Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
97/05.7TBBRG.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: ABUSO DE DIREITO
ANATOCISMO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1) Para que se verifique o abuso de direito é necessário que o direito exista e seja legítimo, mas que o seu exercício seja feito em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito;
2) Se o apelante entende que o direito não existe, não pode invocar o seu exercício abusivo, dado que, para este fim, não o poderia negar ou, pelo menos, teria de, subsidiariamente, admitir que o direito pudesse existir, uma vez que que só há abuso se o direito tiver existência, o que não é o caso;
3) A proibição do anatocismo não é absoluta. Só o é em relação aos juros devidos por prazo inferior a um ano, pois quanto a outros pode o credor notificar judicialmente o devedor para os pagar ou capitalizar, passando, neste caso, os juros capitalizados a vencer juros, sendo que a proibição do anatocismo admite, além disso, duas exceções: uma é a do acordo posterior ao vencimento dos juros e a outra é a que prevê a existência de regras ou usos particulares do comércio.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A) Banco 1..., SA, veio intentar execução comum, para pagamento de quantia certa, contra AA e BB, dando como título executivo uma escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança, segundo a qual a exequente declarou conceder ao executado/mutuário um empréstimo da quantia de €53.620,77, importância de que este se confessou devedor e, para garantia desse empréstimo, juros e despesas o executado constituiu hipoteca sobre o imóvel em causa, a favor da exequente.
Aquela importância foi entregue ao executado/mutuário, que a recebeu e se obrigou a restituir à exequente em prestações mensais de capital e juros, tendo-a destinado à aquisição do imóvel identificado nessa escritura para a sua habitação própria e permanente.
O executado/fiador responsabilizou-se como fiador e principal pagador por tudo quanto seja devido à exequente, em consequência do aludido empréstimo, não tendo os executados cumprido as obrigações que assumiram naquele contrato, não tendo pago, nas datas dos respetivos vencimentos, nem posteriormente, as prestações a que se obrigaram para o reembolso do capital e juros, o que ocorre desde 28.10.2003, determinando assim, nessa data, o vencimento de toda a dívida.
Entende, assim, a exequente que tem, por isso, direito a haver o capital em dívida, os juros, vencidos e vincendos, até ao efetivo e integral pagamento, à taxa anual contratual de 10,246%, correspondente à taxa em vigor para as operações ativas de 8,246%, acrescida da sobretaxa de 2% a título de cláusula penal contados desde 29/10/2003.
Procedeu-se à citação pessoal do executado AA, tendo o executado BB sido citado editalmente, tendo esta citação sido anulada por preterição de formalidade imposta por lei, tendo-se procedido à citação por contacto pessoal deste posteriormente (a 15/10/2010, certidão junta aos autos a 12/01/2011).
Pelos executados não foi deduzida oposição.
Em 13/11/2020, foi o executado notificado da conta provisória final.
Tendo prosseguido os autos, veio o executado AA, (a 25/11/2020, ref. ...91) apresentar requerimento, denominado reclamação, onde conclui entendendo que “deve a reclamação ser julgada procedente e em consequência ordenar junto da Exª Srª Agente de Execução que proceda à elaboração de uma nova conta discriminativa, suprindo e retificando os erros supra apontados, seguindo-se os ulteriores termos legais.
No essencial, discorda o executado dos juros e da taxa de juros aplicada para o cálculo do montante em dívida.
A exequente Banco 1..., SA (Banco 1..., SA) veio pronunciar-se, entendendo que a Srª Agente de Execução deverá prestar os esclarecimentos necessários quanto ao cálculo dos juros e, em relação à taxa de juros aplicável a reclamação deverá ser indeferida.
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B) Foi proferido o despacho de 06/07/2022, onde consta:

Da reclamação apresentada pelos executados no passado dia 25-11-2020.
Os executados, na reclamação em apreço, entendem, em síntese, que a execução não poderá prosseguir os seus termos, como requerido pela exequente, porquanto a quantia exequenda está integralmente paga.
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A exequente pugnou pela improcedência da reclamação apresentada pelos executados.
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Cumpre decidir:

Como ensina o Prof. Teixeira de Sousa, in Acção Executiva Singular, pág. 63, o título executivo é o documento do qual resulta a exequibilidade de uma pretensão e, portanto, a possibilidade da realização coativa da correspondente prestação através de uma ação executiva.
Esse título incorpora o direito de execução, ou seja, o direito do credor a executar o património do devedor ou de um terceiro para obter a satisfação efetiva do seu direito à prestação.
Como é sabido, a força executiva conferida aos títulos taxativamente enumerados no C. P. Civil encontra o seu fundamento a final na relativa certeza da existência da obrigação que os mesmos documentam ao nível do direito substantivo, e "o risco que representa a possibilidade de ao título executivo não corresponder um direito efetivamente existente é coberto pela defesa que a lei permite ao executado exercer em oposição à execução" - Cfr. Prof. Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e especial, 3ª edição, 1977, pág. 46 e 47.

