Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2585/18.6T8VCT.G1
Relator: VERA SOTTOMAYOR
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
ENFARTE DO MIOCÁRDIO
DOENÇA NATURAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I - É acidente de trabalho o evento súbito e imprevisto, que provoque lesão na saúde ou na integridade física do trabalhador, que ocorra no tempo e no local de trabalho, ou por ocasião do trabalho.
II – Não é de qualificar como acidente de trabalho o evento que consistiu no facto do Autor ter sentido uma dor forte no peito quando se encontrava no tempo e no local de trabalho, por não se ter provado qualquer causa exogénea causadora da mesma, antes se provando que tal tem natureza orgânica, relacionada com doença do coração de que padece.

Vera Sottomayor
Decisão Texto Integral:
APELANTE: A. L.
APELADOS: X – SEGUROS GERAIS, S.A.

Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo do Trabalho de Viana do Castelo – Juiz 2

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

Frustrada a tentativa de conciliação, A. L., residente na Rua …, …, Viana do Castelo, instaurou a presente acção especial emergente de acidente de trabalho contra “X – SEGUROS GERAIS, S.A.”, com sede na Rua …, Lisboa e pede a condenação da Ré no pagamento:

a) Da pensão anual obrigatoriamente remível, que vier a ser fixado, com início no dia 13/01/2019;
b) A indemnização por ITA desde 07/08/2017 até 20/05/2018, e de 22/10/2018 a 13/01/2019;
c) Despesas médicas: €535,95;
d) Despesas medicamentosas: €857,65;
e) Despesas com internamento hospitalar: €3.998,06;
f) Despesas com deslocações (combustível e portagens): €1.039,11;
g) Subsídio de elevada incapacidade, a fixar nos termos do previsto no artigo 67 do RRATDP, em função do grau de incapacidade que lhe vier a ser fixado,
h) Juros de mora vencidos e vincendos sobre todas as quantias reclamadas, calculados à taxa de 4%;
i) Nas custas e demais acréscimos legais.
Tal como resulta da sentença recorrida, alega, em síntese, que foi vítima de um enfarte agudo do miocárdio, no dia 7 de Agosto de 2017, pelas 6 horas, quando prestava a actividade de encarregado de 1.ª, sob as ordens, direcção e fiscalização da entidade patronal, o que lhe determinou, directa e necessariamente, as lesões descritas nos autos. Esteve internado, adquiriu medicamentos, deslocou-se a hospitais, ao Tribunal e ao GML.
*
Foi deduzido pedido de reembolso pelo “Centro Distrital ... do Instituto de Segurança Social, IP,” contra a Ré, no montante de €7.212,29, referentes ao subsídio de doença pagos ao Autor.
*
Regularmente citada, a ré contestou.
A Ré seguradora declinou a responsabilidade pela reparação do acidente e para tanto alega que o Autor não sofreu qualquer acidente de trabalho, mas antes sofreu um episódio de doença natural.
Conclui assim pela improcedência da acção.
Os Autos prosseguiram os seus normais trâmites, tendo sido proferida decisão no apenso de fixação de incapacidade para o trabalho da qual resulta que o A. se encontra curado, com uma IPP de 15,00% e que esteve com ITA de 8 de Agosto de 2017 a 5 de Junho de 2018 (302 dias).

Realizada a audiência de julgamento veio a ser proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente e que terminou com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto, o Tribunal decide julgar totalmente improcedente a presente acção e, em consequência, absolver a Ré dos pedidos formulados pelo Autor e pelo “Centro Distrital ... do Instituto de Segurança Social, IP”.
Custas pelo Autor e CDVC (isento).
Valor da acção: o indicado pelo Autor.
Registe e notifique.”
*
O Autor inconformado interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões, depois de aperfeiçoadas:

