Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3934/19.5T8BRG-A.G1
Relator: MARIA LEONOR CHAVES DOS SANTOS BARROSO
Descritores: ILEGITIMIDADE PASSIVA
INCOMPETÊNCIA MATERIAL
ASSÉDIO SEXUAL
RECONVENÇÃO
INEPTIDÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I – Na acção fundada em violação de direitos de personalidade e em assédio laboral de trabalhadora podem figurar como partes passivas, além da empregadora, o autor da ameaça ou ofensa, quer este seja o superior hierárquico, um colega de trabalho ou mesmo um terceiro desde que a agressão ocorra durante e em execução da relação laboral.
II – Para aferir a legitimidade processual importa apenas o modo como é configurada a concreta causa de pedir e pedido e que as partes sejam os sujeitos da relação jurídica substantiva tal é como ela é apresentada, independentemente da sua veracidade.
III - O presidente de conselho de administração, que actue no local de trabalho como superior hierárquico da trabalhadora, é parte legitima quando seja descrito como autor da prática repetida de actos ofensivos de direitos de personalidade da trabalhadora.
IV - Uma empresa terceira, empregadora de trabalhador que assedie sexualmente outrem que não é seu subordinado, tem legitimidade passiva se for apontada como coautora na violação dos direitos de personalidade da autora, por omissão de medidas impeditivas da perpetuação da lesão, quando a mesma ocorra no trabalho e por causa dele, ambos os trabalhador partilhem o mesmo espaço físico (open space), a autora esteja em contacto continuo com o agressor e o presidente de conselho de administração e superior hierárquico seja comum à empresa empregadora e à “empresa terceira”.
V- O tribunal do trabalho tem competência material para conhecer de todas estas pretensões, pese embora o regime de responsabilidades de cada interveniente possa ser diferentes.
VI- É admissível a reconvenção com vista a obter indemnização por danos causados na imagem, prestígio e na honra dos RR advinda das imputações que a trabalhadora lhe dirige na própria petição inicial, por emergir de factos que servem de fundamento à acção.
VII - Não há ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir se o acervo fáctico que serve de base à pretensão deduzida for compreensível e as RR o entenderam.

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso
Decisão Texto Integral:
QUESTÃO PRÉVIA - aludiram os 2ª e 3ª RR à necessidade de a autora ser convidada a aperfeiçoar as conclusões:

Ao contrário do proclamado pelos RR nas suas contra-alegações/ampliação de recurso, não vemos necessidade no aperfeiçoamento das conclusões da autora (639º, 2, a), 3, CPC), por pretensa falta de indicação da norma violada, dado que as conclusões são claras no sentido de estar em causa a excepção da ilegitimidade passiva destes RR, nos termos dos artº 278º al d), 576º al e), 578º do CPC ex vi artigo 1º, nº2 al a) do CPT.
Pelo que não se faz uso de convite a aperfeiçoamento.
***
I. RELATÓRIO

AUTORA: J. G.,
RÉS – 1º- SHOPPING ..., ESTACIONAMENTOS, SA; 2º- X, SA; e 3º - M. R..

