou seja, à previsão do n.º 1 onde se descrevem «factos».
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães
Secção Penal

Relatora: Fátima Furtado; adjunta: Maria José Matos.

No processo comum singular n.º 390/17.6T9PTL, do Juízo local de Competência Genérica de Ponte de Lima, Juiz 2, da comarca de Viana do Castelo, em que é arguida A. C., com os demais sinais dos autos, foi admitida a desistência de queixa apresentada pelos ofendidos/assistentes J. L. e O. P., e aceite pela arguida, relativamente aos dois crimes de ameaça agravada p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1, 155.º, n.º 1, al.) e 131.º do Código Penal, por despacho judicial proferido a 2 de outubro de 2018, com o seguinte teor (na parte a tal atinente):

«(…) E no que diz respeito ao crime de ameaça agravada, atenta a natureza pública ou semi- pública do mesmo, e uma vez que o Ministério Público não aceitou a desistência da queixa, o Tribunal mesmo assim entende que há lugar à referida desistência da queixa, uma vez que a natureza do crime contende exclusivamente com a própria liberdade e personalidade dos ofendidos e no que diz respeito aos arguidos esta atitude ou este comportamento passa só por a mera expressão de determinadas frases e palavras que mais se aproximam do tipo de ilícito do crime injúrias, sendo certo que a expressão "HEI-DE TE MATAR", por vezes não é suficiente para criar um mal futuro às pessoas visadas com a mesma expressão, e por isso, o Tribunal entende que mesmo assim há lugar à desistência da queixa.
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No que diz respeito aos pedidos civis, julga-se extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
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Custas criminais a cargo dos assistentes, que se fixam no mínimo, levando-se em consideração a taxa paga previamente pela constituição de assistente (que assim não se corrige nos termos do n.º1 do art.º 8.º do Regulamento das Custas Processuais).
Deposite (cfr. artigo 372º, nº5, do Código de Processo Penal).
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Sem custas cíveis - artº 4º, nº 1, al. n) do Regulamento das Custas Processuais.»
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Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:

1. «A arguida A. C. foi acusada pelo Ministério Público da prática, em autoria material e sob a forma consumada e em concurso real, nos termos do artigo 30.º, n.º 1 do Código Penal, de dois crimes de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1, 155.º, n.º 1 a) e 131.º todos do Código Penal.
2. Do estatuído nos artigos 48.º e 49.º do Código de Processo Penal, pode extrair-se a regra segundo a qual a legitimidade do Ministério Público para a promoção da acção penal só depende de queixa do ofendido, ou de outra pessoa a quem a lei reconheça o direito de a apresentar, nos casos em que exista uma disposição legal expressa que exija o preenchimento de tal requisito.
3. Nos demais casos, e abstraindo das situações em que é exigida acusação particular, a promoção do procedimento criminal tem carácter estritamente público.
4. Na exposição de motivos da lei 98/X, que deu origem à Lei 59/2007 de 4 de Setembro, expressa-se que «o crime de ameaça passa a ser qualificado em circunstâncias idênticas previstas para a coacção grave. Por conseguinte a ameaça é agravada quando se referir a crime punível com pena de prisão superior a três anos.
5. A evolução legislativa tem sido no sentido de punir de forma mais grave e/ou mais alargada a(s) conduta(s) do agente em situações em que o mal anunciado constitui (constituem) crime mais grave.
6. Neste caso, é pública a natureza procedimental do crime de ameaça agravada previsto e punido pelos artigos 153.º, nº1 e 155.º do Código Penal.
7. Por essa razão, a desistência da queixa pelos assistentes J. L. e O. P. não tem eficácia extintiva do procedimento criminal.
8. Na verdade, a natureza semipública de qualquer crime, não se presume. Tem que resultar expressamente da lei.
9. O silêncio da lei (ausência de disposição que preveja a necessidade de queixa) aponta indubitavelmente no sentido de que, atualmente, o crime de ameaça na forma agravada tem natureza pública, uma vez que não existe disposição que preveja a necessidade de queixa para os crimes de ameaça ou coação quando se verifique, como neste caso, a agravação prevista no artigo 155.º do Código Penal.
10. Nesta medida, a desistência da queixa relativamente ao crime de ameaça agravada é inoperante e, consequentemente, não poderia ser judicialmente homologada como foi.
11. A douta consideração de que os factos descritos na acusação pública formulada admitem a desistência de queixa, assim homologada em audiência de julgamento de 02.10.2018, representa não só uma quebra na unidade do sistema jurídico, como também uma renúncia à “justeza lógica” da ordem jurídica positiva global, uma vez que não valora e não aplica disposições penais vigentes no ordenamento jurídico.
12. Ao assim fazer, o douto despacho/sentença homologatória recorrida violou o disposto no artigo 153.º, n.º 1, 155.º, n.º 1, alínea a) e 131.º, todos do Código Penal e artigos 48.º, 49.º e 51.º, todos do Código de Processo Penal.

