Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
224/19.7GBVVD.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
BENS JURÍDICOS PROTEGIDOS
OMISSÃO CONDIÇÕES PESSOAIS ARGUIDO
PENAS (PRINCIPAL E ACESSÓRIA)
CRITÉRIOS LEGAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/09/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - Os bens jurídicos protegidos com a incriminação da condução em estado de embriaguez são a vida, a integridade física e o património de outrem, a par da segurança da circulação rodoviária, estabelecendo o legislador uma presunção fundada na observação empírica de que o exercício da condução em estado de embriaguez é perigoso em si mesmo.

II - Entendendo-se, perante o conjunto dos factos apurados, que se mostra ajustada às particularidades do caso concreto a pena de 120 dias de multa importa, depois, fixar o respectivo quantitativo diário, que deve constituir um sacrifício real para o condenado sem, no entanto, deixar de lhe serem asseguradas as disponibilidades indispensáveis ao suporte das suas necessidades e do seu agregado familiar.

III - No caso, não tendo sido ordenada, oficiosamente ou a requerimento, a produção de qualquer prova tendente a apurar a situação económica do arguido, a completa omissão da matéria de facto dada como provada sobre esse aspecto, em princípio, seria susceptível de integrar o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410º, n.º 2, al. a), do C. Processo Penal, a impor o reenvio do processo para julgamento restrito a essa factualidade.

IV - Contudo, mesmo sem a realização de qualquer diligência probatória, dado ser entendimento jurisprudencial consolidado que o limite mínimo da taxa diária (€ 5) está reservado para as pessoas que vivam no limiar mínimo existencial (ou, abaixo dele, em situações de indigência), mostra-se justificada a fixação do quantitativo diário da multa em € 6, muito próximo do seu mínimo, considerando que este seria incompatível com a disponibilidade pelo arguido do veículo automóvel que conduzia, com despesas inerentes à sua circulação, e com o consumo excessivo de bebidas alcoólicas e, ainda, tendo em conta a capacidade normal de trabalho de uma pessoa da sua idade.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

No âmbito do supra identificado processo, o arguido F. C. foi julgado e condenado, por sentença proferida e depositada a 20/05/2019, como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº. 1, do C. Penal, na pena de 6 (seis) de prisão, suspensa pelo período de um ano e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 10 (dez) meses, nos termos do disposto no artigo 69º, n.º 1, al. a), do C. Penal.

Inconformado, o arguido interpôs recurso, cuja motivação rematou com as seguintes conclusões (extracto):

«(…) III. O Arguido/Recorrente não agiu voluntariamente e conscientemente, não tendo consciência que o seu comportamento era ilícito e proibido por lei.
IV. O Arguido só apresenta uma condenação pela prática do mesmo crime, condenação essa que data de há mais de 5 anos.
V. À hora em que conduziu não se registava praticamente trânsito na localidade nem havia peões na via pública, não tendo o arguido posto em causa a circulação rodoviária ou quem transitava na via, mostrando-se plenamente consciente.
VI. Atentas as características do automóvel ligeiro o perigo para a sua segurança e a dos outros condutores encontrava-se substancialmente reduzido.
VII. Desde que confrontado com os presentes autos, o arguido redobrou os seus cuidados de condução de veículos automóveis, tendo o processo provocado um forte efeito dissuasor e mostra-se arrependido.
VIII. A simples censura dos factos praticados pelo Arguido/Recorrente, garantem de forma adequada e suficiente as necessidades de prevenção geral e especiais pertinentes ao caso em apreço.
IX. Por outro lado, uma sanção acessória mais aproximada do mínimo legal mostrar-se-á comunitariamente suportável, dentro das exigências de reafirmação dos valores violados com o comportamento do Recorrente.
X. Sendo da experiência comum que a faculdade de conduzir é, com frequência, condição necessária para o exercício de muitas actividades remuneradas, a função ressocializadora da pena acessória de inibição de conduzir ficará tanto mais comprometida quanto mais longe for.
XI. No caso em apreço, a douta sentença recorrida não teve em devida conta tais princípios, uma vez que uma pena de seis meses de prisão, suspensa por um ano, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por um período de dez meses, aplicada ao arguido são manifestamente exageradas e desadequadas, não tomando em consideração a sua situação e as condições em que praticou a infracção violando a douta sentença recorrida o disposto nos artigos 71.° e 72.° do Código Penal.