Pode, assim, dizer-se que o título executivo exerce uma tripla função:
- uma função delimitadora, por ser por ele que se determinam o fim e os limites, objetivos e subjetivos (neste caso também se diz que tem uma função de legitimação, por determinar quem tem legitimidade ativa e passiva), da ação executiva;
- uma função probatória, por se tratar de um (ou vários) documento(s) com uma determinada eficácia probatória.
- e uma função constitutiva, por atribuir exequibilidade a uma pretensão, permitindo a sua realização coerciva [Acórdão da Relação do Porto de 02-02-2010 in www.dgsi.pt].
No caso em apreço, foi apresentada à execução um documento autenticado, elaborado por um notário, que importa o reconhecimento de uma obrigação pecuniária por parte dos executados – cfr. extinto artigo 46.º, do C.P.C. e atual artigo 703.º, do C.P.C..
No respetivo requerimento executivo, como muito bem salientam os executados na reclamação, consta que “sobre o capital em divida acrescem os juros vencidos até efetivo e integral pagamento, à menciona a taxa anual contratual de 10,246%, contados desde 29.10.2003”; que “(…) os executados não cumpriram as obrigações que assumiram naquele contrato, não tendo ago, nas datas dos respetivos vencimentos, nem posteriormente, as prestações a que se obrigaram para o reembolso do capital e juros, o que ocorre desde 28.10.2003, determinando assim, nessa data, o vencimento de toda a divida“ e que “(…) a Exequente tem, por isso, direito a haver o capital em divida os juros, vencidos e vincendos, até ao efetivo e integral pagamento, à taxa anual contratual de 10,246%, correspondente à taxa em vigor para as operações ativas de 8,246%, acrescida da sobretaxa de 2%, a título de cláusula penal, contados desde 29.10.2003.”
Note-se que esta alegação da exequente no requerimento executivo reflete o teor das cláusulas contratuais inscritas no título executivo, nomeadamente, o teor das cláusulas 4º, 6º, 7º e 18º, do respetivo “documento complementar” que acompanha a escritura pública de compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança - cfr. fls. 22 e ss..
Acontece que o requerimento executivo não mereceu a oposição dos executados, o que significa que a obrigação se considera fixada nos termos do teor do requerimento executivo – cfr. artigo 716º, nº, 4, do C.P.C..
É, assim, indiscutível que não tendo os executados “contestado” a natureza e os limites impostos pelo título executivo, nomeadamente, a taxa de juros aí prevista e peticionada pela exequente, será esta a taxa a que deverá recorrer o agente de execução para realizar o cálculo da quantia exequenda – cfr. artigo 716º, nº 2 do C.P.C..
Neste contexto, apenas nos resta afirmar que a taxa de juro em crise só poderá ser a taxa de juros descrita pela exequente no requerimento executivo e que reflete as condições contratuais acordadas entre as partes.1
(1 Relativamente aos juros peticionados, e no que ao caso importa, estes têm uma natureza remuneratória e uma natureza moratória.
Os primeiros, os juros remuneratórios, têm uma finalidade remuneratória do capital, correspondente ao prazo do empréstimo do dinheiro pelo tempo que o credor se priva do capital por o ter cedido ao devedor por meio de mútuo, exigindo uma remuneração por essa cedência.
Os segundos, os juros moratórios, têm uma natureza indemnizatória dos danos causados pela mora, visando recompensar o devedor pelos prejuízos em virtude do retardamento no cumprimento da obrigação pelo devedor.
No caso, conforme resulta do teor das cláusulas inscritas no respetivo documento complementar anexo à escritura pública, celebrados ao abrigo do princípio da liberdade contratual e da eficácia dos contratos - cfr. artigos 405º e 406º, do Código Civil - fixou-se a taxa de juro que terá de ser aplicada em caso de incumprimento contratual, como aconteceu.
Tal regime contratualizado entre as partes é perfeitamente aceitável, à luz do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/2009 - http://dre.pt/pdf1s/2009/05/08600/0253002538.pdf.
Na verdade, tal aresto não inviabiliza o acordo das partes no que diz respeito à inclusão das prestações vencidas não só do respetivo capital como também dos respetivos juros remuneratórios.
Confere ainda neste sentido, decisão do STJ, datada de 22.2.2005, relatada pelo Exmo. Juiz Conselheiro Pinto Monteiro, “… tendo sido convencionado que a falta de pagamento de uma prestação na data do respetivo vencimento implica o imediato vencimento de todas as restantes, entendemos que é devida a totalidade pela importância global, não se justificando o abatimento de juros remuneratórios de prestações vencidas posteriormente à data do incumprimento – disponível in CJSTJ, Ano XIII, tomo I, pág. 87.