A autora intentou acção de processo comum pedindo que os três RR. sejam solidariamente condenados a pagar-lhe uma compensação pelos danos morais sofridos em montante não inferior a 15.000,00€ e que os 2º e 3º Réus sejam condenados a criarem as condições para que o trabalhador M. F. seja deslocado para outro local de trabalho.
Alega que a 1ª ré é sua empregadora para quem trabalha desde 1-02-2009 na qualidade de escriturária, que a 2ª ré é a entidade patronal do trabalhador que a assediou, que o 3º réu é o presidente do conselho de administração (PCA, doravante), quer da 1ª ré sua empregadora, quer da 2ª ré. As duas empresas, 1ª e 2ª rés, ocupavam as mesmas instalações e os trabalhadores de uma e outra laboravam conjuntamente no mesmo espaço físico. O 3º réu é ainda sócio de ambas as rés.
Em 10-09-2018, foi vítima de assédio sexual por parte de um trabalhador da 2ª ré, M. F. (que relata-se no artigo 11º da PI “…..agarrou-a por detrás, com força, encostou-se a ela, virou-a de frente para si, voltando a agarrá-la, com força, tentando beijá-la sem o seu consentimento, e dizendo “e se eu te desse um beijinho?”).
Queixou-se à sua empregadora, a 1ª ré, na pessoa do PCA, o ora 3º réu, simultaneamente PCA da 2º R, o qual desvalorizou a situação e não tomou qualquer medida. Até que a autora, em 14-05-19, após dirigir um email a toda a administração (o ora 3º Réu, D. N. e a F. N.) soube que o assunto não fora levado ao conhecimento dos demais sócios e membros do conselho de administração da 1ª R., lapso de tempo em que a trabalhadora teve de laborar no mesmo espaço físico que o outro trabalhador, vendo-o todos os dias e temendo pelo que ele pudesse vir a fazer (até art. 35 p.i). Só a partir da comunicação formal da A., a 1ª ré deu tratamento, embora meramente formal, à sua denúncia. Sendo então ouvida pela advogada da 1ª R, que se limitou a aconselhar a notificação da empregadora do suposto trabalhador assediante, a ora 2ª ré, não obstante esta ter já perfeito conhecimento do ocorrido porque os PCA são comuns.
Acresce que o 3º réu acusou a autora de violar o dever de urbanidade, escudou-se em que teria de ser a administração da 2ª Ré a instaurar o procedimento de inquérito. Ademais, optou o 3º RR por ameaçar a A. criando-lhe um ambiente intimidativo e de pressão, nas suas palavras ”manifestamente o Senhor M. R. ficou desagradado com a A., perante a total inércia, ter posto a questão por escrito e, a partir daí, passou a tratá-la com acinte, pressionando-a, falando-lhe de forma mais brusca ou com total desprezo, ao mesmo tempo e sem que a iniciativa partisse da A., outros colegas tomaram conhecimento do sucedido e passaram a tratá-la de forma diferente, com muito mais distanciamento e frieza.” Relata, ainda, que o 3º R, como forma de pressão, exigiu-lhe mais tarefas do que as previstas no seu conteúdo funcional, mormente um parecer sobre seguros.
Quanto à 2ª ré alega (art.s 71º e ss da p.i.) que foi chamada pelo advogado dessa empresa a fim de ser inquirir sobre o ocorrido no dia do assédio, acabando por nunca ser ouvida perante a pretensão de ser assistida pela sua advogada. Tratando-a, aquele, desadequadamente, elevando-lhe a voz, perguntando-lhe “se tinha que fazer um desenho” e “Você deve estar habituada a falar com outro tipo de gente que não eu”, com voz alterada e com comportamento desadequado, informando-a que se “ tratavam-se de processos diferentes”, tudo com o objectivo de a pressionar. Acabando por lhe ser comunicado pela 2ª R, em 27-06-2019, o arquivamento da sua participação. Ou seja, também a 2ª R, nada fez e não tomou medidas, sujeitando-a estar em contacto permanente com o agressor.
Em suma, num primeiro momento, o 3º R. nada fez, ficando sujeita a estar em contacto permanente com o seu agressor, criando-lhe um ambiente de trabalho intimidativo e hostil, quando, para o evitar, bastaria ter-se deslocado o citado trabalhador para outras instalações. Posteriormente, o 3º R, face à denuncia que apresentou, passou a trata-la com aspereza, elevando a voz, solicitando tarefas que nunca tinha desempenhado, fazendo correr nos corredores a circunstância de a A. ter apresentado uma denúncia, passando alguns colegas a tratá-la de forma diferente. A 1ª R empregadora nada fez para evitar o seu contacto com o funcionário. A 2ª R nada fez para afastar o seu trabalhador agressor, apenas nomeou um mandatário que não ouviu a autora, adoptou para com ela comportamento desadequado e arquivou os autos.
Do exposto, resultaram sérios prejuízos à trabalhadora, a qual ficou amedrontada, receosa e com crises de choro, vivendo estes meses sob profundo stress, que afectou a sua vida profissional, mas também a pessoal, com dificuldades em adormecer, repousar e evitando conviver socialmente.
A 1ª ré deduziu contestação, impugnando os factos. Alegando em suma que o autor do alegado assédio não era seu trabalhador, tendo-se limitado a comunicar a denúncia da autora à 3ª ré para que esta tomasse as providências que entendesse. A autora deveria ter apresentado queixa crime se o entendesse ou demandar o alegado autor do assédio com base na responsabilidade civil extracontratual.
O 2º e 3º RR deduziram contestação conjunta negando a prática de actos de assédio. Alegando que não são entidades empregadoras da autora, nunca podendo colher qualquer teoria de responsabilidade objectiva por actos de um seu trabalhador perante uma não trabalhadora, a ora autora (os RR chamam a esta defesa de “factos impeditivos”). A autora nunca apresentou queixa, nem demandou o pretenso autor dos factos. AS RR cumpriram o que lhe competia, instaurando processo disciplinar ao seu trabalhador (M. F.), tendo-se concluído pelo arquivamento por falta de matéria. Na parte que ora interessa reportar, arguiram a excepção de incompetência absoluta do tribunal; a ilegitimidade da 2º R e do 3º R, este último porque sempre agiu na sua qualidade de PCA na própria versão da autora; a ineptidão da petição inicial, por falta ou ininteligibilidade da causa de pedir. No final pedem, ainda, que se declare que “inexiste fundamento jurídico suscetível de fundamentar a alegada e peticionada responsabilidade solidária da Ré Contestante e do 3º Réu, devendo improceder o pedido de condenação solidária destes” e “declarar-se ilegítimo o exercício do direito – a considerar-se existente- invocado pela Autora do direito” por exceder a boa fé.
Os 2º e 3º R.R. deduziram, ainda, reconvenção, pela qual pedem a condenação da Autora, a pagar a cada um a indemnização de 10.000,00 € por danos não patrimoniais, fundamentando tal pedido no facto de a autora ter propalado factos inverídicos que ofendem gravemente a credibilidade, o prestígio e a confiança devidos à RR. suscetíveis de integrarem ilícito penal, bem como a de formular juízos ofensivos da sua honra e consideração, citando passagens da petição inicial donde decorrem as imputações causadoras de danos.
A autora respondeu às excepções, propugnando pela improcedência. Em especial quanto à ilegitimidade da 2ª ré, acrescenta que em 1º linha a autora trabalhava indistintamente tanto para a 1º Ré, como para a 2º Ré, bem como os outros trabalhadores destas e que existia à data uma confusão entre a 1º e 2º Ré, ou seja, uma desconsideração da personalidade jurídica.
Os 2º e 3º RR (secundados pela 1ª R) vieram arguir a nulidade da resposta na parte em extravasa a resposta à excepção, por ter sido alegado matéria nova não constante da petição inicial, mormente na parte em que se refere pela primeira vez que a autora trabalhava indistintamente para os 1º e 2º RR.

No despacho saneador o tribunal a quo decidiu:

(i) Não admitir a reconvenção dos 2º e 3º RR;
(ii) Declarar improcedente a excepção de incompetência absoluta do tribunal arguida pelos 2º e 3º RR.
(iii) Declarar improcedente a excepção de ineptidão da petição inicial por falta ou ininteligibilidade da causa de pedir.
(iv) Declarar procedendo a excepção dilatória de ilegitimidade passiva dos 2º e 3º RR, “X, S.A.” e M. R., absolvendo-os da instância.
O recurso da autora respeita àquele segmento do despacho saneador respeitante à ilegitimidade dos 2º e 3º RR.