TERMOS EM QUE,

A) Deve conceder-se integral provimento ao recurso, modificando-se a decisão do tribunal a quo, optando-se pela aplicação, in casu, de uma pena de multa até 120 dias pena menos gravosa do que aquela que foi aplicada na sentença ora recorrida e, em consequência
B) Devendo ainda a pena acessória de proibição de conduzir ser reduzida pelo período de cinco meses».

O recurso foi regularmente admitido e o Ministério Público, junto da 1ª instância, respondeu ao mesmo, sustentando que a decisão tomada pelo tribunal a quo, tendo respeitado os critérios atinentes à escolha da pena estatuídos no art. 70º do C. Penal, ponderou, face aos antecedentes criminais do arguido, que apenas a aplicação da pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, tutela e salvaguarda as elevadas necessidades de prevenção geral e especial e que também a pena acessória de proibição de conduzir imposta é proporcional e adequada. Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu minucioso parecer na mesma senda, defendendo que o recurso não merece provimento.
Cumprido o art. 417º, n.º 2, do CPP, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c), do CPP.
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II – Fundamentação

Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (arts. 403º e 412º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente por obstarem à apreciação do seu mérito, suscitam-se neste recurso as questões de apurar se, ao invés da pena de prisão aplicada ao recorrente, o Tribunal deveria ter optado por uma pena de multa e se a pena acessória é excessiva.

Importa apreciar tais questões e decidir. Para tanto, deve considerar-se como pertinentes ao conhecimento do objecto do recurso os factos considerados provados na decisão recorrida (transcrição):

«a) No dia 1 de maio de 2019, pelas 3h35, o arguido, sendo portador de uma taxa de álcool no sangue de pelo menos 2,999 g/l [correspondente à taxa apurada de 3,26 g/l deduzida do valor do erro máximo admissível], tripulou o veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca Citroën, de matrícula VZ, na via pública, concretamente na Ruaem Vila Verde.
b) Tal taxa de álcool no sangue resultou da ingestão voluntária de bebidas alcoólicas por parte do arguido.
c) Quando se sentou ao volante do referido veículo, o arguido sabia estar sob o efeito do álcool e que a taxa de álcool no sangue que o afetava era igual ou superior a 1,20 g/l.
d) Indiferente, porém, a tal situação, não se coibiu de tripular o veículo nas circunstâncias acima descritas, sabendo não o poder fazer.
e) O arguido atuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
f) O arguido foi anteriormente condenado pela prática do crime de condução em estado de embriaguez em 25/08/2014, pelo qual foi condenado em 03/09/2014, na pena 70 dias de multa, substituída por 70 horas de trabalho a favor da comunidade, e ainda em pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 4 meses, no Processo Sumário n.º 620/14.6GBVVD, do Tribunal de Vila Verde- JL Criminal.»
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III - O Direito