No mesmo sentido, vd. Acórdão da R.L., datado de 5.2.2002, relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Abrantes Geraldes, nos termos do qual, “… o conteúdo dessa responsabilidade deve buscar-se recorrendo ao regime legal supletivo. (…) Em matéria de juros remuneratórios, salvo convenção das partes, reconhece-se ao credor o direito de exigir uma taxa correspondente à taxa de juros remuneratórios acordada, acrescida da sobretaxa de 2% (…). O mutuário que faltou ao cumprimento de todas as prestações acordadas (…) pelo que todas as restantes passaram a ser exigíveis (…). O vencimento de todas as prestações repercutiu-se, não apenas, no capital mutuado, como ainda nos juros remuneratórios e outras despesas que entraram na composição do custo total do crédito a que se alude no DL nº 359/91 – disponível in CJ, Ano XXVII, tomo I, pág. 100.
Recentemente, publicou-se o decreto-lei n.º 58/2013, de 08 de maio, que visou fundamentalmente, alterar a matéria da “capitalização dos juros, permitindo, mediante convenção das partes, a capitalização dos juros remuneratórios, vencidos e não pagos, por períodos iguais ou superiores a um mês. No entanto, os juros remuneratórios que integram as prestações vencidas e não pagas só podem, relativamente a cada prestação, ser capitalizados uma única vez. Proíbe-se a capitalização de juros moratórios, exceto no âmbito de processos de reestruturação ou consolidação de créditos, casos em que as partes podem, por acordo, adicionar aos valores em dívida o montante de juros moratórios vencidos e não pagos. No que se refere à penalização aplicável em caso de mora, considera-se necessário simplificar o regime previsto no Decreto-Lei nº 344/78, de 17 de novembro, alterado pelos Decretos-Leis nºs 429/79, de 25 de outubro, 83/86, de 6 de maio, e 204/87, de 16 de maio, ao abrigo do qual era permitida a aplicação de juros moratórios ou, por convenção das partes, de uma cláusula penal, que apenas diferiam entre si na sobretaxa aplicável. Assim, consagra-se um regime uniforme, mais claro e transparente, sendo apenas aplicáveis, em caso de mora do cliente bancário, juros moratórios. Afasta-se, dessa forma, a fixação de cláusulas penais moratórias, o que não invalida, naturalmente, que as partes possam, nos termos gerais de direito, convencionar entre si a existência de cláusulas penais indemnizatórias, aplicáveis pelo incumprimento definitivo do contrato”.- Cfr. Preâmbulo do citado decreto-lei.
Por sua vez, importa ainda referi que a “capitalização de juros” consiste no pagamento de juros sobre outros juros - o juro é calculado com base no capital e no tempo, uma vez que o juro vencido em cada unidade de tempo se adiciona ao capital inicial vencendo também juro – e não está, de todo, afastada à luz do disposto no artigo 7º, do citado decreto-lei 58/2013, de 08 de maio.
Acresce que, desde o Aviso nº 3/93 de 20 de maio, do Banco de Portugal, que se pode afirmar que as taxas de juro bancárias se encontram liberalizadas, o que afasta, desde já, qualquer viabilidade para o apontado abuso de direito - cfr. neste sentido Ac. TRP, no processo nº 1041/10.5TBMCN, datado de 03-07-2012, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/24f38532499be7c580257a3f0033d2e5?OpenDocument.
No comércio bancário a capitalização de juros é, portanto, admissível, desde o Decreto-Lei nº 344/78, de 17 de novembro, e atualmente no Decreto-Lei nº 58/2013, de 8 de maio.)
Pelo exposto, atenta a “perícia contabilística” efetuada nos presentes autos, apenas nos resta indeferir a reclamação apresentada porquanto, como muito bem afirma a exequente, a quantia exequenda ainda não está liquidada.
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Custas do incidente, nos quais se incluem os honorários e despesas do Sr. Perito, a cargo dos executados, cuja taxa de justiça se fixa em 5 Ucs.
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Valor da causa: 58.104,42 euros.
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Notifique-se.
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C) Inconformado com esta decisão, veio o executado AA interpor recurso, que foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito devolutivo (ref. ...58).
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Nas alegações de recurso do apelante AA, são formuladas as seguintes conclusões:

I. O despacho de que ora se recorre, ao decidir como decidiu demitiu-se em absoluto de apreciar uma das questões suscitadas pelo executado, quer na reclamação de 25.11.2020 e da “nova reclamação” a saber da ilegalidade quanto à contabilização dos juros; do instituto do abuso de direito; e ainda da extemporaneidade da resposta da Ex.ma Sra. AE quanto ao esclarecimento dos juros – vide ainda do requerimento de 06-12-2021 Ref. citius ...43.
II. Na reclamação apresentada pelo Executado e que serve de base o despacho que ora se recorre o executado numa primeira linha de razões alegou que “a Ex.ma AE ao contabilizar juros de mora desde contados desde 17-10-2003, cai em erro manifesto uma vez que os juros sobre o capital em dívida – €51.872,24 já haviam sido calculados e liquidados pelo exequente desde 29.10.2003, e que à data de 30.12.2004 ascendiam já a quantia de 6.232,18,” concluindo que “assim a contagem dos juros sobre o capital em divida, à data da propositura da ação, deve ser feita à data de 31.12.2004 (e não da data aposta - 17-10-2003) pela AE na sua conta discriminativa que ora se reclama, o que se requer a necessária retificação por manifesta ilegalidade que se invoca para os legais efeitos”
III. Varejando o despacho que ora se recorre e que decide sobre a reclamação apresentada, constata-se que não existe qualquer pronúncia relativamente à ilegalidade arguida,
IV. É certo que e analisando a decisão aqui posta em causa, o tribunal a quo descarta-se do conhecimento aprofundado, não analisa criticamente ou melhor nada diz quanto aos fundamentos e ilegalidade arguida pelo executado.