FUNDAMENTOS DO RECURSO DA AUTORA- CONCLUSÕES:

1 – A recorrente tem interesse e legitimidade, encontrando-se o recurso interposto no prazo legal para o efeito;
2 – Vem o presente recurso interposto do douto despacho saneador sentença (parcial ), que decidiu absolver o 2º e 3º Reu, da instancia , por entender que deveria proceder a excepção da ilegitimidade passiva destes, nos termos dos artº 278º al d) , 576º al e), 578º do CPC ex vi artigo 1º, nº2 al a) do CPT.
3º- Ora, o douto tribunal a quo, perante os factos alegados quer na petição inicial, na resposta às exepções da A., quer nas Contestações da 2º e 3º Ré, não levou em conta ao determinar a absolvição da instancia por ilegitimidade passiva destas, a Desconsideração da Personalidade Juridica alegada pela Autora, pois que a realidade dos factos alegados consubstancia uma evidente situação de pluralidade de empregadores com referência às duas sociedades envolvidas in casu 1º e 2º Ré , nos actos de partilharem as mesmas instalações, a mesma sede social, os mesmos sócios, o mesmo Presidente do Conselho Administração, os mesmos utensílios de trabalho, e os mesmos trabalhadores e in casu a Autora que tanto desempenhava funções de escriturária de 2º, quer para a 1º quer para a 2º Ré. Alias a situação de assedio sexual ocorreu mesmo, por um trabalhador da 2º Ré aquando esta ia realizar uma tarefa desta.
4º- No que concerne ao 3º Reu, este é o Presidente do Conselho de Administração quer da 1º Ré, quer da 2º Ré, e sócio de ambas, nessa medida e conforme se extrai do douto despacho saneador sentença foi a este que a Autora reportou uma situação de assedio sexual, perpetrada por um dos seus trabalhadores contra esta, não obstante a A. ter alegado tais factos em sede de petição inicial e na sua resposta às excepções, e o 3º Réu ter obrigação enquanto entidade empregadora e o dever de instaurar o respectivo processo disciplinar não o fez, optando antes por omitir e desvalorizar o sucedido, causando assim, a esta danos, independentemente de o fazer com ou sem culpa, no entanto o tribunal a quo, decidiu, absolver também o 3º Ré da instancia, impondo-se decisão diferente.
5º- Motivo pelo qual, e atenta a causa de pedir duvidas não subsistem que a 2º Ré, e 3º Ré, não são partes ilegitimas nos presentes autos mas sim e por, conseguinte partes da relação controvertida.

CONTRA-ALEGAÇÕES E AMPLIAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO OBJECTO DO RECURSO PELOS 2º E 3º RR. CONCLUSÕES:

I)- Deve a alegada excepção da Incompetência territorial da Relação de Lisboa, ser julgada provada e procedente e os Recorridos serem absolvidos da Instância.
II) – Deve considerar-se que a apelante não cumpriu o preceituado nas alíneas a) e b) do número 2, do artigo 639º do CPC e, por via disso, ser convidada a proceder às especificações previstas naquelas alíneas, no prazo de 5 dias, sob pena de não se conhecer do Recurso.
III)- A Recorrente, salvo o devido respeito, estriba as conclusões que formula em matéria nova, apenas alegada na Resposta às exceções deduzidas pelos Réus/Apelados cuja nulidade estes arguiram, devendo tal matéria nova ser considerada não escrita, e não considerada nas presentes alegações de recurso, com os consequentes efeitos legais.
IV) – Nenhuma das conclusões formuladas na apelação merece provimento.
V) - Não sendo o despacho saneador merecedor de qualquer censura, quanto ao segmento que declarou os Apelados partes ilegítimas, devendo manter-se o despacho saneador/sentença, e a apelação ser julgada totalmente improcedente, com as legais consequências.
VI) - Quando assim se não entenda, - o que a título subsidiário se pede – uma vez que o douto despacho saneador/sentença não conheceu das demais exceções arguidas pelos recorridos, designadamente:
- Inadmissibilidade do pedido de condenação solidária;
- Inexistência de Assédio.
nem da nulidade invocada pelos recorridos, relativamente à matéria consignada na Resposta apresentada pela Autora/Recorrente às exceções deduzidas pelos Réus/Recorridos, e bem assim quanto à inadmissibilidade da reconvenção por estes deduzida, ao abrigo do preceituado do nº 1 do artigo 636º do NCPC, requerem os apelados a Vexas., pelas razões aduzidas na fundamentação, que o Tribunal conheça dos referidos fundamentos e julgue os apeladas absolvidos da instância.
VII) – Ainda a título subsidiário, e para a eventualidade de os recorridos serem julgados parte legítima na presente acção, pedem os apelantes que seja revogado o segmento do douto despacho que não admitiu a reconvenção, e bem assim a revogação dos seus segmentos, por via dos quais, o Tribunal, a quo, considerou improcedente a exceção de incompetência material invocada para a presente causa e ainda a exceção dilatória da ineptidão da Petição Inicial.
VIII) – Quando ainda assim se não entenda, ante a eventual procedência da Apelação, deverá ser proferido douto Acórdão que determine que o Tribunal, a quo, conheça, no despacho saneador da nulidade invocada e das demais exceções alegadas pelos recorridos, sobre as quais não se pronunciou.
Não foi admitido o recurso da 1ª ré, por inadmissibilidade de recurso imediato e por extemporaneidade.

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO: defende a improcedência do recurso da autora, mostrando-se prejudicado o conhecimento da sua ampliação requerida pelos réus.
O 2º e 3º RR aderiram ao parecer.
O recurso foi apreciado pela relatora e adjuntos.

QUESTÃO A DECIDIR (o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso (1)):
Recurso da autora: ilegitimidade dos 2º e 3º RR.
Recurso dos 2º e 3º RR:
Excepção de incompetência territorial quanto ao tribunal de recurso;
Recurso subsidiário dos 2º e 3º RR em caso de procedência do recurso da autora:
Exceção de incompetência material;
Excepção de ineptidão da petição inicial;
Admissibilidade de reconvenção;
Questões residuais - matéria que não foi conhecida no despacho saneador respeitante: (i) alegação de matéria nova e excesso na resposta à excepção de ilegitimidade, cuja nulidade arguiram, devendo ser considerada matéria não escrita, (ii) inadmissibilidade de condenação solidária, (iii) de inexistência de assédio.

I.I. FUNDAMENTAÇÃO

A) FACTOS:
São os constantes do relatório.