1- Vem o presente recurso interposto da sentença que considerou improcedente a ação interposta pelo A., por considerar não provada a ocorrência de um acidente de trabalho, salvo o devido respeito, o Tribunal recorrido não fez justiça!
2- A sentença considerou como provados os seguintes factos:
(…)
3- A sentença proferida considerou ainda como não provado os seguintes factos:
(…)
4- O tribunal a quo considerou como não provada a ocorrência de um acidente de trabalho, interpretação com a qual o aqui recorrente não se pode conformar, uma vez que a responsabilidade objetiva emergente de acidentes de trabalho, baseia-se no risco que é inerente ao exercício de qualquer e toda a atividade profissional, fazendo recair sobre os empregadores, que com ela beneficiam, a obrigação de reparar os danos correspondentes e nos termos do artigo 10º da NLAT o conceito de acidente de trabalho surge delimitado como sendo aquele que se verifica no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
7- O evento em consequência do qual o A. veio a sofrer um enfarte agudo do miocárdio ocorreu no tempo e no local de trabalho, conforme consta da matéria de facto provada sob os pontos 2), 3) e 4), tendo ficado provado que o mesmo deveu-se a causas exógenas relacionadas com o contexto de trabalho e adversidades a que o A. estava sujeito enquanto desempenhava a sua atividade profissional, e que precipitaram a sua ocorrência, devendo ser qualificado como acidente de trabalho.
8- Como uniformemente tem sido defendido pelo Supremo Tribunal de Justiça, designadamente no acórdão de 01/06/17 e sustentado pela generalidade da doutrina, a presunção de causalidade, estabelecida no citado artigo 10º tem apenas o alcance de libertar os sinistrados ou os seus beneficiários da prova do nexo de causalidade entre o acidente e o dano físico ou psíquico reconhecido na sequência do evento infortunístico, não os libertando, do ónus de provar a verificação do próprio evento causador das lesões.
9- No caso em apreço, resultam que ocorreram algumas circunstâncias que exteriormente vieram a determinar ou causar um enfarte agudo do miocárdio ao aqui recorrente, sendo que o enfarte agudo do miocárdio ocorreu devido ao esforço excessivo levado a cabo pelo A., ao subir as escadas para o 12º andar do prédio, conjugado com o calor intenso que se fazia sentir, associado ainda ao elevado stress, relacionado com a atividade laboral, a gestão do pessoal e a natureza das suas funções de encarregado de obra no Gana.
10- De acordo com os factos provados sob os nºs 2 a 7º da matéria de facto, ficou estabelecida a relação entre a atividade laboral que o sinistrado na altura desempenhava, e a lesão sofrida pelo sinistrado - enfarte agudo do miocárdio.
11- O enfarte agudo do miocárdio foi precipitado por uma causa estranha à constituição orgânica do sinistrado, que se manifestou de modo súbito e violento (intenso esforço físico que a sua atividade profissional lhe exigiu ao subir as escadas para o 12º andar do prédio e intenso calor (causa exógena), associado ao stress diário que a atividade profissional lhe provocava.
12- Atente à prova produzida, o Tribunal a quo deveria o ter considerado provado que: “O enfarte agudo do miocárdio ocorreu devido ao esforço excessivo levado a cabo pelo A., ao subir as escadas para o 12º andar do prédio, conjugado com o calor intenso que se fazia sentir, associado ainda ao elevado stress, relacionado com a atividade laboral, a gestão do pessoal e a natureza das suas funções de encarregado de obra.”
13- De acordo com a matéria de facto dada como provada, e ainda de acordo com o depoimento prestado pelo Perito Médico C. L., no dia 29-01-2021, de minutos 14:45’ a minutos 15:35’, de minutos 15:45 a minutos 18:52’, de minutos 19:06’ a minutos 19:56’, deveria o Tribunal a quo ter considerado que existe assim uma relação directa entre a lesão que provocou o enfarte do miocárdio ao A. e o desenvolvimento da sua actividade profissional já que foi o stress, o esforço físico (causa exógena) que despendia na altura que foi precipitante do enfarte.
14- Assim sendo, o enfarte do miocárdio ocorreu porque o sinistrado se encontrava num circunstancialismo de tal ordem adverso: local em que se encontrava, dificuldades na comunicação, responsabilidade pela gestão da obra e do pessoal, insónias, cansaço, stress, esforço físico, calor, que precipitou o desenvolvimento e ocorrênncia do enfarte do miocárdio.
15- Assim, afigura-se-nos configurar como acidente de trabalho, ao abrigo do art.° 6 da Lei n.° 100/97, o enfarte do miocárdio, por se ter apurado que foi precipitada por causas exógenas, que a sua actividade profissional específica na altura lhe exigiu, e que foi potenciador do surgimento do enfarte do miocárdio.
16- Resultou provado que todas as circunstâncias específicas do caso do A. foram determinantes na produção do enfarte, e que a relação de trabalho foi determinante no resultado verificado que assim deveria merece a protecção do regime jurídico dos acidentes de trabalho.
17 - Assim, analisada a prova produzida em sede de audiência e discussão de julgamento, o tribunal a quo julgou incorretamente o facto 1) como não provado, considerando que o enfarte do miocárdio sofrido pelo sinistrado no doa 7/08/2017 não se tratou de um acidente de trabalho, e deveria ter incluído na matéria de facto provada que:
- O enfarte agudo do miocárdio ocorreu devido ao esforço excessivo levado a cabo pelo A., ao subir as escadas para o 12º andar do prédio, conjugado com o calor intenso que se fazia sentir, associado ainda ao elevado stress, relacionado com a atividade laboral, a gestão do pessoal e a natureza das suas funções de encarregado de obra, o que constitui acidente de trabalho”
19- Conforme se referiu, retira-se do depoimento prestado pelo perito Dr. C. L., que tendo em conta o circunstancialismo concreto em que o A. sofreu o enfarte, todo o contexto laboral, todas as causas exógenas relatadas despoletaram o enfarte do miocárdio e além disso, o referido perito médico, acompanhou o A. como médico assistente após o regresso do A. a Portugal, e por isso conhecedor da realidade particular em que o evento ocorreu.
20º Pelo exposto, tendo em conta este depoimento, profissional, isento, não podia o Tribunal a quo afastar a possibilidade do evento em causa constituir um acidente de trabalho, já que constitui de facto um evento súbito e imprevisto, que provocou lesão na saúde ou na integridade física do trabalhador, e que ocorreu no tempo e no local de trabalho, por causa do trabalho.
21- Além disso, não podia o Tribunal a quo ignorar todas as causas exógenas ao evento e que contribuíram e foram determinantes para a sua produção, até porque o Tribunal a quo deu como provado, através do depoimento prestado pela testemunha J. P., V. R. e J. V., as condições de trabalho existentes, o elevado stress, as funções acumuladas do Autor, etc…
22- Ao decidir em contrário, à matéria de facto alegada e provada em audiência de julgamento, a sentença violou por erro na apreciação da prova o disposto no artigo 662, n.º 1 do NCPC, a legitimar a modificação da decisão sobre a matéria de facto.
23º - O Tribunal a quo considerou que não existiu acidente de trabalho, verificando-se a descaracterização do acidente, considerando que o enfarte de miocárdio é uma doença natural.
24- Para fundamentar a sua decisão, vem o tribunal a quo referir que:
(…)
25 - ora entende o aqui recorrente que existindo a presunção da existência de acidentes de trabalho nos termos do nº 1 do artº 8 da Lei 98/2003 de 4 Setembro e além disso, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vai no sentido de que o esforço físico despendido pelo trabalhador na execução das suas tarefas aumenta e muito o risco de doença súbita, cuja causa é bem conhecida e não é nada natural, conforme vem perfilhado no Acórdão do STJ de 30-06-2011 Recurso n.º 383/04.3TTGMR.L1.S1 - 4.ª Secção Pereira Rodrigues (Relator)* Pinto Hespanhol Fernandes da Silva e no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 04/10/2017.
26- A douta Sentença aqui recorrida não teve pois em consideração todos os eventos/factos no despoletar do enfarte do miocárdio, bem como a referida Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, e entende ainda o aqui recorrente que deveria o tribunal a considerar todas as circunstâncias que constam da matéria de facto provada para a ocorrência do enfarte do miocárdio que o A. sofreu.
27- Ora havendo matéria de facto que permita averiguar da existência do acidente de trabalho do sinistrado e sem necessidade de mais considerações, conclui-se que a sentença recorrida, ao julgar improcedente a presenta acção não interpretou nem aplicou, nomeadamente, os arts. O artigo 10º da NLAT, artigo 284.º do Código do Trabalho, e o Artigo 8.º n.º 1 da Lei 98/2009 de 4 de Setembro.
Termina peticionando a revogação da sentença recorrida com a sua substituição por outra que julgue o peticionado totalmente procedente.
A Ré Seguradora apresentou resposta ao recurso pugnando pela sua improcedência.
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Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, pelo Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.
Notificadas do teor de tal parecer veio a Recorrente/Apelante responder, manifestando a sua discordância com o parecer emitido e pugnando pela procedência do recurso por si interposto.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II - OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões da recorrente (artigos 608.º n.º 2º, 635.º nº 4 e 639.º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil), não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso, que aqui se não detetam, colocam-se à apreciação deste Tribunal da Relação as seguintes questões:
- Da impugnação da matéria de facto;
- Da impugnação da decisão de direito
Da qualificação do acidente como de trabalho