V. Como decorre da lei, tanto nas sentenças como nos despachos o juiz está vinculado ao princípio da legalidade material, o que no caso vertente e de forma flagrante foi violado.
VI. Reza o artigo 154º do CPC que “1 - As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. 2 - A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.”
VII. O tribunal ao não fundamentar de forma condigna, não indicando, não interpretando ou apreciando as normas jurídicas correspondentes às ilegalidades arguidas pelo executado e ainda omitindo e demitindo-se da pronúncia quanto aos fundamentos invocados pelo Executado quanto à ilegalidade cometida pela Ema. AE, verifica-se uma omissão de pronúncia do tribunal a quo.
VIII. Ao decidir assim, ou melhor ao não decidir, violou o princípio da legalidade material art.º 607 nº 2, 3 e 4 do CPC, que acarreta nulidade da decisão que ora se recorre nos termos do art.º 615º d) do CPC, e que se argui para os legais efeitos.
IX. No que concerne ao abuso de direito invocado pelo Executado, mais uma vez o tribunal a quo demitiu-se de se pronunciar, ou seja, há uma omissão de pronúncia relativamente à ilegalidade arguida.
X. Em suma, do requerimento executivo dos presentes autos alega a exequente que o título que serve de base à presente ação executivo é “escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança celebrada no Cartório Notarial ..., a exequente declarou conceder ao executado/mutuário um empréstimo da quantia de €53.620,77 e que face ao incumprimento do mutuário o exequente resolveu contrato de mútuo e que face ao incumprimento peticionou juros vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento à taxa anual contratual de 10,246%, correspondente à taxa em vigor para as operações ativas de 8,246%, acrescida da sobretaxa de 2% a título de cláusula penal, contados desde 29.10.2003.”
XI. Por seu turno em sede de reclamação sobre que incidiu o douto despacho que ora se recorre o executado alega que a Exma. AE está a contabilizar juros desproporcionais porquanto não deverá ser aplicada a taxa de juros de mora convencionada, mas sim a taxa legal de juros comerciais em vigor
XII. Neste sentido o Acórdão do Tribunal de Relação de Coimbra processo 5755/19.3T8CBR-C.C1, de 28-05-2019, in www.dgsi.pt “no caso de resolução do contrato de mútuo por falta de pagamento de prestações e na ausência de normas contratuais em contrario, sendo o titulo executivo constituído pelo contrato de mútuo, celebrado entre entidade bancária como mutante e o devedor como mutuários, o mutuante apenas tem direito ao capital ainda em divida, aos juros contratuais vencidos e não pagos até à data de resolução e aos juros de mora vencidos após a resolução do contrato, estes à taxa prevista para os juros de mora comerciais “ (reprodução parcial do sumário).
XIII. Ademais tal como alegado em sede de reclamação de ato não se descortina do contrato de mútuo qualquer taxa de mora contratual fixada a vigorar para além da resolução do contrato por incumprimento definitivo, apenas para a mora para o contrato de mútuo ainda em vigor, vide cláusula 6ª do contrato de mútuo.
XIV. Relativamente a esta questão pronunciou-se o STJ pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 25 de março de 2009, nº 7/2009, (D.R. nº 86, Série I de 2009-05-05), no seguinte sentido “VII — De tudo o que precede, impõe-se destacar e articular os pontos ou premissas nucleares que suportam o entendimento amplamente maioritário senão mesmo uniforme deste Supremo Tribunal sobre a questão objeto do presente recurso de revista ampliada para uniformização de jurisprudência:

1) A obrigação de capital constitui nos contratos de mútuo oneroso, comercial ou bancário, liquidável em prestações, uma obrigação de prestação fracionada ou repartida, efetuando-se o seu cumprimento por partes, ter por objeto uma só prestação inicialmente estipulada, a realizar em frações;
2) Diversamente, os juros remuneratórios enquanto rendimento de uma obrigação de capital, proporcional ao valor desse mesmo capital e ao tempo pelo qual o mutuante dele está privado, cumpre a sua função na medida em que exista e enquanto exista a obrigação de capital;
3) A obrigação de juros remuneratórios só se vai vencendo à medida em que o tempo a faz nascer pela disponibilidade do capital;
4) Se o mutuante, face ao não pagamento de uma prestação, encurta o período de tempo pelo qual disponibilizou o capital e pretende recuperá-lo, de imediato e na totalidade o que subsistir, só receberá o capital emprestado e a remuneração desse empréstimo através dos juros, até ao momento em que o recuperar, por via do acionamento do mecanismo previsto no artigo 781º do Código Civil;
5) Não pode, assim, ver-se o mutuante investido no direito a receber juros remuneratórios do mutuário faltoso, porque tais juros se não venceram e, consequentemente, não existem;
6) O mutuante, caso opte pela perceção dos juros remuneratórios convencionados, terá de aguardar pelo decurso do tempo previsto para a duração do contrato e, como tal, abster-se de fazer uso da faculdade prevista no artigo 781º do Código Civil, por direta referência à lei ou a cláusula de teor idêntico inserida no contrato;
7) Prevalecendo-se do vencimento imediato, o ressarcimento do mutuante ficará confinado aos juros moratórios, conforme as taxas acordadas e com respeito ao seu limite legal e à cláusula penal que haja sido convencionada;
8) O artigo 781º do Código Civil e logo a cláusula que para ele remeta ou o reproduza tem apenas que ver com a capital emprestado, não com os juros remuneratórios, ainda que incorporados estes nas sucessivas prestações;
9) A razão de ser do mencionado preceito legal prende-se com a perda de confiança que se produz no mutuante/credor quanto ao cumprimento futuro da restituição do capital, face ao incumprimento da obrigação de pagamento das respetivas prestações;
10) As partes no âmbito da sua liberdade contratual podem convencionar, contudo, regime diferente do que resulta da mera aplicação do princípio definido no artigo 781º do Código Civil.”