B) QUESTÕES A DECIDIR:

EXCEPÇÃO DE INCOMPETÊNCIA TERRITORIAL
A alegada excepção de incompetência territorial encontra-se, digamos, “sanada”, tratando-se de evidente mero lapso de escrita no cabeçalho da alegação, endereçando-se o recurso ao TR de Lisboa, mas sem quaisquer consequências. Efectivamente, o recurso acabou por ser remetido ao tribunal competente, a Relação de Guimarães, hierarquicamente superior ao tribunal de que se recorre, tal como o determina o regime da incompetência relativa – 83º, 105º, 3, CPC.

RECURSO DA AUTORA - ILEGITIMIDADE DOS 2º e 3º RR
Na decisão recorrida considerou-se os 2º e 3º RR partes ilegítimas, contra o que a autora se insurge.
A legitimidade é um mero pressuposto processual respeitante à relação entre as partes e o objecto do processo, a matéria controvertida. Para que o juiz decida é essencial que no processo estejam “as partes exactas”. Assim, o autor deve ser titular do direito invocado e o demandado sujeito da obrigação, pressupondo-se hipoteticamente que esses direitos e obrigações existem. O autor tem legitimidade se for ele quem pode fazer valer juridicamente a pretensão que em concreto invoca e o réu tem legitimidade passiva se for ele quem juridicamente se lhe pode opor, por ser directamente atingido e prejudicado pela eventual procedência da pretensão - Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª ed. p 129.
Centrando-nos na legitimidade passiva de que ora cuidamos, o réu é parte legitima quando tem interesse directo em contradizer, o qual se exprime pelo prejuízo que da procedência da acção lhe possa advir. Salvo disposição em contrário, são considerados titulares de interesse relevante os sujeitos da relação material controvertida tal como se mostra configurada pelo autor- 30º, CPC.
Não releva, pois, como critério aferidor de legitimidade a realidade da relação material controvertida, sendo isso uma questão de fundo e não de forma. O que importa é o modo como é configurada a concreta causa de pedir e pedido e que as partes sejam os sujeitos da relação jurídica substantiva tal é como ela é apresentada, independentemente da sua veracidade (2) - Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. I, 3ª ed., Almeida, p. 488.
Atentemos então na relação material controvertida como a autora a apresenta na petição inicial, para, em face dela, verificar se os réus são sujeitos com interesse directo em contradizer.

Veja-se o que a autora disse na petição inicial sobre a epígrafe LEGIMIDADE DE TODOS OS RR:
“120º - A primeira Ré é a empregadora da A. e, nessa medida, compete-lhe assegurar condições de trabalho em segurança aos seus trabalhadores, sendo, por isso, igualmente solidariamente responsável pelos prejuízos causados. Por seu turno,
121º - A 2ª Ré é a empregadora formal do trabalhador que assediou sexualmente a Trabalhadora, tendo a sua conduta pautando-se pela inércia e por comportamentos de hostilização da A.. Por último,
122º - O 3º Réu é o Presidente do Conselho de Administração de ambas as RR. pessoas colectivas e foi o principal responsável, quer pela sua conduta omissiva, quer por comportamentos que decidiu ter após a denúncia formal.”
Na decisão recorrida considerou-se que a 2ª ré e o 3º réu não eram partes legitimas, em suma porque a causa de pedir seria uma situação de assédio moral durante a relação laboral e a 2ª ré não era entidade empregadora da autora, e o 3º réu agiu apenas enquanto presidente do conselho de administração.

Escolhemos da decisão recorrida a seguinte passagem mais expressiva:
“No caso em apreço, a Autora invoca como causa de pedir, ter celebrado um contrato de trabalho com a 1ª Ré, na execução do qual teria sido vítima de assédio sexual praticado por um trabalhador da 2ª Ré nas instalações que, à data dos factos, ambas as RR. partilhavam.
Para justificar a demanda dos três RR., a Autora refere precisamente que era trabalhadora da 1ª, que a 2ª é empregadora do trabalhador que alegadamente a assediou e que a sua conduta se pautou pela inércia e por comportamentos de hostilização da Autora e que o 3ª Réu, na qualidade de presidente do conselho de administração de ambas as RR., foi o principal responsável, quer pela sua conduta omissiva, quer por comportamentos que decidiu ter após a denúncia formal (cf. artigos 120º a 123º da petição). Por palavras simples, a Autora não detinha qualquer vínculo contratual com a 2ª e 3º RR., pelo que, a eventual responsabilização que a estes poderia ser imputada apenas o poderia ser com base em responsabilidade por factos ilícitos.
Ora, como supra referido, em última instância, o que está em causa nesta acção é a alegada violação dos deveres da 1ª Ré, como entidade empregadora da Autora. Por outras palavras, quem tem interesse nesta demanda são as partes outorgantes do contrato de trabalho e não outros. A causa de pedir não é a prática de factos ilícitos – por acção ou omissão – por parte de terceiros alheios à relação laboral estabelecida entre as partes geradores de responsabilidade civil, mas apenas a violação de um contrato de trabalho, que a provar-se, poderá obrigar a entidade empregadora a indemnizar a trabalhadora, a ora Autora. Assim, não restam dúvidas de que, tal como a acção vem configurada pela A., os 2º e 3º Réus não têm qualquer interesse em contradizer, não sendo, por isso, sujeitos passivos da relação material controvertida, atento o disposto no artigo 30º do CPC.
A situação é algo mais complexa do que aparenta.
No relatório descreveu-se já como minúcia suficiente o litigio que a autora traz ao tribunal.
Basicamente a autora terá sido sexualmente assediada por um terceiro, trabalhador da 2ª ré.
A responsabilidade da 1ª ré advém, na própria versão da autora, da sua qualidade de empregadora. Da sua passividade, ao omitir actos capazes de cessar a situação a que a autora estaria exposta durante a execução laboral. A responsabilidade da 1ª ré e também do 3º réu, PCA e superior hierárquico da autora, no próprio relato da autora na petição inicial, advém também do facto de, numa segunda fase, terem sido protagonizados actos hostis e persecutórios devido à denúncia formal que, perante a inercia, apresentou. Passando a ser tratada pelo 3º réu, seu superior hierárquico –pois no terreno determinava-lhe o trabalho-, com aspereza, elevando-lhe a voz, solicitando tarefas que nunca tinha desempenhado, e fazendo correr nos corredores a circunstância de ter apresentado uma denúncia, levando os colegas a trata-la de forma diferente.
Donde, no caso do 1º e 3º réu, a própria autora configura a controvérsia como uma situação de assédio moral (mobbing), por omissão e acção, entendido como o “…comportamento indesejado…praticado no próprio emprego, trabalho…com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador”, conforme artigo 29º CT, disposição expressamente invocada pela autora.
A prática de assédio confere à vitima o direito- entre outros- de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, pedido formulado pela autora contra os 3 RR - 29º, 4, CT.
Sendo assim, no que ao 3º R se refere, sendo este PCA da entidade empregadora e superior hierárquico da autora, dúvidas não há de que é parte legítima, dado que a autora o aponta como um dos autores de assédio e dirige pedido indemnizatório contra ele. Ou seja, existe uma compatibilização logico e formal entre a parte processual passiva e o sujeito da hipotética obrigação, tal como configurada pela autora.
De resto, diga-se que a jurisprudência tem considerado que os superiores hierárquicos podem ter legitimidade passiva em acções que tutelam os direitos de personalidade dos trabalhadores, consoante a causa seja configurada e lhes sejam atribuídos comportamentos lesivos da dignidade e saúde psíquica dos subordinados, respondendo ao lado da empregadora, o que é o caso.
No sentido de que a legitimidade passiva se estende aos superiores hierárquicos de trabalhador nas acções em que se discuta assédio moral, em que aqueles são mentores e executantes de perseguição, vd Alcides Martins, Direito de Processo Laboral, 4ª ed. Almedina, p. 263 e Pedro Barrambana Santos, Do Assédio Laboral, 2ª ed., p. 280 e 281.
Também neste sentido o acórdão da RL de 21-03-2012, www.dgsi.pt, em cujo sumário consta:I- Verifica-se a legitimidade passiva dos superiores hierárquicos e dos colegas de uma trabalhadora que, numa acção igualmente intentada contra a sua entidade empregadora, vem invocar uma situação de assédio moral, consubstanciada numa prolongada perseguição profissional, de que terão sido mentores os seus superiores hierárquicos e executantes seus colegas de trabalho, formulando contra eles um pedido indemnizatório com fundamento em responsabilidade civil por violação de direitos de personalidade.”