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Estão provados os seguintes factos:
1. O Autor nasceu a - de Abril de 1972.
2. No dia - de Agosto de 2017 o A. trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização da “Constru..., Lda”, como auxiliar encarregado de 1ª, mediante a retribuição anual de Euros 13.080,34.
3. No dia 7 de Agosto de 2017, no Gana, numa obra de construção civil, o A. quando estava numa reunião com os funcionários a fazer a distribuição diária do serviço, no âmbito da sua actividade ao serviço da “Constru..., Lda”, sofreu dores muito fortes no peito.
4. No dia 7 de Agosto de 2017, pelas 6h, no Gana, o Autor sofreu um enfarte agudo do miocárdio.
5. O Autor estava permanentemente disponível, preocupando-se diariamente com a gestão do pessoal da obra, que era muito difícil.
6. O Autor era ainda responsável pela logística das compras e alimentação de 12 funcionários.
7. O Autor para o desempenho das suas funções necessitava de subir e descer várias vezes ao dia os lances de escada que levavam ao 12º andar do prédio em obra, debaixo de elevadas temperaturas.
8. O escritório do dono da obra “ficava desviado da obra”.
9. O Autor tinha de se deslocar ao escritório do dono da obra.
10. As sequelas que o A. apresenta são o resultado do enfarte referido em 4).
11. O A. despendeu em despesas médicas Euros 230,14, em despesa medicamentosas Euros 480,84, em despesas hospitalares Euros 3.998,06 e em despesas com deslocações Euros 887,33.
12. O A., antes do evento em análise, já padecia de obesidade, hipertensão, dislipidemia e era fumador (40 cigarros/ dia).
13. A “Constru..., Lda” havia celebrado com a R. seguradora contrato de seguro do ramo de acidente de trabalho, com a apólice n.º …….06, que abrangia o Autor pela remuneração anual referida em 2).
14. O Autor recebeu do Centro Distrital ..., Instituto de Segurança Social, IP, a título de subsídio de doença directa, pelo período de baixa médica de 07 de Agosto de 2017 a 13 de Janeiro de 2019, Euros 7.212,29.
Não resultaram provados os seguintes factos:
1. As sequelas que o A. apresenta são o resultado dos eventos referidos de 2) a 6).
2. O A., em data anterior a 7 de Agosto de 2017, já tinha sofrido de um enfarte agudo do miocárdio.
3. O A. despendeu em despesas médicas Euros 535,95, em despesa medicamentosas Euros 857,65 e em despesas com deslocações Euros 1.039,11.

IV - APRECIAÇÃO DO RECURSO

1 - Da impugnação da matéria de facto

O Recorrente nas suas conclusões, mais precisamente nas enumeradas em 12, 13, 17, 19 a 22 defende que a decisão proferida pela 1ª instância sobre a matéria de facto foi incorrectamente julgada, sustentando que a redacção do ponto 1 dos pontos de facto não provados deve ser alterada dando como provado o seguinte facto:

- O enfarte agudo do miocárdio ocorreu devido ao esforço excessivo levado a cabo pelo A., ao subir as escadas para o 12º andar do prédio, conjugado com o calor intenso que se fazia sentir, associado ainda ao elevado stress, relacionado com a atividade laboral, a gestão do pessoal e a natureza das suas funções de encarregado de obra, o que constitui acidente de trabalho”
Indica como meio de prova para fundamentar a sua pretensão o depoimento prestado pelo Perito Médico por si indicado, que participou na Junta Médica e que prestou esclarecimentos em sede de audiência de julgamento.
Por força do art.º 87.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho, importa atentar no disposto no art.º 662.º do Código de Processo Civil, que, sob a epígrafe «Modificabilidade da decisão de facto», estabelece no seu n.º 1 que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Por seu turno, resulta do artigo 640.º do C.P.C. que tem como epígrafe o “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto” que quando se impugne a decisão proferida quanto à matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa, bem como, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Importa ainda referir que o uso dos poderes de alteração da decisão de 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de manifesta desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos impugnados, acrescendo dizer que estando em causa a análise de prova gravada só se deve abalar a convicção criada pelo juiz a quo, em casos pontuais e excepcionais, ou seja quando não estando em causa a confissão ou qualquer facto só susceptível de prova documental, se verifique que as respostas dadas não têm qualquer suporte nos elementos de prova trazidos aos autos ou estão em manifesta contradição com a prova produzida, ou não têm qualquer fundamento perante a prova constante dos autos.
Cumprido pelo Recorrente os ónus de impugnação previstos no citado art.º 640.º do CPC cumpre apreciar.

O ponto1 dos pontos de facto dados como não provados corresponde artigo 7 da base instrutória do qual consta o seguinte:
As sequelas que o A. apresenta são o resultado dos eventos referidos de 2) a 6?
Por sua vez dos artigos 2 a 6 da base instrutória correspondem aos pontos 5 a 9 dos pontos de facto provados dos quais consta o seguinte:
5. O Autor estava permanentemente disponível, preocupando-se diariamente com a gestão do pessoal da obra, que era muito difícil.
6. O Autor era ainda responsável pela logística das compras e alimentação de 12 funcionários.
7. O Autor para o desempenho das suas funções necessitava de subir e descer várias vezes ao dia os lances de escada que levavam ao 12º andar do prédio em obra, debaixo de elevadas temperaturas.
8. O escritório do dono da obra “ficava desviado da obra”.
9. O Autor tinha de se deslocar ao escritório do dono da obra.
Pretende o recorrente que o ponto 1) dos pontos de facto passe a constar dos factos provados com a seguinte redacção
- O enfarte agudo do miocárdio ocorreu devido ao esforço excessivo levado a cabo pelo A., ao subir as escadas para o 12º andar do prédio, conjugado com o calor intenso que se fazia sentir, associado ainda ao elevado stress, relacionado com a atividade laboral, a gestão do pessoal e a natureza das suas funções de encarregado de obra, o que constitui acidente de trabalho”