XV. Acresce que, uma vez requerida perícia relativa à conta final da Exma. AE e posteriores esclarecimentos da perícia apresentada veio o Perito esclarecer que :“II – Entende o executado que não esclareci que a taxa de juro de mora aplicada pela Exma. Sra. Agente de Execução “não se afigura correta”. Em relação a esta questão, informo que não me foi solicitado qualquer parecer sobre a legalidade, ou não, da taxa de juro aplicável, e bem! Porque entendo que a questão da legalidade da taxa de juro apresentada é uma questão jurídica e não aritmética, assim entendo que o âmbito da minha peritagem deverá cingir-se aos cálculos e validação dos mesmos. De qualquer forma, pelos elementos que me foram fornecidos é primeira vez que o executado reclama a taxa de juro apresentado (10,246%), que confesso, gerou-me dúvidas, por considerar elevada para o financiamento em causa. Isto considerando que nos últimos 10 anos os mútuos de crédito habitação apresentam uma taxa de juro média inferior a 2%, e mais recentemente nos últimos 5 anos, apresentam uma taxa de juro em média, inferiores a 1%.
Nesta linha de raciocínio questionei o Banco de Portugal, sobre a legalidade da taxa de juro de 10,246%, mas lamentavelmente, não obtive uma resposta concreta a essa questão. É um facto que após análise do contrato de mútuo e documento complementar, nada é referido em termos de taxa de juro para o caso de incumprimento, apenas regula a taxa de juro do mútuo e taxa de juro em caso de mora. E também é um facto que, aparentemente, a taxa de juro (10,246%) utilizada pela Sra. Agente de Execução tem por base a taxa de juro de mora prevista no contrato de mútuo celebrado em 28-05-2001 e que foi resolvido em 28-10-2003. Reitero novamente que não me compete atestar a legalidade ou ilegalidade da utilização desta taxa de juro de mora (10,246%). III – Pela análise dos elementos fornecidos, efetivamente a resolução do contrato de mútuo ocorreu em 28-10-2003. IV, V, VI e VII – Reforço que não tenho competência para confirmar se é legal ou ilegal a aplicação da taxa de juro moratória acrescida de uma sobretaxa, ou se deve ou não aplicar a taxa de juro civil. Reforço que entendo que esta questão é jurídica e não financeira ou aritmética.
(…) Pela minha análise, a taxa de juro legal aplicável ao caso concreto é a prevista na Portaria 291/03 de 08-04-2003, que regula a taxa de juro legal civil em vigor desde 01-05-2003 até à presente data, assim, de acordo com a referida portaria a taxa de juro aplicável é de 4,00%. Considerando que a resolução do contrato ocorreu em 28-10-2003, ou seja, após entrada em vigor da Portaria 291/03, a taxa de juro legal de 4,00%, aplica-se a todo o período temporal do “Mapa de Juros” (…) Aspetos a destacar após o recálculo dos juros, considerando a taxa de juros de 4% ao invés de 10,246%: 1) À data de 10-03-2022, o executado deixa de ser devedor da quantia de €63.471,49, passando a ser credor da quantia de €12.247,72 (não considerando juros a seu favor), ou seja, considerando a taxa de juro de 4% o “devedor” liquidou integralmente dívida do processo no “pagamento” nº 188 em 10-12- 2019, tendo inclusive entregue a mais €122,84, por conseguinte, estes €122,84 e todas as entregas posteriores, não são devidas, sendo desta forma credor dessas quantias. Realço a verde o momento a partir do qual há entregas de quantias ao processo que não eram devidas. 2) A partir do pagamento nº 16 (ocorrido em 02-07-2011) a taxa de juro passa naturalmente a incidir sobre o capital em dívida nesse momento e posteriormente, e não sobre o capital em dívida inicial, uma vez que a quantia em dívida passa a mostrar-se inferior ao capital inicial. 3) A partir do pagamento nº 189 (01-01-2020), considero uma taxa de juro de 0%, uma vez que já não existe qualquer valor em dívida, apenas entregas indevidas. 4) Resumidamente, verificamos que o executado em 29-10-2003 era devedor da quantia de €51.872,24, à qual foram acrescidos juros desde essa data até 10-12-2019 no valor de €22.204,70, o que perfaz um total a pagar de €74.076,94. As entregas totais realizadas pelo executado até 10-03-2022 ascendem a €86.324,66, daqui resulta o saldo a favor do executado de €12.247,72.”