Sopesando, portanto, as razões alinhadas e os elementos constantes dos autos é possível concluir pela necessidade de revogação do despacho/sentença homologatório da desistência de queixa dos assistentes J. L. e O. P. no que aos crimes de ameaça agravado concerne, devendo o mesmo ser substituído por outro que revogue a sentença recorrida, na parte em que julgou válida e juridicamente relevante a desistência de queixa pelo crime de ameaça agravada e declarou extinto o procedimento criminal pelos factos imputados à arguida A. C. que se subsumem a prática desse ilícito, determinando o prosseguimento da acção penal com a realização do julgamento da arguida e apreciação do seu mérito, mormente, com a inquirição da testemunha E. M., melhor identificada a fls. 24 e indicada à matéria da acusação pública proferida pelos crimes de ameaça agravada.

Normas Violadas.

Artigo 153.º, n.º 1, 155.º, n.º 1, alínea a) e 131.º, todos do Código Penal e artigos 48.º, 49.º e 51.º, todos do Código de Processo Penal.»
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O recurso foi admitido para este Tribunal da relação de Guimarães, por despacho de 6 de novembro de 2018.
Não houve resposta ao recurso
Nesta Relação, a Ex.ma Senhora Procuradora Geral-adjunta emitiu douto parecer no sentido do provimento do recurso.
Foi cumprido o artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal).
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- Questão a decidir –

Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, a questão suscitada circunscreve-se à relevância da desistência de queixa e da sua eficácia extintiva do procedimento criminal pelo crime de ameaça agravada.
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APRECIAÇÃO DO RECURSO

A questão suscitada é a de saber se o crime de ameaça agravado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 155.º, nº 1 alínea a) e 153º, nº 1, do Código Penal, reveste natureza pública ou semipública, em ordem a avaliar sobre a eficácia extintiva do procedimento criminal relativamente às desistências de queixa formuladas nos autos pelos respetivos ofendidos e aceites pela arguida.
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São os seguintes, os elementos constantes dos autos com relevo para a decisão:

. Por despacho de 11 de janeiro de 2018, o Ministério Público deduziu acusação contra A. C., imputando-lhe a prática, como autora material, sob a forma consumada, e em concurso real, nos termos do artigo 30.º, n.º 1 do Código Penal, de dois crimes de ameaça agravada, previstos e puníveis pelos artigos 153.º n.º 1, 155.º n.º 1 alínea a) e 131.º, todos do Código Penal.
. A acusação foi recebida e designados os dias 1 e 2 de outubro de 2018, às 09.30 horas, como 1ª e 2ª datas para a realização da audiência, respetivamente.
. No dia 2 de outubro de 2018, no decurso da audiência, os ofendidos/assistentes J. L. e O. P. declararam – para além do mais – desistirem ambos da queixa quanto aos crimes de ameaça agravada, ao que a arguida A. C. declarou não se opor.
Na sequência do que foi proferido o despacho recorrido, já supra transcrito, que admitiu as desistências de queixa quanto àqueles crimes.
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Sendo estes os factos, vejamos agora o direito aplicável.

A promoção da ação penal não depende, em regra, de impulso do titular dos interesses protegidos pela incriminação, competindo ao Ministério Público promover o processo penal, segundo o princípio geral da oficialidade ou publicidade, nos termos do artigo 48.º do Código Processo Penal.

Porém, neste âmbito, a legitimidade do Ministério Público comporta as restrições decorrentes das regras dos artigos 49.º a 52.º do Código Processo Penal.

Uma dessas restrições é a de que, quando o procedimento criminal depender de queixa do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo (cfr. artigo 49.º).

Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, torna-se ainda necessário que, para além da queixa, o ofendido se constitua assistente e deduza acusação particular (cfr. o citado artigo 50º).

De tudo assim decorrendo, que face ao regime regra do artigo 48.º do Código de Processo Penal, a legitimidade do Ministério Público para promover a ação penal só depende de queixa do ofendido, ou de outra pessoa a quem a lei reconheça o direito de a apresentar, nos casos em que exista disposição legal expressa que exija o preenchimento de tal requisito.

Sendo que, nesses casos, mesmo depois de validamente instaurado o procedimento criminal, por haver queixa, a intervenção do Ministério Público cessa e o procedimento é declarado extinto se o ofendido apresentar nos autos desistência da queixa, até à publicação da sentença em 1ª instância e se não houver oposição por parte do arguido, após homologação pela entidade competente, em conformidade com as disposições conjugadas dos artigos 116.º n.º 2 do Código Penal e 51.º n.ºs 1 e 2 do Código Processo Penal.