O Mmº Juiz a quo motivou a sua decisão sobre a matéria de facto da seguinte forma:
“A convicção do tribunal resultou da análise crítica das declarações, dos esclarecimentos prestados pelos peritos e dos depoimentos prestados em audiência de julgamento conjugados com os documentos juntos aos autos.
O Autor, de forma convincente e segura, confirmou as condições de trabalho existentes na obra e ainda o momento em que foi para o hospital e as condições/ tratamentos a que ficou sujeito.
As testemunhas S. S., J. P., A. C., V. R., J. V. e J. C..
M. T. e M. L. atestaram, no essencial, que o A. lhes referiu que sofreu um acidente tal como descrito na p.i. e a testemunha C. D. mais acrescentou que num dia que não logrou determinar, deixou o A. no seu local de trabalho e quando, no fim do dia, o foi recolher ao mesmo local este estava a coxear.
Importa referir que nenhuma testemunha mereceu especial credibilidade, sendo de referir que a testemunha M. T. vive em união de facto com o A.
A testemunha S. S., prima e colega do Autor com quem trabalha há cerca de 14 anos, atestou as incumbências que este tinha na obra do Gana; nomeadamente a chefia de 12 homens e a respectiva logística, seja da alimentação, seja dos materiais para a obra, seja do alojamento e mesmo dos pagamentos.
Mais atestou as condições climatéricas existentes na obra, a circunstância de estarem a trabalhar num edifício com cerca de 13 andares, sem elevadores, e as diligências que encetou para garantir o acompanhamento do Autor no hospital e o respectivo regresso a Portugal.
A testemunha J. P., colega do Autor desde 2017, atestou que trabalhou junto do Autor na obra do Gana.
Descreveu as condições de trabalho existentes, sendo de destacar o facto de ter atestado que se tratava de um prédio de 15 andares e sem elevador, e as competências do Autor enquanto encarregado, nomeadamente: organizava/ distribuía o trabalho em obra; reunia com o dono da obra; cozinhava; efectuava as compras de alimentos; escolhia os restaurantes; efectuava pagamentos e levantamentos.
Mais referiu que o Autor esteve sujeito a muito stress/ pressão e que no Gana haviam apanhado temperaturas de cerca de 40.º em Fevereiro, sendo que em Agosto a temperatura ia a cerca de 28.º/ 30.º graus.
Finalmente, referiu que o Autor diariamente subia e descia o prédio cerca de 5 vezes, que começaram a trabalhar no 14 andar (que o faziam de cima para baixo) e que no dia em que o Autor teve o enfarte, estariam a trabalhar no 12 ou no 8 andar e que, depois de ter distribuído o trabalho pelos colegas, algum tempo depois, disseram-lhe que se sentira mal.
A testemunha A. C., cônjuge e colega do Autor, descreveu as circunstâncias em que tomou conhecimento do internamento do cônjuge, o regresso a Portugal e os tratamentos que tem efectuado nos Hospitais nacionais.
Mais referiu as despesas hospitalares suportadas pelo cônjuge e a forma como lhe fez chegar dinheiro para as liquidar.
Finalmente, relatou as condições de trabalho que o Autor lhe descrevera existir na obra e o historial de trabalho efectuado pelo cônjuge no estrangeiro.
A testemunha V. R., serralheiro, que trabalhou na mesma obra que o Autor no Gana, ainda que para uma entidade patronal diversa, confirmou no essencial as declarações da testemunha J. P..
Acrescentou que o Autor tinha dificuldades com o inglês o que, face às suas incumbências, também agravava a sua situação/ stress.
Mais referiu que acompanhou o Autor ao hospital no dia em que teve o enfarte como “em todo o processo”; que o Autor teve de liquidar de imediato as contas que lhe apresentavam, nomeadamente para poder ser observado/ tratado.
A testemunha J. V., colega do Autor há cerca de 20 anos, que descreveu a obra e as competências do autor nos mesmos termos que as testemunhas J. P. e V. R..
Mais enumerou as dificuldades existentes no trabalho/ competência do Autor, nomeadamente, além das enumeradas pelas restantes testemunhas, os prazos (curtos) e penalizações acordadas com o dono da obra e a gestão apertada dos materiais enviados para a obra.
Finalmente, atestou que existiam problemas diários na obra o que se refletia no Autor, sendo evidente que estava sujeito a níveis de stress maiores (“mais pressão”).
A testemunha J. C., cunhado do Autor, relatou os tratamentos a que este foi sujeito em Portugal.
Os Peritos, no essencial, confirmaram e explicaram as posições assumidas no âmbito do processo de fixação da incapacidade para o trabalho.
Entendemos que se justifica salientar o facto de terem atestado que o enfarte é uma doença natural; que se verifica quando ocorrer uma situação que espolete a “instabilização da placa” e a consequente libertação da placa de gordura/ coágulo que origine o “enfarte”; que a situação, que definiram de “gota última”, pode decorrer, entre outras, de um esforço físico ou uma situação de desidratação; que o trabalho, por regra, não é um factor de risco, podendo haver actividades que o sejam; que os principais factores de risco são o tabaco, a hipertensão e a dislipidemia; que mesmo não havendo nenhum desses riscos pode ocorrer um enfarte; que se pode ter um enfarte a dormir; que quantos mais fatores de risco se tiver maior são as probabilidades de se ter um enfarte; que as condições de trabalho que foram descritas como sendo as que o Autor estava sujeito possam precipitado essa situação (libertação da placa).
Mais justifica referir que a Sr.ª Perita C., relativamente às dúvidas relativas ao relatório apresentado a fls. 44, que se suscitaram na audiência de julgamento, esclareceu, de forma segura e convincente, que foi o A. quem lhe referiu ter tido as primeiras queixas pelas 4 horas e que, mais tarde, pelas 6 horas foi observado num hospital; sendo certo que também atestou que nessa altura, ou seja, perto das 6 horas, fora transportado do local de trabalho para o hospital.
Assim, e em súmula, atentas as regras da experiência, resultou de forma segura as condições de trabalho a que o Autor estava sujeito, a verificação do enfarte e as despesas daí decorrentes.
Mais resultou que as referidas condições correspondem, nas palavras do médico do Sinistrado, a “cenário fortemente condicionador do que aconteceu”, sendo certo, que também este admitiu tratar-se de doença natural.