XVI. Confirmando deste modo a tese do executado de que tem sido aplicada uma taxa de juro remuneratória abusiva e desproporcional pela Exma. AE, configura-se nos presentes autos um abuso de direito nos termos do disposto do art. 334º do CC., o que se alega para os devidos efeitos e consequências legais.
XVII. Apesar de devidamente dissertado pelo executado a razão de existir um abuso de direito, o certo é que o tribunal a quo não se pronunciou relativamente a esta questão.
XVIII. Na verdade, apenas se verifica uma vasta exposição das legais consequências da não apresentação de oposição à execução, ignorando a perícia dos presentes autos e os argumentos aduzidos pelo executado e mais uma vez o tribunal a quo demitiu-se da sua função de apreciar todas as questões suscitadas no processo, tal como consignado no artigo 154º do CPC.
XIX. O tribunal ao não fundamentar de forma condigna, não indicando, não interpretando ou apreciando as normas jurídicas correspondentes às ilegalidades arguidas pelo executado.
XX. E ainda omitindo e demitindo-se da pronúncia quanto aos fundamentos invocados pelo Executado na RECLAMAÇAO DE 25-11-2020, na “NOVA RECLAMAÇAO” de 10-09-2021 ref. citius ...08 e alicerçados nos esclarecimentos prestados pelo Sr. Perito aos dias 14.06.2022, quanto à ilegalidade acometida nos presentes autos, verifica-se uma omissão de pronúncia do tribunal a quo.
XXI. Ao decidir assim, ou melhor ao não decidir, violou o princípio da legalidade material art.º 607 nº 2, 3 e 4 do CPC, que acarreta nulidade da decisão que ora se recorre nos termos do art.º 615 d) do CPC., e que se argui para os legais efeitos.

Termina entendendo que se deverá
- Admitir o presente recurso conhecendo das ilegalidades acometidas da decisão;
- Confirmando e pugnado pela procedência das tais apontadas ilegalidades;
- Ordenando a contabilização dos juros de mora à taxa legal civil tendo por assente os esclarecimentos prestados pelo Ex.mo Sr. perito aos dias 14.06.2022 revogando assim decisão da primeira instância.
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Não foi apresentada resposta.
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D) Foram colhidos os vistos legais.
E) As questões a decidir no recurso são as de saber:
1) Se a decisão recorrida é nula;
2) Se deverá ser alterada a taxa de juro acordada entre as partes, por configurar um abuso de direito, ou de anatocismo proibido.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede.
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B) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras (artigos 608º nº 2, 635º nº 2 e 3 e 639º nº 1 e 2, todos do NCPC).
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C) O apelante veio invocar omissão de pronúncia do tribunal a quo quanto aos requerimentos apresentados em 25/11/2020, 10/09/2021 e 06/12/2021, relativamente à ilegalidade cometida na contabilização dos juros, alegando que “a Ex.ma AE ao contabilizar juros de mora contados desde 17-10-2003, cai em erro manifesto uma vez que os juros sobre o capital em dívida – €51.872,24 já haviam sido calculados e liquidados pelo exequente desde 29.10.2003, e que à data de 30.12.2004 ascendiam já a quantia de €6.232,18,” concluindo que “assim a contagem dos juros sobre o capital em dívida, à data da propositura da ação, deve ser feita à data de 31.12.2004 (e não da data aposta - 17-10-2003) pela AE na sua conta discriminativa que ora se reclama, o que se requer a necessária retificação por manifesta ilegalidade que se invoca para os legais efeitos”.
Estabelece o artigo 615º nº 1 alínea d) NCPC que é nula a sentença quando ( … ) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
A propósito da referida nulidade, conforme se refere no Código de Processo Civil anotado, Volume 2º, 3ª Edição, dos Drs. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, a páginas 737, “devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (artigo 608º nº 2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado.”
Como se refere no Código de Processo Civil anotado, Vol. I, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, a páginas 764, “… é pacífica a jurisprudência que o dever de decidir tem por referência as questões suscitadas e bem assim as questões de conhecimento oficioso, mas que não obriga a que se incida sobre todos os argumentos, pois que estes não se confundem com “questões” (STJ 27-3-14, 555/2002). Para determinar se existe omissão de pronúncia há que interpretar a sentença na sua totalidade, articulando fundamentação e decisão (STJ 23-1-19, 4568/13).”
Vejamos.