1.1 A pena de prisão.

O arguido/recorrente, sem impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto nem o respectivo enquadramento jurídico (1), apenas questiona a opção pela pena de seis meses de prisão, suspensa por um ano, e a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por um período de dez meses, dizendo que as mesmas são exageradas, não tomando em consideração a sua situação e as condições em que praticou a infracção.
Vejamos.
O crime de condução de veículo em estado de embriaguez pelo qual o arguido foi condenado é abstractamente punível com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias nos termos do disposto no artigo 292º, n.º 1, do C. Penal.
Os bens jurídicos que se visam proteger com esta incriminação são a vida, a integridade física e o património de outrem, a par da segurança da circulação rodoviária, estabelecendo o legislador uma presunção fundada na observação empírica de que o exercício da condução em estado de embriaguez é perigoso em si mesmo, tendo em vista os bens jurídicos penalmente tutelados (2).
Na medida em que neste tipo legal de crime se admite a aplicação, em alternativa, das duas penas principais – a pena de prisão e a pena de multa – o primeiro passo a dar pelo julgador consiste, na escolha do tipo de pena.
Para esse efeito, deverá atender-se ao disposto no artigo 40º do C. Penal, que estabelece que a aplicação de penas ou medidas de segurança tem como finalidade a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Este preceito indica-nos que o escopo que subjaz à aplicação da pena se reconduz, por um lado, a reforçar a confiança da comunidade na norma violada e, por outro lado, à ressocialização do delinquente.
Em sede de critério de escolha da pena postula o artigo 70º do C. Penal que, «se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição», consagrando-se, deste modo, o princípio da preferência pelas reacções criminais não detentivas (3).
Estabelecidas estas linhas orientadoras, cumpre aquilatar se, no caso vertente, as exigências de prevenção geral e especial encontram resposta adequada na aplicação da pena de multa ou se, diversamente, é necessário lançar mão da pena privativa da liberdade.
A Sra. Juíza optou pela pena de prisão, por ter entendido que, na concreta situação, as exigências de prevenção geral e especial não encontravam resposta adequada na aplicação da pena de multa, em face dos antecedentes criminais do arguido, opção que, como se disse, vem posta em causa no recurso.
Com relevo para tal decisão, apurou-se que o arguido foi condenado 03/09/2014 pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena 70 dias de multa, substituída por 70 horas de trabalho a favor da comunidade, entretanto declarada extinta pelo respectivo cumprimento.
Ainda que a pena que foi anteriormente aplicada ao arguido não tenha sido inteiramente eficaz para a conformação da sua personalidade aos valores penalmente tutelados pela citada norma, como revela a conduta ora em apreço – atendendo, sobremaneira, à elevada taxa de álcool no sangue de que o mesmo era portador no concreto circunstancialismo –, a circunstância de aquela ser a sua única condenação constitui um factor indicativo de que o mesmo não tem reiterado o desprezo por tais bens jurídicos.
Assim e não obstante tal condenação pelo mesmo tipo de crime, entendemos que, dado o já longo período temporal que medeia entre aquela condenação e a prática deste novo crime, não está suficientemente justificado o afastamento da opção, uma vez mais, por uma pena pecuniária, em detrimento da de prisão, em consonância com a preferência normativa nesse sentido. Com efeito, consideramos que a pena de multa, pela sua própria natureza, será ainda susceptível de fazer compreender ao arguido a censurabilidade da sua conduta e contribuir para a sua ressocialização.
De harmonia com o estipulado no n.º 1 do art. 71º, do C. Penal, a medida da pena é determinada, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa, conforme prescreve o artigo 40º, nº 2, do mesmo Código.
A culpa consiste no juízo de reprovação que recai sobre uma pessoa, pela censura que a sua conduta justifica em face do ordenamento jurídico-penal. Esta culpabilidade ou juízo de reprovação não se confunde com a intensidade do dolo ou a gravidade da negligência.
Realmente, o facto punível não se esgota na desconformidade com o ordenamento jurídico-penal, com a acção ilícita-típica, sendo ainda necessário que a conduta seja culposa, isto é, que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agente, por traduzir uma atitude interna, pessoal e juridicamente desaprovada, pela qual ele tem de responder perante as exigências do dever ser sociocomunitário.
Na determinação concreta da pena há que atender às circunstâncias do facto, que deponham a favor ou contra o agente, nomeadamente ao grau de ilicitude e a outros factores ligados à execução do crime, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins e motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior ao crime (art. 71º, n.º 2, do Código Penal).
Dito por outras palavras, na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção, quer de ordem geral – com o objectivo de confirmar os bens jurídicos violados –, quer de ordem especial – tendo em vista gerar condições para a readaptação do agente do crime, de modo a evitar que este volte a violar tais bens –, mas sem se perder de vista a culpa do agente – com atendimento das circunstâncias estranhas à tipicidade –, que a medida da pena tem como base e limite.
Como se disse, a finalidade essencial da aplicação da pena, para além da prevenção especial – encarada como a necessidade de socialização do agente, no sentido de o preparar para no futuro não cometer outros crimes – reside na prevenção geral, o que significa «que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto … alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada...». «É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma “moldura” de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas – até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica» (4). «Resta acrescentar que, também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas...» (5). «Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado» (6).