Importa ainda referir que as sequelas que o Autor apresenta são o resultado do enfarte.
Finalmente, que por reporte às despesas, que foram consideradas as efectuadas até ao dia da alta.”
Procedemos à análise os documentos juntos aos autos e à audição da gravação não só dos esclarecimentos prestados pelo Sr. Perito Médico Dr.º C. L., como os esclarecimentos prestados pelos demais Peritos Médicos em sede de audiência de julgamento, bem como à audição da gravação dos depoimentos testemunhais prestados em audiência de julgamento e desde logo não vislumbramos que tenha sido cometido pelo tribunal a quo qualquer erro de apreciação da prova que imponha alteração da decisão da matéria de facto, ao invés os factos foram apurados de harmonia com análise crítica, clara e precisa de toda a prova efectuada pelo Tribunal de 1ª instância, da qual resultam inequívocas as razões pelas quais foram apurados determinados factos em detrimento de outros.
Da prova produzida, nela se incluindo os esclarecimentos prestados pelo Perito Dr. C. L., resulta inequívoco que as sequelas de que actualmente o autor padece não resultam nem do stress a que o autor poderá ter estado exposto, nem do calor, nem da responsabilidade que o autor tinha na obra, nem no facto de ter de subir diariamente vários lances de escadas debaixo de elevadas temperaturas, mas sim tais sequelas resultam do enfarte do miocárdio por si sofrido quando se encontrava no desempenho das suas funções, razão pela qual não pode deixar de ser dada como não provada a factualidade que consta do ponto de facto 1) dos pontos de factos dados como não provados.
Questão diferente é de apurar se a prova produzida designadamente dos esclarecimentos prestados pelo Sr. Perito Médico C. L. seriam suficientes para dar como provado que o enfarte do miocárdio sofrido pelo Autor quando se encontrava no seu local de trabalho no desempenho das suas funções se ficou a dever “ao esforço excessivo levado a cabo pelo A., ao subir as escadas para o 12º andar do prédio, conjugado com o calor intenso que se fazia sentir, associado ainda ao elevado stress, relacionado com a atividade laboral, a gestão do pessoal e a natureza das suas funções de encarregado de obra, o que constitui acidente de trabalho.”
A esta questão teremos de responder de forma negativa, pois para além do Sr. Perito Médico Dr.º C. L. no que respeita aos factos que ocorreram no dia em que o autor sofreu o enfarte do miocárdio, apenas revelar saber aquilo que lhe foi relatado pelo próprio autor, a sua postura relativamente às causas do enfarte também se revelam de duvidosas e desprovidas de suporte factual. O seu depoimento não permite de forma alguma concluir que o enfarte sofrido pelo sinistrado se ficasse a dever às circunstâncias em que desempenhava as suas tarefas profissionais
Com efeito, não sabemos se no dia em que o autor enfartou se esteve exposto a excesso de calor, se havia despendido um esforço excessivo, se dormia mal, se estava cansado e debaixo de um intenso stress. Os factos apurados só nos permitem dizer que o autor diariamente subia, os lances de escada que o levavam ao 12º andar do prédio em obra, debaixo de elevadas temperaturas. Que já teria trabalhado com temperaturas mais elevadas do que as que sentiam na altura, uma vez que já estava a trabalhar naquela obra, no Gana, desde Fevereiro, mês em que as temperaturas atingem os 40.ºC e o enfarte ocorreu em Agosto de manhã cedo, mês em que as temperaturas atingem os 28.º/ 30.º Acresce ainda dizer que o esforço físico desempenhado naquele dia também seria inferior ao despendido normalmente, já que o autor se sentiu mal, pouco depois de ter chegado à obra nesse dia 7 de Agosto, não tendo assim tido tempo para subir e descer mais do que uma vez os lances de escadas, que ao que tudo indica subia diariamente 4 a 5 vezes.
Por outro lado, os restantes peritos afastaram a possibilidade de o enfarte ter sido provocado de forma direta por causas exógenas, ao afirmarem que o mesmo poderia ter ocorrido quando o sinistrado estivesse em repouso ou a dormir, que este tinha antecedentes de risco cardiovascular elevado, designadamente por ser fumador pesado, sofrer de hipertensão e de dislipidemia, concluindo assim que se tratou de doença natural
Importa ainda realçar que a demais prova produzida, designadamente a testemunhal, também não nos permite sequer dar como provado que no dia em que o autor se sentiu indisposto no trabalho tivesse realizado um esforço excessivo ao subir as escadas para o 12º andar do prédio, que nesse dia e a essa hora (6.00 horas) se fizesse sentir um calor intenso e que o autor estivesse sob um intenso/elevado estado de stress.
Por fim, salientamos a factualidade que se pretendia que agora fosse aditada aos pontos de facto provados, por ter cariz manifestamente conclusivo nunca seria de aditar nos termos pretendidos. Tenha-se presente que apesar de ter sido eliminado do actual código do processo civil o n.º 4 do artigo 646.º do Código do Processo Civil de 1961 do qual decorria que se tinha como não escritas as respostas do tribunal sobre questões de direito, bem como os juízos de valor que integrassem no “thema decidendum”, é de considerar que se deve manter aquele entendimento, interpretando, a contrario sensu, o actual n.º 4 do art.º 607.º, segundo o qual, na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados. O que o tribunal pode e deve considerar como provado em resultado da prova produzida são os factos objecto de alegação e prova e não as conclusões ou juízos de valor a extrair dos mesmos à luz das normas jurídicas aplicáveis.
Ora, sendo controvertido nos autos saber se o enfarte do miocárdio verificado no contexto de trabalho pode ser considerado de acidente de trabalho, impõem-se que os factos provados sejam expurgados de conceitos e conclusões que tenham conotação com a noção de acidente de trabalho, devendo apenas atentar-se nos factos materiais e concretos extraídos das provas produzidas.
Em suma, não se impõe decisão diferente, visto que não foi cometido qualquer erro na sua apreciação.
Improcede a impugnação o recurso nesta parte mantendo-se inalterada a factualidade apurada