Como se referiu, nas suas alegações o apelante suscita a omissão de pronúncia do tribunal quanto à contabilização de juros referindo que “a Ex.ma AE ao contabilizar juros de mora contados desde 17-10-2003, cai em erro manifesto uma vez que os juros sobre o capital em divida – €51.872,24 já haviam sido calculados e liquidados pelo exequente desde 29.10.2003, e que à data de 30.12.2004 ascendiam já a quantia de €6.232,18,” concluindo que “assim a contagem dos juros sobre o capital em dívida, à data da propositura da ação, deve ser feita à data de 31.12.2004 (e não da data aposta - 17-10-2003) pela AE na sua conta discriminativa que ora se reclama”.
Mas não tem razão, dado que o tribunal a quo apreciou e decidiu tal matéria na nota (1) constante do despacho recorrido onde, inclusivamente cita jurisprudência do STJ e da Relação de Lisboa que sustentam a tese que defende, assim considerando a legalidade da contabilização dos juros, referindo, no texto, “que a taxa de juro em crise só poderá ser a taxa de juros descrita pela exequente no requerimento executivo e que reflete as condições contratuais acordadas entre as partes.”
Termos em que, mostrando-se apreciada e fundamentada a decisão recorrida, se indefere a invocada nulidade e consequente retificação.
Refere ainda o apelante que o tribunal a quo se demitiu de conhecer da questão do instituto do abuso de direito.
Importa notar que a questão do abuso de direito foi colocada pelo apelante nos seguintes exatos termos:
“E-Para além do mais e se olharmos para o valor global dos juros imputados na conta apresentada pela Ex.ma AE, deparamo-nos com um valor equiparado ao valor da quantia exequenda, esta que, entretanto foi sendo paga por penhoras diversas ao logo destes anos todos, o que deveras nos transpõe para o instituto do abuso do direito por ser contraria à lei, e de manifesta gravidade por exceder manifestamente os limites da boa fé.
F- Na verdade e segundo reza o art.º 334º do CC, «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
G- Abuso de direito que se invoca para os legais efeitos.”
Há que dizer que efetivamente o tribunal a quo não apreciou a questão do abuso de direito, não obstante a ausência de justificação da verificação dos respetivos requisitos.
Com efeito, não basta dizer quais os requisitos do abuso de direito ou reproduzir o artigo 334º nº 1 do Código Civil para se concluir pela verificação de tal instituto, sendo indispensável que justifiquem as razões pelas quais se deve considerar que tenha havido abuso de direito e sejam procedentes, o que não é o caso.
No entanto, o tribunal a quo limitou-se a omitir a pronúncia relativamente ao abuso de direito e, nessa medida a decisão, nessa parte, é nula, sendo que lhe seria imposto que se pronunciasse expressamente sobre tal matéria, como acabamos de fazer.
De resto, “conforme se pode ler no Acórdão do STJ de 02/07/96, no site da DGSI, no endereço www.dgsi.pt, “segundo o artigo 334º do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico dum direito.
Esta complexa figura do abuso de direito é uma válvula de segurança, uma das cláusulas gerais, de janelas por onde podem circular lufadas de ar fresco, com que o julgador pode obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido (Manuel Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 1958, 63 e seguintes; Almeida Costa Direito das Obrigações, 3ª edição, 60 e seguintes; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 4ª edição, 299; Antunes Varela, Comunicação à Assembleia Nacional em 26 de novembro de 1966).
Manuel de Andrade acrescentou ainda “grosso modo” existirá tal abuso quando, admitido um certo direito como válido, isto é, não só legal, mas também legítimo e razoável, em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito (loc. cit.).
Por sua vez, Antunes Varela esclareceu que o abuso de direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjetivo e que se designa por abuso de direito o exercício de um poder formal realmente conferido pela ordem jurídica a certa pessoa, mas em absoluta contradição seja com o fim (económico ou social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa-fé e bons costumes) que, em cada época histórica, envolve o seu conhecimento (R.L.J. 114, página 75) e, por outro lado, não se esqueceu de salientar que a condenação do abuso de direito, a ajuizar pelos termos do dito artigo 334º, “aponta de modo inequívoco para as situações concretas em que é clamorosa, sensível, evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjetivo, de carga essencialmente formal, e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou, pelo menos, dos direitos de certo tipo” (R.L.J. 128, página 241).
E há que ter presente que o atual Código Civil consagrou a conceção objetivista do abuso de direito e por isso não é necessário a consciência malévola, a consciência de se excederem, com o abuso de direito, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, bastando que sejam excedidos esses limites, muito embora a intenção com que o titular do direito tenha agido não deixa de contribuir para a questão de saber se há ou não abuso de direito (Almeida Costa, loc. cit., Pires de Lima e Antunes Varela, loc. cit.).”
Aqui chegados, duas conclusões se podem tirar: a primeira é que existe uma manifesta contradição nos termos alegados pelo apelante, por um lado, porque sustenta a ilegalidade da contabilização e cobrança dos juros e, por outro, porque afirma que existe abuso de direito.