Situação diversa ocorrendo quando o procedimento criminal tem natureza pública, ou seja, não está condicionado à apresentação da queixa, em que a desistência do procedimento por parte do ofendido não produz qualquer efeito quanto ao prosseguimento do processo criminal, conservando o Ministério Público a legitimidade para o promover.

Revertendo agora ao caso sub judice, logo se alcança que a questão da relevância da desistência apresentada pelos ofendidos/assistentes e aceite pelo arguido, tem de passar sempre pela natureza do crime de ameaça agravada em causa nos autos, previsto e punível pelos artigos 155.º, n.º 1 e 153.º, n.º 1 do Código Penal.

Ora, analisadas as disposições legais incriminadoras, não se confirma a existência de disposição legal que condicione a promoção do procedimento criminal pelo ilícito em causa à apresentação de queixa.

Na verdade, a relação existente entre o tipo de crime fundamental de ameaça e o agravado em nada se distingue daquela que se verifica em outros tipos de crime simples e qualificados, sendo unânime o entendimento de que a eventual exigência de queixa do tipo fundamental não se estende ao tipo qualificado, que é distinto daquele. É o que sucede, por exemplo, no caso dos crimes de furto simples e qualificado, previstos nos artigos 203.º e 204.º do Código Penal; nos crimes de ofensa à integridade física simples e qualificada, previstos nos artigos 143.º, 144.º e 145.º do Código Penal e nos crimes de dano simples e dano qualificado, previstos nos artigos 212.º e 213.º do Código Penal.

Assim, no tipo de crime de ameaça agravado, a remissão feita pelo artigo 155.º, n.º 1 para o artigo 153.º, não abrange o seu n.º 2, que contém a disposição «o procedimento criminal depende de queixa», antes se cinge, tão só, aos «factos previstos» no citado preceito, ou seja, à previsão do n.º 1 onde se descrevem «factos».

Efetivamente, é indubitável que a exigência de queixa do ofendido, como condição de procedimento criminal, não pode de modo algum ser considerada como um dos factos previstos no artigo 153.º a que a primeira parte do artigo 155.º, n.º1 alude expressamente.

Deste modo, a conduta delituosa que preenche conjuntamente os elementos exigidos no artigo 153.º n.º 1 e alguma das circunstâncias agravantes previstas no n.º 1 do artigo 155.º, ambos do Código Penal, integra o tipo de crime qualificado que é autónomo e distinto do tipo fundamental.

Como se sabe, na versão anterior à reforma de 2007, aprovada pela Lei nº 59/2007 de 4/9, a forma qualificada do crime de ameaça – decorrente da circunstância de a ameaça se reportar à prática de um crime punível com pena de prisão superior a 3 anos – estava abrangida na norma que previa a forma simples ou base do tipo legal, sendo então comum aos dois tipos de crime a natureza semipública do procedimento criminal. Entretanto, a alteração legislativa não se limitou a agrupar as circunstâncias agravantes fora do tipo fundamental, antes implicou expressa alteração do regime procedimental, passando a atribuir natureza pública ao procedimento criminal relativo ao crime qualificado.

As circunstâncias previstas no n.º 1 do artigo 155.º do Código Penal revelam mais acentuado desvalor da ação, introduzindo um acréscimo da ilicitude em relação ao tipo base ou fundamental, daí que a opção legislativa não tenha sido a de manter a natureza do tipo simples, uma vez que os interesses tutelados superam a vontade individual da vítima.

Aliás, precisamente no sentido da autonomia do crime de ameaça agravada, foi até já uniformizada jurisprudência pelo Acórdão do STJ n.º 7/2013, publicado no Diário da República nº 56, de 20.03.2013, I-A Série, nos seguintes termos:

«A ameaça de prática de qualquer um dos crimes previstos no n.º 1 do artigo 153.º do Código Penal, quando punível com pena de prisão superior a três anos, integra o crime de ameaça agravado da alínea a) do n.º 1 do artigo 155.º do mesmo diploma legal».

De tudo assim decorrendo, que a natureza pública do procedimento criminal quanto aos dois crimes de ameaça agravada imputados nos autos à arguida A. C., torna ineficaz a declaração de desistência de queixa dos respectivos ofendidos/assistentes J. L. e O. P., que não têm assim eficácia extintiva do respetivo procedimento criminal.

Não pode pois subsistir o despacho recorrido que admitiu e deu relevância às desistências de queixa relativamente aos crimes de ameaça agravada.

Procedendo o recurso.
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III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães, em conceder provimento ao recurso do Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho recorrido na parte em que admite e dá relevância às desistências de queixa apresentadas pelos ofendidos/assistentes J. L. e O. P. relativamente aos dois crimes de ameaça agravada imputados na acusação à arguida A. C., que deve ser substituído por outro que, considerando para esse efeito irrelevantes as desistências, ordene o normal prosseguimento dos autos quanto aos referidos crimes.
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Guimarães, 25 de fevereiro de 2019
(Elaborado e revisto pela relatora)