Vejamos agora o caso da 2º ré.
Na petição inicial refere-se que as duas rés partilham o mesmo espaço de trabalho e que o respectivo presidente do conselho de administração é o mesmo (e também alguns sócios). Não obstante, a autora não configurou a 2ª R como sua entidade empregadora, mas antes como a do trabalhador que a assediou. Demandou-a nessa qualidade e com base no facto de os trabalhadores da 1º e 2 RR exercerem actividade no mesmo local (open space) estando a autora muito exposta a actos hostis, tendo a 2ª R tido completo conhecimento da situação através do 3º R atenta a relevante particularidade de este ser PCA de ambas as rés sociedades e, não obstante, nada ter feito.
Iremos analisar a questão nestes termos, até porque somente na resposta à excepção a autora veio alegar que trabalhava para ambas as rés sociedades indistintamente. Permanecendo por decidir o alegado excesso de resposta à excepção, nulidade arguida pelos 2º e 3º RR (na altura prejudicado, pela procedência da ilegitimidade). Pelo que não nos iremos socorrer desta alegação, nem sequer necessária para resolver a questão da legitimidade. Ademais, a resposta à excepção de ilegitimidade é parca em factos e na essência contém mera matéria conclusiva (trabalhar para ambas as rés, parece ser alegação insuficiente ou demasiado genérica quando tal facto seja essencial à causa, alegar a desconsideração da personalidade em termos abstractos também será pouco, contudo a possibilidade de consideração dessa matéria é tarefa futura a cargo da 1ª instância como iremos ver).
Assim, na perspectiva da petição inicial, a 3ª ré apresenta-se como “terceiro” causador, por omissão, de assédio moral, permitindo, por inércia, e com o seu total conhecimento (lá está, o PCA é comum às duas rés e existem sócios comuns) que um seu trabalhador assediasse outrem no local de trabalho comum a ambos (já sem entrar em linha de conta com o comportamento hostil do 3º R que, tendo dupla veste de PCA das duas rés, não permite separação rigorosa de responsabilidades).
Ou seja, no fundo, o enquadramento jurídico inferido dos factos é de a 2ª R ré deve responder nos termos da responsabilidade civil como uma espécie de garante (800 CC) perante a ora autora, por acto ilícito (violação de direito absoluto de personalidade) causado por um seu trabalhador durante o serviço e por, ela própria, nada fazer.
Repare-se que a 2ª R, a ser alheia à relação laboral, não é um terceiro qualquer. A exposição da autora ao empregado da 2ª R. não é fugaz e acontece no e por causa do trabalho. O facto de o PCA ser comum também é determinante. Argumenta a autora, no fundo, que estava num beco sem saída e numa situação circular: o mesmo PCA dizia que a 1ª R não era patrão do alegado assediante, por sua vez o patrão deste (2ºR) dizia que a assediada não era sua trabalhadora. Esta é a base do seu pedido conforme configurado na petição inicial.
Não cabe discutir, recorda-se, o mérito da causa, estamos numa pura perspectiva de legitimidade. Esta é apenas uma possibilidade jurídica que cabe considerar. O julgador, ao encaminhar os autos, deve ter presente todos os enquadramentos possíveis.
O tribunal recorrido parte do principio errado de que toda a causa de pedir, pedido indemnizatório e de afastamento do alegado assediador é baseada ”no contrato de trabalho”, o que não corresponde ao alegado na petição inicial e representa uma visão restrita do fenómeno.
É discutido na jurisprudência e doutrina o fundamento jurídico do regime de responsabilidade por danos baseados em assédio moral (mobbing).
A integridade psíquica e moral e dignidade da pessoa humana fazem parte do leque de direitos de personalidade, que são direito absoluto, erga omnes, inerente a qualquer cidadão e não um exclusivo do trabalhador, tendo, desde logo, protecção constitucional e civil (vg 13º, 25º, 26º, 59º, 1, b, c), CRP e 70º, 1, CC). A sua violação merece a tutela dos termos gerais de direito, gerando responsabilidade civil extracontratual.
No domínio laboral ocorrem relações jurídicas tendencialmente continuadas e duradouras, com predomínio dos poderes jurídicos conferidos ao empregador, donde avulta o poder de direcção e disciplinar, com dependência de facto e, as mais das vezes, também económica por parte do trabalhador. Reconhece-se, por isso, a necessidade de uma tutela específica, atenta a especial vulnerabilidade que caracteriza a posição do trabalhador surgindo o assédio moral no quadro de uma infracção de deveres de protecção e segurança a cargo do empregador.
Para esse efeito de protecção estipulam-se obrigações contratuais a cargo do empregador, o qual, além de ter o dever genérico de respeitar o trabalhador, assume uma posição de garante de proporcionar boas condições de trabalho do ponto de vista físico e moral, de protecção na saúde e prevenção de riscos, de adoptar códigos de boa conduta para a prevenção de assédio moral e de instaurar procedimento disciplinar sempre que tiver conhecimento de casos de assédio (vg. 15º, 29º, 127º, 1, a, c), k, l, CT). Ora, a violação destes direitos origina responsabilidade contratual, que se entende que, por consunção, absorve a responsabilidade extracontratual.
Em suma, a violação de direitos de personalidade e o assédio ocorrido na relação laboral pode ter fontes diversas e sujeitos passivos diferentes, consoante o caso concreto, e pode basear-se na responsabilidade contratual (violação de obrigações laborais) ou por facto ilícito (mormente se praticada por terceiro) – sobre esta temática, Pedro Barrambana Santos, Do Assédio Laboral, 2ª ed., p. 280 e 281.
Tudo depende assim das circunstâncias narradas. Ora, no caso concreto, a autora fundou a sua pretensão em factos que podem ter enquadramentos jurídicos diversos relativamente a cada um dos RR. Os quais têm, portanto, todos, incluindo a 2ª ré, legitimidade na acepção supra explanada de simples relação lógica entre o sujeito e a relação controvertida.
A autora formula pedido de condenação da 2ª R em indemnização e no afastamento do alegado assediador do local de trabalho comum (open space), com base em violação dos seus direitos de personalidade e porque a 2ª R teria poderes para tal, enquanto empregadora, responsável pela organização do trabalho, com a particularidade de o PCA, que se apresenta a dar ordens no terreno, ser comum às empregadoras de assediada e assediador. Há uma coerência entre o sujeito e a relação controvertida (causa de pedir e pedido). Não importa agora aferir se a 2ª ré é efectivamente responsável, isso respeita ao mérito.
Pelo que se concluiu que todos os RR são partes legítimas.
A questão mais pertinente que faz fronteira com o tema ora abordado, suscitada no recurso subsidiário dos RR, é o da competência material, o que passamos a conhecer.