Ora, como acima se referiu para que se verifique o abuso de direito é necessário que o direito exista e seja legítimo, mas que o seu exercício seja feito em termos “clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito”.
Se o apelante entende que o direito não existe, não pode invocar o seu exercício abusivo, dado que para este fim, não o poderia negar ou pelo menos teria de, subsidiariamente, admitir que o direito pudesse existir uma vez que que só há abuso se o direito tiver existência, o que não é o caso.
De qualquer forma, como acima se referiu, não se mostra minimamente justificada a alegação e, menos ainda, demonstrada a factualidade concreta que permitisse considerar-se a existência de uma situação de abuso de direito, motivo pelo qual a pretensão terá de improceder.
Quanto à extemporaneidade da resposta da Srª AE quanto ao esclarecimento dos juros, a mesma foi dada, sendo certo que não se mostra que tenha sido proferida, para além de qualquer prazo que lhe tenha sido fixado, motivo pelo qual, improcede a pretensão.
Refere ainda o apelante a omissão de pronúncia na nova reclamação de 10/09/2021, relativamente à ilegalidade da contabilização de juros por manifesto abuso de direito, reclamação esta em que o apelante reproduz ipsis verbis o requerimento que apresentou em 25/11/2020, onde entende que é ilegal a contabilização dos juros por abuso de direito.
Ora, o requerimento de 25/11/2020, acabou de ser apreciado, pelo que, naturalmente que a apreciação e conclusão se mantêm.
Refere ainda neste requerimento o apelante que no mapa de juros que a Srª AE juntou que se constata que que se obtêm juros através de valor em dívida no qual já estão contabilizados juros vencidos, isto é, de anatocismo, que é proibido.
A este propósito, duas notas a que importa atentar.
A primeira é que não é exatamente assim.
Com efeito, como referem os Professores Pires de Lima e Antunes Varela no Código Civil anotado, Vol. I, 1982, em anotação ao artigo 560º, “a proibição do anatocismo não é absoluta. Só o é em relação aos juros devidos por prazo inferior a um ano, pois quanto a outros pode o credor notificar judicialmente o devedor para os pagar ou capitalizar, passando, neste caso, os juros capitalizados a vencer juros (nºs 1 e 2).
A proibição do anatocismo admite, além disso, duas exceções: uma é a do acordo posterior ao vencimento dos juros.
( … )
A segunda exceção é a formulada no nº 3, que prevê a existência de regras ou usos particulares do comércio ...”
De resto, o artigo 7º do Decreto-Lei nº 58/2013, de 08/05, que estabelece as normas aplicáveis à classificação e contagem do prazo das operações de crédito, aos juros remuneratórios, à capitalização de juros e à mora do devedor, expressamente permite a capitalização de juros, devendo ainda atender-se ao que consta da escritura pública, bem como às cláusulas 3ª, 4ª, 6ª, 7ª e 18ª constantes do documento complementar à referida escritura.
A segunda nota que importa esclarecer é que não se divisa a existência de quaisquer juros sobre juros, isto é, de qualquer anatocismo, pelo que a pretensão improcede.
Relativamente à questão do montante da taxa de juro devida, sustenta o apelante que não se descortina do contrato de mútuo qualquer taxa de mora contratual fixada a vigorar para além da resolução do contrato por incumprimento definitivo, devendo a taxa de juro fixada ser a corresponde à taxa legal de juros de mora de 4%.
A ser assim, estaríamos perante uma situação, que em termos futebolísticos se designa como de “benefício ao infrator”.
Isto é, estando fixada contratualmente uma determinada taxa de juros, de 8,246%, acrescida de sobretaxa de 2%, a título de cláusula penal, no montante total de 10,246%, enquanto não houvesse incumprimento definitivo, verificado este, ficaria o devedor automaticamente beneficiado face à obrigação de ter de suportar apenas uma taxa de 4%, o que constituiria, ou poderia constituir, um incentivo ao incumprimento definitivo de devedores que estivessem em situação de mora, importando ter-se em consideração o montante fixado relativamente à taxa de juros devida, pelo que improcede a pretensão.
De resto, importa ter em consideração que por força do disposto no artigo 716º nº 4 NCPC, face à inexistência de qualquer oposição, a obrigação se encontra fixada, nos termos do requerimento executivo, o que se aplica, também, quanto à taxa de juro devida.
Quanto à reafirmação da existência de abuso de direito, remetemos para as anteriores considerações que mantemos e que determinam a improcedência da pretensão.
Por todo o exposto, inexistindo a violação de quaisquer das normas indicadas, sem necessidade de ulteriores considerações, resulta que a apelação terá de improceder e, em consequência, confirmar-se a douta decisão recorrida.
Face ao total decaimento da pretensão do apelante, sobre o mesmo recai o encargo de suportar o pagamento das custas (artigo 527º nº 1 e 2 NCPC).
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III. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a douta decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Notifique.
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Guimarães, 12/01/2023

Relator: António Figueiredo de Almeida
1ª Adjunta: Desembargadora Maria Cristina Cerdeira
2ª Adjunta: Desembargadora Raquel Baptista Tavares