2 - Da qualificação do acidente como de trabalho
Tendo presente que a factualidade apurada pelo tribunal a quo se mantêm inalterada importa agora averiguar se tal factualidade nos permite que se conclua pela verificação de um acidente qualificável como de trabalho.

Prescreve o Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais, aprovado pela Lei n.º 98/2009, de 4/09 (doravante NLAT), no que respeita ao conceito de acidente de trabalho e situações de exclusão e redução da responsabilidade:

Artigo 8.º “Conceito
1 - É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
2 - Para efeitos do presente capítulo, entende-se por:
a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador;
b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.

Artigo 10.º “Prova da origem da lesão”
1 - A lesão constatada no local e no tempo de trabalho ou nas circunstâncias previstas no artigo anterior presume-se consequência de acidente de trabalho.
2 - Se a lesão não tiver manifestação imediatamente a seguir ao acidente, compete ao sinistrado ou aos beneficiários legais provar que foi consequência dele.

De acordo com o que ensina Maria do Rosário Palma Ramalho, in Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, Almedina, 5.ª edição, pp. 872 e ss, a noção legal de acidente de trabalho permite recortar a figura com recurso a um critério subjectivo, a um critério geográfico, a um critério temporal e ainda ao dano típico que resulta daquele, para além de se exigir um adequado nexo de causalidade entre o evento acidentário e o dano, nos termos gerais da responsabilidade civil.
Nos termos do art.º 8.º da NLAT é acidente de trabalho todo aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza o dano típico, ou seja, a qualificação não exige que o acidente ocorra na execução do contrato de trabalho ou por causa dessa execução, bastando que ocorra por ocasião da mesma, estando pressuposto nessas circunstâncias que o trabalhador se encontra directa ou indirectamente sujeito ao controlo do empregador.
A não ser assim, aliás, não tinham razão de ser os preceitos subsequentes a enunciar todas as situações de exclusão ou redução da responsabilidade por acidente de trabalho, designadamente os casos de descaracterização do acidente por imputabilidade do mesmo ao sinistrado, os de exclusão da reparação por ter o acidente resultado de motivo de força maior e os que conferem direito de acção do responsável contra o trabalhador ou terceiro que tenha dado causa ao sinistro.
Neste sentido, diz Júlio Manuel Vieira Gomes in “O acidente de trabalho – O acidente in itinere e a sua descaracterização”, Coimbra Editora, 2013, pp. 97-99.que “(…) o acidente de trabalho não se reduz, no nosso ordenamento, ao acidente ocorrido na execução do trabalho, nem havendo sequer que exigir uma relação causal entre o acidente e essa mesma execução do trabalho. Poderão ser acidentes de trabalho múltiplos acidentes em que o trabalhador não está, em rigor, a trabalhar, a executar a sua prestação, muito embora se encontre no local de trabalho e até no tempo de trabalho, pelo menos para este efeito da reparação dos acidentes de trabalho. (…) Sendo suficiente que o acidente ocorra, na terminologia italiana e anglo-saxónica, por ocasião do trabalho, o acidente de trabalho pode consistir em um acidente ocorrido quando se presta socorro a terceiros ou, inclusive, numa situação em que o trabalhador é agredido ou é vítima de uma “partida de mau gosto”, quer o autor desse facto ilícito seja um colega, quer se trate de um estranho à relação laboral.”
Esta opção acolhida pelo legislador não é inócua na medida em que tem repercussão directa em matéria de repartição do ónus de alegação e prova, reduzindo a tarefa do sinistrado à alegação e prova dos elementos constantes do artigo 8.º (tendo ainda em conta o art. 10.º) e fazendo impender sobre o responsável a alegação e prova dos requisitos determinantes da exclusão ou redução da sua responsabilidade, com todas as vantagens em matéria de tutela e protecção daquele.
Como vem sendo defendido quer na doutrina, quer na jurisprudência, para que se reconheça um acidente de trabalho importa verificar (a) um elemento espacial, em regra, o local de trabalho, (b) um elemento temporal, em regra, correspondente ao tempo de trabalho e (c) um elemento causal, ou seja, o nexo de causa e efeito entre, por um lado, o evento e a lesão, perturbação funcional ou doença e, por outro lado, entre estas situações e a redução da capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
Daqui podemos desde já afirmar que o nexo causal entre a prestação do trabalho e o acidente não constitui um requisito do conceito de acidente, pois o único nexo de causal previsto no citado preceito é o nexo entre o acidente e a lesão corporal, perturbação funcional ou doença esse sim tem de se verificar, para que se possa qualificar o acidente como de trabalho.
Ora, tendo presente os factos provados e deles resultando inequívoco que o sinistrado sofreu dores muito forte no seu local de trabalho, quando exercia as suas funções de encarregado de obra e tendo sido conduzido ao hospital, foi-lhe diagnosticado um enfarte, importa apreciar, se o enfarte do miocárdio, se ficou a dever ou se teve qualquer relação com a relação laboral ou se resultou apenas de doença natural.
Estando assim em causa apurar se o enfarte sofrido pelo sinistrado no local de trabalho se ficou a dever a acidente de trabalho, importa fazer algumas considerações sobre o nexo de causalidade nos acidentes de trabalho.
Do teor do transcrito art.º 10.º da NLAT resulta a dispensa ao sinistrado ou beneficiário da prova relativa ao nexo de causalidade entre o acidente e a lesão, no entanto, aqueles têm de demonstrar a ocorrência do evento em si.
Assim sendo, é de concluir que o sentido útil da presunção é o de libertar o sinistrado ou os seus beneficiários da prova do nexo de causalidade entre o evento e as lesões, não ficando de forma alguma afastado o ónus da prova do evento causador das lesões.
Na verdade, a simples constatação de lesão, perturbação funcional ou doença do trabalhador no local e tempo de trabalho não faz presumir a existência de um acidente de trabalho, não dispensando os interessados da sua prova efetiva da ocorrência do “acidente”.
Acresce dizer que aquele nexo de causalidade exprime apenas a relação de causalidade directa ou indirecta, entre o acidente e as suas consequências, ou seja entre o evento e a lesão perturbação funcional ou doença e não propriamente, uma relação de causalidade entre o trabalho e o acidente.
Como uniformemente tem sido defendido pelo Supremos Tribunal de Justiça, designadamente no acórdão de 1/06/017, proferido no Proc. n.º 919/11.3TTCBRA.C1.S1 (relator Ferreira Pinto) e sustentado pela generalidade da doutrina, a presunção de causalidade, estabelecida no citado artigo 10.º tem apenas o alcance de libertar os sinistrados ou os seus beneficiários da prova do nexo de causalidade entre o acidente e o dano físico ou psíquico reconhecido na sequência do evento infortunístico, não os libertando, do ónus de provar a verificação do próprio evento causador das lesões.
Como refere Pedro Romano Martinez, “Direito do Trabalho”, 2ª Ed., Almedina, 2005, pp.816, nota 2ª. “não se trata de uma presunção da existência do acidente, mas antes uma presunção de que existe nexo causal entre o acidente e a lesão ocorrida”.
Ora, não tendo o legislador definido o que deve entender-se por acidente de trabalho, tendo apenas fornecido alguns critérios tais como o lugar e tempo de trabalho e o nexo de causalidade e sendo certo que que para além destes pressupostos importa que ocorra um evento que possa ser considerado como “acidente”, teremos de o definir.
Quando falamos em evento relevante para a qualificação de acidente de trabalho, falamos de um evento naturalístico, ou uma causa exterior – estranha à constituição orgânica da vítima -, súbito (que actua num espaço de tempo breve) e que produza uma acção lesiva do corpo humano (v. Carlos Alegre, Acidentes de trabalho e Doenças Profissionais, 2ª ed., pags. 34 e segs.).
Trata-se assim de ocorrência anormal, em geral súbita, pelo menos de curta duração ou limitada que acarreta uma lesão à integridade ou à saúde do corpo humano.
Com efeito, um esforço excessivo que origina uma lesão no corpo é, em si mesmo, uma causa exterior, estranha à constituição orgânica da vítima e súbita, já que actua num espaço de tempo breve.
Constituirá acidente qualquer “facto”, ainda que não violento, um acontecimento súbito exterior ao lesado, lesivo do corpo deste. vd. Martinez, Pedro Romano, “Direito do Trabalho”, 2ª Ed., Almedina, 2005, pp. 797 ss. e continuando refere ainda o seguinte: “um dos pressupostos básicos para a existência de responsabilidade civil é o facto, que em termos de responsabilidade delitual terá que ser um facto humano“. Na responsabilidade sem culpa, o facto humano poderá “ser substituído por uma situação jurídica objetiva que esteve na origem dos danos. Na realidade, como o facto gerador da responsabilidade não se baseia numa atuação culposa e ilícita, basta que se identifique uma situação geradora de dano. Na responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho, o facto gerador nem sempre corresponderá a uma conduta humana; sendo a responsabilidade objetiva, o que desencadeia o dano é o acidente de trabalho.
Pode, assim, concluir-se que o facto gerador da responsabilidade objetiva do empregador é o acidente de trabalho”.
São assim complexas e enumeras as causas dos acidentes de trabalho, tendo-se presente que trata-se sempre de um acontecimento não intencionalmente provocado, de caráter anormal, súbito e inesperado, gerador de consequências danosas no corpo ou na saúde, imputável ao trabalho, no exercício de uma actividade profissional, ou por ocasião do trabalho, de que é vitima um trabalhador.
Resumindo é acidente de trabalho o evento súbito, imprevisto, que provoque lesão na saúde ou na integridade física do trabalhador, que ocorra no tempo e no local de trabalho, ou por ocasião do trabalho.