No caso vertente, importa, desde logo, referir, que o arguido, com a sua conduta, atingiu valores fundamentais e imprescindíveis à vida em comunidade, como é a segurança da circulação rodoviária, a segurança das pessoas face ao trânsito de veículos, como a vida, ou a integridade física. Realmente, não podem os tribunais descurar as elevadas exigências de prevenção geral, na medida em que esta incriminação carece de um maior enraizamento na consciência comunitária – o que surge espelhado nas estatísticas da sinistralidade rodoviária – sendo premente a protecção do bem jurídico em causa, através da revalidação e consolidação desta norma incriminadora. Existe cada vez mais a necessidade de consciencializar a sociedade para a relevância que assume o respeito pelas normas que tutelam a segurança rodoviária, assumindo as condutas da natureza da adoptada pelo arguido uma muito relevante danosidade social, para mais quando, entre nós, atingem elevadas proporções, como é sabido, sendo, uma parte significativa dos acidentes de viação provocada por condutores em estado de embriaguez.
Assim, depõe contra o arguido a gravidade do seu comportamento, atendendo aos valores jurídicos atingidos, a par das particulares garantias de que o Estado procura fazer revestir a circulação rodoviária. Com efeito, não pode ser desvalorizado o grau de perigo criado com essa conduta, atento o interesse tutelado (a segurança da circulação rodoviária). Sendo a condução de veículos automóveis, em si, já uma actividade perigosa, sê-lo-á muito mais quando exercida por quem, por ter ingerido bebidas alcoólicas em excesso, não está em condições de o fazer.
Também é elevado o grau de ilicitude, tendo em atenção o nível de desconformidade com o direito revelado pela conduta do arguido, que, embora tenha sido submetido ao teste de pesquisa de álcool no ar expirado na sequência de uma mera operação de rotina, conduzia um veículo em estado de embriaguez com uma muito elevada taxa de álcool no sangue, como já se salientou.
Apesar de o arguido ter representado os factos integradores do tipo de ilícito, não se abstendo de os praticar, sendo também significativas as exigências de prevenção especial, desde logo, porque já anteriormente fora condenado pela prática do mesmo ilícito, tendo agora evidenciado a falha do prognóstico, subjacente àquela decisão, de que o mesmo não voltaria a delinquir. A seu favor apenas se computa a circunstância de o mesmo se encontrar inserido socialmente.
Ora, perante o conjunto dos factos apurados quanto à pessoa do arguido, entendemos que a pena de 120 dias de multa, correspondente à pena máxima da respectiva moldura abstractamente aplicável, se mostra ajustada às particularidades do caso concreto.
Importa agora averiguar o quantitativo diário que se mostra ajustado.
Partilhamos o entendimento de que, quando aplicada a pena de multa, o quantitativo fixado deve constituir um sacrifício real para o condenado sem, no entanto, deixar de lhe serem asseguradas as disponibilidades indispensáveis ao suporte das suas necessidades e do respectivo agregado familiar. É esta a jurisprudência corrente para que a aplicação concreta da pena de multa não represente «uma forma disfarçada de absolvição ou o Ersatz de uma dispensa de pena ou isenção de pena que se não tem coragem de proferir» (7).
Como sublinha Taipa de Carvalho «a multa enquanto sanção penal, não pode deixar de ter um efeito preventivo e, portanto, não pode deixar de ter uma natureza de pena ou sofrimento, ou seja, não pode o condenado na multa deixar de a “sentir na pele”» (8).
Na verdade, ao referir o quantitativo de cada dia de multa à situação económica e financeira do condenado e aos seus encargos [art. 47º, n.º 2 do Código Penal, segundo o qual cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 5 e € 500], o legislador visou dar realização, também quanto à pena pecuniária, ao princípio da igualdade de ónus e de sacrifícios e à sua consequente eficácia preventiva, de forma a obter um impacto homogéneo desta pena nos condenados, para o que a mesma deve variar em função dos meios económicos de cada um. Como tal, o quantitativo diário da pena de multa deve ser fixado em função da situação económica e financeira e dos encargos do condenado.
A multa não poderá, assim, ser considerada uma pena “menor”, devendo, antes, representar um sofrimento efectivamente suportado pelo delinquente, tal como o seria a pena de prisão, ainda que em condições humanas totalmente diferentes.