INCOMPETÊNCIA EM RELAÇÃO DA MATÉRIA

Os 2º e 3º RR arguiram a incompetência material do tribunal do trabalho para apreciar a pretensão da autora na parte que a eles lhes toca. O tribunal recorrido declarou improcedente a excepção. Os 2º e 3ª RR pedem a apreciação subsidiária desta questão, o que passamos a fazer dada a procedência do recurso da autora.
A competência refere-se à repartição do poder jurisdicional pelos diversos tribunais do Estado. Visa “…determinar se o poder de julgar uma certa causa pertence, não ao tribunal a que está afecta, mas a um outro tribunal…” José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol.1, 2º ed., p 104.
No caso, está em causa a distribuição da competência em razão da matéria. Domínio onde vigora a regra da especialização aferida pela natureza das questões, atribuindo-se competência própria a juízos especializados – 60º/2, 65º CPC. Os juízos cíveis detêm unicamente competência residual, achada por exclusão de partes. O que equivale a dizer que só será da competência do foro cível o que não couber aos juízos especializados – 60º, 65º CPC, 33º, 37º/1, 40º, 80º, 81º/3, a/b, 117º, 130/1, LSOJ (3). Compreenda-se que a atribuição de competência a tribunais especializados almeja que a causa seja decidida por quem na matéria, a priori, detenha adequada e maior preparação técnico-jurídica.
É pacífico que a competência em razão da matéria se afere em função dos termos em que o autor propõe a acção. O que quer dizer que se atende ao direito por ele arrogado e que pretende ver judicialmente protegido, devendo, por isso, a questão da competência ser decidida de modo conforme ao pedido formulado na petição inicial e à respectiva causa de pedir (núcleo essencial de factos que informa o instituto potencialmente aplicável).
Basicamente os 2º e 3º RR defendem que existe incompetência material porque a responsabilidade que lhe é imputada não emerge da prestação de trabalho.

Segundo a LOSJ, aos juízos de trabalho em matéria cível compete conhecer (centrando-nos no que caso importa):
Art. 126º (competência cível)
1 - Compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível:…
b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho;…
n) Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja diretamente competente;
h) Das questões entre trabalhadores ao serviço da mesma entidade, a respeito de direitos e obrigações que resultem de atos praticados em comum na execução das suas relações de trabalho ou que resultem de ato ilícito praticado por um deles na execução do serviço e por motivo deste, ressalvada a competência dos tribunais criminais quanto à responsabilidade civil conexa com a criminal; ” (negrito nosso).