No caso em apreço insurge-se o Recorrente quanto ao facto de não se ter concluído que a causa do enfarte agudo do miocárdio por si sofrido no tempo e no local do trabalho é exógena e está relacionada com o contexto do trabalho designadamente com as adversidades a que estava sujeito enquanto desempenhava a sua actividade profissional e que precipitaram a sua ocorrência, não deixando tal evento de enquadrar no conceito de acidente de trabalho.
Salvo o devido respeito por opinião em contrário não podemos dar razão ao Recorrente.

Com efeito, no caso em apreço, tal como assertivamente se escreve na sentença recorrida:
“(…) não resultou provado, e, salvo melhor entendimento, nem tão pouco foi alegado, que tenha ocorrido um acontecimento ou evento súbito, inesperado e de origem externa, requisito necessário, como vimos, para se poder falar em acidente de trabalho.
Efectivamente, o que resultou provado foi que o Autor “… quando estava numa reunião com os funcionários a fazer a distribuição diária do serviço, no âmbito da sua actividade ao serviço da “Constru..., Lda”, sofreu dores muito fortes no peito” e que, tendo recorrido a um hospital, lhe foi diagnosticado um enfarte.
As circunstâncias ou condições existentes na obra ou decorrentes desta, como sejam, “o Autor estava permanentemente disponível, preocupando-se diariamente com a gestão do pessoal da obra, que era muito difícil; O Autor era ainda responsável pela logística das compras e alimentação de 12 funcionários; O Autor para o desempenho das suas funções necessitava de subir e descer várias vezes ao dia os lances de escada que levavam ao 12º andar do prédio em obra, debaixo de elevadas temperaturas; O escritório do dono da obra “ficava desviado da obra”; O Autor tinha de se deslocar ao escritório do dono da obra”, evidenciando que o Autor estava sujeito a um nível elevado de stress, que estava, mas que não correspondem, de todo, ao referido acontecimento ou evento súbito, inesperado e de origem externa.
Aliás, tanto assim é que, como melhor foi adiantado pelos Senhores Peritos, ainda que defensores que o elevado stress a que o Autor estava sujeito na obra, que vinha a acontecer há vários meses, possa ter sido a gota última que espoletou a instabilidade da placa que levou ao enfarte, doença natural, tal circunstância poderia ter ocorrido em qualquer altura, mesmo enquanto dormia, o que, salvo melhor entendimento, é igualmente demonstrativo de que não ocorreu o referido acontecimento ou evento súbito, inesperado e de origem externa que caracteriza o acidente de trabalho. “
Na verdade, ao contrário do defendido pela recorrente, não temos dúvidas em afirmar que a matéria de facto provada apenas nos permite concluir que o Recorrente/Apelante não logrou provar, como lhe competia, a ocorrência de qualquer evento naturalístico verificado por ocasião do trabalho ou com ele relacionado que tivesse desencadeado o enfarte agudo do miocárdio. Ou seja o Recorrente não logrou provar que as lesões sofridas pelo ocorreram por intervenção exterior (evento súbito exterior ao lesado), por uma qualquer causa estranha à sua constituição orgânica. Ora, este evento em sentido naturalístico tem de ocorrer para que se possa afirmar estar perante um acidente de trabalho, pois não basta que o trabalhador se tenha sentido mal no tempo e local de trabalho. A simples constatação não faz presumir a existência de um acidente de trabalho, não dispensando o sinistrado da prova efectiva de que ocorreu um evento infortunístico para que se configure o acidente de trabalho, pelo que esta questão, saber se é, ou não, um acidente, coloca-se a montante da problemática do nexo causal entre o acidente e a lesão”, a que respeita a presunção estabelecida no artigo 10º, nº 1 da LATDP.