Embora a lei não defina os critérios a ter em conta para concretizar a situação económica e financeira e os encargos pessoais, para este efeito, em relação às pessoas singulares, deve ser considerada a totalidade dos rendimentos próprios do arguido, independentemente da sua fonte, deduzidos de impostos, deveres jurídicos de assistência e obrigações duradouras sobre os rendimentos (9). E, do lado da despesa, devem ser consideradas as despesas inerentes à satisfação das necessidades correntes (habitação, alimentação, vestuário, transportes, educação, saúde e lazer), quer do arguido, quer dos membros do seu agregado familiar.
Revertendo ao caso concreto, a matéria de facto dada como provada na decisão recorrida é completamente omissa quanto à situação económica do arguido, o que se terá ficado a dever à circunstância de este não ter comparecido em audiência e, por isso, não lhe terem sido tomadas declarações a esse respeito, não tendo também sido ordenada, oficiosamente ou a requerimento, a produção de qualquer prova tendente a apurar essa situação, existindo, assim, uma total ausência de factos provados sobre a situação económico-financeira do arguido, circunstancialismo susceptível de integrar o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal, a impor o reenvio do processo para julgamento restrito a essa factualidade.
Com efeito, a circunstância de o Tribunal a quo ter encerrado a fase da produção da prova sem procurar apurar qualquer facto relativo à situação económico-financeira do arguido e sem efectuar qualquer diligência para se apetrechar desses elementos, necessários à determinação da pena, tendo em conta o tipo de pena compósita aplicável, é susceptível de, à partida, integrar a nulidade prevista no art. 120º, n.º 2, al. d) (omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade), dependente de arguição, e de a sentença proferida com omissão de tais factos padecer do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410º, n.º 2, al. a), a implicar o reenvio do processo para novo julgamento, restrito ao apuramento de tal factualidade (art. 426º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal).
Contudo, neste caso, não é inevitável que assim seja, devendo antes a questão ser analisada em concreto, porquanto as diligências a encetar oficiosamente pelo Tribunal e o grau de conhecimento que se deve exigir acerca da situação pessoal do arguido deverão ser diferentes, de acordo com as circunstâncias do caso em análise e o próprio sentido da decisão que foi proferida.
Com efeito, o arguido foi julgado em processo sumário, forma processual pautada por uma maior celeridade, tendo faltado, injustificadamente, ao julgamento. A sua Exma. defensora, uma vez produzida a prova, não solicitou que ele fosse ouvido numa segunda data nem requereu a produção de qualquer elemento de prova relativo à situação económica do mesmo, nomeadamente a elaboração de relatório social.
Ou seja, a defesa nada fez ou requereu para trazer a julgamento e dotar o tribunal de elementos relativos à situação económico-financeira do arguido, sendo certo que podia e devia envolver-se e empenhar-se no processo de determinação da sanção, contribuindo, em caso de condenação, para a aplicação de uma pena mais justa.
Porém, é entendimento jurisprudencial consolidado (10) que o limite mínimo da taxa diária (€ 5) está reservado para as pessoas que vivam no limiar mínimo existencial ou, abaixo dele, em situações de indigência: salvo nos casos de situações de miséria (ou quase), não pode a multa ser fixada em montante tão próximo do limite mínimo que faça perder a sua eficácia penal.
Assim, apesar da ausência de elementos relativamente à condição económica do arguido, entendemos que não se justifica ordenar oficiosamente a realização de qualquer diligência probatória, por se reportar adequado fixar em € 6 o quantitativo diário da multa, situado muito próximo do mínimo, que seria incompatível com a disponibilidade por aquele do veículo automóvel que conduzia, com despesas inerentes à sua circulação, e com o consumo excessivo de bebidas alcoólicas e, ainda, tendo em conta a capacidade normal de trabalho de uma pessoa da sua idade.
Assim, não podendo olvidar-se que a taxa diária da multa nunca é o resultado de uma mera operação matemática, havendo sempre que apelar ao prudente arbítrio do juiz, concluímos que o montante fixado em primeira instância, situado muito próximo do seu mínimo, mostra-se perfeitamente adequado, perante o ponderado, às particularidades do caso concreto.
Consequentemente, no descrito contexto dos autos e atento o sentido da decisão proferida, é de concluir que não se verifica o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, sendo que, como refere Pereira Madeira (11), «Convém notar que o reenvio e as anulações e ou repetições de julgamento devem ser tidos como uma espécie de extrema unção da decisão recorrida que só devem ser prescritos em caso de necessidade absoluta, e, assim, com muita parcimónia (…)».
Pelo exposto, procede o recurso nesta parte, na estrita medida do expendido.