Facilmente se consta que a alegada violação dos direitos de personalidade dos trabalhadores por parte de superior hierárquico (caso do 3º R) se enquadra dentro de qualquer uma destas previsões, emergindo de relação de trabalho subordinado, respeitando a sujeitos de uma relação jurídica de trabalho, a direitos e obrigações resultantes de actos na execução das relações de trabalho e até de acto ilícito na sua execução e por motivo deste, pois que a violação de direitos de personalidade não pode deixar de ser considerada como um acto ilícito.
No caso da 2ª R aparentemente apresentada na petição inicial como terceira coautora e causadora de lesão nos direitos de personalidade da trabalhadora, a sua actuação tal como configurada, encaixa-se na previsão da alínea n), do artigo 126º, LSOJ. Ocorrendo forte conexão, por complementaridade, com a relação de trabalho e o pedido está cumulado com outro para o qual o juízo é diretamente competente (desde logo o pedido dirigido contra a 1ª ré empregadora).
Complementaridade significa que ambas as relações são autónomas pelo seu objecto, mas o pedido reconvencional completa o pedido formulado na acção, ou toca a relação jurídica subjacente à acção, não havendo subordinação, mas interligação.
No caso existe essa interligação entre a causa de pedir e pedidos dirigidos contra o 3º R (PCA), 1ª R empregadora e 2ª R.
Como referimos, a 2ª R, aliás, nem sequer preenche bem o típico conceito de “terceiro”, não é alguém com quem a autora contacte fugazmente e sem ser por motivo do trabalho. Atente-se no dirigente comum (PCA), nos trabalhadores que se cruzam, no local de trabalho comum, parecendo que haveria uma certa “mistura” entre as duas RR sociedades (independentemente da qualidade formal de empregadora).
Com interesse para o caso, há também que atentar na regulamentação adjectiva laboral, que reserva à tutela dos direitos de personalidade, um processado próprio, donde se podem tirar ilações sobre a matéria da competência dos tribunais de trabalho.

Assim, o artigo 186-D, CPT:
“O pedido de providências destinadas a evitar a consumação de qualquer violação dos direitos de personalidade do trabalhador ou atenuar os efeitos da ofensa já praticada é formulado contra o autor da ameaça ou ofensa e, igualmente, contra o empregador. (negrito nosso).
Deste normativo resulta que esta acção que corre no tribunal do trabalho deve ser intentada, em litisconsórcio necessário, contra o empregador e o autor da ameaça, independentemente de ser um superior hierárquico, ou um colega trabalhador, ou um terceiro desde que a agressão seja durante e em execução da relação laboral.

Pedro Barrambana Santos, ob cit, p. 280-1, a propósito de acto de terceiro poder fundar um pedido indemnizatório com base no assédio (29º CT), diz-nos que esta abrangência se justifica pela:
“…arquitectura de protecção do trabalhador, seja face aos seus pares ou superiores hierárquicos, seja durante a execução do trabalho relativamente aos riscos inerentes do mesmo. Incidindo sobre o empregador uma posição de garante relativamente à existência de boas condições de trabalho, do ponto de vista físico e moral e à protecção da segurança e saúde do trabalhador, mormente mediante o dever de prevenção de riscos, extensível ao relacionamento que o trabalhador venha a ter com os seus pares ou com terceiros com quem contacte em função do exercício do seu trabalho”.
Ora, se o empregador pode ser demandado e eventualmente, nos termos citados, responsabilizado por acto de terceiro é de toda a conveniência que esse terceiro intervenha, que esteja na causa (legitimidade) e que o tribunal a possa apreciar (competência), quer para se apurar todo o ocorrido, quer para se regular definitivamente o litigio. Todas estas questões e interligações têm de ser ponderadas, pois os pressupostos processuais são meros instrumentos de forma destinados a permitir a boa decisão de fundo.
É certo que a autora não optou por aquele processado especial socorrendo-se antes de acção comum, o que não cabe no âmbito do recurso, nem interfere na argumentação de fundo, até porque a causa de pedir e pedido formulados na presente acção são de idêntica natureza aos que podem ser pedidos naquela acção especial – vd ac. RL de 21-03-2012, quanto à competência dos tribunais de trabalho para julgar questões de assédio moral ser extensível a outras entidades para além do empregador.

Assim sendo o tribunal é competente em razão da matéria.

EXCEPÇÃO DE INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL POR FALTA OU ININTELIGIBILIDADE DA CAUSA DE PEDIR:

Insurgem-se as 2ºe 3º RR contra a improcedência desta excepção, que haviam arguido, na essência com base em alegada falta de factos e de ininteligibilidade da causa de pedir e da pretensão contra eles deduzida.
Sabe-se que a petição inicial é a peça através da qual a acção é proposta em juízo, sujeita a certas exigências, entre elas a formulação do pedido e narracção da causa de pedir – 552º/1/d/e, CPC.
O pedido é a pretensão formulada, a providência que se pretende obter e ver declarada pelo tribunal para resolver o conflito de interesses. A formulação do pedido é um corolário do princípio do dispositivo e do ónus de impulso processual inicial - 3º, 1, CPC.
A causa de pedir é constituída pelo acervo essencial dos factos que integram a previsão da norma que concede à parte o efeito pretendido.
Ambos delimitam o objecto do processo - que sem eles não existe- e a decisão de mérito a ser proferida. O tribunal só poderá ocupar-se das questões que lhe sejam submetidas para apreciação, salvo as de natureza oficiosa, não podendo ir buscar outra causa de pedir (núcleo de factos), sendo-lhe também vedado condenar em quantidade superior ou objecto diverso do que se pedir, sob pena de nulidade – 608º/2, 609º/1, 615/1/d/e/ CPC.
Há ineptidão do pedido e da causa de pedir (186º, 2, a), CPC), quando algum deles seja omitido ou quando, embora existindo, sejam obscuros não permitindo entender quais sejam, ou mesmo quando a causa de pedir é tão genérica ou abstracta que, em bom rigor, não constitui alegação de factos concretos - José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, Vol. I, 4º ed, p. 374.
Decisivo é que o tribunal não tenha dúvida sobre a tutela que é requerida e qual o seu fundamento e que a parte contrária possa exercer o contraditório (186º, 3, CPC).