Mas vejamos a melhor a factualidade provada:
Provou-se o seguinte:
- No dia 7 de Agosto de 2017 o A. trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização da “Constru..., Lda”, como auxiliar encarregado de 1ª, mediante a retribuição anual de Euros 13.080,34.
- No dia 7 de Agosto de 2017, no Gana, numa obra de construção civil, o A. quando estava numa reunião com os funcionários a fazer a distribuição diária do serviço, no âmbito da sua actividade ao serviço da “Constru..., Lda”, sofreu dores muito fortes no peito.
- No dia 7 de Agosto de 2017, pelas 6h, no Gana, o Autor sofreu um enfarte agudo do miocárdio.
- O Autor estava permanentemente disponível, preocupando-se diariamente com a gestão do pessoal da obra, que era muito difícil.
- O Autor era ainda responsável pela logística das compras e alimentação de 12 funcionários.
- O Autor para o desempenho das suas funções necessitava de subir e descer várias vezes ao dia os lances de escada que levavam ao 12º andar do prédio em obra, debaixo de elevadas temperaturas.
- O escritório do dono da obra “ficava desviado da obra”.
- O Autor tinha de se deslocar ao escritório do dono da obra.
- As sequelas que o A. apresenta são o resultado do enfarte referido em 4).
11. O A. despendeu em despesas médicas Euros 230,14, em despesa medicamentosas Euros 480,84, em despesas hospitalares Euros 3.998,06 e em despesas com deslocações Euros 887,33.
12. O A., antes do evento em análise, já padecia de obesidade, hipertensão, dislipidemia e era fumador (40 cigarros/ dia).
Deste quadro factual apenas podemos concluir com segurança que as dores muito fortes no peito sentidas pelo autor no local e tempo de trabalho se ficaram a dever ao enfarte agudo do miocárdio que veio a ser diagnosticado no Hospital e que constitui uma doença natural, não se tendo assim provado, até porque nem sequer foi alegado, que tivesse ocorrido qualquer evento que desencadeasse a forte dor no peito, nem a factualidade provada permite concluir que o enfarte tivesse sido provocado por qualquer causa estranha à sua constituição orgânica. No caso, não nos é possível configurar um qualquer evento em sentido naturalístico susceptível de desencadear aquela doença natural, sendo certo que o autor já padecia de uma série de factores de risco, tais como obesidade, hipertensão, dislipidemia e era fumador (40 cigarros/ dia), potenciadores do desencadear da doença.
Importa reter que estamos perante uma doença silenciosa que se caracteriza pela diminuição do fornecimento de sangue ao miocárdio que normalmente surge na sequência do desenvolvimento lento e progressivo de qualquer causa ou de um conjunto de causas endógenas ao próprio sinistrado, tendo culminado com o enfarte agudo do miocárdio que podia ter ocorrido no local de trabalho, como sucedeu, ou num outro qualquer lugar.
Cabe-nos ainda salientar, que a factualidade provada revela-se de insuficiente para podermos concluir que o trabalho desenvolvido pelo Autor bem como as condições em que ele era prestado, fosse causa do surgimento da doença ou do seu agravamento.
Na verdade, a matéria de facto fixada nos autos não nos permite, concluir, como pretende o Recorrente, que foram as circunstâncias em que o sinistrado desempenhava o seu trabalho, designadamente o esforço físico provocado pela subida e descida de escadas, o calor excessivo e o stress associado ao trabalho, que funcionaram como factor exógeno, sem os quais o sinistrado não teria enfartado.
Ao invés, voltamos a frisar, os factos provados apenas nos permitem concluir que as lesões sofridas pelo autor no dia 7 de Agosto de 2017, resultaram de patologia de origem endógena sem qualquer relação com o trabalho por si desempenhado.
Com efeito, não se provou qualquer esforço anormal realizado pelo sinistrado, que pudesse causar uma lesão ou agravar uma preexistente
Nomeadamente, não se provou, pois nem sequer foi alegado que o autor tivesse feito um esforço excessivo, ao subir as escadas para o 12.º andar do prédio, que na altura estivesse um calor intenso e que o autor estivesse a viver uma situação de elevado stress relacionado com a actividade laboral. Contrariamente, o que se provou é que logo de manhã, após ter iniciado o seu dia de trabalho o autor sentiu uma forte dor no peito
Em suma, da factualidade apurada impõe-se concluir que não estão reunidos os pressupostos para que se possa considerar que o enfarte do miocárdio sofrido pelo A. L., ocorreu no âmbito, ou em consequência, de um acidente de trabalho, pois não se provou a ocorrência de um evento imprevisto, exterior à pessoa do sinistrado, que lhe haja causado lesões, nem o nexo de causalidade entre o evento e as lesões.
Em face do exposto não se pode imputar à Recorrida a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos, pelo que mais não resta do que manter a sentença recorrida, improcedendo a apelação.

V – DECISÃO

Pelo exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 87º do C.P.T. e 663º do C.P.C., acorda-se, neste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso de apelação interposto por A. L., confirmando-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas a cargo do Recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
13 de Julho de 2021

Vera Maria Sottomayor (relatora)
Maria Leonor Barroso
Antero Dinis Ramos Veiga