2. A pena acessória.

O arguido também questiona a medida concreta da pena acessória que lhe foi aplicada, arguindo a sua desproporcionalidade e excessividade, em face do circunstancialismo dado como como provado na decisão recorrida.
O Código Penal embora prevendo as penas acessórias no Livro I, Título III, Capítulo III, não estabelece um regime específico para a sua determinação. Mas elas pressupõem, a condenação do arguido numa pena principal [prisão ou multa], são verdadeiras penas criminais e por isso, também elas estão ligadas à culpa do agente e são justificadas pelas exigências de prevenção (12).
E como é reconhecido, elas têm (embora não principalmente) uma função preventiva adjuvante da pena principal e, tal como acontece em relação a esta, subjaz-lhe um juízo de censura global pelo crime praticado, daí que para a sua concreta determinação se imponha também o recurso aos critérios estabelecidos no art.º 71.º do C. Penal, o que vale dizer que, em princípio, deve ser observada uma certa proporcionalidade entre a medida concreta da pena principal e a medida concreta da pena acessória, sendo que a prevenção geral, a acautelar, com a aplicação da pena acessória, terá de ser uma prevenção negativa ou de intimidação.
Conforme vem sendo salientado pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, na esteira do entendimento do Prof. Figueiredo Dias, a pena acessória visa prevenir a perigosidade do agente, sem se poder descurar as exigências de prevenção geral que se fazem sentir, correspondentes a uma necessidade de política criminal, que se prende com a elevada taxa de sinistralidade que se regista em Portugal, sendo, uma parte significativa dos acidentes de viação provocada por condutores em estado de embriaguez. Trata-se de uma censura adicional pelo facto que o arguido praticou. Realmente, nos delitos de tráfego automóvel, à pena acessória de proibição de conduzir é, muitas vezes, associado um efeito mais penalizante do que à pena principal, de multa – que, sendo esta a imposta, os infractores pagam, normalmente, sem grande inconformismo – ou de prisão suspensa na sua execução – que é vista até como menos onerosa que aquela. Daí que a pena acessória seja encarada como um importante instrumento para restabelecer a confiança da comunidade na validade da norma infringida com o cometimento do crime de condução em estado de embriaguez (13).
O art. 69º, n.º 1 do C. Penal prevê um período de três meses a três anos para a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor.
Ora, retomando aqui as considerações supra efectuadas sobre o quadro legal e os princípios gerais que disciplinam a pena e que obrigam o tribunal a considerá-las, apesar das salientadas exigências de prevenção, geral e especial, o certo é que a condenação anterior do arguido se verificou no ano de 2014 e, desde então, tem o mesmo assumido uma conduta conforme à lei e encontra-se inserido socialmente, circunstâncias que atenuam a necessidade da actuação de tais exigências, mas sem olvidar o que se firmou sobre a restauração da confiança comunitária na validade das normas.
Assim, mesmo constatando a insuficiência da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados anteriormente decretada em relação à precedente conduta delituosa do arguido, ou seja, de 4 meses, perante o conjunto dos factos apurados, entendemos que a pena de 10 meses de proibição de conduzir que ora lhe foi imposta em primeira instância mostra-se um pouco excessiva, apesar da elevada ilicitude do facto revelada pela concreta TAS – com necessário reflexo na perigosidade do condutor – e as prementes exigências de prevenção geral.
Nesta conformidade, sem que possa perder-se de vista o que vem sendo decidido pela jurisprudência, ponderados todos os enunciados factos e considerações – em especial, as atinentes à necessidade da pena e, sobretudo, à intensidade da culpa –, pensamos que as sentidas necessidades de prevenção geral – que se fazem sentir, neste domínio e a que aludimos supra – bem como, a de procurar que o arguido não volte a delinquir serão satisfeitas com a pena acessória de 7 meses.
Nesta medida também procede o recurso
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Decisão:

Nos termos expostos, julgando-se parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido F. C., decide-se revogar em parte a sentença recorrida e, por consequência:

a) condenar o mesmo como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº. 1, do C. Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de € 6 (seis euros) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 7 (sete) meses, nos termos do disposto no artigo 69º, nº 1, al. a), do C. Penal;
b) manter a decisão recorrida quanto ao demais.

Sem tributação.
Guimarães, 9/12/2019

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado
1 Embora tenha afiançado que não agiu voluntariamente e com a consciência de que o seu comportamento era ilícito e proibido por lei (conclusão III), não concretizou essa alegação genérica nem dela extraiu qualquer consequência relativamente à matéria de facto fixada.
2 Cfr. Paula Ribeiro de Faria, “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II”, 1999, p. 1093.
3 «A pena privativa da liberdade só deve ser aplicada como a última ratio da política criminal» (Figueiredo Dias in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime pag. 113).
4 Anabela Miranda Rodrigues, “A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade”, Coimbra Editora, p. 570 e s.
5 Ibidem, p. 575.
6 Ibidem, p. 558.
7 Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, “As Consequências Jurídicas do Crime”, p. 119.
8As Penas no Direito Português após a Revisão de 1995”, in Jornadas de Direito Criminal-Revisão do Código Penal, edição do Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1998, vol. II, pág. 24; No mesmo sentido, Acórdão do STJ de 3/6/2004, in www.dgsi.pt/jstj.
9 Maria João Antunes, “Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2ª Edição, 2015, pág. 54.
10 Cf., nomeadamente, o acórdão do TRG de 18-10-2010 (processo n.º 22709.6TABCL.G1), disponível em http://www.dgsi.pt.
11 In Código de Processo Penal, Comentado, 2014, Almedina, pág. 1484.
12 cfr. Maria João Antunes, “Consequências Jurídicas do Crime”, 1ª Edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 34.
13 Como refere, ainda, o Professor Figueiredo Dias, in “As consequências jurídicas do crime”, 1993, p. 165, também citado pelo Exmo. Sr. Procurador da República, estamos perante verdadeira pena acessória, assente no pressuposto material da condenação por crime no exercício da condução, em circunstâncias especialmente censuráveis, elevando o limite da culpa, visando contribuir «em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano», sendo que os custos de ordem profissional que poderão advir para o arguido, são os próprios das penas, que representam para o condenado um sacrifício, prosseguindo a condenação as finalidades gerais.