Na decisão recorrida escreveu-se:
Ora, no caso dos autos, percebe-se que a Autora alega que celebrou um contrato de trabalho com a 1ª Ré, e que, no desempenho das suas funções, teria sido, alegadamente, vítima de actos de assédio sexual – que descreve – praticados por um trabalhador da 2ª Ré, e que os RR. nada fizeram para alterar a situação daquele trabalhador, de modo a evitar a prática de futuros actos de assédio.
Esta factualidade que integra a causa de pedir invocada pela Autora foi claramente entendida pelos Réus, como se vê da sua contestação. Acresce que os pedidos formulados estão de acordo com aquela causa de pedir…..
Na essência este “apanhado” está correcto, pese embora a causa de pedir invocada seja mais ampla, incluindo actos reiterados praticados pelo 3º RR, PCA de ambas as rés, remetendo-se para o acima referido a este propósito.
Percebe-se a pretensão da autora e a sua base fáctica (violação de direitos de personalidade no trabalho cuja causa radica em passividade ou em actos de assédio protagonizados pelos RR). O tribunal entendeu. As RR entenderam a matéria que é trazida ao tribunal e o pedido, contestaram, excepcionaram e reconvieram. Não há dissenso sobre aquilo que é o objecto do processo, o que divide as partes é o mérito da acção, o direito.
Improcede a alegação.

RECONVENÇÃO

Os 2º e 3º RR. deduziram reconvenção pedindo a condenação da autora em indemnização de 10.000,00€, a pagar a cada um, por danos não patrimoniais causados pelo facto de aquela ter propagado factos inverídicos que ofendem gravemente a credibilidade, o prestígio e a confiança devidos à RR. e por formular juízos ofensivos da sua honra e consideração.
O pedido reconvencional não foi admitido.
A reconvenção é um pedido autónomo deduzido na contestação pelo réu contra o autor. É uma acção cruzada em que o réu aproveita para formular um pedido, não se limitando a contestar, pelo que, para ser admissível, é necessário que apresente pontos de contacto com a acção inicial.

Segundo o art. 30º do CPT e 126º, 1, al.s n), o), LOSJ (4) a reconvenção só admissível (5):

i) se emergir do facto jurídico que serve de fundamento à acção;
ii) caso se destine a obter compensação;
iii) caso o pedido do réu tenha conexão com a acção, por se relacionar com o pedido do autor por acessoriedade, complementaridade ou dependência.

Da comparação deste regime com o previsto na lei processual civil (266º CPC), retira-se que a dedução da reconvenção em processo de trabalho é admitida em moldes bem mais restritivos. Desde logo, não é admissível caso se baseie nos fundamentos de defesa invocados pelo réu. Aponta-se que tal se justifica por especificidades ligadas à protecção do trabalhador, visando evitar-se que a ré, por norma a entidade empregadora, se sirva da acção para, em defesa indirecta, contra aquele deduzir pedidos autónomos.

Diz-se na decisão recorrida:
“….os pedidos em causa não podem ser enquadrados em nenhuma das alíneas do nº 2 do artigo 266º do CPC.
Com efeito, não emergem de facto jurídico que fundamentem a acção ou a contestação, não se pretende obter a compensação e muito menos tornar efectivo o direito a benfeitorias, nem com eles se pretende obter o mesmo efeito jurídico que a Autora pretende com a propositura da acção.”
No caso o requisito de conexão que releva é se o pedido reconvencional emerge” de facto jurídico que fundamentem a acção”.
O conceito de facto jurídico que alicerça a acção refere-se aos factos concretos e específicos invocado pelo autor para fundamentar o pedido (causa de pedir). Exige-se identidade entre a causa de pedir da acção e da reconvenção, tendo esta última de se sustentar nos factos em que assenta o pedido do autor. A identidade, se não tem de ser completamente absoluta, terá de o ser, pelo menos, no essencial. Note-se que os factos podem ser os mesmos, mas alegados numa perspectiva oposta, isto é, o réu pode pedir o efeito jurídico contrário ao do réu (ex. anulação de contrato versus validade do contrato).
Ora, no caso a causa de pedir, enquanto núcleo de factos essenciais, é a mesma. Se atentarmos na narração da contestação/reconvenção verificamos que as RR chegam a citar expressamente afirmações/acusações da própria autora que constam da petição inicial e que as RR usam como base do seu pedido.
Constata-se, pois, que o pedido indemnizatório das RR se funda no mesmo núcleo de factos jurídicos que serve de base à acção, dando-se-lhe apenas uma valoração contrária negativa (porque serão falsos) ao pretendido pela autora, o que é válido nos termos supra referidos.
Assim, é de admitir a reconvenção.

QUESTÕES RESIDUAIS
Os RR denominam de excepções a “inadmissibilidade de condenação solidária” e a “inexistência de assédio”. Supõe-se que estejam a pensar em excepções peremptória de direito material. Ora, estas questões não constituem excepções, respeitam apenas ao Direito que é aplicável ao caso. Implicam decidir de mérito e o seu conhecimento carece que esteja assente a materialidade fáctica subjacente. Pelo que só com a discussão da causa em julgamento poderá ser decidido se houve ou não assédio e se os RR podem ou não ser responsabilizados solidariamente.
Quanto ao excesso de resposta por parte da autora em face da arguição de ilegitimidade dos 2º e 3º RR, a que estas se opuseram e reclamaram de nulidade, sobre a mesma ainda não houve pronúncia na primeira instância. Aparentemente por se ter considerado e declarado os 2º e 3º RR partes ilegítimas, prejudicando tal questão. Uma vez que o recurso da autora foi procedente, “retornando” os 2º e 3º RR aos autos, caberá à primeira instância pronunciar-se sobre a questão.

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em (87º, CPT e 663º, CPC):

a ) revogar a decisão recorrida na parte que declarou procedente a excepção de ilegitimidade dos 2º e 3º RR, declarando-se estes partes legítimas;
b ) revogar a decisão recorrida na parte que não admitiu a reconvenção, a qual se admite;
c ) confirmar, no mais, a decisão recorrida, sem prejuízo do dever de pronuncia quanto à arguição de nulidade por alegado excesso de resposta à excepção de ilegitimidade.
Custas a cargo dos 2º e 3º RR.
Notifique.
17-12-2020

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Alda Martins



1. Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s.
2. É sabido que a propósito desta antiga querela jurisprudencial há muito venceu e foi consagrada na lei adjectiva a tese de Barbosa de Magalhães.
3. Lei 62/2013, de 26-08.
4. Lei de organização do sistema judiciário, Lei 62-2013, de 26-08 e sucessivas alterações.
5. Ressalvado o caso específico da acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento que aos autos não interessa.